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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Renúncia-Parte 2-Francisco Cândido Xavier

 

Índice do BlogParte 1- Parte 2

O pupilo de Damiano enxugou uma lágrima.

— Pedirás a Deus, por mim — disse entris­tecido —, rogarás ao Céu que mitigue minha dor, por não possuir a família direta.

— Sim, o lar deve ser uma ilha de suave des­canso no vórtice das lutas terrenas, à feição de um santuário sagrado onde a criatura consiga es­tender seu amor à comunidade universal. Possuí-lo, será receber opima dádiva do Criador; entretanto, Carlos, para nos encorajar a todos nos testemunhos de sofrimento, bastaria recordar que Jesus passou pela Terra sem família direta.

Nesse instante, Damiano aproximou-se, inter­rompendo o colóquio.

Alcione tinha o coração opresso por indefinível angústia. Consultando as tendências da sua sensi­bilidade feminina, experimentava o desejo de se encontrar novamente com o rapaz, tão logo se afas­tasse o velho amigo, para reafirmar o seu afeto, a sua dedicação sem limites. Enquanto trocavam tri­vialidades sôbre a beleza da noite, sua alma cari­nhosa padecia longo anseio. Depois da significativa confissão de Carlos Clenaghan, achava-o mais belo. Os olhos se lhe haviam tornado mais brilhantes, a fisionomia mais expressiva. Alcione chegava a recear pelas comoções que lhe vibravam no espírito sensível. Não havia sonhado tanto? Não era êle o homem esperado ansiosamente? Mas a lição cristã lhe falava, poderosa, no íntimo. Era preciso con­servar-se com o Cristo, ainda que o mundo inteiro lhe fôsse adverso. Lutaria contra si mesma, até ao fim.

Nessa noite, porém, suas preces turvaram-se de lágrimas candentes. As declarações de Carlos não lhe saíam dos ouvidos e a filha de Madalena, pela primeira vez, na Terra, sentia-se cativa de singulares pesadelos.

O pupilo de Damiano, por sua vez, estava impressionado e decidido a cultivar a sublime afeição, acima de tudo. Supunha haver aquilatado o amor sincero da jovem pela inflexão da sua voz, pelo impulso ardente que vislumbrava nas suas pa­lavras de espiritualidade profunda. Experimentava ainda, nas mãos, o calor da mão trêmula que se esquivara ao carinho, qual pássaro assustado. Al­cione estava cheia de uma sabedoria diferente, mas a elevação espiritual, de que dava testemunho, exal­tava-lhe ainda mais os desejos ardentes. Não re­nunciaria aos seus propósitos. Debalde tomava os manuais de oração, no afã de atenuar a inquietude que o atormentava, mas era como se espêsso véu lhe vendasse os olhos dalma. Raciocinava, com­preendia a sublimidade dos textos, mas não con­seguia confeiçoá-los ao coração. A palavra serena e sábia da moça forçava-o a reflexões mais sérias, mas, no curso dos dias, o sobrinho do velho sacer­dote da igreja de São Vicente nada mais fazia que exacerbar os próprios desejos. De quando em vez, voltava a lhe falar no assunto, mas, encontrava-lhe o coração sempre blindado na fé, e sempre inspirada e vigilante.

Decorridas algumas semanas, certa feita en­controu-a sozinha, no santuário, retirando os adornos de antigo altar, após a missa.

Em tôrno, tudo era silêncio naquela manhã ba­nhada de sol.

Damiano, terminada a missa, retirara-se ao presbitério, levemente indisposto. O jovem sacer­dote, inflamado de paixão, achou que a opor­tunidade era ótima para expandir-se mais uma vez, recapitulando os idilios que fazem as delícias dos corações enamorados.

Após a saudação carinhosa, em que os dois manifestavam natural perturbação, o rapaz falou comovido:

— Não te admires de assim falar no recesso de um templo. Esta é a casa que Deus me facultou e não disponho de outro recurso. Há muitos dias, venho espreitando a possibilidade de alguns minu­tos, para confiar-te as minhas infinitas inquie­tações.

O próprio Carlos notava que a jovem se tor­nara mais pálida pela comoção que lhe ia nalma. Contudo, solidamente apegada aos seus princípios de virtude, a moça respondeu, esforçando-se por manter a maior serenidade:

— Inquietarmo-nos será enorme êrro. Se Deus nos honrou com os trabalhos, não nos esquecerá com os recursos da paz necessária ao cumprimento do dever.

— Compreendo, replicou êle quase impaciente, mas começo a crer que me não amas bastante. Aproximo-me de ti, sedento o coração, e vejo que as tuas objeções paralisam meus impulsos...

Assim falando, reparou que a jovem se tornara branca de mármore. Pela primeira vez, diante dêle, Alcione chorou. O apêlo era demasiado forte para que se contivesse impassível.

— Desvairas, Carlos? — perguntou com an­gustiosa inflexão. — Admites minha amorosa dedi­cação estraçalhando os programas do Cristo? Deus conhece minhas vigílias em preces fervorosas. Des­de que nos vimos pela primeira vez, diluo as minhas aspirações mais antigas em lágrimas dolorosas.

Contemplando-a nessa atitude, o rapaz avançou alguns passos visivelmente emocionado. Tomou-lhe a mão, de leve, e, de olhos marejados de pranto, acrescentou:

— Perdoa-me! O amor me alucina. Tenho feito o possível por descansar a mente, confiante em Jesus e na certeza da vida eterna; entretanto, a paixão me obscurece a razão e caio sempre ven­cido nessas batalhas silenciosas do pensamento... Tua imagem, sempre ela, a me preocupar o cérebro e o coração atormentados! Vejo-te a cada hora, em tudo e em tôda parte, sinto-te nos mínimos episó­dios da vida e creio divisar teu sorriso até no fundo das hóstias consagradas...

— Não procedas assim — disse a moça extre­mamente conturbada —; tua dedicação afetuosa sensibiliza-me o coração de maneira intraduzível, mas só Jesus é bastante digno do amor supremo. Amo-te também, acima de tôdas as coisas da Terra, mas sou mísera criatura, Carlos. Repletemos nossa alma com a visão sublimada do sacrifício pelo dever. Não creias que eu possa viver sem sonhar com os teus carinhos, mas considera que não será justo colocar tôdas as nossas ânsias nos aspectos exteriores da vida. A felicidade no plano imortal deve ser como a planta que nasce e se desenvolve gradativamente. Por que aniquilar o germe de nossa ventura sublime, por simples inquietação de espí­rito inconformado? E se a primeira vergôntea da nossa união divina tem a profunda beleza de um ideal celeste, como será imensa a sua beleza quando se tomar em dadivosa fronde de amor, nos lumi­nosos paços da eternidade? Estamos no período das almas esperanças, quando as sementes bro­tam... Se é indispensável adubar com lágrimas, não hesitemos um instante!...

O sobrinho de Damiano ouvia enlevado. Sen­tindo a sutileza delicada dos apelos feminis da religiosa e meiga Alcione, apertou-lhe a mão entre as dêle, mais fortemente, e obtemperou:

— Concordo com a tua resignação admirável, embora não participe das tuas virtudes celestiais; entretanto, penso que não se nega uma gôta de orvalho à planta tenra! Não me deixes órfão da tua ternura. Ouve, querida! Concede-me a dita de um beijo apenas e serei o mais ditoso dos sêres...

A moça fêz um gesto de doloroso espanto, ao mesmo tempo que pervagava o olhar pela nave si­lenciosa.

— Não temas — prosseguia Carlos febril-mente —; os santos que nos assistem são mais compreensíveis que os homens criminosos. Sob tetos humanos, envenenariam as nossas atitudes sagradas, mas aqui estamos na morada de Deus, que é Pai amoroso e sábio...

Alcione Vilamil, no entanto, fêz um gesto de recuo e murmurou:

— Não posso!

— Por quê? — revidou Cienaghan em tom de mágoa.

Então, envolvida num halo de tristeza indefi­nível, ela explicou:

— O incêndio devastador começa de uma sim­ples fagulha.

— Mas nós temos sido deserdados, Alcione...

— E que dizermos de um homem — continuou com energia e serenidade — que, sentindo o frio do inverno, acendesse um lume imprudente no seio da floresta acolhedora, ameaçando a própria casa e a paz dos seus habitantes, tão só a pretexto de se livrar do frio?

Ante a inesperada resistência, o pupilo de Da­miano sentiu-se envergonhado.

— Sou bem infeliz — disse amarguradamente entretanto, estou convencido de que nunca trai meus deveres!...

— Lembremos, Carlos, os antigos apóstolos da Igreja, quando advertiam que, depois de cumpridos todos os deveres, ainda nos deveríamos considerar servos inúteis, porque tudo nos vem da misericórdia divina...

O rapaz admirava-lhe a energia afetuosa, caíra novamente em si do desvario momentâneo que lhe perturbara os sentidos, mas conservava-se inerte, deixando correr copiosas lágrimas.

Profundamente comovida, a jovem acentuou:

— Não posso dar o beijo que pediste, mas posso dar-te o ósculo de minh’alma.

Retirou do pequeno altar próximo um crucifixo de prata, sobrepôs no peito do Crucificado minús­cula fôlha de trevo e acrescentou:

— Abaixo do Céu, Carlos, és o meu maior afeto; entre nós, porém, está Jesus-Cristo. Em nossa consciência, o Senhor ainda não nos permite uma aproximação integral. Pois bem: confio a Jesus o beijo da minh’alma, para que seu miseri­cordioso coração te entregue a minha pobre lembrança.

Em seguida, beijou a fôlha de trevo, passando a pequena relíquia de prata ao escolhido, que os­culou por sua vez a fôlha minúscula, com indizível carinho.

Aquela singular concessão pareceu calmá-lo. Sorriu confortado, agradecendo com palavras afe­tuosas à noiva espiritual, obtemperando em se­guida:

— É preciso suportar o isolamento e cumprir o dever até ao fim...

Alcione, quase satisfeita, completou-lhe a con­cepção nestes têrmos:

— De cidade em cidade, há sempre alguma distância a percorrer. É intuitivo que da imperfeição de nossos espíritos à perfeição do Cristo há a contar uma distância quase imensurável... Por­tanto, qualquer discípulo sincero, para se unir ao Mestre, tem de sobrepor-se à limitação e mesqui­nhez da natureza humana, disposto a tolerar as fadigas da solidão inerente à grande jornada. Se­melhante estado, Carlos, identifica todos os que vão sentindo o tédio do mundo, ansiosos de novas luzes. Jesus nos aponta os caminhos e não seria justo que estacionássemos, alegando temor da sole­dade benéfica que nos ensina a ver o próprio coração como um livro aberto!... Apenas aí, a sós conosco, podemos discernir mais claro o justo do injusto, o bom do mau.

Clenaghan retirou-se plenamente confortado, experimentando o espírito banhado em fôrças novas.

Os dias continuaram a sua marcha, ao mesmo passo que as gentilezas crescentes do novo sacer­dote para com a filha de Madalena Vilamil iam-se tornando pasto da maledicência devota. Espiolha­va-se o assunto em surdina, quando o rapaz deli­berou recorrer à experiência do tio, para resolver a situação. Damiano recebeu-lhe a palavra con­fidencial com alguma surprêsa. Carlos alegava que, dada a falta de vocação sacerdotal, pretendia rejei­tar a batina, ainda que devesse contar com as mais ásperas censuras. Influia nessa deliberação o amor que Alcione lhe inspirava e que êle revelou ao tio pausadamente, na atitude espontânea, própria dos jovens apaixonados. Padre Damiano mostrou-se logo muito preocupado, considerando a gravidade do caso, e aconselhou ao pupilo não resolver tão delicado problema com a precipitação dos espíritos levianos. Sempre fôra contrário à realização do voto da irmã, mas, em tal emergência, era impres­cindível proceder com a maior prudência. Fêz ver ao sobrinho os obstáculos ponderosos, as ameaças dos novos rumos e, por último, já que se consi­deravam quase como familiares de Madalena, su­geria que o assunto fôsse levado à análise da viúva Davenport e da filha, a quem interessaria, maior­mente, tôda e qualquer decisão. Carlos Clenaghan aceitou a idéia visivelmente satisfeito.

Chegados a casa da filha de D. Inácio, encon­traram-na só, à espera da jovem gue havia saído em companhia de Robbie, momentos antes, O velho sacerdote aproveitou a oportunidade para explanar detidamente o assunto. A nobre senhora mostra­va-se muito admirada, sem poder disfarçar a estra­nheza que a resolução de Clenaghan lhe causava. Madalena sentia-se assaz embaraçada para opinar judiciosamente em problema tão melindroso. Quan­do os últimos esclarecimentos do padre Damiano se fizeram ouvir, a viúva Davenport respondeu muito pálida:

— Tudo isso é muito estranho para o meu coração de mãe, pois ignorava que entre minha filha e o padre Carlos pudessem existir laços afe­tivos de tal natureza...

— Não será bem assim que devemos dizer —atalhou Clenaghan nobremente. — O que meu tio acaba de expor não passa, por enquanto, de preten­são minha. Não existem laços entre nós, mas sim inclinações; nem Alcione poderia presumir ou saber dos meus desígnios de alijar a batina.

— Ela ignora, então, as providências em curso? — perguntou a senhora Vilamil bastante surpreendida.

— Sim — reafirmou Carlos, com sinceridade —, meu tio e eu deliberamos vir a vossa casa, dada a nossa confiança e intimidade. Não desejávamos resolver tão delicado problema por nós mesmos, quando a solução parece que nos afetará a todos.

A viúva teve um gesto expressivo, eviden­ciando o seu embaraço, mas o jovem sacerdote, percebendo-lhe a estranheza, continuou:

— O ambiente convencional em que me en­contro sufoca-me o coração. Temos necessidade de emancipação espiritual. Não quero dizer com isso que abjure a crença que me alimenta o espírito desde a infância, e sim que não concordo com o celibato compulsório, porque, para mim, o padre católico-romano jamais poderá colaborar santamen­te na edificação da família humana, deixando de constituí-la êle mesmo.

A filha de D. Inácio ouvia aquêle desabafo um tanto constrangida. No íntimo, desejaria revidar, defender a missão do sacerdote, neutralizar uma providência que poderia acarretar grandes amargu­ras à filha. A presença do padre Damiano, porém, não lhe consentia maior franqueza. Habituara-se a estimá-lo quase como ao próprio pai. Admitia o seu bom senso, aceitava a superioridade da sua longa experiência da vida. Se êle deliberara afetar-lhe o assunto, é que teria razões ponderáveis para isso. Mal acabava de assim pensar, quando o velho sacerdote ponderou:

— Vejo, Madalena, que o caso te impressiona mais do que poderia supor. É natural, porqüanto o coração materno é sempre uma sentinela vigi­lante. Eu não ignorava que as preocupações de Carlos te magoariam a alma sensível, mas, minha filha, não tive remédio senão informar-te devida-mente, com a devida franqueza. Trata-se da ven­tura de dois corações muito jovens e eu me sinto incapaz de intervir mais decisivamente, mesmo por­que, penso que meu sobrinho nada pode nem deve resolver, sem que Alcione seja ouvida.

A nobre senhora compreendeu os escrúpulos do velho sacerdote e confessou:

— Também julgo muito arrojadas as preten­sões do padre Carlos, no sentido de enfrentar a sociedade em que vivemos, mas sou a primeira a desejar a felicidade de minha filha. Por ela, sinto que devo recalcar minhas concepções pessoais do dever e da vida. Aliás, devo esclarecer que Alcione nunca me deu a menor preocupação, sendo esta a primeira vez que me vejo compelida a examinar problema tão difícil, condizente ao seu futuro. Por isso mesmo, confio em que ela própria saberá elucidar-nos o que mais convenha...

Nesse comenos, Alcione entrou de surpresa, saudando afàvelmente os amigos.

Mais alguns momentos e padre Damiano lhe pede atenção para o assunto em foco. Enquanto Clenaghan acompanhava as suas palavras visivel­mente emocionado, a jovem recebia a noticia com intranquilidade e amargura.

— Como vês, Alcione — terminava o velho sacerdote —, as intenções de Carlos preocuparam-me sobremaneira e me senti sem fôrças para resolver só por mim. Já me entendi com tua mãe e agora esperamos que te pronuncies sinceramente.

A moça dirigiu ao amado de sua alma um olhar de exprobração, e, sentindo-se encarcerada num círculo de opiniões, onde a sua deveria pre­valecer mais fortemente, esclareceu:

— Em consciência, padre Damiano, não posso concordar com tudo isso. Ao que suponho, Carlos está sendo vítima de grande equívoco. Alma al­guma poderá ser feliz olvidando seus deveres. Nossa afeição seria condenável se forçasse um de nós a esquecer as suas obrigações.

Nesse instante, o moço contemplava-a entris­tecido, amargurado com aquela resistência, ao passo que o tutor justificava:

— Compreendemos a delicadeza dos teus sen­timentos, mas, vale advertir que, qual se tem dado com outros muitos, Carlos se desligaria dos votos sacerdotais, continuando ao serviço de Jesus, dentro­ do Evangelho. A resolução, portanto, apenas visaria atenuar as exigências tirânicas da Igreja, com referência à felicidade de dois corações nobres e sinceros.

— Padre Damiano — tornou a jovem algo conturbada —, acredito na grandeza da sua com­placência para conosco e lamento bastante ser obrigada a contrariar seu generoso coração, pela primeira vez; mas a verdade é que não posso aplau­dir êsse plano. Admito que o celibato obrigatório representa, de fato, uma exigência tirânica, mas nin­guém deverá eximir um homem dos compromissos assumidos conforme os desígnios de Deus. Nós, que aceitamos a pluralidade da existência na Terra, não podemos haver por meramente casuais os acon­tecimentos que levaram Carlos a envergar a batina. Quem sabe esta sua condição atual não seja uma repetição de experiências pregressas? Quem nos dirá que êle não tenha vivido noutra época, cons­purcando o altar, e que eu não tenha cooperado em suas quedas? Não será justo soframos ambos a conseqüência de nossos erros? Ainda que assim não fôra, tínhamos a considerar, necessariamente, os desígnios de Jesus, sublimes e insondáveis. É ver­dade que consagro a Clenaghan uma afeição intensa e divina, que confesso diante de mamãe pela pri­meira vez. Esta circunstância, porém, não será motivo de queda espiritual, mas antes de estímulo para que redobre meus zelos pelo seu nome, O im­perativo eclesiástico pode ser muito duro, mas creio não sermos os únicos a sofrer-lhe as conse­qüências. Outras almas, tão sinceras quanto as nossas, estarão sofrendo e confiando na bondade de Jesus-Cristo.

O velho sacerdote não esperava da jovem outra atitude senão aquela com que testemunhava a suprema elevação do seu espírito, mas estava sur­preendido pela maneira como se exprimia, pela inflexão da voz, cuja emoção se casava à firmeza dos raciocínios.

Nesse ínterim, Clenaghan interveio, murmu­rando:

— Teus pareceres, Alcione, evidenciam o acen­dramento de tua bondade; todavia, tenho refletido na renúncia dos meus votos como ato de coragem e fidelidade espiritual.

— Sim, para o mundo — aparteou Alcione —talvez fôsses uma criatura desassombrada; mas onde estaria a verdadeira coragem? Na decisão escandalosa de um dia? Ou no sagrado cumprimento dos votos empenhados para uma vida inteira?

O rapaz não pôde dissimular a enorme sur­prêsa que o argumento lhe causava. Sob os olhares perscrutadores de Madalena e do tio, Carlos parecia titubeante, acentuando, porém, como a defender-se:

— Não sou, contudo, o primeiro a pensar nisso. Outros sacerdotes renovaram suas concepções e mu­daram de roteiro, em vista das absurdas e crimino­sas imposições de que eram vítimas.

Alcione pareceu meditar um momento e res­pondeu:

— Renovar concepções é um dever nobre de tôda criatura, mas um pai sômente se engrandece quando eleva consigo todos os filhos da sua casa; nunca, porém, deixando a família ao abandono. Um sacerdote do Cristo, Carlos, ainda que incom­preendido no mundo, deve ser sempre um pai... Quanto a mudar de roteiro, é coisa outra que me­rece atenção especial. É justo que um passageiro dessa ou daquela embarcação troque de navio em pleno mar, ou que se deixe ficar à tôa em pôrto diferente, acreditando abreviar a viagem; mas, que dizer de um comandante que assim procedesse com os que nêle confiam? Não será melhor permanecer, tanto nas rotas perigosas como nas ondas mansas? E que é nossa vida neste mundo senão uma viagem para esferas mais altas? Dia virá que chegaremos ao pôrto da verdade e é necessário cumprir o dever até ao fim. Para as almas vulgares, a existência pode representar um conjunto de possibilidades, de levianas experiências, mas nós, que já recebemos algum conhecimento das coisas divinas, não pode­mos interpretar a passagem pela Terra senão como santa oportunidade de trabalho e purificação!... Referimo-nos à organização tirânica da Igreja, mas seria injusto esquecer que um instituto defeituoso apenas se regenerará quando prevaleça a atuação de seus elementos mais dignos. Os maus padres hão de desaparecer quando os sacerdotes inteligentes e devotados tiverem a coragem da renúncia a bene­fício da Igreja, permanecendo na tarefa por amor aos necessitados e ignorantes, que Jesus lhes con­fiou!...

Damiano estava profundamente comovido e impressionado. Aquêles conceitos não pareciam de­rivar de um cérebro humano. Após longa pausa, o ancião, de olhos úmidos, acrescentou solenemente:

— Creio que as explicações de Alcione nos vêm de mais alto. A claridade do dia do Pentecos­tes nunca morreu no mundo.

E, dirigindo-se ao pupilo, frisava:

— Como vês, nada tenho a dizer. Minhas objeções de velho poderiam ser levadas a conta de impertinência. Jesus te envia, contudo, pela pró­pria eleita, a mensagem salvadora. Não hesites, meu filho, entre o capricho e o dever!...

A pequena assembléia familiar dispersou-se friamente. Carlos Clenaghan, comovidíssimo, des­pediu-se de Alcione enxugando uma lágrima. No dia seguinte, de manhã, compareceu à missa de rosto angustioso, demonstrando que as provas da véspera lhe haviam calado fundo no coração.

Damiano também estava mais impressionado do que se poderia supor. As afirmativas da discípula ressoavam-lhe aos ouvidos em poderosas vibrações. Suas experiências da vida eram rudes e longas, mas nunca se lhe deparara uma jovem com tamanha compreensão do sofrimento e do des­tino. Que fôra a sua vida de sacerdote senão aquêle rigoroso programa esboçado pela jovem Alcione? Recordava os tempos difíceis, as horas de tentações mais ásperas, os sacrifícios longos, as dores que pareciam sem têrmo, para concluir que Jesus lhe enviara luzes consoladoras pelos lábios carinhosos daquela criatura que sempre estimara como filha.

Ainda assim, competia-lhe ponderar grave­mente a situação. Era necessário subtrair Alcione ao ambiente de Ávila. Além disso, impunha-se uma alteração de regime, visto que os dois se amavam intensamente e convinha distanciá-los a título pre­ventivo. Madalena Vilamil sempre esperara, pacien­temente, a oportunidade de conhecer a América do Norte. Os acontecimentos pareciam favorecer e reavivar os seus desejos. Como, porém, realizá-los? Muitas vêzes, as ocasiões haviam surgido, mas só-mente para as colônias espanholas e êle as recusara sempre, porque não seria razoável submeter a se­nhora Davenport e os seus a penosas peregrinações.

Damiano lembrou-se do seu espicilégio. Talvez os documentos particulares lhe sugerissem algum empreendimento. Releu a carta de um amigo de Paris. Convidava-o a rever sua comunidade e tra­balhar na capital francesa. Não seria difícil partir da França para o norte da América. Satisfeito com o achado, reteve a idéia durante um mês. Decor­rido êsse prazo, quando as pretensões de Clenaghan já estavam esquecidas na residência de Madalena, o velho sacerdote começou a tratar do assunto.

 


2

Novamente em Paris

Madalena Vilamil acolheu o alvitre do velho sacerdote, entre cismas e esperanças. Desejava, sinceramente, poder um dia abraçar os Davenport. Nunca renunciara ao propósito de ouvir algum sobrevivente do naufrágio em que, segundo a carta de Blois, perdera o espôso amado, Os anos haviam corrido entre esforços angustiosos, mas nunca se lhe apagara na mente a figura de Jaques com a sua generosidade paternal. Às vêzes, conjeturava que o carinhoso benfeitor de Blois também já houvera falecido. Ainda assim, seria sempre pos­sível encontrar Susana ou algum dos irmãos de Cirilo, no Connecticut. Ao demais, sentia-se can­sada e doente. Não seria prudente aproximar Alcione dos parentes? Temia morrer deixando a filha sem parentes próximos que lhe velassem pelo futuro. Em tempo, alimentara a esperança de um casamento feliz, mas agora estava certa de que êsse problema, na vida da jovem, era muito mais complexo do que poderia supor. Se a morte lhe sobreviesse, poderia contar com a afeição sincera do padre Damiano, mas também notava que o velho amigo ia-se curvando para a terra, devaga­rinho, ao pêso do intenso trabalho junto das almas. Quanto ao filhinho adotivo, não podia presumir nem esperar dêle outra coisa que não fôsse preocupações e trabalhos ásperos. Alcione não poderia esperar de Robbie o concurso necessário no porvir. Antes, pelo contrário, ele é que não poderia pres­cindir do seu arrimo fraternal. E, nada obstante, a espôsa de Cirilo sentia-se sem coragem para aderir ao projeto. Compreendia as vantagens e o acêrto da emprêsa, mas sentia-se ao mesmo tempo exausta de fôrças para tentar a jornada penosa. Não hesi­taria, se a viagem estivesse definitivamente deci­dida e traçada em seus detalhes; entretanto, a per­manência em Paris, antes da resolução definitiva, infirmava-lhe o ânimo. A capital francesa regur­gitava de recordações doces e amargas para o seu espírito sensível. Rever os lugares onde conhecera a inolvidável ventura da mocidade não significaria abeirar-se do túmulo dos mais lindos sonhos e chorar para sempre? E enquanto ela assim relu­tava, Damiano intervinha solícito, valendo-se das ocasiões em que se encontravam a sós.

— Reconheço quão amargurosas são as tuas expectativas, mas penso que a felicidade de Alcione e as necessidades de Robbie justificam teu sacri­fício. Creio que o ambiente de Ávila já proporcio­nou às duas crianças o máximo de experiência. E chegados a êste ponto, nutro os meus receios pelo sobrinho. Alcione nos deu vigoroso exemplo de fé e sacrifício, recusando-lhe os planos de rapaz im­petuoso, sacrificado na sua vocação; mas, não será o caso de auxiliarmos agora a generosa menina, prodigalizando-lhe um bálsamo ao coração dilace­rado? É que, não obstante o bom senso e a gran­deza dalma, ela deve ter o coração repleto de amor. Isso é inegável. Considero crueldade expô-la, dià­riamente, ao exame da sua chaga. Em cada por­menor da igreja, como em cada paisagem de Ávila, seus olhos carinhosos hão de ver a figura do amor torturado e insatisfeito. Por outro lado, pressinto em meu sobrinho manifesta incapacidade de renún­cia. A meu ver, êle deu tréguas ao problema, sem o quitar no coração. Quando menos esperarmoS, voltará ao assunto com argumentos novos. Não julgas que mais convém prevenir subtraindo Al­cione às tentações? Confio bastante nela, na sua conduta irrepreensível, mas imagino que a medida lhe beneficiará o espírito impressionável.

— Vossa opinião é respeitável, padre Damia­no, mas, por mim, penso que Paris fica demasiado longe...

— E, contudo, a mudança para outra região espanhola pouco adiantaria. Com referência ao caso de meu sobrinho, êle encontraria logo qual­quer pretexto para continuar junto de Alcione, e no que diz com a viagem à América do Norte, àFrança ou à Inglaterra, sômente nos oferecem facilidades.

— Tendes razão — acentuou a filha de D. Iná­cio, convicta.

— Pois reflitamos no caso — concluía o velho sacerdote — certos de que, nas feridas do amor, a distância sempre foi remédio de benéficas reações.

A espôsa de Cirilo passou a considerar a con­veniência da iniciativa, comunicando à filha os seus projetos. Alcione exultou de alegria. O ambiente acanhado de Ávila feria-lhe o coração; os comen­tários maliciosos apoquentavam-na. Todavia, ao re­velar-se jubilosa, não se referiu a tais coisas, ale­gando apenas a esperançosa perspectiva de melhor saúde para sua mãe e para a educação de Robbie. Ante a opinião da jovem, Madalena ganhou novo ânimo. As primeiras providências foram dadas, com grande espanto de padre Carlos.

Enquanto Damiano comunicava para Paris a deliberação de partir, a filha de D. Inácio vendia a chácara aos Estigarríbias. Realizou o negócio sem preocupação e sem mágoas, mesmo porque, seus velhos amigos Dolores e João de Deus haviam partido para a colônia, com certas vantagens ma­teriais, de acôrdo com os patrões. Quanto ao mais, Ávila não lhe oferecia motivo a saudades acerbas. Amparada nas esperanças da filha, estava resol­vida a partir, ainda que tivesse de enfrentar maio­res dificuldades na capital francesa. Enquanto per­manecia irresoluta, Alcione incumbira-se de lhe dissipar os últimos receios. Não lhes faltaria tra­balho nas cidades grandes. A costura era serviço remunerativo em qualquer parte. Além disso, Robbie teria ensejo de prosseguir mais firmemente na música. Padre Damiano assevera não ser im­possível conseguir serviço pago ao seu violino, em alguma igreja. Nesse caso, Madalena animava-se, chegando a esperar com visível satisfação o dia da partida.

Clenaghan, no entanto, mantinha-se em ati­tude reservada, O tutor lhe confiara a igreja de São Vicente com severas recomendações. Fizera-lhe sentir maiormente o quadro de responsabilidades que o cercavam e induzia-o a manter o espírito de renúncia e sacrifício no coração, qual fogo sagrado da sua tarefa. Carlos, porém, parecia alheio aos exercícios religiosos. Alcione era sua preocupação máxima. Inúmeras vêzes buscava-lhe a companhia carinhosa para aliviar o coração, mas encontrava sempre a expressiva nobreza da sua alma cristã, adjurando-o a consumir-se inteiramente pelo dever bem cumprido, em face do Eterno.

Na véspera da separação que o deixaria mergu­lhado em saudades angustiosas, buscou-a de manei­ra a lhe falar intimamente, antes de se apartarem definitivamente. Depois de longas considerações afetivas com que traduzia as penas íntimas do co­ração, assim falou:

— Não sei se poderei suportar para sempre o cativeiro em que me encontro. Sou um pássaro engaiolado, ansioso de liberdade...

— Somos escravos do Cristo — atalhou ela, resignada.

— Farei o possível por viver em observância às verdades que me ensinaste; mas, se um dia fôr compelido a modificar meu roteiro, irei buscar-te na França ou na América, a fim de construirmos o castelo de nossa ventura...

Muitíssimo emocionada, Alcione advertiu:

— Espero que nunca interfiras no que Deus organizou, ainda que se destacassem as razões mais poderosas, porque, acima de tudo, Carlos, suponho que deveremos aguardar nossa ventura entre as luzes do céu.

O pupilo de Damiano calou-se e a palestra pros­seguiu entre juras e compromissos afetuosos.

No dia seguinte, pela manhã, as últimas des­pedidas lhe provocaram lágrimas copiosas. Abraçou o velho tio comovidamente, dirigindo a todos pala­vras de reconhecimento e amor, com os votos sin­ceros de feliz jornada. Alcione estava sufocada. O dever falava-lhe fortemente ao espírito, mas a separação doía-lhe nas fibras mais recônditas. No último instante, as lágrimas lhe saltaram dos olhos. Damiano dava mostras de forte emoção. A senhora Vilamil permanecia recolhida em si mesma. Apenas Robbie mostrava enorme alegria pela novidade da excursão e quase maravilhado com as suas roupas novas.

Um velho companheiro de lutas, que se conser­vava ao lado de Clenaghan, abraçou os viajantes e, reconhecendo a comoção do antigo sacerdote, fa­lou sensibilizado:

— Padre Damiano, não nos conformamos com a sua partida, não sômente pela falta de sua pala­vra animadora, como também porque não acredita­mos que se esqueça de Ávila, onde residiu e traba­lhou longos anos!...

— Sim, meu amigo — respondeu o interpelado sem hesitação —, sem dúvida que não poderei alijar as confortadoras lembranças da igreja de São Vi­cente e das pessoas queridas que aqui ficam; mas, por outro lado, não há esquecer que em tôda parte servimos ao Senhor.

Cada qual fazia por se mostrar mais espe­rançado e confiante no futuro.

Novos adeuses, últimos abraços, e o carro espaçoso partiu aos solavancos e ao trote dos ani­mais pelo caminho empedrado e poeirento.

A viagem em direção ao litoral da Galiza não foi muito fácil; entretanto, com alguns dias de penosa jornada, a pequena caravana atingia Vigo, de onde uma embarcação holandesa a conduziria ao pôrto do Havre. Madalena Vilamil conservava-se melancólica, prêsa de recordações dolorosas da França. Damiano a todos encorajava formulando vastos projetos de futuro. Não seria difícil seguir de Paris para a América, mais tarde ou mais cedo, e essa promessa entretinha e exaltava o otimismo geral. Para distrair Alcione e Robbie, o velho amigo descrevia a beleza dos sítios mais atraentes da capital francesa, falando com entusiasmo da suntuosidade dos templos e dos passeios pitorescos pelas águas do Sena. Madalena ouvia-o atenta, identificando os sítios de suas venturosas excursões em companhia do marido e parecia perder-se num abismo insondavel de saudades ansiosas e lindas recordações.

Afinal, chegaram a Paris, depois de longo tem­po e de experimentarem os maiores incômodos na viagem.

O padre Amâncio Malouzec, da confraria dos Agostinhos e companheiro dedicado de Damiano, esperava-os solícito. Segundo a noticia enviada de Ávila, preparara uma casa modesta no burgo de São Marcelo para Madalena e os seus, reservando um apartamento no presbitério de São Jaques para o velho amigo de muitos anos. A filha de D. Inácio, da caleça em que se encontravam em trânsito, reparava com admiração as ruas e praças do seu conhecimento. Luís 14 reinava ainda e a cidade atestava uma administração vigilante e cuidadosa. Depois de atravessar o burgo de São Vitor, a via­tura penetrava o de São Marcelo e paráva ao lado de modesta casinha. Desceram todos, enquanto padre Amâncio, muito gentil, oferecia a singela residência. A filha de D. Inácio experimentava enorme estranheza pela mudança brusca de ambiente. Procurou, porém, adaptar-se à nova situação. Insistindo pela nota das despesas, fêz questão de pagar tudo, embora Damiano e o amigo fizessem o possível por evitar o feito. Sômente mais tarde, o velho sacerdote retirou-se para São Jaques, quan­do a organização de todos os projetos tranqüilizara Madalena e os seus.

Alcione não conseguia dissimular a surprêsa que lhe causava a extensão de Paris, com as suas expressões de vida intensa. No íntimo, rogava a Deus lhe fortalecesse o espírito para os trabalhos que lhe estivessem ali reservados, pronta à exe­cução dos seus deveres.

A primeira necessidade dos Vilamil foi aten­dida daí a dois dias; padre Amâncio lhes angariou ótima serva, uma velhinha desamparada e dona de nobres sentimentos. Luisa captou logo as simpatias de Madalena e da filha. Há muito que ela se via quase em abandono. As famílias abastadas recusavam os serviços de gente mais idosa e a sua situação era das mais precárias. Tal circunstância aproximou-a mais fortemente da nova patroa, cons­tituindo valioso arrimo para a espôsa de Cirilo, que necessitava incrementar o próprio trabalho remu­nerado, para atender aos gastos domésticos.

Prementes dificuldades, no entanto, esperavam a filha de D. Inácio, que a breve trecho se encon­trou em maiores apuros. Nem sequer pudera sair à via pública, a fim de visitar o túmulo dos pais, como tanto desejava. A mudança de meio trouxe­ra-lhe a revivescência da enfermidade dos pés, com caráter agudíssimo. Padre Damiano, por inexplicá­veis circunstâncias, também adoecera em casa do colega, em São Jaques. Alcione, depois de atender aos encargos caseiros, ia todos os dias de um a outro bairro, grandemente preocupada com os dois enfermos. Em casa, tomava as lições do irmão adotivo, buscava praticar o francês em longas con­versações com Luisa e cuidava, com infinitos des­velos, das melhoras da genitora. Esta, muito im­pressionada com a evasão dos reduzidos recursos que trouxera de Ávila, procurava instruir a filhinha para que a obtenção de trabalho em Paris lhe fôsse facilitada. Em vão, enviou-a em procura de Colete e de outras amizades dos tempos idos. Madalena tinha a impressão de que fôrças impiedosas haviam varrido todos os traços parisienses em que con­centrava as suas lembranças cariciosas. Alcione, apesar da fé que lhe fortalecia o coração, permane­cia igualmente preocupada. Era indispensável aten­der ao tratamento materno, cuidar dos pagamentos à serva, prover as necessidades de Robbie. Em suas visitas a Damiano, abstinha-se de lhe confiar as graves inquietações. O velho sacerdote, con­traindo inesperadamente implacável moléstia dos pulmões, definhava dia a dia. A jovem, porém, criou coragem e solicitou o socorro do padre Aman­cio, a fim de lhe angariar algum trabalho. Costu­rava, bordava, ensinava música e talvez não fôsse difícil obter colocação nalguma oficina honesta, ou em casas abastadas. O novo amigo dos Vilamil pôs-se em campo. Antiga costureira, nas vizinhan­ças da ponte de São Miguel, autorizou padre Amàn­cio a lhe mandar a candidata para lhe conhecer as habilitações.

Alcione apresentou-se. Madame Paulete, que mascarava os péssimos costumes com atitudes bea­tas, não gostou do seu porte nobre e da sua can­dura. Era demasiado pura e simples para servir-lhe aos propósitos obnóxios.

Após observá-la meticulosamente, a costureira esboçou um gesto significativo e sentenciou:

— Lamento bastante, mas não é possível uti­lizar seus serviços, por enquanto.

— Por que Madame? — perguntou a filha de Madalena com inflexão de tristeza, por ver aniqui­lada a sua esperança.

A interlocutora procurou ocultar os verdadei­ros sentimentos, acentuando:

— Sua dificuldade de pronúncia não satisfaz as exigências da freguesia.

— Mas poderei costurar sem inconveniente e, com o tempo, creio poder satisfazê-la no referente à linguagem.

— Não posso — disse a outra, inflexível —, a clientela de bom gôsto exige muitos recursos verbais.

Alcione, muito humilde, deixando transparecer grande amargura na voz, insistiu:

— Madame Paulete, certamente a senhora está com a razão; entretanto, ousaria apelar para sua bondade. Tenho muita necessidade de trabalho!... Minha mãe está gravemente enfêrma e, além disso, tôdas as despesas da casa correm por minha con­ta... Se a senhora pudesse admitir-me em sua oficina de costura, pode crer que praticaria uma ação caridosa e justa, com o nosso eterno reconhe­cimento. Quem sabe terá outros serviços de que me possa ocupar, honestamente, em sua casa? Sem conhecimentos em Paris, estamos em luta com os maiores obstáculos.

Essas palavras, porém, embora denunciassem extrema aflição de uma filha carinhosa, não produziram efeito. Madame Paulete, com expressão algo irônica, voltou a dizer:

— Infelizmente não estou em condições de atendê-la; mas, minha menina, não será só a costura que lhe poderá valer. Há muitas mulheres da sua idade ganhando a vida em Paris, com menores esforços.

Enquanto Alcione, surpreendida com insinua­ção tão ingrata, sentia-se impossibilitada de responder, a interlocutora concluía impiedosamente:

— Com seus modos simples e com a sua ju­ventude não seria difícil.

Alcione sufocou as lágrimas dentro do peito e despediu-se. Atordoada com o burburinho das ruas, voltou a casa, submersa em graves cogitações. Madame Paulete fôra cruel, mas cumpria colocá-la em sua posição e esquecê-la. Compreendia a inuti­lidade de se entregar a lamentações estéreis. Certo, Deus não lhe havia concedido as claridades divinas da fé para as horas tranqüilas da existência. Seu coração detinha o depósito sagrado, a fim de apren­der a nortear-se para o mais alto, ainda que desa­bassem as mais violentas tempestades. Êsse pen­samento tranqüilizou-a. Não acreditava em Jesus como Salvador distante, sim como Mestre amado, presente em espírito às lições dos discípulos en­tre os sofrimentos e experiências do mundo. Sen­tia-se em momentos de testemunho. O Senhor não a esqueceria. Da sua inesgotável bondade viriam recursos inesperados. Prosseguiria esforçando-se e estava certa de que a mão de Jesus viria em seu socorro.

Engolfada em profundas meditações, entrou em casa, morta de cansaço. Tal como sucedera um dia a Madalena, Alcione também tivera necessidade de tranqüilizar o espírito materno com palavras que disfarçassem as realidades amargas.

De olhos esperançados, a espôsa de Cirilo in­terrogou ansiosa:

— E o trabalho?

Esboçando um sorriso de paz espiritual, a jovem acentuou:

— A oficina me admitirá por êstes dias.

A senhora Vilamil deu um suspiro de alívio e murmurou:

— Graças a Deus! Que me dizes da Madame Paulete? É pessoa respeitável?

— Pouco conversamos, mas, ainda assim, me pareceu pessoa muito estimável e digna.

— Ainda bem — exclamou a mãezinha, des­preocupando-se. — Meu maior receio provém de conhecer alguma coisa dos abusos parisienses. Nem tôdas as costureiras são criaturas dedicadas ao lar.

— Pode ficar tranqüila, mamãe — declarou a jovem por desfazer os temores maternos —; em quaisquer circunstâncias não esquecerei seus bons exemplos.

Madalena Vilamil envolveu-a num olhar de ca­rinho imenso, no qual transparecia a mágoa de não poder locomover-se e trabalhar. Mais comovida, falou depois de longa pausa:

— Conheço de experiência própria o que signi­fica pleitear umas tantas coisas nesta Paris. Antes de nasceres, minha mãe esteve de cama longo tem­po. As necessidades tornavam-se cada vez mais prementes e tive de sair à cata de recursos, com a diferença que eu rogava favores e tu pedes trabalho.

Em voz pausada, entrou a relatar velhas re­miniscências, pintando ao vivo o quadro das falsas amigas de D. Margarida, quando lhe atiraram era rosto certas observações ingratas e implacáveis.

Quando terminou, chorava copiosamente, mas Alcione tomou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a com enternecimento, dizendo-lhe:

— Esqueçamos, mãezinha! Por que recordar coisas tristes? Deus não esquece os seus filhos. Certo que não nos faltará recurso e amparo!... Breve estarei trabalhando, com vencimentos que nos satisfaçam as necessidades. Além disso, padre Damiano, logo que melhore, arranjará serviço mu­sical para Robbie, na igreja. Depois a senhora melhorará e conseguiremos bordados para fazer em casa. Não é verdade que temos um mundo de boas esperanças à nossa frente?

A enfêrma pareceu adquirir nova expressão de bom ânimo.

— Teu otimismo é contagioso — murmurou mais tranqüila —, no entanto, com referência ao padre Damiano, tenho triste nova a dar-te, O reve­rendo Amâncio esteve aqui, na tua ausência, para certificar-nos do seu estado. O médico já perdeu as esperanças, pois, afirma que o velho amigo está tísico e terá poucos meses de vida.

A moça ouvia os informes sem dissimular a dor que lhe causavam. A genitora, porém, prosseguia em tom pesaroso:

— Um pormenor muito grave da situação, se­gundo informa padre Amâncio, é que o nosso ben-feitor não dispõe presentemente de qualquer re­curso.

Notei-o muito preocupado com a atual situação do virtuoso sacerdote, que, segundo alega, tem ne­cessidade premente de efetuar certos gastos, entre os quais, por exemplo, os que decorrem da admissão de um servo, além da aquisição de vários utensílios de uso privado, já que terá de isolar-se, lá mesmo no presbitério, por ser portador de mal contagioso.

— Então o padre Malouzec não pode auxiliá-lo nisso? — perguntou Alcione compungida e aflita.

— Notei-o pouco disposto a fazê-lo.

— E que lhe disse a senhora?

— Fiz-lhe ver que nossas necessidades tam­bém eram duras, nestes seis meses sem trabalho, mas, ainda assim, que esta casinha está à disposição do enfêrmo. Minha declaração desconcertou-lhe um tanto o espírito prático; todavia, tenho preocupa­ções muito justas.

— Providenciaremos para obter o dinheiro —anunciou a moça, resoluta.

— Como? — perguntou Madalena, assaz im­pressionada — se precisamos no mínimo de duzentos a trezentos francos para atender às despesas de ins­talação do doente em pequeno pavilhão separado.

— Estou certa de que não nos faltará a soma precisa — confirmou a jovem. Amanhã cedo irei encorajá-lo e tratar do assunto.

— Com os nossos sofrimentos atuais, acres­centou Madalena, creio que fica liquidado o projeto de viagem à América.

— Não diga tal, mamãe! Nas noites mais es­curas a esperança é um raio mais forte.

A palestra continuou entre motivos de mútuas consolações.

Na manhã seguinte, apesar de muito preocupa­da com o insucesso da véspera, a jovem chegava ao quarto do enfêrmo, antes das nove horas. Não se avistava com o amigo havia três dias. Encon­trou-o muito desfigurado, excessivamente pálido, olhos encovados. Empurrou de mansinho a porta entreaberta, a fim de surpreendê-lo. Reparou-lhe na fisionomia cansada e deteve-se na observação deta­lhada de suas características. Com efeito, piorara muito. As mãos, a reterem volumoso livro, cujas páginas lia atentamente, pareciam de cêra. A res­piração revelava-se algo acelerada. Alcione repri­miu a própria amargura, dominou a emoção e excla­mou sorridente:

— Lendo a Bíblia?

Damiano fêz um gesto de grande alegria, sau­dando-a com ternura. Ela o abraçou e, arrebatando o livro, procurou ver que meditações o preocupavam no momento. Eram as exortações do Eclesiastes:

— “Tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo propósito debaixo do Céu; há tempo de nascer e tempo de morrer.” (1)

— Discordo — murmurou solícita — que o senhor, adoentado como se encontra, esteja a ler estas coisas tristes.

O sacerdote esboçou um sorriso algo desalen­tado, informando:

— À tua mãe, Alcione, talvez não tivesse cora­gem de falar com esta franqueza sôbre o meu caso. Ela é demasiado sensível e já tem sofrido muito. Não seria razoável aumentar-lhe as amarguras. Eis por que preciso desabafar contigo, não obstante a tua mocidade. Já sei que êste meu mal é incurá­vel e não posso deixar de concluir que, para mim, vem perto a hora da partida. Estejamos, pois, for­talecidos em Jesus, porque, como nos diz a Bíblia, a carne é também um vento que passa e nós somos filhos da eternidade!

A moça escutava-o comovida, olhos marejados de pranto. Desde a infância habituara-se a encon­trar naquela afeição os melhores estímulos de coragem

(1) Eclesiastes, 3:1-2. — Nota de Emmanuel.

para as lutas da vida. Estimava-o, qual se fôra seu pai. Instintivamente, lembrou-se do tem­po das vigorosas pregações evangélicas em Ávila. Ninguém diria que aquêle homem robusto, insi­nuante e sugestivo pela sua palavra franca, che­garia àquele estado de miséria orgânica. Seus olhos lúcidos denunciavam o desassombro e a serenidade de todos os dias, mas a expressão geral eviden­ciava enorme astenia. Quis responder, consolá-lo com palavras animadoras, mas nada lhe ocorreu. Forte constrição da garganta lhe embargava a voz. A franqueza do velho sacerdote desarmara-lhe o espírito carinhoso. Impossível ensaiar palavras que iludissem a gravidade da situação, quando o próprio Damiano se sentia tranqüilo e conformado. Perce­bendo-lhe o enleio, o religioso continuou:

— Não falemos de mim, Alcione. Conta-me antes o resultado da diligência de ontem. Conseguiste trabalho?

A pobre menina fêz um gesto triste e sentiu-se no dever de falar francamente ao grande amigo da sua infância.

Quando terminou a exposição amarga, o sacer­dote comentou:

— Imagino como terás sofrido nesse contato direto com a espurcícia humana; entretanto, não sofras por isso. Agradece a Deus o te haver reve­lado Madame Paulete, tal qual é, antes de assumires qualquer compromisso, pois quando nos compro­metemos com o mal, ainda que inocentemente, ali­ciamos grandes dificuldades por nos libertarmos dos seus odiosos laços. No teu caso, pois, devemos estimar a esmola de uma santa lição. É que, às vêzes, naquilo que denominamos maldade e ingra­tidão do mundo, pode existir um socorro divino em nossa própria defesa.

A jovem enxugou as lágrimas e sorriu concor­dando.

— O trabalho honesto não falta — prosseguiu o religioso, paternalmente —; temos outros amigos em Paris. Espero a visita de um colega a quem pedirei se interesse por ti. O padre Guilherme é um companheiro de lutas que conheceu Carlos e sua mãe, ainda na Irlanda. Estou certo de que nos auxiliará.

A jovem, notando-lhe a preocupação sincera, procurou esquivar-se ao assunto que lhe dizia res­peito. E vendo-lhe os pés descalços, perguntou:

— Onde está o agasalho de lã? O senhor não pode ficar assim...

Ele sorriu e informou:

— Guardei-o na mala.

— Por quê? — insistiu surpreendida.

— Creio que, para a semana, me recolherei ao pavilhão dos indigentes, na Misericórdia, ou na casa dos pobres de São Ladres.

— Não pode ser — exclamou a filha de Cirilo, contristada —, não podemos concordar com o seu recolhimento a casas religiosas, como indigente. Nós ainda aqui estamos...

Assim falando, a menina Vilamil tinha o as­pecto mortificado de uma filha angustiada.

— Que tem isso, Alcione? — tornou o reli­gioso, serenamente — não devo sobrecarregar teu coração, que enfrenta agora tantas lutas em si­lêncio! Além disso, não será útil o meu interna­mento nas instituições piedosas? Atualmente não me poderei ocupar dos ofícios eclesiásticos, mas lá, entre os necessitados, talvez encontre algum serviço nas prédicas evangélicas aos mais desdi­tosos.

A resignação do velho amigo provocava-lhe pranto copioso.

— O catre da indigência — continuou Da­miano — deve proporcionar meditações sadias. E não será isso um acréscimo de misericórdia? Basta lembrar que o Mestre não o teve. Seu derradeiro pouso foi a cruz; seu último caldo um pou­co de vinagre; sua última lembrança do mundo a coroa de espinhos!...

Alcione esboçou uma atitude de profunda com­preensão e disse:

— Não rejeito as lições de Jesus e rogo à sua infinita bondade nos proteja o coração para os testemunhos necessários, mas creio que o Mestre atenderá minhas súplicas e entenderá meus rogos filiais!... Diga-me se lhe não falta dinheiro para as despesas imediatas.

E embora convicta de não encontrar recursos com a genitora, asseverou, confiando em Jesus:

— Pode crer que, não obstante as dificuldades do momento, ainda temos recursos suficientes para cuidar das suas melhoras.

Damiano parecia acanhado, em vista da sua carência absoluta de meios, mas, esforçando-se por confessar a verdade, acabou murmurando:

— De fato, meus recursos estão esgotados com as despesas que fui obrigado a fazer, aqui em São Jaques, mas não nos preocupemos com o dinheiro, filha...

— Não, não é o dinheiro que me preocupa, e sim as suas necessidades... Não concordo com a sua transferência para a Misericórdia. Se não puder ficar aqui, ficará em nossa casa.

E como o sacerdote experimentasse certa difi­culdade para redargüir, Alcione continuou:

— Perdoe-me, se intervenho ousadamente em tal assunto, mas o que reclamo tem prerrogativas de direito — o direito da amizade. Sempre o con­siderei um pai. Diga-me: quanto pede o reverendo Amâncio pelas suas novas acomodações?

De olhos brilhantes no testemunho de humil­dade daquela hora de extremas provações, Damiano respondeu:

— Duzentos francos para a aquisição de uten­sílios e pagamentos iniciais a um serviçal.

— Ora essa! — disse a generosa menina reve­lando despreocupação — nunca mais me fale em se reunir aos indigentes por tão infima quantia! Queira assumir o compromisso, porque depois de amanhã trarei o dinheiro. Temos maior quantia lá em casa e não nos fará falta de maneira alguma.

O velho amigo dirigiu-lhe um olhar de reco­nhecimento.

Ainda trocaram idéias e consolações por algum tempo, ficando ela de voltar dali a dois dias, e o velho sacerdote falou da esperança que tinha na próxima visita do padre Guilherme, que, por certo, não lhes faltaria com prestimosa cooperação.

Alcione despediu-se, mostrando-se confortada, mas tão logo alcançou a rua, sentiu-se prêsa de extrema preocupação. Onde conseguir duzentos francos para socorrer o amigo doente? Debalde excogitava meios de satisfazer a promessa. Os vizinhos eram gente paupérrima. Obter qualquer adiantamento em oficinas de trabalho, era impos­sível, porqüanto não alcançara nem mesmo um trabalho certo. De alma opressa, lembrava que não poderia confiar o assunto à genitora, fazendo-a sofrer mais que ela própria. Entretanto, era indis­pensável conseguir o dinheiro. Andava depressa e, contudo, concentrada em aflitiva meditação. Co­meçou por pedir fervorosamente a Jesus lhe ins­pirasse um meio lícito. Já próximo de casa, notou que alguém cantava à porta de uma velha igreja do bairro de São Marcelo, para ganhar a vida. Era um cego. Aproximou-se e deu-lhe alguma coisa do pouco que tinha consigo. Imediatamente, nasce­ram-lhe novas idéias. Não seria viável um concêrto com o concurso de Robbie, num local bem concor­rido? Poderia cantar ao som do violino do irmão adotivo. Talvez conseguisse dessarte a quantia necessária para socorrer de pronto o padre Damiano. Essa perspectiva alegrou-a. Entrou em casa tão satisfeita que a genitora perguntou interessada:

— Como vai o padre Damiano? Pelo que leio em teu rosto, êle não está assim tão mal.

— Seu estado ainda é grave, mas, achei-o calmo e otimista.

A senhora fêz um gesto de admiração e acres­centou:

— Que há, Alcione? Vejo-te muito mais ani­mada e satisfeita...

— É que já fui avisada que amanhã poderei comparecer ao serviço.

— Graças a Deus! Bendita a hora em que aprendeste a costura!...

Em seguida, Alcione chamou Robbie ao peque­no quintal, para cientificá-lo do plano.

— Um concêrto? — disse o rapazote impres­sionado.

— Sim, mas é preciso guardar segrêdo. Ma­mãe sofreria muito se viesse a saber. Se não arranjarmos o dinheiro, padre Damiano irá parar na Misericórdia e talvez nunca mais o vejamos. Cantaremos só amanhã, porque depois é possível que eu arranje trabalho para nós.

O pequeno arregalou os olhos estrábicos e con­cordou:

— Então vamos.

E passaram logo a trocar idéias e conchavar no tentame para o dia seguinte. Isto feito, entraram em casa de semblante alegre. Justificando o ensaio, Robbie pediu para tocar alguma coisa. Não obstante a hora imprópria, Madalena concordou e Alcione disse que ia cantar para distraí-la. Ambos, tomando posição, recordaram velhas melodias cas­telhanas, canções aragonesas, versos populares da Andaluzia. Apesar do sofrimento dos pés, a senho­ra Vilamil sorria encantada, murmurando:

— Nossa casa hoje está muito alegre! Que dia adorável!... Foi pena ter deixado em Ávila o meu velho cravo...

Robbie entusiasmava-se ao lhe ouvir as expan­sões e exibia arcadas mais difíceis e mais seguras. Luisa ria e chorava de contentamento e emoção. A jovem cantou quanto lhe veio à lembrança. Repetiu as raras canções francesas que conseguira aprender e recitou numerosas poesias de La Fontaine.

E assim terminou o dia entre cariciosas ale­grias domésticas.

Na manhã seguinte, Alcione beijou a mãe ao despedir-se e preveniu:

— Logo, voltarei para a refeição, e ao tornar ao trabalho quero que me concedas a companhia de Robbie, pois creio que tenho de regressar mais tarde, à noite.

Madalena disse que sim e abençoou-a com as suas blandicias de mãe.

Alcione andou muitos quilômetros de ruas e praças, estudando o local adequado à iniciativa. Algo cansada, parou junto ao templo de Nossa Se­nhora e entrou. Descansou longamente em preces fervorosas, lembrando que não haveria melhor lo­cal para o empreendimento que o adro daquela casa consagrada à Mãe Santíssima. Não vacilou. Voltaria ao bairro de São Marcelo para trazer o irmão adotivo. Começariam o concêrto ao cair da tarde, confiantes no interêsse popular.

Entrou em casa muito esfogueada de sol, to­mou a refeição e saiu com o rapaz. Tiveram o maior cuidado no retirar o instrumento, para não serem percebidos por Madalena e pela criada.

Emocionada, naquela conjuntura de angariar o dinheiro indispensável ao velho amigo, Alcione

penetrou novamente na igreja e orou, implorando o socorro divino.

As brisas suaves do crepúsculo corriam man­samente quando os dois artistas improvisados tomaram posição e preludiaram as primeiras notas, justamente quando a multidão em massa afluia ao templo. Numerosos carros iam e vinham. No firmamento escampo de nuvens, Vésper cintilava. Alcione começou a cantar, mas, com tanta harmo­nia e sentimento, que dir-se-ia um anjo baixado à Terra para transmitir aos homens as suaves bele­zas do crepúsculo. Em breves instantes, ranseuntes, clérigos, fidalgos e gente do povo formavam em tôrno compacta assistência. Cada canção era aplaudida frenêticamente. A cantora inspirava pro­funda simpatia apesar da malícia de alguns cavalheiros presentes. E assim transcorreu uma hora de franco êxito. Dois padres generosos mandaram acender tochas, para que o concêrto se prolon­gasse até mais tarde. Alcione cantava sempre. Sentia-se corar de vergonha quando as dádivas lhe caíam na bôlsa, mas vinham-lhe à mente o padre Damiano e a mãezinha, e experimentava enorme consolação, julgando-se quase feliz. E enquanto agradecia as palmas com ademanes graciosos, Robbie arrancava cristalinos acordes do seu violino. Todos se impressionavam com a beleza da jovem, a contrastar os traços grosseiros do pequeno vio­linista. Houve mesmo quem lhe sussurrasse no ouvido:

— Parece um morcêgo ao lado de uma co­tovia!...

Compreendeu o sentido da frase, mas inter­pelada pelo irmão adotivo, que não entendia muito bem o francês, procurou confortá-lo, dizendo:

— O auditório está entusiasmado e calculo que já temos quase cem francos. Não desanimemos.

— Estou bem fatigado — alegou o rapaz...

— Lembra-te de mamãe e do padre Damiano...

O menino pareceu refletir e fazia vibrar o instrumento com maior entusiasmo.

Nesse ínterim, surgiu poucos metros distante uma carruagem de família rica. No seu sotaque espanhol, Alcione cantava, no momento, velhas modinhas francesas. Impressionados, talvez, com o quadro inédito, os dois passageiros da viatura deram ordem de parar. Um cavalheiro prematuramente envelhecido, aparentando mais de cin­qüenta anos sem os ter, desceu do coche dando o braço a uma senhora muito magra e abatida. Dominado por estranha emoção, encaminhou-se re­soluto para o grupo, como que forçando a compa­nheira a seguir-lhe o passo lesto e resoluto. A certa distância, podiam ver a cantora, que parecia coroada pela luz das tochas resplandecentes.

— É o retrato de Madalena! — disse êle, em­palidecendo.

— Vamo-nos embora — murmurou a compa­nheira num ensaio de recuo —, deve ser alguma vulgar cantora de rua.

— Não, não — respondeu o desconhecido em voz muito firme, como a indiciar que viviam em constante desacôrdo —, se queres, vai-te e man­da-me o carro depois.

— Isso não — revidou visivelmente enfadada, deixando-se ficar junto dêle, que se mostrava de mais a mais enlevado e atento à cantora, cuja voz melodiosa enchia o silêncio da noite e lhe falava misteriosamente ao coração.

Quando ela cantou uma velha música espa­nhola, êle não se conteve, levou a mão ao peito e disse à companheira:

— Lembras-te do Carrousel de junho de 1662? Não foi esta uma das melodias de Madalena?

A senhora, apesar de muito contrariada, re­dargüiu:

— Sem dúvida... Recordo-me perfeitamente do baile de Madame de Choisy...

Ele aproximou-se mais. Estava tão embeve­cido que se fazia notado dos circunstantes, a des­peito do carrancudo semblante da companheira. O desconhecido, porém, parecia não dar por isso. Entregue à contemplação da cantora, envolvera-se no suave magnetismo da sua personalidade, sem se dar conta de tudo mais.

No momento em que Alcione terminava uma doce cantiga de Castela-a-Velha, êle aproximou-se dos dois artistas e perguntou delicadamente:

— A Senhorita que conhece tantas músicas da península, conhecerá uma velha melodia espanhola, chamada “A Calhandra Aragonesa”? — perfeitamente, e se faz gôsto posso cantá-la para o senhor.

— Terei imenso prazer.

Alcione advertiu ao irmão adotivo como devia ensaiar as primeiras notas.

— Não me recordo bem — acentuou o violi­nista.

— Ora, Robbie, como é isso? E’ uma daquelas primeiras melodias que mamãe te ensinou.

O menino fêz grande esfôrço mental e concluiu:

— Já sei...

Algumas arcadas harmoniosas assinalaram o intróito de inefável beleza e, daí a momentos, a voz límpida e aveludada da jovem se fazia ouvir, em religioso silêncio da assembléia numerosa. Obede­cendo, talvez, a secretos impulsos do coração, Al­cione imprimia novo encantamento espiritual em cada acorde. Dir-se-ia o nenioso gorjeio de um pássaro abandonado, na vastidão da noite.

A música, muito delicada, realçava antiga lenda que traduzia o lirismo popular:

No manto da noite amiga,

Ouve esta velha cantiga,

Guarda no peito a canção

Da calhandra do caminho,

Que errava sem ter um ninho

Na verdura de Aragão.

A pobrezinha vivia

Numa perene agonia,

Em dolorosa mudez;

Era a Imagem da saUdade,

Nos andrajos da orfandade.

No luto da viuvez.

Mas, em certa primavera,

A pobre, que andava à espera,

Reparou, findo o arrebol,

Que chegava de mansinho.

Olhos cheios de carinho.

Seu amado — o rouxinol.

Desde essa hora divina,

A calhandra pequenina,

Que errava de déu em déu,

Enfeitou-se na vitória,

Encheu-se de vida e glória,

Cantando no azul do céu.

Brincava na paz da fonte,

Ia ao longe, no horizonte,

Sob o sol, sob o luar...

Fôsse noite, fôsse dia,

Transbordava de alegria,

Nas penugens do seu lar!

Mas, um dia, o companheiro

Deu-lhe o olhar derradeiro

Da bôlsa de um caçador!...

A calhandra infortunada

Tombou sem vida na estrada,

Na angústia do seu amor.

No manto da noite amiga,

Ouve esta velha cantiga,

Guarda no peito a canção

Da calhandra do caminho,

Que errava, sem ter um ninho,

Na verdura de Aragão.

Quando terminou, o cavalheiro levou o lenço ao rosto, como se fôra enxugar o suor, mas, na verdade, disfarçando as lágrimas que lhe brotavam dos olhos. Depois de consultar o bôlso, retirou um pacote de moedas e entregou-o à cantora, nestes têrmos:

— Tome lá, senhorita, esta lembrança lhe per­tence. Sua voz me deu emoções que procuro, em vão, há vinte anos.

E, enquanto Alcione hesitava diante de uma espórtula tão vultosa, o desconhecido insistia:

— Isto é nada, comparado ao que lhe fico a dever.

A companheira bem que o fisgava com olhares de censura, mas êle permanecia alheio e indiferente às suas atitudes. A cantora, porém, mostrava-se sumamente reconhecida.

— Deus o recompense, senhor!

Robbie também lhe mandou um olhar de enor­me satisfação, através do qual transparecia o de­sejo de encerrar o ato. E, como se estivesse apenas esperando o cavalheiro desconhecido para terminar o trabalho da noite, a filha de Madalena agradeceu a todos, comovidamente, e retirou-se com humil­dade, amparando o irmão adotivo que se mostrava exausto pelo esfôrço despendido.

O casal, por sua vez, retomou o carro, sob forte impressão.

— Quanto deste à cantora? — perguntou a mulher abruptamente.

— Trezentos francos.

— Ainda havemos de acabar indigentes, gra­ças ao teu sentimentalismo — exprobrou, amuada.

— Se lhe houvesse dado três mil escudos, nem assim pagaria a terna emoção que me despertou nalma saudosa...

E recaíram em penoso silêncio, enquanto a carruagem rompia a escuridão da noite.

Alcione e Robbie regressavam ao lar, tomados de imensa alegria. Quando se viram longe do adro de Nossa Senhora, o pequeno comentou:

— É bem duro pedir, não achas, Alcione?

— Não é tanto assim — respondeu-lhe resig­nada. A necessidade, Robbie, às vêzes nos ensina a afabilidade e a doçura com o próximo. Nunca reparaste que as crianças muito independentes cos­tumam ser caprichosas e ásperas? Assim também, já crescidos, é útil que venhamos a precisar do concurso de outrem, por tornarmo-nos mais cari­nhosos, mais sensíveis ao afeto fraternal...

— Isso é verdade — concordou o pequeno —, são raros os meninos brancos que me tratam bem.

— É porque ainda não sabem o que é a vida. Se um dia a necessidade lhes bater à porta, com­preenderão, talvez imediatamente, que somos todos irmãos. Suponho que Deus, sendo tão bom, fa­cultou a pobreza e a doença ao mundo para que aprendêssemos a sua divina lei de fraternidade e auxílio mútuo.

Robbie, muito admirado, ponderou:

— Desejava sentir essas coisas conformado, assim como te vejo, mas a verdade é que, quando me humilham, sofro muito. Faço enorme esfôrço para não reagir com más palavras e confesso que, por vêzes, se não fôsse a mão doente, agrediria alguns meninos.

— Não agasalhes êsses pensamentos, procura fazer exercícios mentais de tolerância. Reflete, con­tigo mesmo, como tratarias as crianças negras se fôsses branco, imagina qual seria tua atitude com os doentes, se fôsses completamente são.

O pequeno violinista meditou longamente e res­pondeu muito sério:

— Tens razão.

— Sem dúvida, isto que aqui te digo requer muito esfôrço, porque só o pecado oferece portas largas ao nosso espírito. A virtude é mais difícil.

O menino pareceu refletir algum tempo e perguntou, mudando o rumo do diálogo:

— Quem será aquêle homem tão bom que nos deu tanto dinheiro?

Alcione fêz um gesto significativo e respondeu:

— Eu também estou impressionada. Deve ser algum enviado de Deus.

— Mas parecia tão triste...

— Também notei isso. Que Jesus o abençoe pelo auxílio que nos deu. Amanhã levarei ao padre Damiano o pacote que parece conter mais de du­zentos francos, e com o restante vou pagar à Luisa o que lhe devemos e chamar um médico para tra­tamento mais sério da saúde de mamãe...

Mal havia terminado as explicações, o pequeno tropeçou, caíndo ao solo, desamparadamente. Ante a fôrça moral que a irmã adotiva exercia sôbre êle, levantou-se com esfôrço, acrescentando:

— Não te incomodes, não foi nada. Cai por­que precisei resguardar o violino...

A jovem, contudo, inclinou-se comovida.

— Como vês, Robbie — disse intencionalmente —, não apenas pediste nesta noite. Trabalhaste muito. Estás cansado... Vamos procurar um carro que nos leve a São Marcelo. É um luxo que hoje poderemos pagar.

Ele concordou de bom grado e não tardaram muito a reentrar em casa, onde Madalena já se mostrava inquieta.

No dia seguinte, em vez de sair para o tra­balho, conforme dizia à genitora, Alcione dirigiu-se a São Jaques do Passo Alto, com o socorro desti­nado ao velho sacerdote.

Damiano contou o dinheiro com atenção e advertiu:

— Trezentos francos, minha filha? Sei que Madalena luta com enormes dificuldades. Onde guardavas esta quantia?

Enfrentando aquêle olhar penetrante, cheio de preocupações afetuosas, Alcione deu-se por vencida e confessou o feito da véspera. Sem dinheiro e sem relações, resolvera dar um concêrto público com Robbie, no adro da igreja de Nossa Senhora. O rendimento fôra muito além da expectativa.

O enfermo abraçou-a, comovidíssimo, cheio de gratidão pelo sacrifício.

Depois de contar os episódios da feliz aventura e dar as impressões do seu contato com a massa popular, Damiano lhe ponderou:

— Sem dúvida Jesus te protegeu nessa aven­tura singular, compadecendo-se das nossas neces­sidades. Entretanto, minha filha, penso que não deves reincidir nessas exibições. Ao lado das pes­soas educadas, há sempre muitos exploradores e numerosos vadios. Temo por tua mocidade e pela inocência de Robbie!...

E enquanto ela concordava, pensativa, o ecle­siástico prosseguia explicando:

— Tenho o pressentimento de que encontrarás, agora, uma ocupação muito nobre, com ótima re­muneração.

— Será uma ditosa surprêsa! — exclamou a moça com infinita alegria transbordante dos olhos.

— Padre Guilherme aqui esteve ontem por duas vêzes. De manhã, falei-lhe a teu respeito e prontificou-se a tomar logo as primeiras providên­cias. À noite, voltou com a notícia auspiciosa. Uma família sua conhecida precisa dos serviços de uma jovem educada, de irrepreensível conduta. Escla­receu que a remuneração é das mais condignas. Trata-se de um casal que há três anos chegou da América do Norte em busca de saúde para a filhi­nha única, que se encontra doente. O chefe da família é um homem abastado, que, além de pro­prietário em Paris, representa vasta zona comer­cial de fumo da colônia, em ligação com o comércio europeu. A dona da casa, de conformidade com as informações do padre Guilherme, é católica prati­cante e rigorosa no culto. Tem uma filhinha que a impressiona, em extremo, por isso que, da mais tenra idade, parece fugir à ternura maternal e, pre­sentemente, com quase treze anos, vive prêsa de grande nervosismo e estranhas preocupações. Os pais deliberaram tomar uma governanta que lhe seja enfermeira e educadora, ao mesmo tempo. E, por coincidência, di-lo ainda o Guilherme, tra­ta-se de gente irlandesa, que passou longos anos na América.

Alcione alegrou-se. Assim entretidos, formu­laram vastos planos. Ao despedir-se com a idéia de chamar um médico para a genitora, Damiano lhe disse:

— Ficamos então combinados. De hoje a três dias, Guilherme te apresentará nessa casa de sua confiança e que fica, creio, nas proximidades de São Landry, na Cité. Farás ver à Madalena as vantagens do cargo. Quem sabe terá soado o mi­nuto da nossa completa tranqüilidade? Não estará aí, talvez, o ensejo para tua mãe realizar o velho sonho de uma viagem ao Connecticut? Por mim, morrerei mais sossegado se puder partir com esta esperança.

A jovem sorriu e observou, resignada:

— O senhor tem razão. Tudo isso poderá acon­tecer.

Muito animada, a filha de Cirilo Davenport chegou a casa, onde não teve dificuldade em con­vencer a genitora de quanto lhe dissera o velho sacerdote. Madalena Vilamil concordou. O cargo de governanta e educadora seria mais conveniente. A costura, em contato com tanta gente desconhe­cida, não era um penhor de tranqüilidade. A pobre senhora acabou por sentir enorme satisfação, e, quando soube que se tratava de família ligada àAmérica do Norte, não ocultou a velha esperança de conhecer o Novo Mundo.

Nesse dia, à tarde, o Dr. Luciano Thierry, procurado pela jovem Vilamil, por indicação dos vizinhos, visitou a enfêrma, submetendo-a a rigoroso exame. Enquanto permanecia a seu lado, o médico não poupou prognósticos otimistas; mas, ao reti­rar-se, chamou Alcione em particular e disse:

— Menina, o caso de sua mãe é muito mais complexo do que se pode imaginar. Claro que não pouparei todos os recursos ao meu alcance, mas penso que ela dificilmente se levantará da cama.

— A moléstia é tão grave assim? — inquiriu a moça, evidenciando aflição.

— O reumatismo assumiu caráter muito Sério. Os pés e joelhos me parecem definitivamente inu­tilizados, condenados a inanição. Mandarei algu­mas pomadas para fomentações e digo-lhe que sua mamãe ainda poderá viver alguns anos. Da para­lisia, porém, só Deus poderá libertá-la.

A filha de Madalena agradeceu, naturalmente acabrunhada, mas procurando reforçar as energias íntimas. Jesus, que sempre lhes enviava recursos nos grandes momentos da vida, não as deixaria sem amparo.

No dia combinado, lá se foi com o padre Gui­lherme, para estrear o novo emprêgo. E experimentava enorme confôrto em saber que teria, dora­vante, o pão assegurado para si e para os seus, mercê de atividade honesta e digna. Instruiu Luisa na aplicação dos remédios à doente, fêz recomen­dações a Robbie e beijou Madalena, prometendo regressar à noite, conforme ficara previsto e com­binado.

Passava de meio dia, quando o padre Guilher­me procurou Damiano para exprimir-lhe o seu reconhecimento.

— O Sr. Davenport ficou radiante: a senhora Susana não estava em casa no momento, mas o chefe da família, bem como o velho Jaques, ficaram ôtimamente impressionados com a sua pupila. Dei­xei-a, portanto, num ambiente de franca simpatia.

Ouvindo aquêles nomes, Damiano manifestou a mais viva curiosidade. Efetivamente, êle os ouvia amiúde, repetidos nas conversações de Madalena. Cercando-se de grande prudência, perguntou:

— De que região da América procede essa fa­mília?

— Do Connecticut.

O eclesiástico experimentou o primeiro abalo íntimo; todavia, buscou controlar-se e continuou:

— O nome Davenport não me é estranho. Se me não engano já ouvi um colega referir-se a um tal Samuel, que, há muitos anos, residiu em Belfast.

— Isso mesmo — confirmou o outro, satisfeito —, trata-se do pai dêste Cirilo Davenport, rico negociante de fumo, de cuja residência venho neste instante. Há vinte anos, aproximadamente, a famí­lia que se empobrecera com a perseguição dos inglêses, na Irlanda do Norte, retirou-se para a América, onde adquiriu sólida fortuna. Na mocidade, porém, o Sr. Davenport trabalhou, modes­tamente, aqui em Paris...

Ah! — disse Damiano, quase aterrado. Intensa palidez inundara-lhe o semblante vincado de rugas.

— O Samuel a que se refere — prosseguia Guilherme, loquaz —, pelo que infiro das missas celebradas em sua intenção, deve ter falecido há uns dez anos.

Justificando a expressão fisionômica, o velho sacerdote de Avila observou:

— Este mal do peito sempre me causa tor­turas momentâneas

E levantou-se para tomar um copo d’água.

- Escuta, Guilherme — continuou a dizer, pausadamente —, o casal Davenport tem uma vida feliz? Naturalmente que êstes assuntos me pre­OCUpam, dado que a minha pupila vai agora con­viver com êles.

Assim se manifestando, visava obter por meios indiretos qualquer informação sôbre o passado con­jugal de Cirilo. Sem cuidar de que versava assunto dehcadíssimo, o interpelado acentuou:

— O Sr. Davenport é casado em segundas núpcias. A primeira espôsa, ao que estou informado, era espanhola, de Granada. Chamava-se Ma­dalena Vilamil e morreu no surto varjólico de 63.

Damiano não sabia como dissimular a como­ção. Debalde procurava um meio de parecer des­preocupado. O amigo, porém, tudo atribuía ao seu precário estado de saúde.

— A falecida foi sepultada no cemitério dos Inocentes. Já lhe visitei o túmulo em companhia dos senhores Jaques e Cirilo.

— Quem é êsse Sr. Jaques? — inquiriu Da­miano, apesar da emoção.

— É sogro do Sr. Davenport e, ao mesmo tempo, seu tio, pois o negociante de fumo é casado com uma prima, em segundas núpcias. Aliás, o bom velhinho que se encontra hoje beirando o sepulcro, pelos muitos achaques da senectude, foi por muitos anos professor aqui na França.

— Em Paris?

— Não, em Blois.

Damiano estava satisfeito, não poderia ter mais dúvidas.

— Deus abençoe Alcione para que saiba servir nessa casa com amor cristão — concluiu serena-mente —, não desejo outra coisa.

Muito hàbilmente desviou depois a palestra noutros rumos, de maneira a não se trair pela in­tensa emoção. Mas, quando Guilherme se retirou, reiterando-lhe agradecimentos, entregou-se a pro­funda e dolorosa meditação. Acabava de palpar o enigma sem poder atinar com a chave. Natural­mente, o drama sinistro que adivinhava, por trás da situação, fôra urdido por alguma inteligência perversa. Recordava as mínimas revelações e con­fidências da senhora Vilamil, nas longas conversa­ções de Ávila e não podia duvidar da inveracidade dos acontecimentos que Madalena aceitara como verdade inconcussa. Sempre lhe parecera estranho o fato de haver Cirilo Davenport desaparecido, sem qualquer noticia direta da América, para a espôsa distante. Considerava, também, que, se Madalena o havia por morto, o mesmo se dava com o marido que lhe venerava a suposta sepultura. Quem havia tramado, assim, contra a felicidade de dois corações? Rememorou as confidências que a filha de D. Inácio lhe fizera a respeito da personalidade de Antero de Oviedo. Seria êle o autor do nefando delito? Depois de laboriosas reflexões, concluía que, se não fôra êle o único criminoso, devia ter sido cúmplice ativo do feito abominável. Em seguida, mente cansada, passava a refletir nos estranhos, insondáveis desígnios da Providência Divina, que haviam conduzido Alcione ao segundo lar paterno. Experimentava profunda ansiedade por se dirigir, mesmo doente, à residência do Sr. Davenport, mas a tarde começava a cair, muito fria, e receava os acessos de tosse. Não descansaria, porém, enquanto não se avistasse com a jovem, de modo a ouvir-lhe as primeiras impressões. Para isso, deu ordens ao criado que mandasse um carro a São Marcelo, para que a menina Vilamil o visitasse nas primeiras horas da noite, depois de regressar ao lar.

Quando a moça entrou em casa, cêrca de de­zenove horas, já encontrou a viatura que a esperava, recomendando-lhe a genitora não se demo­rasse em seguir para São Jaques do Passo Alto, porqüanto o chamado de Damiano lhe dava muito que pensar. Receava que o velho amigo tivesse piorado. A jovem atendeu com presteza. Depois de responder às primeiras argüições maternas sôbre o novo cargo, declarando-se muito satisfeita e bem impressionada, dirigiu-se ao bairro próximo, assaz preocupada.

O velho sacerdote de Ávila abraçou-a como­vido.

— Como fôste de serviço, minha filha?

— Primeiramente, fale-me da sua pessoa. Como vai? Ficamos aflitas com a ida do carro. A saúde piorou?

— Nada. Vou muito bem. Chamei-te tão só-mente para saber como te deste com o novo emprego.

A moça tranqüilizou-se, exclamando:

— Ora, graças a Deus!

— O padre Guilherme — prosseguiu Damiano solícito — aqui esteve e deu-me informações, mas preciso falar-te sêriamente, em particular. Tiveste boa impressão da casa e da gente?

— É muito interessante o que pude observar, porqüanto o Sr. Davenport e a espôsa não me eram de todo desconhecidos.

— Como assim? — indagou Damiano, intri­gado.

É que assistiram ao concêrto lá no adro de Nossa Senhora e, por sinal, foi o Sr. Cirilo quem me deu os trezentos francos que eu lhe trouxe.

— Como tudo isso é significativo! — exclamou o sacerdote, muito emocionado. — E como te rece­beram?

— O Sr. Davenport e o tio, bem como a pe­quena Beatriz, de quem vou cuidar, trataram-me com excepcional carinho. A meninota parece ner­vosa e acabrunhada, mas tem muito bom coração. Como primícias da tarefa, conversamos quase todo o dia, valendo-me eu da ocasião para falar-lhe dos ensinamentos do Cristo como verdadeiro e legitimo remédio para tôdas as necessidades da vida e do coração. Ela está mocinha e creio que me compre­enderá. Infelizmente, não posso dizer o mesmo da senhora Susana. Esta, quando voltou de uma visita elegante, encontrando-me em casa, não disfarçou a contrariedade. Não sorriu quando o marido lhe falou que eu era a cantora da noite em que haviam estacionado na praça da igreja, afirmando que essa circunstância depunha contra mim. Acrescentou que o padre Guilherme estava, por certo, enganado na escolha, pois solicitara uma governanta mais velha, com maior experiência da vida. Quando me disse que meus serviços não lhe convinham, a pe­quena Beatriz fêz grande bulha, afiançando o con­trário. A enfêrma abraçou-se comigo, a gritar, provocando a intervenção do pai e do avô, que acorreram pressurosos. Esclarecido o motivo de suas lágrimas, o Sr. Davenport cravou na espôsa um olhar muito austero e decidiu que eu ficasse de qualquer maneira. Vendo, porém, o enfado da senhora, pedi permissão para desistir, mas não fui atendida, O Sr. Jaques foi a meu favor, recri­minando a conduta da filha. Reconhecendo-se iso­lada no seu ponto de vista, a senhora Susana pas­sou então a tratar-me com brandura, concordando com a minha permanência ao lado da filha.

Damiano, que a escutava com atenção, valeu-se da pausa e interrogou:

— E os nomes nessa família irlandesa não te preocuparam?

— Sem dúvida que me ocorreram pensamentos estranhos, em contacto com as pessoas da casa. Cirilo Davenport é o nome de meu pai, e os nomes de Jaques e Susana parecem muito ligados às re­cordações da mamãe.

— Porventura não te perguntaram pelo teu nome de família?

— Sim, mas deu-se um fato muito interes­sante, que me compeliu a permanecer um tanto retraida. Quando cheguei, o Sr. Jaques me con­templou muito admirado e disse ao sobrinho: — “éo retrato de Madalena Vilamil”. Tive um grande susto ao ouvir essa inesperada referência ao nome de mamãe, mas suponho que tratavam de pessoa importante de suas relações. Dentro em pouco, soube que a família é Davenport. E fiquei atrapa­lhada para responder ao Sr. Cirilo, quando pro­curou saber meu nome. Se dissesse Vilamil, ou Davenport, poderiam supor que estava querendo insinuar-me e classificar-me como parente da casa; vendo a senhora Susana tão agastada com a minha presença e para não lhe parecer petulante, disse, então, que me chamo “Alcione da Chácara”. Essa resposta foi boa porque me tranqüilizou a consciên­cia, visto ser êsse o nome com que me tratavam lá em Ávila, na intimidade. Assim, padre, creio que não ofendi à dona da casa, nem faltei à verdade.

Damiano fêz um gesto de quem se tranqüili­zava e sentenciou:

— Procedeste muito bem. A prudência salva sempre.

E depois de consultar o coração aflito e receoso das amargurosas revelações, disse à interlocutora com inflexão de carinho:

— Agora, vamos aos motivos da inquietação que me obrigou a chamar-te.

Voz pausada, evidenciando forte emoção, ini­ciou as confidências, reportando-se às afirmativas de Madalena e confrontando-as com as do padre Guilherme.

A filha de Cirilo tudo ouvia com penoso assom­bro. Estupefata, não conseguia responder. Quan­do êle se referiu ao que se passara junto do túmulo da genitora, no cemitério dos Inocentes, as lágrimas lhe rolaram dos olhos.

Sumariando as suas conclusões, Damiano acen­tuava:

— Não podemos ter qualquer dúvida, mas eu espero que te mantenhas sobranceira à prova que nos visita e precisamos enfrentar. Sei quão amar­gas devem ser tuas lágrimas, mas, estou certo de que Deus te amparará o coração afetuoso.

— Não choro por mim, padre Damiano, e sim pela mamãe, cujos padecimentos me cortam o co­ração.

Impressionado com o acento comovedor dessas palavras, o velho amigo considerou:

— Se vês que não podes continuar na casa dos teus parentes irlandeses, poderemos arranjar uma desculpa que justifique a tua desistência. Se qui­seres, dada a complexidade e gravidade do caso que nos defronta, poderemos aconselhar tua mãe a vol­tar para Castela. Estou doente, é verdade, mas isso não é motivo para deixar de acompanhá-las. E assim guardaríamos lá o doloroso segrêdo, para sempre!...

Alcione recordou a figura do genitor quando lhe pôs nas mãos uma bôlsa recheada, lembrou o acolhimento que lhe dispensara no ambiente do­méstico e ponderou:

— Não podemos fugir. Não seria Deus que me conduziu à casa paterna para que eu aprendesse alguma virtude das que se ligam à divina humildade? Não creio que meus parentes precisem de mim para alguma coisa, mas, sinto que necessito dêles para acendrar meu coração.

O velho sacerdote acolhia, profundamente co­movido, aquela preciosa lição de renúncia. Obser­var a atitude angélica de Alcione representava enorme confôrto para o seu espírito cansado. Por isso mesmo, caIara-se para que ela, nobre e humil­demente, continuasse a derramar-lhe na alma exaus­ta as sublimes consolações da discípula de Jesus.

— Além disso — prosseguiu Alcione depois de uma pausa —, se meu pai estendeu-me a cari­nhosa mão na via pública, proporcionando-me tanta alegria sem saber que eu era sua filha, como poderei abandoná-lo agora, ciente de que me deu a vida? Não seria renegar os ensinamentos do Cristo? O Sr. Cirilo Davenport me conquistou pela sua gene­rosidade. A partir de hoje, confiou-me a filhinha como se me conhecesse de há longos anos, obri­gou-me a sentar à mesa da família, ordenou que seu carro particular me trouxesse a São Marcelo. Não posso admitir que meu pai procedesse cons­cientemente contra minha mãe. Atrás de tudo isso deve existir uma trama criminosa.

Muito sensibilizado, o eclesiástico replicou:

— Tuas razões são sagradas e concordo com o teu parecer, de que Jesus te conduziu ao lar pa­terno com algum objetivo; mas, se sugeri o retôrno à Espanha foi pensando nos teus padecimentos morais, bem como na hipótese de Madalena ter agravados, algum dia, os seus sofrimentos já quase intoleráveis.

Alcione meditou um minuto e redargüiu sere­namente:

— Sim, por minha mãe todos os sacrifícios serão poucos, mas buscarei ocultar com os meus beijos a realidade dolorosa. Jesus me auxiliará para que ela saia dêste mundo desconhecendo as verdades amargas... Amará meu pai até ao fim, como símbolo da ventura que a espera no Céu e será, para mim, como a santa de um altar, ligada a Deus; mas, estando meu pai ainda no mundo, não será razoável cooperar para que ambos se unam para sempre na eternidade?

— Mas, e o teu esfôrço penoso? E os sacrifí­cios diários por desenvolver dignamente a tarefa em tal situação?

— Cinjo-me às próprias lições que me destes desde a infância. Será que Jesus peregrinou pela Terra sõmente para que o admirássemos? Teria sido escrito o Evangelho apenas para que os ho­mens encontrassem nas suas páginas motivos de apologias brilhantes? Sua palavra, padre, não me inculcou, sempre, que permanecemos no mundo com o santo objetivo de purificar o coração? Deus quer que nos amemos uns aos outros. Sua misericórdia, de quando em quando, reúne fortuitamente os pró­prios inimigos, para verificar se já estão prontos à tarefa sacrossanta do amor. Se a Providência Divina me conduz agora aos braços paternos, por que e como contrariar seus insondáveis desígnios?

- Deus te abençoe os propósitos sublimes —murmurou o sacerdote, sensibilizado até às lágri­mas —; amanhã ou depois, farei uma visita aos Davenport, não obstante o meu precário estado de saúde. Preciso observar de perto as personagens do nosso drama, a fim de legitimar as minhas ilações. Irei como teu tutor, ratificar a apresentação do padre Guilherme e, então, estudarei fisionomias e sondarei corações. Recomendo-te, porém, muita cautela, para que tua mãe permaneça alheia a esta nova amargura do seu caminho. Será mesmo de alta prudência não desceres do carro de teu pai à porta de casa, mas distante e de maneira a evitar­mos qualquer surprêsa dolorosa.

Ela concordou e conversaram ainda alguns minutos, até que se despediu com as novas recomendações de prudência e votos de tranqüilidade, do velho sacerdote.

Decorridos dois dias, com enorme dificuldade Damiano tomou um carro em companhia de Gui­lherme, a fim de vingar seus propósitos no elegante palacete das cercanias de São Landry. Prevenida de véspera, a família Davenport aguardava-o com homenagens afetuosas, recebendo-o com excepcional carinho.

Logo às primeiras palavras, notou que Alcione gozava da simpatia geral, embora as atitudes de Susana indiciassem preocupações indefiníveis. De pronto a conversa generalizou-se animada, O pro­fessor de Blois, agora ancião venerando pelos ca­belos de neve, comentava o concurso da Igreja nos planos educacionais da época, destacando a cooperação preciosa dos padres integrados no co­nhecimento de sua missão divina. Damiano sur­preendia-se com a vivacidade intelectual do velho educador. Cirilo, de quando em vez, intervinha com alguma observação, dando impressão de homem ativo e trabalhador, mas de alma envelhecida, em virtude do véu de tristeza inalterável que lhe en­sombrava o rosto. A espôsa parecia amável, em­bora pouco expansiva. A um canto da sala, a filha de Madalena descansava num divã ao lado da jovem Beatriz, em atitude humilde.

Debalde o sacerdote procurara, de inicio, um meio de provocar as recordações do passado e lê-lo na fisionomia de cada um. Depois das primeiras impressões, acentuou intencionalmente:

— Pois que estou com um pé na sepultura, folgo em ver que Alcione ingressa numa casa nobre, que lhe proporcionará o bem-estar que desejo.

— Que é isso, reverendo Damiano? — atalhou Jaques, generoso. — Se, revigorado, qual o vejo, nos fala em morrer, que não direi eu com os meus achaques sem remédio? A velhice é uma escola rigorosa de meditação, mas eu ainda me recuso a pensar na morte.

— Sou, porém, muito mais velho que o senhor.

— Vê-se logo que é gentileza sua; olhe que a bondade é um dom precioso, mas não pode excluir a verdade.

E mudando o rumo da assertiva, continuava:

— Quanto à sua pupila, pode ficar descansado. Padre Guilherme andou muito bem inspirado tra­zendo-nos esta amiguinha para Beatriz e para nós mesmos. Ela não será aqui uma serva e sim uma filha. Pode estar certo disso.

— Sem dúvida — confirmou Cirilo com um gesto franco.

— O que mais nos impressionou, desde a che­gada — continuou carinhosamente o velhinho —, foi a extraordinária parecença com a primeira mu­lher de meu sobrinho, a quem eu considerava como própria filha. Creio que, se a senhorita fôsse filha de Madalena, talvez não se parecesse tanto com a finada. Os caprichos da Natureza são profundos, porque, na verdade, nunca esquecemos a falecida.

Nesse instante, o olhar do sacerdote de Ávila cruzou casualmente com o da dona da casa, e teve a impressão de que ela se perturbava, assaltada por algum pensamento menos digno. O amigo da se­nhora Vilamil desejou sinceramente conhecer cer­tos detalhes referentes à presumida morta, mas não se sentia com ânimo de abordar de chôfre tão deli­cado assunto. Poderia parecer imprudente e atre­vido aos Davenport, que o recebiam com tanta cordialidade e aprêço. Nessa altura da palestra, o visitante notou que o velho Jaques tinha sinais antigos de varíola, nas rugas do rosto. Não esperou outra inspiração e perguntou, com delicadeza:

— Pelo que estou vendo, Sr. Jaques, a “be­xiga” também não o poupou, noutros tempos...

— Ah! sim, na varíola de 63 nossos padeci­mentos foram terríveis.

— Eu também muito sofri nessa época, aqui em Paris, onde viera a convite de alguns colegas. E estive tão mal — acrescentava sorrindo — que quase me sepultaram vivo, num dos cemitérios im­provisados.

A filha de Jaques recordou fortemente o mi­nuto em que livrara a rival de semelhante destino e fêz um gesto instintivo de espanto.

— Nessa ocasião — explicou o professor — re­sidíamos em Blois, mas Susana teve oportunidade de observar muita coisa triste, nesta cidade, pois aqui chegou no dia imediato ao da morte de Madalena.

— Ah! por favor, senhora Davenport — ex­clamou Damiano, mostrando-se muito impressionado —, conte-nos a sua experiência. Não poderei esquecer o pavoroso instante em que me ameaça­vam com o sepultamento, apesar de me sentir no gôzo de tôdas as faculdades... Foi um minuto terrível...

— São recordações muito amargas, padre —retrucou Susana aparentemente tranqüila. — Como não ignora, meu marido era casado em primeiras núpcias, aqui em Paris, e tendo êle seguido para a América, a família ficou em dificuldades, quando irrompeu a pavorosa epidemia. Madalena Vilamil era como se fôsse uma irmã. A carta que escreveu a meu pai, para Blois, era um apêlo que não podia ficar sem resposta. Logo que pude, vim até cá, por trazer-lhe os meus préstimos. A pobrezinha, porém, havia sido sepultada na véspera. Todavia. ainda pude encontrar seu pai com vida, assistin­do-lhe os últimos momentos. D. Inácio, velho fi­dalgo espanhol, tinha em sua companhia um sobri­nho chamado Antero de Oviedo, que foi um arrimo para todos, naqueles dias tão amargos! Ajudei-o a providenciar o enterramento do tio ao lado da sepultura da filha, no cemitério dos Inocentes, e, nos poucos dias de minha estada em Paris, pude testemunhar a brutalidade dos carregadores desal­mados, que farejavam cadáveres tôdas as manhãs, nas casas contaminadas.

O sacerdote de Ávila já conhecia o bastante para inferir a conivência de Susana no drama que negrejava o destino de Madalena, e acrescentou:

— A senhora deve ter sofrido muito.

— Foram dias tormentosos, efetivamente; vol­tei a Blois tão impressionada que só melhorei quando me vi no mar, a caminho da colônia. O mesmo deve ter acontecido a Oviedo Vilamil, que nos escreveu de Versalhes comunicando a resolução de partir para a América espanhola.

Damiano não tinha mais dúvidas. A resolução sinistra só poderia caber a Antero e Susana, en­quanto Madalena estava no leito, entre a vida e a morte, O plano perverso obedecera à complicada urdidura. Dificilmente disfarçando a emoção, en­trou a falar de outros assuntos, a fim de tornar o ambiente menos pesado.

Regressando ao seu quarto de enfêrmo, em vão excogitava um meio de aclarar a situação, con­cluindo, por fim, que tôda tentativa, nesse par­ticular, acarretaria mais graves problemas. Que adiantaria restabelecer a verdade com o aniquila­mento de tôda uma família? Pensou na pequena Beatriz, na atitude confiante de Jaques, no sem­blante grave e triste de Cirilo e firmou o propósito de não intervir na marcha dos acontecimentos, para só confiar na Providência divina.

Daí a quatro dias, quando Alcione foi visitá-lo, indagou carinhosamente das suas impressões.

— Vou bem — disse ela resignada —, estou começando a compreender que, dia a dia, Deus nos chama a determinada situação para que lhe exe­cutemos a vontade santa.

Damiano sorriu, como que desencantado do mundo, e ponderou:

— Tenho quase certeza de haver descoberto a trama que destruiu a felicidade de tua mãe, mas julgo que nada se pode fazer por deslindá-la. Como discípulos do Evangelho, devemos compreender que não se deve abandonar o combate ao mal, em hipó­tese alguma; entretanto, neste nosso caso, a bata­lha deve desenrolar-se em campo de silencioso sa­crifício.

— Compreendo e estou pronta para a batalha, como sempre.

— Não te agastes com o dizer que a senhora Susana participou, a meu ver, da tragédia que mie­licitou tua mãe.

— Posso lamentar, mas devo reconhecer que, se Deus me pôs no seu caminho, é que tenho de aprender alguma coisa em contacto com ela. Que será? não sei. De qualquer modo, porém, rogo a Jesus não me abandone. Reconheço que minha mãe tem provado infinitos martírios, mas os criminosos, padre, são mais desventurados que os sofredores. Mamãe, no leito da enfermidade pertinaz, goza de mais tranqüilidade que a senhora Susana no seu palácio. Enquanto Robbie nos alegra com o seu afeto, Beatriz parece detestar a genitora, trazendo-a em constante acabrunhamento. Tenho, hoje, gran­diosas lições diante do meu espírito. Antes mil vêzes padecer a calúnia e o abandono, que tisnar a consciência com a nódoa do crime. Este, padre Damiano, o quadro permanente que tenho diante dos olhos.

— Lembraste bem — murmurou o sacerdote meneando a cabeça encanecida.

— Meu pai e a segunda espôsa — prosseguiu a jovem — são profundamente infelizes na vida conjugal. Por vêzes, longamente altercam sôbre ninharias da vida social. Não raro, êle se afasta exasperado, enquanto que ela se desfaz em lágri­mas. Tenho a impressão de que Beatriz é o único elo que os mantém presos aos compromissos con­traídos. Tudo isso não será uma lição bem amarga?

O sacerdote considerou a exposição judiciosa e

Concordou:

— Tens razão. Contudo, minha filha, não fôs­sem as circunstâncias imperiosas que nos impõem silêncio, haveria que denunciar o crime, para que os autores não ficassem impunes.

— Pode crer, porém — exclamou Alcione, de­pois de refletir um instante —, que a senhora Da­venport está sendo punida todos os dias. Não pode­remos, por certo, conhecer o grau da sua Conivência no delito, mas tenho podido observar a sua luta expiatória. As meditações dêstes dias têm-me ensi­nado que devemos tratar os pecadores não como criaturas perversas ou indesejáveis, mas como doen­tes necessitados de medicação constante. Não foi assim que Jesus nos tratou em sua missão divina? Tenho, agora, a convicção de que o Mestre encarou os romanos como pessoas atacadas pela moléstia da ambição e da tirania; os judeus, como enfermos da vaidade e do egoísmo destruidores; e, decerto, terá visto em Judas um companheiro dementado, tanto quanto em Pilatos um irmão perseguido pela doença do mêdo.

O sacerdote estava comovidíssimo. Tais inter­pretações lhe valiam como bálsamo confortador. E mal se recobrava do assombro, quando Alcione continuou:

— Suponho legítima esta presunção, porque a identificamos com a bondade do Cristo, em todos os atos de sua vida e até nos derradeiros instantes da cruz. Conduzido ao madeiro entre dois ladrões, nos quais devemos enxergar dois doentes do mundo, bastou que um dêles mostrasse o desejo sincero de melhorar-se, recobrando a saúde, e o Senhor lhe prometeu o paraíso.

— Sim — disse o religioso emocionado; estas idéias devem fluir do Céu para o teu coração puri­ficado. Deus te proteja nos caminhos longos e escabrosos, porque as almas nobres, qual a tua, surgem na Terra como partícipes das aflições do Cristo. O mundo prepara sempre um calvário para as vidas cristãs, mas o Mestre te reservará a coroa da vida...

— Não diga isso, o senhor me atribui a bon­dade que lhe pertence. Estou muito longe de compreender verdadeiramente o Cristo, mas, não obstante, certa de não ter vindo a êste mundo para descanso e gôzo fictícios. Aliás, nosso raciocínio deve ser claro: se o Salvador veio à Terra provar os testemunhos mais ásperos, vertendo sangue e lá­grimas, por que darmos tanta importância a algu­mas gôtas de suor, vertidas em benefício próprio?

Damiano agradeceu com um olhar de júbilo íntimo.

E, dividindo a mocidade entre o palacete do pai e a humilde casinha materna, Alcione Vilamil, em árdua tarefa, rogava a Jesus não a abandonasse, na dolorosa missão.

 


3

Testemunhos de fé

Impressionado com a argumentação do velho Gordon e cedendo à insistência da família, Cirilo Davenport havia desposado a prima, em segundas núpcias, entre caridosas alegrias dos amigos e afei­çoados da Nova Irlanda, passando a residir em com­panhia de Jaques, que assim o exigira, visando a alguma consolação no deserto da sua viuvez. Breve, o nascimento de Beatriz vinha trazer um laço mais forte ao casal, mas o filho de Samuel jamais en­contrara a emoção de ventura haurida no primeiro matrimônio. Parecia-lhe ter a alma mutilada, que o lugar de Madalena era impreenchível. Fugia instintivamente do lar, entregando-se a trabalho in­cessante. Por vêzes, singular estranheza se apossa­va dêle, ao atentar nas atitudes afetivas de Susana, sem eco no seu espírito. O coração palpitava-lhe de sentimentalismo ardente, reconhecia que nada per­dera quanto à possibilidade de amar, e, contudo, parecia que sômente a primeira espôsa era a dona da chave de penetração no seu mundo íntimo. O ambiente doméstico, por mais que ela se esforçasse, reservava-lhe sempre penosas surprêsas. A dispo­sição dos objetos provocava censuras, os pratos nunca estavam a seu gôsto. Continuamente insa­ciado, insatisfeito, de quando em quando impu­nha-se a intervenção conciliadora de Jaques, para que os atritos não degenerassem em conflito. De­pois de longas e acrimoniosas altercações, Susana recolhia-se ao quarto, chorosa e desesperada, en­quanto o marido se retirava a um canto da varanda, distraindo-se com a fumaça de grande cachimbo, e pensando consigo mesmo: — “No tempo de Mada­lena, não era assim... Dada a sua constante aplica­ção ao trabalho, conseguira angariar fortuna só­lida e invejável situação na colônia; no entanto, intraduzível tristeza lhe pairava invariàvelmente no semblante. Apenas a filha, pela profunda afinidade espiritual manifestada, conseguira atenuar os so­frimentos que o atormentavam. Desde que Beatriz atingira os cinco anos, estabelecera-se entre pai e filha um apêgo cada vez mais forte. A menina parecia singularmente distanciada da genitora, que, em vão, se esforçava por insinuar-se à sua estima. As ansiedades e dedicações de Susana se tornavam inúteis. A atitude paternal de Cirilo plasmando a alma da filhinha, absolutamente de acôrdo com os seus pensamentos, dificultava a atuação materna. Sem jamais conseguir uma harmonia perfeita com a segunda espôsa, o filho de Samuel parecia vin­gar-se do destino, subtraindo a pequenina à sua influência e dando ensejo a que Beatriz se desen­volvesse entre caprichos de tôda sorte. Em breve tempo Susana não tinha nenhuma autoridade sôbre a filha, que só obedecia ao pai. No íntimo, a prima de Cirilo sentia-se qual ré, que, não obstante res­guardada da justiça humana, resgatava duramente o crime praticado. Não encontrara a felicidade es­perada em seu criminoso sonho. Os momentos raros de alegria conjugal eram pagos multiplicadamente em angústias martirizantes, pelo que costumava comparar sua ventura a uma gôta de vinho numa taça de fel. Além do mais, os remorsos perse­guiam-na, implacáveis. Se encontrava um doente, recordava-se de Madalena; se entrava num cemi­tério, surgia-lhe o espectro da vitima. Quando al­guém se referia a júbilos domésticos, ela sentia o amargor das suas experiências; se as amigas co­mentavam as esperanças da prole, lembrava a filha de D. Inácio e sentia mais vivo o aguilhão da cons­ciência.

Tamanha era a desdita do casal, que um padre da colônia lhe recomendou mais atenção para o culto doméstico do Evangelho. Duas vêzes por semana, reunia-se a pequena família para leitura e comentário das lições do Cristo. Jaques, porém, era talvez o único que se aproveitava legitimamente dos ensinos de cada noite. Susana via em cada palavra uma acusação, furtando-se ao aproveita­mento. Cirilo considerava as sentenças evangélicas como simples fórmulas convencionais da religião, sem sentido lógico para a vida prática, e a pequena Beatriz ouvia a leitura e interpretação do avô com o devido respeito, sem nada assimilar ao espírito infantil. O velho professor de Blois, todavia, não desanimava.

Quando a pequena manifestou os primeiros sin­tomas da enfermidade nervosa que a acabrunhava, os pais, como loucos, deliberaram transferir-se tem­poràriamente ao Velho Mundo, em busca de recur­sos médicos. Debalde Susana insistiu para se fixarem na Inglaterra. Cirilo foi inflexível. Ficariam em França. Uma vez forçado a viver na Europa, preferia Paris, onde se sentia identificado com as suas antigas recordações. Aí poderia cuidar da saúde da filha e orar no túmulo da primeira espôsa. E não houve como demovê-lo dessa resolução.

Assim, regressou ao Velho Continente o redu­zido grupo familiar, sem prazo prefixado de regresso, sendo que Cirilo, aproveitando a oportuni­dade, poderia centralizar a representação de vasta zona do Connecticut, para o comércio do fumo, flo­rentíssimo então.

Perdurava a mesma angustiosa Situação para os Davenport, em Paris, quando Alcione lhes entrou em casa. Casa rica de recursos financeiros, mas pobre de alegria e de paz.

Jaques e o sobrinho exultavam com a chegada da jovem, tão parecida com a morta inesquecível e pelas suas maneiras carinhosas e catívantes. Beatriz parecia encontrar em sua companhia o medicamento indispensável. As longas conversações com a governanta desvelada pouco a pouco lhe modificavam as atitudes. Susana, entretanto, teve agravado o seu intimo mal-estar com a presença de Alcione. Não conseguia sofrear a onda de ciúme e egoísmo que a empolgava. Muitas circunstâncias cooperavam para isso. Não tolerava a menina sim­ples e amável, pelos seus traços idênticos aos da rival que eliminara do seu caminho. Além de tudo, aquelas atenções que Cirilo lhe dispensava, doíam­-lhe penosamente no coração inculto. Complicando a questão, o velho pai, bem como a filhinha, ado­ravam a jovem serva, manifestando-lhe extremo carinho. Debalde procurava um pretexto para des­pedi-la. A moça estava sempre calma e disposta a ceder aos seus caprichos. Aquela suave humil­dade causava-lhe irritação. Por mais que elevasse a voz, em ordens intempestivas, Alcione tratava-a respeitosamente, em atitude de nobre serenidade.

A princípio, acrescentou-lhe outras ocupações, além dos deveres de governanta e preceptora. A jovem era obrigada a tratar de todos os demais serviços leves da casa, inclusive a costura. Observando, todavia, que a moça a tudo atendia primorosamente, Susana chamou-a certa vez:

— Alcione!

— Senhora!...

— Hoje é necessário que substituas a lava­deira, que se encontra doente.

— Sim, senhora.

E num momento desdobrava-se em atividades no tanque espaçoso, esforçando-se por cumprir per­feitamente a tarefa insólita. Entretanto, vendo-a entregue a tal mister, não se conformou a pequena Beatriz, que, depois de um olhar reprovativo à ge­nitora, correu ao pai, pedindo-lhe providências.

Cirilo atendeu de pronto. Vendo a governanta da filhinha azafamada na lavandaria, começou a altercar com a espôsa, recriminando-a com aspe­reza. Beatriz, agarrada a êle, reforçava-lhe a censura. Susana justificava-se. Não poderia atender ao ritmo doméstico, exautorada nas suas determinações. O marido, porém, não lhe aceitava as alegações, secundado por Beatriz, que acusava a genitora de perseguir Alcione com os serviços mais grosseiros. A filha de Madalena trabalhava, cabis­baixa e humilde, mas, quando viu a dona da casa em- pranto convulsivo, exasperada com as censuras que lhe eram dirigidas acremente, adiantou-se com delicadeza e acentuou:

— Sr. Davenport, espero que me desculpe a intromissão na conversa, mas pode crer que a pe­quena Beatriz está enganada. D. Susana não me mandou substituir a lavadeira, fui eu mesma que, sabendo que a lavadeira adoeceu, ofereci minha cooperação no tanque, para aliviar os muitos serviços domésticos.

— Ah! sim — disse Cirilo, algo desapontado.

— O senhor não se preocupe — concluiu Al­cione —, eu estou bastante habituada a êstes trabalhos.

Essas palavras eram ditas com tanta sinceri­dade e boa vontade que o chefe da família regressou tranqüilamente às suas atividades, enquanto a es­pôsa olhava para a governanta sem disfarçar a sur­prêsa. Beatriz, muito modificada em sua primeira atitude de revolta contra a decisão materna, apro­ximou-se da jovem, tentando ajudá-la. Muito afe­tuosamente, contemplava Alcione, seduzida pela sua bondade, como a lhe pedir explicações. A filha de Madalena percebeu-lhe o desejo e falou:

— Então, Beatriz, consideras a limpeza da roupa como serviço pesado? Não penses assim. Deve ser muito sagrado, para nós todos, o asseio das coisas caseiras.

— Mas há criadas para isso, explicou a menina procurando justificar-se.

— No entanto, devemos estar habilitadas para qualquer trabalho digno. Se tôdas as servas adoe­cessem, haveríamos de vestir roupa suja? Não admitirás isso, por certo. Além do mais, cuidar da roupa que nos faz tanto bem, deve constituir motivo de satisfação sincera.

A menina, muito sensível, estimava deveras a governanta, mas objetou:

— No entanto, sempre ouvi dizer que cada serviçal deve estar no seu lugar.

— E não erras, pensando assim, mas essa verdade não impede o dever de ampliarmos nossas experiências em todo e qualquer trabalho honesto. Não estimas tanto as lições de Jesus? Pois no Cristo encontramos o verdadeiro ânimo de traba­lho, O Mestre Divino nunca se ausentou do lugar sublime que lhe compete na Criação e, no entanto, carpintejou na modesta oficina de Nazaré; exegeta da Lei, perante os doutores d€ Jerusalém, serviu o vinho da amizade nas bodas de Caná; médico da sogra de São Pedro, enfermeiro dos paralíticos, guia dos cegos, amigo das crianças, mas também lacaio dos discípulos, quando lhes lavou os pés, no cenáculo. E nada obstante o contraste e a diversidade de tantas tarefas, Jesus não deixou de ser o nosso Salvador, em todos os momentos.

A filhinha de Susana, entre admirada e como­vida, observou:

— Tudo isso é verdade... Como não pude compreender antes?

E começou a ajudar no trabalho do tanque.

Esses pequeninos incidentes domésticos come­çaram a impressionar profundamente a segunda es­pôsa de Cirilo. De que fonte poderia Alcione haurir tanta compreensão e tamanha fôrça? Alcione estava sempre pronta a lhe atender as menores exi­gências, sem modificar a atitude de serenidade e dedicação. Chamada aos próprios misteres da cozi­nha, desincumbiu-se dos deveres que lhe eram confiados, a contento geral.

Decorrido quase um ano, Susana adoeceu gra­vemente. A filha de Madalena consagrou-lhe o máximo de seus carinhos. Nessa ocasião, justamente em face dos sofrimentos que a martirizavam, foi que ela se rendeu à bondade da serva, tornando-se-lhe desvelada amiga. A residência de Cirilo experimentava profundas transformações. O chefe da família, bem como Jaques, insistiam para que a jovem se transferisse definitivamente para o palacete da Cité, mas Alcione alegava que a mãe era paralítica, que tinha um irmão adotivo necessitado da sua assistência, e um tutor muito amigo que se abeirava da morte.

Inúmeras vêzes, a filha de Madalena Vilamil era obrigada a desviar, delicadamente, o desejo de Susana e da filha, de lhe visitarem a genitora en­fêrma.

— Mais tarde, senhora Davenport, estaremos preparados para recebê-la; por enquanto, sou eu quem lhe pede para não ir. Quero ter a satisfação de apresentá-la à mamãe quando ela puder sentir o prazer de melhoras mais positivas.

E Susana justificava-lhe a solicitação.

A modificação de Beatriz trouxera grande paz ao coração paterno; Cirilo não cabia em si de con­tentamento, em lhe observando a jovialidade e a saúde. Nunca poderia explicar o fenômeno afetivo que com ele se passava, mas, era tal a estima e admiração que tinha pela moça, que, no Intimo, não sabia a qual das duas queria com mais ternura. Jamais confiara a quem quer que fôsse as suas recônditas impressões, mas desde que Alcione lhe entrou em casa, começara a sentir uma serenidade desconhecida. Ela lhe parecia assim como alguma coisa da morta inolvidável. Por vêzes, quando a governanta acompanhava a família ao cemitério dos Inocentes, tinha ímpetos de afagá-la paternal­mente, enxugando-lhe as lágrimas copiosas. Em tais ocasiões, ela recordava os sofrimentos de cada uma das personagens do drama doloroso e desfa­zia-se em lágrimas. A família Davenport levava tudo à conta de sentimentalismo, temperamento hipersensível, e as suas atitudes passavam desper­cebidas, sem mais comentários.

Às quartas e domingos, praticavam, na intimi­dade, o culto doméstico do Evangelho.

Num sábado, à refeição, foi Jaques a lembrar:

— Alcione, amanhã faremos nosso estudo e meditação do Novo Testamento e receberíamos, com prazer, a sua cooperação.

— Ganharei muito em vos ouvir — acentuou plàcidamente.

O alvitre do amorável velhinho mereceu aplau­so geral. Cirilo fêz ver que seria muito interessante ouvir a governanta de Beatriz no comentário das lições de Jesus. Alcione esquivava-se às provas de aprêço, com extrema humildade. Viria, a fim de aprender, exclamava bondosamente.

Na tarde seguinte, reunidos em tôrno da gran­de mesa aristocrática, o pai de Susana explicou, atencioso:

— Há algum tempo, minha filha — dirigia-se a Alcione com muito carinho —, aconselhados por um sacerdote americano, deliberamos fundar nossa igreja lareira, por considerar que a família é o nosso primeiro santuário.

— Resolução louvável — disse a filha de Ma­dalena, entre a ternura e o respeito. — Minha mãe também sempre me disse que o lar é o nosso templo divino.

Magnetizado pela doçura das suas palavras, Cirilo Davenport, ansioso de alcançar a fé que lhe suavizasse as lutas da vida, perguntou:

— Não discordo, Alcione, dêsse conceito, mas, já o tenho discutido muitas vêzes com meu tio. Por que entreter o culto evangélico no lar, quando temos numerosas igrejas? Só aqui no centro con­tamos mais de vinte. E os outros bairros de Paris? E as instituições religiosas? Por que esta diversi­dade de cultos se os fins são os mesmos? Não seria mais justo reservar as possibilidades da devoção para os ofícios religiosos de caráter público?

O filho de Samuel assim se manifestava porque nunca pudera compreender a utilidade prática da igreja doméstica. A seu ver, os textos evangélicos constituíam material de análise privativa dos pa­dres, e chegava quase a considerar inútil a leitura isolada das anotações apostólicas. Alcione, atenta e prazerosa, respondeu:

— Neste assunto, Sr. Davenport, como não se trata de opinião nossa, pessoal, mas de ensinos do Mestre, peço-vos relevar a minha franqueza. Tenho a convicção de que, em tôda parte, estamos na casa de Nosso Pai e estou certa de que virá o dia em que tomaremos por templo de Deus o mundo inteiro. Mas, em nossa atual condição, não nos custa reconhecer o proveito das igrejas e o caráter sagrado do culto doméstico, no que concerne aos ensinos de Jesus. Também no confôrto de nossas casas há sempre ótima disposição para atender aos nossos familiares enfermos, mas isso não proscreve a necessidade dos hospitais. Os pais amorosos en­sinam sempre os filhinhos; mas nem por isso dei­xam de ser úteis as escolas. Em matéria de fé, nossa estranheza radica na viciação dos deveres religiosos. Costumamos atribuir ao sacerdote o que nos compete realizar. Um padre poderá fun­cionar como excelente preceptor, indicando os cami­nhos retos, mas nós transitamos para Deus e éimprescindível não parar. O ministro da fé aten­derá ao conjunto, mas, para que as alegrias cristãs vibrem perfeitamente em nossa alma, não há que olvidar a necessidade de estabelecer o culto do Senhor, dentro de nós mesmos. Assim entrevisto, o lar é o templo mais nobre, porque oferece opor­tunidade diária de esfôrço e adoração. Cada cria­tura de nossa convivência, sob o mesmo teto, repre­senta um altar para o culto da bondade, do carinho, da compreensão. Cada borrasca doméstica é um ensejo para a distribuição de esperança e fé. Cada dia afanoso enseja possibilidades de testemunhar confiança em Deus. Enquanto isso ocorre na intimidade,­ as instituições religiosas podem funcionar como hospitais dos espíritos combalidos, como ce­leiros de esfomeados, como fontes de informações sublimes aos ignorantes. Qualquer doente esperará a volta da saúde, mas colimando reintegrar-se no plano de esfôrço diuturno; o faminto se alimentará de modo a prosseguir no seu caminho; e o ignorante será instruído para que se habilite a aplicar o que aprendeu. Por êsse prisma, podemos aquilatar o valor das pequenas realizações domésticas. Acre­dito que o lar seja o ninho onde o espírito humano cria em si mesmo, com o auxílio do Pai Celestial, as asas da sabedoria e do amor, com que há de conhecer, mais tarde, as sendas divinas do Uni­verso.

A reduzida assembléia não podia ocultar a enorme expressão de assombro. Os Davenport esta­vam longe de presumir, naquela jovem de atitudes tão timidas, tais provas de conhecimento espiritual. Pela primeira vez, Cirilo ouvia um argumento que o satisfazia plenamente. Com estupefação geral, Beatriz quebrou o silêncio, dirigindo-se ao avô nestes têrmos:

— Não te disse, vovô, que ela sabe muita coisa nova sôbre Jesus?

— Não diga isso, Beatriz — murmurou Al­cione tôda humilde —, eu sou apenas uma curiosa das lições evangélicas. Como tínhamos em Ávila a nossa pequena igreja doméstica, a funcionar quase tôdas as noites, familiarizei-me com o assunto.

— Sem dúvida — replicou Cirilo, impressio­nado — as tuas explicações, Alcione, falam profundamente à alma. Os negócios materiais da minha vida sempre me criaram certa atmosfera de incompreensão para as lições do Cristo. Sempre considerei o lar fortaleza da nossa felicidade na Terra, mas nunca como base para enriquecimento de dons espirituais.

— Isso é natural — prosseguiu a moça enter­necida —, as fôrças que nos encarceram o coração nas grades de uns tantos problemas temporais, costumam ser violentas e rudes. Entretanto, Deus não se cansa de nos atrair aos seus braços miseri­cordiosos. As circunstâncias mínimas da existência humana induzem a pensar nisso. Logo que abrimos os olhos neste mundo, encontramos pais carinhosos que nos encaminham para o bem; nossa infância, quase sempre, está cercada de sábias advertências dos preceptores, que nos orientam para a verdade. Uma idéia lógica surge, fatalmente, em nosso cé­rebro: tantos mensageiros de bondade viriam à nossa estrada, tão só para informar-nos o coração, sem utilidades práticas para a nossa própria edifi­cação? Muita gente, nos mais variados credos, depõe nas mãos de seus ministros o que lhes cumpre fazer, mas isso é um êrro grave. Deus nos chama pela maneira como Jesus procurou os discípulos. Para realizar a união divina é preciso marchar, na “terra” de nós mesmos, não obstante os maus dias e as noites tenebrosas!...

Cirilo não podia disfarçar a admiração. Agora, sentia descortinar-se aos olhos dalma um mundo deslumbrante, que até então não conseguira sur­preender. As palavras da jovem modificavam-lhe, num minuto, tôdas as presunções exegéticas. Co­meçava a sentir que a vida, sob qualquer de seus aspectos, revestia-se da mais profunda significação. No seu conceito, o homem deixava de ser um exi­lado em míseras trevas, que se encontraria mais tarde com Deus, ou com a punição eterna. A Terra figurava-se-lhe escola, onde cada homem recebia uma divina oportunidade, entre milhões de possi­bilidades sublimes e infinitas.

— No templo de pregações públicas — con­cluía a filha de Madalena, sem afetação — podere­mos receber as inspirações externas, ao passo que no culto intimo entramos em contato com o pró­prio eu, recebendo divinas mensagens na cons­ciência, Os diversos ministros religiosos têm fór­mulas convencionais; nós, como sacerdotes da própria iluminação, temos as expressões espontâneas da vida.

Jaques engolfara-se em prolongado silêncio, como se estivesse chegando a um mundo novo de preciosas revelações. E Susana, vendo o compa­nheiro quase extático, considerou, eminentemente comovida:

— Em verdade, Alcione, teus raciocínios abrem novos horizontes ao nosso espírito. Sempre estu­damos o Evangelho, mas, de minha parte, devo confessar a dificuldade em me adaptar aos ensina­mentos... Sinto-me tão pecadora, tão humana, que cada lição me soa como rigorosa censura. Por que experimento, assim, as santas narrativas como dilacerantes acusações?

A jovem fitou-a com olhos muito lúcidos e esclareceu:

— Tais impressões devem ser passageiras. O Evangelho é mensagem de salvação, nunca de tor­mento. Na realidade, conhecemos a extensão da nossa indigência e o grau das nossas fraquezas; mas a misericórdia divina restaria imota sem as nossas quedas e dolorosas necessidades, O Cristianismo jamais será doutrina de regras implacáveis, mas sim a história e a exemplificação das almas transformadas com Jesus, para glória de Deus. Se as lições do Mestre apenas nos oferecessem motivos de condenação, onde estariam as grandes figuras evangélicas de Maria Madalena, Paulo de Tarso e tantas outras? No entanto, a pecadora transformada foi a mensageira da ressurreição; o inflexível e cruel perseguidor convertido recebeu de Jesus a missão de iluminar o gentilismo.

Susana seguia a exposição, de olhos muito bri­lhantes. Nunca sentira tamanha impressão de bem-estar, no trato das leituras santas. Nas confissões, que nunca chegara a conjugar com a grande falta da sua vida, nada recebia dos sacerdotes, senão amargas recriminações. Os padres lhe ministravam penitências, mas nunca lhe ofereciam roteiro seguro. Sempre dera ao altar valiosas contribuições monetárias, mas agora chegava à conclusão de que era indispensável cooperar, com tôdas as energias espirituais, para o próprio aperfeiçoamento.

— Tuas interpretações — asseverou a senhora Davenport — são altamente consoladoras. De uns tempos para cá, venho refletindo amargurada na inutilidade de muitos ensinamentos recebidos na infância. Por que terei aprendido a virtude e não a cultivo a rigor? E, com tais dúvidas íntimas, passo a analisar as criaturas com profundo pessi­mismo, chegando a crer que a humanidade, de modo geral, vive negando Jesus a cada momento.

Alcione, que prestava especial atenção aos con­ceitos expendidos, obtemperou:

— Por infelicidade nossa é, de fato, enorme a bagagem das nossas fraquezas neste mundo; mas, se o Pai não desanimou e nos oferece, diariamente, ensejo de nos levantarmos para o seu amor, por que haveremos de viver em descrença contumaz? Viver sem esperança é o pior de todos os males. Quando nos preocupamos sinceramente com a iluminação espiritual, compreendemos a significação de tôdaa as coisas. A própria miséria humana tem o seu lugar e a sua expressão educativa. Antes de tudo, é essencial refletirmos na extensão da bondade do Mestre. Lembremos que Pedro o negou três vêzes, na hora mais cruel; que Tomé duvidou da sua sabedoria e misericordioso poder, e, nem um nem outro foi jamais expulso da sua divina presença. O mundo tem inúmeros criminosos, ex­ploradores, ociosos e devassos, mas tudo isso deve ser examinado por um prisma diferente. O pe­cado é moléstia do espírito. No excesso da ali­mentação, na falta de higiene, no desregramento dos sentidos, o corpo sofre desequilíbrios que podem ser fatais. O mesmo se dá com a alma, quando não sabemos nortear os desejos, santificar as aspirações, vigiar os pensamentos. Sempre acreditei que as enfermidades dessa natureza são as mais perigosas, porque exigem remédio de mais dolorosa aplicação.

Susana estava eminentemente surpreendida. Aquelas explicações, tão simples, tocavam-lhe o coração nas fibras mais sensíveis. Sômente agora identificava a sua moléstia espiritual. Nos dias mais tristes da vida conjugal, entre remorsos e revoltas, muita vez indagara de si mesma os moti­vos que a levaram a desventurar a filha de D. Inácio. Nas horas acerbas, chegava à penosa conclusão de que um verdadeiro amor jamais sacrifica alguém nos seus impulsos. Em troca da sua violência, nada adquirira senão remorsos para si e insaciedade para o companheiro. Não teria sido melhor cooperar para a felicidade inalterável do primo com Mada­lena? Se lhe não fôsse possível a edificação do lar, alcançaria, pelo menos, a tranqüilidade de cons­ciência. Entretanto, como dizia Alcione, deixara-se empolgar pelo desregramento dos desejos, desvia­ra-se dos sentimentos justos e caíra em terrível enfermidade espiritual. Enfim, comovera-se em de­masia, fora de seus hábitos, tinha os olhos molha­dos de pranto.

Cirilo, por sua vez, muitíssimo impressionado com os esclarecimentos, imitava o velho tio, pare­cendo mergulhado em profundo cismar.

Rompendo o forçado silêncio, o velho educador de Blois tomou a palavra e disse com brandura:

— As interpretações da menina são novas e confortadoras para nós. Pelo visto, muito nos po­derá ela auxiliar no referente aos sagrados ensinos. Não será melhor que todos nós a ouçamos, hoje, no culto? Dessarte, saberemos como funcionava a sua igreja doméstica, em Ávila, e poderemos enri­quecer as nossas experiências.

Alcione sempre humilde e sincera, tentou es­quivar-se, mas Cirilo e Susana reforçaram a pro­posta do bondoso ancião e não houve como exi­mir-se à delicada incumbência.

Jaques entregou-lhe o volume do Novo Testa­mento, mas, antes de o abrir, ela explicou:

— Em nosso grupo familiar de Castela-a-Ve­lha, meu tutor dizia que o estudo das letras santas é comparável a uma pesca de luzes celestiais, O rio da vida, afirmava, está sempre correndo e é indispensável energia serena e vontade ardente, a fim de mergulharmos na coleta dos valores divi­nos. Enquanto o homem se mantiver tíbio, desen­cantado, indiferente ou pessimista, dificilmente poderá encontrar no Evangelho algo mais que os sublimes apelos do Senhor. Em tais condições negativas, recebemos os convites do Cristo, mas freqüentemente ficamos ignorando a tarefa; somos chamados ao banquete da verdade e da luz, mas comparecemos como comensais bisonhos, mal sa­bendo como iniciar o suculento repasto. O ensina­mento de Jesus é vibração e vida, e como o estudo mais simples demanda o esfôrço de comparação, não podemos versar o Evangelho sem êsse esfôrço. Muitos procuram, nestas páginas, sômente motivos de consolação, esquecendo a essência do ensino. Mas seria um contra-senso vir o Mestre a nós, dos espaços gloriosos da imortalidade, apenas para nos adoçar o coração onusto de perversidades e fra­quezas humanas. Jesus é a fonte do confôrto e da doçura supremos. Isso é inegável. No entanto, re­conhecemos que uma criança, que sômente receba consolações e mimos paternos, arrisca-se a enve­nenar o coração para sempre, na sêde insaciável dos caprichos. Não; não devemos acreditar que o Cristo só haja trazido ao mundo a palavra revi­goradora e afetuosa, senão também um roteiro de trabalho, que é preciso conhecer e seguir, em que pesem às maiores dificuldades. Para isso, é indis­pensável tomar os nossos sentimentos e raciocínios como campo de observação e experiência, traba­lhando diàriamente com Jesus na construção da arca íntima da nossa fé. Naturalmente que essa edificação não prescinde do material adequado, constituído pelas virtudes e conhecimentos nobres que adquirimos no curso da vida. São esses os elementos que procuramos, em nossa pesca das luzes celestiais, para que, recebendo as consolações de Jesus, sejamos igualmente operosos trabalha­dores.

A pequena assembléia entreolhava-se grande-mente surprêsa. Cada qual parecia mais deslum­brado com o comentário da jovem intérprete.

— Em Ávila — continuou ela com a maior simplicidade — nunca nos reunimos no culto doméstico sem suplicar o socorro da inspiração divina. Padre Damiano esclarecia sempre que Deus não poderia ter enviado as “línguas de fogo” da sua sabedoria apenas aos doze discípulos de Jesus. As chamas do seu amor infinito aquecem a huma­nidade inteira. Basta lembrar que se os sinais do céu foram vistos sômente sôbre os Apóstolos, no dia inolvidável do Pentecostes, ninguém poderá contestar a extensão dos benefícios à multidão que os ouvia, exultante de júbilo. A revelação dirigia-se a todos, o contentamento celestial foi distribuído sem exclusividade. Baseado nisso, meu tutor asse­verava que devemos fazer o estudo evangélico não apenas com as nossas malícias e necessidades hu­manas, mas com o auxílio silencioso e invisível do Céu!...

Após estas considerações, que despertaram fundo enternecimento nos ouvintes, orou em voz alta, suplicando a Jesus lhes concedesse o benefício de suas inspirações sacrossantas, para que se inte­grassem no conhecimento da sua vontade. Feita a prece comovedora, tomou do livro e perguntou:

— Sr. Jaques, gostaria me dissésseis qual o método aqui adotado para a leitura.

— Costumamos ler cinco a dez versículos de cada vez, comentando-os em seguida. Presente­mente estamos na segunda epístola de São Paulo a Timóteo, tendo ficado, na última reunião, no segundo capítulo, versículo 10.

— Lá na Espanha — explicou a jovem delica­damente — líamos apenas um versículo de cada vez e êsse mesmo, não raro, fornecia cabedal de exame e iluminação para outras noites de estudo. Chegamos à conclusão de que o Evangelho, em sua expressão total, é um vasto caminho ascensional, cujo fim não poderemos atingir, legitimamente, sem conhecimento e aplicação de todos os detalhes. Muitos estudiosos presumem haver alcançado o têr­mo da lição do Mestre, com uma simples leitura vagamente raciocinada. Isso, contudo, é êrro grave. A mensagem do Cristo precisa ser conhecida, medi­tada, sentida e vivida. Nesta ordem de aquisições, não basta estar informado. Um preceptor do mun­do nos ensinará a ler; o Mestre, porém, nos ensina a proceder, tornando-se-nos, portanto, indispensável a cada passo da existência. Eis por que, excetua­dos os versículos de saudação apostólica, qualquer dos demais conterá ensinamentos grandiosos e imor­redouros, que impende conhecer e empregar, a be­nefício próprio.

— Será então mais útil — advertiu Cirilo su­mamente interessado — assim também procedermos.

Alcione procurou a epístola indicada e leu o versículo 11 do segundo capítulo:

- «Palavra fiel é esta: que se morrermos com ele, também com êle viveremos. »

Franca a palavra, todos, exceto a pequena Beatriz, que se mantinha calada, opinavam que os homens apegados a Jesus, no fim da vida, podiam morrer em paz, certos de que o Senhor lhes abriria, além-túmulo, as portas gloriosas da redenção.

Depois de ouvir a opinião de cada um em par­ticular, Alcione explanou:

— Certo, a esperança em Cristo será sempre um refúgio indispensável na hora da partida, mas a advertência apostólica nos convoca a ilações mais graves. Lembremos os perversos que aceitam Jesus na hora extrema. Muita gente, portadora de crimes inomináveis, faz ato de fé no leito de morte. En­quanto têm saúde e mocidade, vivem ao léu, entre caprichos e desregramentos; mas tanto que o corpo quebrantado lhes dá idéias de morte, alarmam-se e desfazem-se em rogativas a Deus. Podem, criatu­ras que tais, esperar de pronto, imediata, a glória do Cristo? E os que se sacrificam nas aras do dever enquanto lhes resta uma partícula de fôrças? Clau­dicaria a justiça, em suma, se afinal a virtude se confundisse com o crime, a verdade com a mentira, o labor com a ociosidade. Certo que será sempre útil recorrer à misericórdia do Senhor, ainda que manchados até aos cabelos, bem como acreditar que, para tôda enfermidade, haverá remédio adequado. Penso, porém, que a assertiva de Paulo não se refere ao têrmo da vida corporal, fenômeno natural e apanágio de justos e de injustos, de piedosos e de impios. Bafejado pela divina inspiração, o amigo do gentilismo aludiu, por certo, à morte da “cria­tura velha”, que está dentro de todos nós. E’ a personalidade egoística e má, que trazemos conOScO e precisamos combater a cada dia, para que possa­mos viver em Cristo. A existência terrestre é um aprendizado em que nos consumimos devagarinho, de modo a atingir a plenitude do Mestre. No plano da própria materialidade, poderemos observar êsse imperativo da lei. A infância, a mocidade e a de­crepitude, em seu aspecto de transitoriedade, não podem representar a vida. São fases de luta, de­monstrações da sagrada oportunidade concedida por Deus para nos expurgarmos da grosseria dos sen­timentos, da crosta de imperfeição. Costuma-se dizer que a velhice é um ataúde de fantasias mor­tas, mas isso apenas se verifica com os que não souberam ou não quiseram “morrer” com o Cristo para alcançar a fonte eterna da sua vida gloriosa. Quem se valeu da possibilidade divina tão sômente para cultivar ilusões balof as, não poderá encontrar mais que o fantasma dos seus enganos caprichosos. A criatura, porém, que caminhou de olhos fixos em Jesus, em todos os pormenores da tarefa, essa, naturalmente, conquistou o segrêdo de viver triun­fante acima de quaisquer circunstâncias adversas. Jesus palpita em seus atos, palavras e pensamen­tos. Seu coração, na pobreza ou na abastança, será como flor de luz, aberta ao sol da vida eterna!...

Cada qual dos ouvintes revelava jubiloso inte­rêsse. A explanação de Alcione lhes tocara o coração. Quando a filha de Madalena fêz uma pausa mais longa, Cirilo Davenport acentuou:

Agora, sim! Encontrei um modo prático de Compreender o tesouro evangélico, interpretado desta maneira, dá idéia de preciosa mina de valores espirituais. Quanto mais nos aprofundamos em meditação, esfôrço e boa vontade, mais filões aurí­feros irão surgindo aos nossos olhos.

Alcione sorriu satisfeita. Ninguém, ali, poderia entender a vibração do seu contentamento; mas a verdade é que, Considerando a Confissão paterna, transbordava de alegria Íntima.

— O senhor comparou muito bem — disse. —As palavras do Mestre estão cheias de apelos mara­vilhosos, de socorros divinos, de mensagens do Céu. Basta que nos esforcemos por lhe ouvir a voz e receber os dons.

Jaques Continuava muito impressionado.

— Senhorita — indagou —‘ vê-se que a sua educação religiosa é muito diferente da que conhe­cíamos até agora. Encontro-me a termo de uma existência Consagrada ao ensino, e, apesar da minha paixão pelos autores antigos, nunca pude sair do círculo do meu tempo, circunscrevendo o serviço da fé aos atos de adoração. Jamais pude compreen­der a igreja como oficina de trabalho ativo, nem o culto doméstico do Evangelho como escola de preparação para o esfôrço terrestre; no entanto, por suas observações sinto que há métodos de inter­pretação que não conheço, e posso declarar, pelo que ouvi da sua inteligência moça, que êstes processos­ de aprendizado são sedutores. Desejaria saber se isso é comum nas escolas e lares de Es­panha.

A jovem sorriu agradecida e esclareceu:

— Estas luzes, Sr. Jaques, eu as recebi do meu tutor, em nossas reuniões familiares de Ávila; mas devo acrescentar que esta orientação não está generalizada na pátria de minha mãe, mormente em Castela-a-Velha, onde o Padre Damiano foi ameaçado duas vêzes pelas perseguições do Santo Oficio, por haver tentado chamar a atenção do povo para êste sistema de estudo e exegese.

— Que horror! — exclamou Cirilo num gesto significativo — é quase inacreditável que a Igreja mantenha tal instituição.

— Não podemos inculpar a Igreja — retifi­cou Alcione, carinhosamente —; o Cristianismo, em tempo algum, autorizaria institutos dessa natureza. Devemo-los aos maus padres, cujo coração ainda não pôde compreender a suprema grandeza do Cristo.

O velho educador, sinceramente impressionado com as definições ouvidas, tornou a perguntar:

— Onde poderei avistar-me, mais amiúde, com o Padre Damiano?

Alcione esboçou um sorriso melancólico e res­pondeu:

— Nosso velho amigo está à morte, na paró­quia de São Jaques do Passo Alto. Quase diariamente, à noite, vou recolher seus últimos pensa­mentos. Não obstante o combate há muitos meses travado com a terrível enfermidade, vê-se que êle está nas últimas. Com a sua morte próxima, perde­rei neste mundo um segundo pai.

A notícia ecoou lügubremente na sala. Obser­vando a nuvem de tristeza que sombreava o semblante de Alcione, todos entraram em profundo silêncio. Foi aí que a jovem lembrou:

— Agora, agradeçamos a Deus o socorro que nos foi enviado através da inspiração. As mais das vêzes, temos a certeza de que devemos, em grande parte, o pão material ao próprio esfôrço, mas o mesmo não se dá com relação ao alimento espiri­tual. Êste nos vem sempre de Deus, do seu paterno coração, que nos cumula de infinitos recursos. Te­mos na Terra a lei da necessidade, mas o Senhor tem a do suprimento. Agradeçamos a sua miseri­córdia e apliquemos as dádivas recebidas, porque novos elementos fluirão, para nossa alma, dos seus inexauríveis celeiros de sabedoria e abundância.

Encerrada a reunião familiar com uma prece de reconhecimento, Alcione retirou-se, deixando àfamília Davenport singulares impressões.

Ela parecia fortemente inspirada, quando dizia que Damiano estava às portas da morte. Logo que chegou à casinha do burgo de São Marcelo, encon­trou a notícia alarmante. Um portador ali estivera para comunicar aos Vilamil que o velho sacerdote agonizava. As freqüentes hemoptises da noite lhe haviam aniquIlado as últimas fôrças. Madalena, não obstante a atrofia dolorosa das pernas, suplicou à filha que a levasse em sua companhia, num carro mais espaçoso, a fim de ver o abnegado amigo, pela última vez. A filha ouviu-a, angustiada, e dentro de poucos minutos, à bôca da noite, um carro vaga­roso saía de São Marcelo para a residência do padre Amâncio. Alcione recomendara, muito cuidado ao cocheiro. Chegando ao destino, Madalena Vilamil conseguiu descer com grande sacrifício. Dois ho­mens trouxeram larga poltrona para conduzir a enfêrma ao quarto do moribundo. Alcione auxiliava o transporte da genitora, com infinito carinho.

Lá chegadas, o agonizante pareceu reanimar-se. Robbie e a irmã adotiva aproximaram-se respeitosos e pediram-lhe a bênção, enquanto a se­nhora Vilamil, pedindo que a poltrona fôsse depos­ta à cabeceira do moribundo, tomou-lhe a destra, muito pálida, em confortadora saudação fraternal.

Damiano tinha os olhos profundamente lúcidos e brilhantes, mas na feição cadavérica pairava uma expressão de agonia dolorosa.

— Que é isso, padre?... — murmurou aca­brunhada.

Ele fixou nela o olhar enternecido e respondeu, com voz quase sussurrante:

— A moléstia incurável, Madalena, é um es­coadouro bendito de nossas imperfeições. Que seria de minhalma se a moléstia do peito não me ajudasse a expungir os maus pensamentos? Quantos bens fi­carei devendo à solidão e ao sofrimento? O Senhor, que mos deu, lhes conhece o inestimável valor. Eu, que não chorava há muitos anos, alcancei nova­mente o beneficio das lágrimas... Muitas vêzes ensinei do púlpito, mas o leito me reservava lições muito maiores que as dos livros...

A filha de D. Inácio quis responder, testemu­nhar seu reconhecimento imorredouro, dizer dos votos que fazia a Deus pelo seu restabelecimento, mas, na sua angústia, não encontrava palavras com que traduzir o seu pesar. Não conseguia, porém, reter as lágrimas que lhe rolavam, abundantes, dos olhos.

O moribundo prosseguiu após uma pausa mais longa:

— O catre amigo e silencioso me trouxe a recordação de todos os júbilos e dores que ficaram no passado distante... Sem conseguir adaptar-me a esta vida de Paris, tenho vivido quase que abso­lutamente das nossas velhas lembranças de Espa­nha. Tenho grande saudade da nossa vida tran­qüila, em Ávila; dos fraternos serões da Chácara; dos colegas da igreja de São Vicente... mas estou certo, Madalena, de que a vida não acaba com o corpo e convencido de que Deus nos reunirá, em outra parte, onde não haja prantos nem morte... Há diversas noites que sou visitado pela sombra dos entes amados que me antecederam no tú­mulo... Ainda hoje, depois da última hemorragia, enxerguei o vulto de minha mãe a dizer-me pala­vras de consolação e coragem... Algumas crianças amadas, lá da nossa igreja antiga de Castela, fale­cidas há muito tempo, me vieram ver à noite passada e me abraçaram com carinho... Amâncio pensa que estou sendo vítima de pesadelos, dado o meu esgotamento físico, mas eu não posso con­cordar...

A senhora Vilamil, aproveitando uma pausa, fêz um esfôrço e obtemperou carinhosamente:

— Não deveis pensar nisso. Lembrai-vos de que precisamos do vosso amparo paternal. Deus vos restituirá a saúde, para que nossa alegria não desapareça para sempre. Recordai nossa viagem à América...

Damiano procurou, a custo, o olhar de Alcione, dando-lhe a entender o cuidado com que se deviam conduzir naquelas circunstâncias e acentuou:

— Pede a Deus pela minha saúde espiritual, porque seria impossível restaurar a do corpo, minha filha! A morte não é uma separação eterna. Estou certo de que Jesus me permitirá voltar a teu lado, se minha vinda fôr útil... Quanto à viagem ao Novo Continente, não te preocupes. Alcione está muito jovem e Robbie quase que ainda não passa de um menino... Poderás ser muito feliz na com­panhia dêles, aqui mesmo...

Madalena enxugou as lágrimas, murmurando:

— Tendes razão, padre! Também eu estou chumbada ao leito para meditações necessárias. Minhas pernas paralíticas nunca me permitirão tão longa viagem!...

— Não te lastimes, porém, pensando nesses obstáculos, certa de que a misericórdia do Todo Poderoso nunca andou atrasada. Quando nos pa­rece tarda, é que algum motivo existe, que não podemos compreender de pronto...

A filha de D. Inácio continuava chorando en­ternecidamente. Em seguida, o velho sacerdote, dando a perceber que desejava mudar de assunto, fêz um sinal chamando Robbie à cabeceira. O me­nino atendeu, compungido.

— Por que não trouxeste o violino? — indagou com interêsse.

— Alcione me disse que o senhor estava mais doente — esclareceu respeitoso.

— Isso quer dizer, meu filho, que preciso mais de te ouvir.

A irmã adotiva aproximou-se e interrogou com ternura filial:

— Desejáveis ouvir alguma coisa, padre?

— Sim, Alcione. Se fôsse possível, a Ladainha de Nossa Senhora, que cantaste na primeira missa de Carlos, na igreja de São Vicente. Recordas? Dêsse modo lembraríamos o amigo distante, bem como o recanto de Castela, onde fomos tão fe­lizes!...

— Poderei pedir a padre Amâncio que nos empreste o violino do côro de São Jaques — excla­mou a jovem esforçando-se por conter as lágrimas.

— Seria um grande consôlo!

Ouvido um dos três clérigos que se conser­vavam no quarto, prontificou-se a buscar o instrumento.

Daí a minutos, a voz cristalina de Alcione enchia o aposento, arrebatando os ouvintes a um plano de misteriosa luz espiritual. Robbie acom­panhava o canto, com extrema felicidade em cada nota de sublime harmonia. O moribundo parecia extático. A ladainha, muito antiga, abria-lhe novos horizontes de claridade maravilhosa. Madalena ti­nha um lenço colado aos olhos, enquanto o lacaio e os religiosos choravam comovidos.

Quando terminou, o agonizante chamou a jo­vem e lhe falou dêbilmente:

— Alcione, Deus te abençoe por esta alegria... Depois, contemplou a senhora Vilamil demora­damente, e, trocando com a moça significativos olhares, voltou a dizer:

— Faze pela paz espiritual de tua mãe tudo que possas! E se tiveres, algum dia, qualquer necessidade mais forte, uma dificuldade mais pre­mente, lembra-te de Carlos, minha filha! Sei que não te encontras sôzinha no mundo, mas não posso esquecer que acima de tudo devemos considerá-lo teu irmão!...

Surgindo a dispnéia das horas derradeiras, Da­miano não mais podia conversar senao por monos­sílabos. Após entendimento com a genitora, a jo­vem Vilamil acercou-se do moribundo, murmu­rando:

— Padre, levarei mamãe e Robbie de volta a São Marcelo, mas estarei novamente aqui, dentro em pouco, para ficar convosco!...

— Não te incomodes, nem deixes Madalena... por minha causa...

Mas, acompanhando os seus ao lar, Alcione regressou sem demora, a fim de assistir o velho amigo, até ao fim.

As restantes horas da noite êle as passou em coma, assistido pelo afeto da filha de Cirilo, que lhe enxugava o suor álgido com extrema dedicação.

Quando a aurora se fazia anunciar em clarões muito rubros, o velho Damiano verteu a última lá­grima e entregou a alma ao Criador.

Um emissário chegava, pela manhã, ao pala­cete da Cité, entregando uma carta da governanta de Beatriz, endereçada a Susana, em cujas linhas explicava a sua ausência ao trabalho.

A família Davenport comoveu-se. À tarde, uma carruagem elegante parava à porta do presbitério de São Jaques do Passo Alto. Dela desceram Jaques e Cirilo, que iam prestar afetuosa homenagem ao morto.

Impressionados com o abatimento da jovem, ambos se desdobraram em gentilezas e expressões confortadoras. Cirilo procurou o padre Amâncio e fêz questão de pagar as despesas do enterramento, acrescentando generosa dádiva destinada ao lacaio que servira ao tutor de Alcione.

A jovem agradeceu com lágrimas. Depois de uma hora consoladora, despediram-se atenciosos.

Ao crepúsculo, a filha de Madalena assistiu ao modesto funeral, de coração confrangido. Por muito tempo deixou-se ficar na silenciosa mansão dos mortos, em prece comovedora ao Altíssimo, Só tarde da noite, passos vacilantes, regressou ao lar, experimentando indefinível amargura.

 


4

Reencontro

Um ano depois da morte de Damiano, houve na casa humilde do burgo de São Marcelo grande e desconcertante surprêsa.

Orientado pela paróquia de São Jaques, Carlos Clenaghan, ansioso e comovido, bate à porta de Madalena Vilamil. Nos primeiros meses que se seguiram à morte do tio, resolvera abandonar a batina, apesar do ressentimento dos colegas. Ja­mais pudera esquecer Alcione, jamais conseguira manter um equilíbrio entre o dever e os impulsos da mocidade. Enquanto recebia as longas cartas de Damiano, a palavra amorosa do tutor lhe sofreava as preocupações tormentosas; mas, tão logo se viu sem o preservativo dos seus conselhos, entrou a meditar resoluto na mudança de situação. Anelava um lar, ardentemente, jamais renunciaria à afeição de Alcione, não conseguia sopitar o desejo de ser pai e espôso feliz. Após algumas lutas em Ávila, desprezara o apêlo dos superiores hierárquicos e, sem dar qualquer satisfação do feito aos parentes irlandeses, desligara-se do voto sacerdotal, cheio de esperança no futuro. Seu primeiro cuidado foi correr a Paris, por buscar a noiva amada. Como o receberia ela? Conhecia-lhe a pureza dos princí­pios e a formosura do caráter cristão. Suspeitava que lhe não sancionaria a decisão, atento o conceito que fazia da fé; mas, faria o possível por demons­trar-lhe o seu amor imenso, convencê-la-ia com instâncias afetuosas, tanto mais quanto ela, agora, já não poderia contar com a assistência paternal de Damiano, que a morte arrebatara, e no lar, pelas notícias que recebia freqüentemente em Castela-a­-Velha, arcava com muitas dificuldades, em vista da moléstia incurável da genitora. Talvez os tra­balhos do mundo lhe houvessem modificado a opi­nião, relativamente ao enlace para uma vida tran­qüila e risonha. Oferecer-lhe-ia o braço protetor, voltariam à Espanha, onde pretendia continuar, em Ávila ou Valladolid, dedicando-se ao comércio. Ébrio de esperanças, Clenaghan erguia castelos ma­ravilhosos na mente exaltada. Edificariam um lar venturoso, Madalena Vilamil seria também uma segunda mãe, aprimorariam a educação de Robbie e teriam filhinhos amados. Impossível que ela re­lutasse, quando não desejava senão a suprema feli­cidade de ambos, diante de Deus e dos homens.

Enlevado nestes sublimes projetos, esperou que alguém viesse atender. Depois de alguns instantes de espera em que o coração lhe palpitava descom­passado, surgiu a figura de Robbie, que lhe caiu nos braços afetuosamente. Conduzido ao interior, foi enorme a alegria da filha de D. Inácio ao re­ceber as carinhosas saudações do amigo, e não menor a surprêsa quando êle falou da sua renúncia eclesiástica.

Depois de longa troca de idéias e impressões afetuosas, referentes à vida em Castela e à enfermi­dade que aniquilara Damiano, o ex-padre aproveitou certas observações mais íntimas e sentenciou:

— Como bem pode avaliar, D. Madalena, eu nunca poderia esquecer Alcione, e ciente de que o seu coração de mãe carinhosa compreende e justi­fica os meus propósitos, devo dizer que aqui estou para reconduzi-las aos caros penates... A senhora não gostaria de regressar a Castela para reviver­mos nossos tempos mais venturosos....

Aquelas palavras eram pronunciadas com tanto carinho que a senhora Vilamil sentiu lágrimas de reconhecimento a lhe aflorarem dos olhos.

— Não sei se Alcione me perdoará haver pro­cedido em desacôrdo com o seu ponto de vista, mas tenho para mim que procedi nobremente. Fui ló­gico, sincero, coerente, creia. De que me valeria continuar, sem a vocação imprescindível? Desde que a Senhora saiu de Ávila, debalde procurei repouso para o espírito atormentado. A ânsia de construir um lar tornou-se-me obsessão permanente. Às vê­zes, quando erguia a hóstia consagrada, assus­tava-me com as sugestões da natureza... Enquanto o padre Damiano me escrevia as suas exortações, eu me sentia fortalecido para prosseguir na batalha silenciosa; mas verifiquei, depois, que seria inútil combater o impossível...

A pobre enfêrma recebia a confissão com tris­teza inexplicável, e, tendo o rapaz notado que o coração maternal se encontrava embaraçado para responder, prosseguiu:

— Se lhe fôr possível, ajude-me neste passo... Quem sabe recuperará a saúde, regressando comigo? Se lhe prouver, poderemos residir nas cercanias de Ávila, organizaremos uma chácara como aquela onde a senhora viveu longos anos e que está sem­pre em suas recordações!...

Falava como filho afetuoso, pondo no olhar e na voz tôda a ternura do coração bem formado. Depois de ligeira meditação, a senhora Vilamil pon­derou, com acento triste:

— Sou muito grata à tua lembrança! Ah! quem me dera voltar para esperar a morte, contemplando o céu da Espanha! A paisagem da Gua­darrama nunca sairá de minhalma...

E depois de enxugar o pranto da evocação amarga, voltava a dizer:

— Esta cidade parece marcar as horas mais terríveis do meu destino. Aqui em Paris conheci, na mocidade, a pobreza mais dura, experimentei a ironia e a crueldade de pessoas ingratas, perdi meus pais carinhosos, abracei meu espôso pela última vez! Agora, neste mesmo lugar, encontrei a paralisia completa, vi morrer o padre Damiano em si­tuação quase miserável!... Desde que aqui cheguei, jamais pude arredar-me do leito para uma visita ao túmulo dos meus inesquecíveis genitores. Não sei se estarei condenada a também exalar aqui o der­radeiro suspiro... Por meu gôsto, devo confessar francamente, estou ansiosa por voltar à Espanha; entretanto, preciso ouvir Alcione que me tem sido verdadeiro anjo guardião nos dias amargos, de ne­cessidade e sofrimento. Como mãe, não me sinto com ânimo para induzi-la a casar-se. Minha filha, antes de tudo, tem sido para mim uma conselheira respeitável. Não seria justo obrigá-la a aceitar mi­nhas idéias, mas podes crer que eu receberia o assentimento dela com o maior contentamento. Voltei à França no propósito de conseguir recursos para demandar as plagas americanas, mas, logo que o padre Damiano apresentou os primeiros sin­tomas da enfermidade do peito, perdi as espe­ranças!...

Clenaghan estava mais esperançado. Sentia-se plenamente garantido, no tocante às concessões ma­ternas, O sincero desabafo de Madalena encoraja­va-lhe as pretensões. A pobre senhora, extrema­mente abatida, inspirava-lhe simpatia e enterneci­mento filiais. Tal qual acontecera à genitora, a filha de D. Inácio viu chegar, devagarinho, o mal do coração. Suas noites estavam agora povoadas de aflições repetidas. Além das pernas inchadas pela continuidade da mesma posição no leito, sen­tia-se prêsa de outros sintomas alarmantes. Debal­de, Alcione e Luisa preparavam tisanas e aplica­vam fomentações, em cansativas vigílias. A senhora Vilamil piorava sempre. Esse o motivo pelo qual as observações de Carlos lhe falavam tão forte­mente ao coração.

— Pois bem — acrescentou o sobrinho de Damiano, mais animado —, Deus há de permitir que a senhora encontre a meu lado a tranqüilidade me­recida.

— Alcione decidirá — acentuou a enfêrma re­signada. — Até que minha filha se pronuncie, nada poderei dizer em caráter definitivo.

A conversação continuou afetuosa, permane­cendo Clenaghan em São Marcelo, à espera de Al­cione, que regressava habitualmente à noitinha.

Mal começavam a brilhar no céu os primeiros astros, a filha de Cirilo voltou da sua faina diária.

A surprêsa foi demasiado chocante para sua alma sensível. Cumprimentou o rapaz, muito pálida, na atitude de íntima e penosa expectativa. Naquela hora, o pupilo de Damiano, entestando com a sua superioridade moral, sentia-se acovardado para as explicações indispensáveis. A princípio, a moça julgou que ele tivesse vindo a Paris no só intuito de visitar o sepulcro do tio querido, prestando-lhe a derradeira homenagem e valendo-se de alguma autorização especial para levar a efeito tão longa excursão, sem a batina comum. Mas, em breves minutos, Carlos, não sem enleio, notificava-lhe a verdade. Estupefata, Alcione indagou:

— Como pudeste cometer semelhante des­vario?

O rapaz, algo confuso, tentava esclarecer:

— Supus que seria melhor assim... Era impossível continuar, O coração inquieto, desde que vieste, nunca me permitiu reaver a paz interior. Pedi a Deus me inspirasse a melhor solução, supliquei ardentemente do céu um recurso, até que o propósito de renunciar ao compromisso eclesiástico de todo me empolgou.

No íntimo, a filha de Cirilo estava profunda­mente comovida com aquela espontânea confissão de fraqueza, mas, certa de que o dever espiritual deve ser cumprido até ao fim, alcançou energias para observar:

— Pediste, mas não oraste. Como te sentiste forte para esquecer as obrigações assumidas, sem considerar a questão do proveito próprio? Será isso a renúncia cristã? Não creio. Declaras que imploraste­ uma inspiração do Céu e resolveste o pro­blema distanciando-te do compromisso; mas eu não posso admitir, em nenhuma hipótese, que Deus nos dispense dos seus trabalhos; nós é que por vêzes ouvimos o apêlo da natureza inferior e aban­donamos o serviço divino, em prejuízo de nós mesmos...

— Não desconheço, Alcione — aventou hu­milde — que minha atitude inesperada desagradaria muito ao teu bondoso coração. Entretanto, o que aconteceu é humano e peço me perdoes pelo muito bem que te desejo... Esquece esta falta, dize que me compreendes e serei feliz!...

A nobre criatura, pelo tom carinhoso com que Clenaghan falava, compreendeu que êle desejava reatar os antigos laços afetivos. Experimentou sin­cero desejo de lhe tomar as mãos, ternamente, con­fessando os seus anseios e saudades. Ele agora estava livre. Observando-o, naquela atitude amoro­sa, recordou as jovens da sua idade, que se apre­sentavam a cada passo, em Paris, exibindo os seus eleitos. Muitas vêzes, quando acompanhava Susana a certas festividades públicas, vinha-lhe à mente Clenaghan, ao contemplar os pares venturosos que perambulavam nas praças e jardins. E sentia, en­tão, frio no coração. A própria Beatriz, aos quinze anos, começava a receber as visitas afetuosas do noivo. A filha de Madalena fitou o rapaz, demora­damente, e teve ímpetos de ceder ao primeiro im­pulso, mas a consciência lhe dizia que resistisse, que era indispensável atender a Deus acima de quaisquer contingências mundanas, e que ainda não havia cumprido todos os deveres, para que pudesse pensar na sua felicidade pessoal.

Muito sensibilizada pela atitude humilde, peni­tencial do bem-amado, retrucou:

— Não me suponhas capaz de condenar-te por coisa alguma desta vida. Apenas lamento o que sucedeu, porque é razoável te deseje no caminho da fidelidade a Jesus, até ao fim.

Sinceramente embaraçado, o ex-eclesiástico não sabia como reatar a explanação dos seus projetos. A senhora Vilamil, no entanto, acudiu a socorrê-lo, advertindo:

— Carlos, minha filha, faculta-nos o ensejo de regressarmos à Espanha.

— Sim — prosseguiu o rapaz —, agora estou liberto e apto para reorganizar a vida, mas nada quero fazer sem te ouvir. Desde que nos vimos, compreendi que Deus não me poderia destinar outro coração feminino, além do teu. Tomo, portanto, tua mãe, como testemunha da minha afeição pura e devo dizer que vim a Paris só para buscar-te. Estou certo de que acreditas no meu devotamento e de que nos uniremos para sempre, eternamente felizes sob as bênçãos de Deus.

A jovem contemplou-o ofegante, e como se sen­tisse em hora das mais difíceis de tôda a sua vida, implorou a inspiração de Jesus e silabou:

— É impossível!...

Clenaghan empalidecera. Adivinhava nos olhos da escolhida que a sentença não lhe provinha do coração.

— Por quê? — indagou exaltado — o que pode­rá impedir nossa ventura na Terra? Serei assim tão detestável? Desde que te ausentaste tenho vivido como louco. A saudade e a inquietação começaram a nevar-me os cabelos. Voltemos a Castela, Alcione! Levaremos tua mãezinha por dar-lhe uma vida tranqüila e feliz!...

Tais palavras ecoavam nos ouvidos da jovem como doce harmonia de uma felicidade inatingível. Contemplou a genitora, que parecia aguardar sua decisão, ansiosamente, mas recordou também o pa­lacete da Cité, onde seu pai não era menos doente da alma, arrostando absconsos pesares. Lembrou as reuniões evangélicas em que Cirilo Davenport ouvia as lições de Jesus e as suas explicações como se estivesse a receber suaves mensagens do Céu; considerou as transformações de Susana, a mudança de Beatriz, o enternecido carinho do velho Jaques... Seu coração estava sufocado. Fitou o escolhido, longamente, e esclareceu em voz pau­sada:

— Não posso, Carlos! A felicidade tem base no dever cumprido. Ainda não terminei minha tarefa de filha, como queres que assuma novas obriga­ções?...

Isto, ela o dizia desfeita em lágrimas, O pupilo de Damiano, todavia, longe de conhecer tôdas as angústias e sacrifícios daquela alma heróica, tomou as suas palavras alusivas ao dever cumprido como acusatórias da sua renúncia eclesiástica e objurgou:

— Queres dizer que ainda não concluí minhas tarefas sacerdotais e desejo assaltar novo plano de obrigações?

Acabrunhada por se ver incompreendida, Alcione reviu mentalmente a figura do padre Damia­no, relembrou a sua franqueza, que chegava a ser quase áspera, e certificou-se de que necessitava de muita energia para defender-se dignamente naquele lance. Recobrando a serenidade íntima, em virtude da poderosa confiança em Cristo, explicou-se com bondade sincera:

— Que não terminaste o serviço começado, éinegável; mas semelhante circunstância, Carlos, já entrou no domínio de minha compreensão. Somos agora como duas criaturas às quais se reservou uma herança de ventura imortal, sob a condição de executarem determinadas tarefas. Infelizmente, não pudeste chegar à conclusão da tua. Tôda vez que fugimos ao desígnio sagrado de Deus, erramos no labirinto da indecisão e da amargura. Não te doerá o coração arrebatar-me aos deveres que o Pai me destinou? Consideras, então, o amor como coisa tão frágil que se despedace num momento, apenas porque não nos foi dada a satisfação pas­sageira de um capricho sentimental? Onde colocas a divina união das almas? Nossa concepção deve ir muito além da alucinada impressão dos sen­tidos...

O sobrinho de Damiano e a enfêrma ouviam-na, profundamente admirados. Alcione fizera-se de uma palidez transfiguradora, parecendo haurir as pala­vras em fonte estranha à esfera material. Ouvindo tantas alusões a compromissos, o ex-padre supôs que suas obrigações espirituais não ultrapassavam o acanhado círculo familiar do burgo de São Mar­celo e objetou humildemente:

— Curvo-me às tuas exortações, mas, podes crer que não abandonei a batina tão só pela inquie­tude dos desejos humanos. É verdade que sou um homem carregado de fraquezas, mas também tenho um coração. Se é inegável que encareço ardente­mente a tua companhia, não é menos certo que te desejo tomar sob os meus cuidados afetuosos. Que te prenderá em Paris, se te vejo sobrecarregada de trabalhos mortificantes? De um lado, vejo D. Ma­dalena prêsa a um leito de dor, de ti segregada durante o dia e, ao demais, carecida de outros ares; de outro lado, o nosso Robbie necessitando educa­ção. Entre os dois, tu, abatida e inquieta para dar conta exata dos teus encargos. Não será mais justo atenderes aos meus apelos? Tua genitora confugiria aos teus constantes e diretos cuidados e Robbie tomaria o lugar de primeiro filho em nosso lar. É impossível que Jesus nos negue a bênção a propósitos tão elevados. Sairias então do labi­rinto de vicissitudes e responsabilidades de gover­nanta, não precisarias pensar nas viagens diárias a Cité nos dias de chuva, nem te atribulares em casa alheia por tua mãe distante, quando a tempestade se forma no céu! Se puderes, esquece o meu pas­sado de sacerdote e pensa, ao invés, que, com tua inspiração permanente, alcançarei novas fôrças para ser um homem digno nas lutas da vida. Esquece o mal que eu tenha praticado pelo muito de bem que poderei fazer com o teu auxílio cons­tante. Medita na tranqüilidade futura de D. Madalena,­ que está definhando a olhos vistos!... Será que nenhum dos meus argumentos te poderá con­vencer?

Tocada novamente pela doce humildade do que­rido postulante, Alcione chorava. Ele jamais po­deria aquilatar a intensidade da sua angústia. Ela não poderia afastar-se de Paris sem lacerar a consciência. Jesus não a conduziria, sem uma fina­lidade, à casa paterna, onde era tratada como filha, não obstante o título de serva com que se apresen­tava. Em profundas reflexões, lobrigou no olhar da genitora sincero desejo de se afastar de Paris para sempre. Adivinhava-lhe os pensamentos mais secretos. Longos instantes passaram, em que se sentia atormentada por terríveis indecisões. Re­portou-se às últimas palavras de Damiano, quando lhe recomendara procurasse o socorro de Clenaghan nos transes mais difíceis. Firme, porém, no propó­sito de manter ilibada a consciência até ao fim das lutas humanas, enxugou as lágrimas e rea­firmou:

— Não posso... Sei o que mamãe tem so­frido em tão longos anos de martírio, físico e moral, e espero que Deus nos estenda a mão, para que suas dores sejam aliviadas; no entanto, agora, não me é possível deixar Paris...

A filha de D. Inácio esboçou um gesto de re­signação, respeitando, sem discutir, a decisão da filha. Não assim, o pupilo de Damiano, que deixou transparecer no olhar uma profunda desconfiança.

— Ah! compreendo agora — disse desapon­tado —, não podes sair de Paris! Louco que fui, presumindo que a vida aqui seria a mesma de Ávila. As atrações parisienses modificam as criaturas...

Notando-lhe a profunda tristeza, a jovem Vi­lamil experimentou indefinível aflição por se declarar abertamente, revelar a natureza dos sagrados deveres que a escravizavam prisioneira, mas a ver­dade dolorosa lhe morria no coração. Ferida nos mais nobres sentimentos, encontrou fôrças para murmurar.

— Não deves fazer semelhante juízo a meu respeito...

E muito enleada sob o olhar indagador do rapaz, que a envolvia em atmosfera de humilhação, concluía:

— Ouve. Carlos! Quando houver cumprido meus deveres, quando minha consciência permitir que pense em mim, irei procurar-te onde estiveres! Guardaremos, eu e mamãe, tôda a nossa gratidão e confiança em ti. Não importa hajas renunciado ao ministério sacerdotal, porque, então, quando me sinta livre, poderemos iniciar nova e venturosa ta­refa.

Clenaghan, entretanto, ouviu-a quase friamen­te, com o ciúme que lhe envenenava o coração. Conturbado pelas sugestões inferiores, cada afir­mativa de Alcione, agora, lhe parecia diferente. Teve a impressão de que ela se deixara levar em Paris pelas promessas de algum homem criminoso e inconsciente. As palavras “quando me sinta livre” toavam-lhe dolorosamente. Sentia-se estra­nho a tudo e não pôde murmurar senão evasivas ligeiras, até ao momento em que se despediu para voltar ao hotel.

Alcione compreendeu o que se passava com êle, mas, ainda que amargurada, chamou Luísa para os serviços de cada noite, relativos ao tratamento de sua mãe e cumpriu, rigorosamente, o programa do lar. Madalena Vilamil se envolvera num véu de tristeza silenciosa. Então, fazendo o possível por dissimular as amarguras íntimas, a jovem procurou desfazer o ambiente pesado, pedindo a Rohbie para tocar alguma coisa, enquanto lia à enfêrma certas páginas de sua predileção.

No dia seguinte, pela manhã, saiu de casa como de costume, a fim de esperar o carro do Sr. Davenport, na pequena praça, defronte da igreja mais próxima. Um carro ia-lhe no encalço, discretamente, sem que ela o suspeitasse. Era Carlos que, informado na véspera por Madalena, das regalias e atenções que a filha desfrutava na casa onde servia, resolvera não deixar Paris sem uma prova da singular transformação que injustamente atri­buía à criatura eleita. Cada pormenor da conversa com a senhora Vilamil, no dia anterior, gravara-se-lhe indelével no coração. Por que motivo ela não esperava o carro à porta de casa? Não havia neces­sidade de caminhar quase um quilômetro para en­contrar a viatura. Preocupado com essa primeira observação, reparou a carruagem garbosa que Al­cione tomou, a breve trecho. A suntuosidade do veículo pareceu-lhe excessivamente inadequada para a jovem humilde dos idos tempos de Ávila. Se­guiu-a, mais ou menos de perto, até que chegou ao destino. Viu-a descer e receber com evidentes mos­tras de satisfação o abraço acolhedor de um homem que a esperava junto do rico portão de acesso ao jardim. Considerou o palacete de linhas nobres, poucos passos distante do seu carro de aluguel e, dando ouvidos ao despeito venenoso, concluiu que Alcione não era mais aquela criança meiga e cari­nhosa que entregava costuras nas ruas empedradas da cidade onde se haviam encontrado e embebido de sublime e santo idealismo. Perplexo, alimen­tando mil idéias errôneas, deliberou fugir no mesmo dia, da capital francesa, demandando o Havre, onde não lhe seria difícil o retôrno à Espanha.

Mandando tocar de volta ao burgo de São Marcelo, procurou despedir-se de Madalena.

Quando anunciou a intenção de regressar, a pobre senhora não ocultou a surprêsa amarga:

— Não posso crer que volte tão depressa —afirmou com bondade.

— Não se preocupe por isso — exclamou o rapaz fingindo-se tranqüilo —, não vim com a in­tenção de demorar-me. Tenho alguns amigos que me esperam no Havre, por estes dias.

A resignação da enfêrma, aliada ao seu pro­fundo abatimento, inspiravam-lhe sincera preocupação, mas não podia suportar o ludíbrio de que se julgava Vítima.

— Alcione vai sentir muito a tua partida sú­bita.

Carlos sentiu que o coração se lhe descompas­sara no peito e respondeu:

— Pode ser que não. De qualquer modo, po­rém, vejo-a satisfeita e isto me conforta o espírito. Muito desejava reconduzi-las à nossa terra dis­tante, mas reconheci que a providência não é mais possível, por importuna.

Madalena esboçou um gesto triste, murmu­rando:

— Tenho desejado, ardentemente, sair de Pa­ris, mas minha filha discorda e eu creio que terá razões ponderosas para isso.

— Mas, que razões seriam essas? — perguntou Clenaghan exaltado.

— Desconfio que o meu médico desaconselha a medida, porqüanto, há muito, venho apresentando sintomas de grave afecção cardíaca... Vejo que Alcione me oculta êsse detalhe, carinhosamente, mas, devo dizer, isso nada me assusta. Tenho so­frido demais para disputar uma longevidade impro­dutiva.

Carlos não concordou, intimamente atribuindo as palavras da pobre senhora a simples fruto do carinho maternal. Depois de longa pausa, dese­jando reforçar a nociva atitude mental, perguntou:

— Alcione foi sempre bem tratada na casa onde trabalha?

— Sim — confirmou Madalena, convicta. —Lutamos terrivelmente, nos primeiros dias de Paris, visto haver adoecido o padre Damiano, mas, desde que minha filha se empregou na Cité, nunca mais sofremos qualquer necessidade. Com o seu salário, não sômente foram atendidas as despesas domés­ticos, como também tivemos a alegria de saber que nada faltou ao nosso velho amigo.

— E a senhora está informada a respeito dessa família que lhe contratou os serviços de governanta.

— Trata-se de um rico negociante de fumo —informou a interpelada, atenciosa. (1)

— E a senhora nunca visitou essa gente? -

— Nunca, até agora. De há muito venho dese­jando visitar a casa que acolheu Alcione como filha; entretanto, estou à espera de melhoras que me permitam fazê-lo.

O rapaz calou-se. Quis manifestar à enfêrma a venenosa desconfiança que o consumia, exteriori­zar todo o rancor que lhe afluia ao espírito despei­tado, mas a doce resignação de Madalena Vilamil, prêsa ao leito naquele estado, inspirava-lhe respeito sagrado. Era preciso ter um coração bem cruel para tirar a derradeira partícula de esperança e tranqüilidade daquela alma sofredora de mãe sacri­ficada.

Com estranho brilho nos olhos o sobrinho de Damiano voltou a dizer:

— Onde está Robbie? Quero abraçá-lo antes de partir.

A filha de D. Inácio percebeu nessas palavras a funda contrariedade que absorvia o interlocutor, compreendeu quanto lhe magoava a atitude firme de Alcione, com relação ao desejado regresso à Espanha, e esclareceu conformada:

— A esta hora Robbie deve estar na igreja de São Jaques de Passo Alto, em trabalhos de limpeza que padre Amâncio lhe confiou.

E como notasse que Clenaghan se dispunha a partir em deplorável estado de espírito, a pobre senhora aduziu:

(1) Compelida pelas circunstâncias, a jovem Vi­lamil nunca forneceu à genitora o nome exato da famí­lia a que servia. — Nota de Emmanuel.

— Não te vás querendo mal a Alcione. Carlos! Podes crer que minha filha nunca te esqueceu a bondade fraternal e a sublime afeição. É bem possível que, intimamente, ela deseje partir em busca da felicidade, junto do teu coração, mas, talvez por minha causa sacrificasse os mais caros desejos. Conheço-lhe o espírito de sacrifício. Sou testemunha silenciosa das suas lutas nesta casa, onde sua dedicação é o nosso manancial de bên­çãos!...

O ex-sacerdote, porém, estava obcecado pelo ciúme. Trazia óculos negros nos olhos exacerbados da imaginação e não prestou atenção maior ao que lhe fora dito, continuando inalteradas as próprias suspeitas. O olhar fixo, como que alheio ao am­biente, despediu-se de Madalena, que o recomendou à proteção divina. Horas depois, abraçava Robbie, pela última vez, tomando rumo norte, de regresso a Ávila, profundamente desditoso.

Á noite, Alcione foi informada da precipitada deliberação do rapaz.

— Carlos pareceu-me bastante abatido e deses­perado — afirmava a genitora — e lastimei since­ramente vê-lo em tão penosa conjuntura.

A jovem, com expressão de indefinível tristeza, acentuou:

— Jesus há de proporcionar-lhe ao coração aquilo que presentemente não lhe podemos dar.

— Qual será o motivo — perguntou a enfêrma com interêsse — que leva o pobre Clenaghan a sofrer tanto? Ele é moço, talentoso, cheio de pos­sibilidades e, no entanto, daqui saiu como’ se fôra um pária da sorte!...

— A senhora não presume — aventou Alcione com um gesto significativo — seja isso a primeira conseqüência da sua renúncia ao voto contraído? Clenaghan, para nós, é criatura muito amada, mas, nem por isso, podemos isentá-lo da rêde de amar­guras e tentações que constringe a criatura quando se evade ao mais sagrado dos deveres. Continuo a o derradeiro socorro da religião. Desfeita em lágrimas, seguida de Robbie que não sabia como disfarçar a imensa dor, Alcione pediu a assistência do padre Amàncio, dadas as relações de amizade. Madalena Vilamil confessou-se, recebeu religiosa­mente as bênçãos da extrema-unção. O velho pároco de São Jaques do Passo Alto dirigiu-lhe palavras de fé e consolação, que a nobre senhora recebeu com serenidade.

Mas, nada obstante a firmeza dos seus princí­pios religiosos, não conseguia eximir-se à mágoa da separação da filha e de Robbie, as duas afeições que lhe haviam sustentado a alma sofredora, por longos anos de provações atrozes. Naquela noite que se seguira às últimas providências religiosas, a agonizante parecia mais lúcida. Seus olhos ha­viam adquirido brilho diferente. Dizia entrever paisagens extraterrestres, que a criada tomava à conta de alucinações.

Enquanto Robbie soluçava baixinho, no quin­tal, Alcione aproximou-se do leito e perguntou, como costumava fazer tôdas as noites:

— Mamãe, a senhora prefere agora a leitura?

A agonizante tinha as faces banhadas de suor. E enquanto a filha lhe enxugava a fronte, respon­deu na sua aflição:

— Hoje, minha filha, gostaria que lesses o Novo Testamento, o capítulo da Paixão.

Sufocando as impressões dolorosas, a jovem tomou o livro e leu vagarosamente, observando o profundo interêsse maternal pela triste narrativa da passagem de Jesus pelo Hôrto.

Nessa noite, por mais que se esforçasse, Alcione não conseguiu fazer o comentário. Com mau­dita dificuldade, continha as lágrimas que lhe bailavam à flor dos olhos. A enfêrma interrogou-a com o olhar muito lúcido, e ela respondeu bei­jando-a:

— A senhora hoje está fatigada. Minhas pa­lavras poderiam incomodá-la... Além disso, quero pensar que uma consciência pura é o melhor te­souro do mundo. Nas melhores posições terrenas o homem será positivamente um desventurado, sem o refúgio dêsse santuário interior, onde Deus nos fala, consolando e esclarecendo, em sua infinita misericórdia!...

A doente pôs-se a meditar nessas verdades sublimes, enquanto a filha, adivinhando a onda de preocupações acerbas que afogava o ser amado, retirava-se para orar em silêncio, de modo a diminuir as próprias amarguras.

Dentro das vibrações poderosas da sua fé, Alcione pareceu consolada, buscando nas tarefas ingentes de cada dia o olvido das penas amargas.

Não se haviam passado muitos dias do inci­dente, quando Madalena Vilamil começou a apresentar sintomas de acentuada fraqueza. A moléstia do coração não se limitava, agora, a sintomas vagos e intermitentes. Surgiram as dispnéias noturnas, que lhe reavivavam a lembrança dos derradeiros dias de sua mãe, na velha casa de Santo Honorato. Face macilenta, angustiada, contemplava demorada-mente a filha, como a lhe anunciar o fim próximo. Passava as noites a falar das experiências da vida, das necessidades de Robbie, da gratidão devida àboa serva, dando a entender que se preparava cora­josamente para a grande jornada. Alcione tudo ouvia recalcando as lágrimas de amor filial. Com­preendia a gravidade do mal e dissimulava o prog­nóstico médico, revelando-se confiante em melhoras futuras. Ainda assim, não conseguia arrebatar a carinhosa genitora à invariável tristeza que lhe en­sombrava a fronte.

Uma noite em que as tisanas caseiras não atenuavam a aflição dolorosa, Madalena chamou a filha e falou francamente:

— Alcione, algo me diz ao coração que me reunirei a teu pai, muito breve...

— Ora, mamãe — exclamou a jovem, solíci­ta —, combatamos a tristeza! Sejamos confiantes, Deus ouvirá nossas preces.

E dosando cada palavra com o mel das conso­lações carinhosas, continuava:

— Logo que a senhora puder viajar, voltare­mos à Espanha. Notei que a senhora entristeceu-se quando recusei a proposta de Carlos; mas, tra­tando-se da sua saúde, a coisa é outra. Pense que teremos novamente um clima restaurador e não se preocupe com os desgostos que aqui passou. A mão de Jesus nos traçará o roteiro.

Em lhe ouvindo tais palavras de confôrto e piedade filial, tomou a mimosa mão da filha e selou-a com um beijo, acrescentando:

— Não te mortifiques, filhinha! Jamais du­vidarei ou perderei a confiança em Deus; antes continuarei tudo esperando do Pai misericordioso que nos acompanha lá dos Céus; mas julgo, também, que a resistência física, após mais de vinte anos de enfermidade, vai chegando a têrmo... Estas disp­néias não podem enganar.

Depois, fixando o olhar enternecido nos olhos da filha afetuosa, prosseguia, melancólica:

— Não ficarás zangada comigo se te disser que estou muito saudosa. Desde que Cirilo se foi, nunca mais senti o prazer da vida... Reconheço, contudo, que o Senhor tem sido magnânimo, concedendo-me socorros inesperados. Basta lembrar que meu pobre espôso morreu no mar, enquanto eu me via socorrida num oceano de lágrimas, por teu amor. Tua afeição tem sido meu santo consôlo, iluminado refúgio sôbre a Terra... Jesus te con­cederá tudo o que te não pude dar na minha po­breza de mãe!...

A moça ouvia-lhe os conceitos carinhosos, de coração sufocado. Nunca sua mãe lhe parecera tão triste, jamais se queixara assim, em qualquer outra circunstância passada. Então, começou a soluçar, mas a enfêrma, afagando-a com ternura, pros­seguiu:

— Não chores... Para esta hora nos temos preparado desde a tua infância... Não sei em que dia o relógio da eternidade terá marcado meu der­radeiro alento neste corpo; mas nós ambas estamos cientes de que a veste carnal é também uma ilusão. Estou certa de que Jesus me restituirá a compa­nhia de Cirilo, para sempre. Cercar-te-emos, então, do nosso afeto e te esperaremos num mundo mais feliz, onde não haja lágrimas, nem morte. Se pu­desse, ficaria contigo, a fim de partirmos juntas; mas, algo me diz que não poderei realizar êste desejo. Não fôssem tua afeição e as necessidades de Robbie, creio que partiria sem qualquer outro laço... Tenho, no entanto, a consciência tranqüila, embora não me possa furtar a estas preocupações! Se morrer de um instante para outro, confio o nosso Robbie aos teus cuidados!... Ele é uma cria­tura caprichosa, difícil de educar, mas não cabe repetir recomendações que bem conheces.

Diante de tanta resignação, Alcione sentia certa dificuldade para iludir a triste realidade, no intuito de confortar o coração materno, mas, ainda assim, lidando por mostrar-se esperançada, falou com brandura:

— Confiemos em Deus, acima de tudo! A se­nhora, mamãe, tem estado muito sozinha, tem-se entregado em excesso aos pensamentos de morte. Sinto que nossa casa necessita de alegria. Reani­me-se para nós. Vou pedir uma licença temporária para ficar a seu lado, e com um saldo de venci­mentos do que tenho a receber, vamos comprar um cravo. Quem sabe a música, que a senhora sempre cultivou, não virá melhorar nosso ambiente?

A senhora Vilamil tentou um sorriso apagado, obtemperando:

— Teus sacrifícios já são muitos.

— Amanhã mesmo, pedirei aos pais de Beatriz que me ajudem na aquisição. Não há de ser difícil. Recordaremos nosso antigo repertório espanhol e creio que irá sentir muita satisfação em reviver essas lembranças.

— Sim, certamente que nos sentiremos trans­portadas a Castela, onde, tantas vêzes, encontra­mos a felicidade nas coisas mais simples...

Observando a consolação que o assunto pro­duzia, a cândida Alcione prosseguiu:

— Ah! como estou satisfeita por vê-la con­fortada com êste projeto. Teremos muitas vantagens com essa compra. A senhora vai experi­mentar novo ânimo e Robbie, por sua vez, poderá ter minha cooperação, novamente, nos seus estudos domésticos. E depois, quando as suas melhoras se positivarem, pensaremos, seriamente, na mu­dança, à procura de melhor clima, onde a senhora possa ficar boa.

A enfêrma mostrou-se mais consolada com as palavras carinhosas da filha e considerou:

— Teu plano me reconforta pela ternura que traduz e rogo a Deus te abençoe tanta bondade. Agora, porém, quero fazer-te dois pedidos, dado as minhas preocupações.

A filha demorou nela o olhar inteligente e res­pondeu comovida:

— A senhora não deve pedir-me coisa alguma e sim mandar sempre.

— Pois desejaria — disse algo hesitante —que me conduzisses ao cemitério, a fim de orar no túmulo de meus pais, assim satisfazendo uma velha aspiração de minhalma. Não poderei ajoelhar-me junto dos sepulcros, mas talvez consiga chegar até lá, carregada na poltrona, tal como quando visitei o padre Damiano pela última vez...

A moça não conseguia ocultar a impressão de penosa surprêsa.

— A outra coisa que desejo — continuou con­fiante — é que tragas até aqui a senhora a quem serves e que tem sido tão generosa contigo, isso para que lhe peça maternal amparo à tua mocidade, caso eu morra mais cedo, como aliás pressinto.

Alcione procurou não trair na face a estranha emoção que experimentava. Madalena pleiteava duas coisas inadmissíveis. Mas, longe de quebrar o padrão de tranqüilidade da querida enfêrma, con­cordou nestes têrmos:

— Tão logo se encontre mais forte para viajar de carro, iremos ao túmulo de meus avós, mas, penso que mamãe não deve afligir-se por isso. Que é mamãe, a sepultura senão um monte de cinzas? Quanto à genitora de Beatriz, hei de trazê-la a São Marcelo na primeira oportunidade. Espero, porém, que a senhora esteja descansada na fé em Deus. Repousemos a mente na inesgotável bondade divina. É certo que temos muitas e grandes necessidades. mas o Altíssimo tem tudo para nos dar e sômente espera saibamos compreender a sua misericórdia.

A enfêrma calou-se, conformada. A moça, no entanto, confiava-se a Jesus em preces fervorosas. Como solucionar o delicado problema? Não encon­trava recursos para atender mentalmente à ques­tão obscura, mas contava com o socorro do Cristo no momento oportuno.

No dia seguinte, um tanto acanhada, dirigiu-se a Cirilo, falando-lhe receosa:

— Sr. Davenport, espero não me leve a mal se lhe pedir um grande obséquio...

— Dize, confiante, minha filha! — respondeu o chefe da casa com inflexão afetuosa — Poderá dispor de mim em qualquer circunstância.

Ela esboçou um gesto de reconhecimento e continuou:

— É que minha mãe, apesar de doente, gosta muitíssimo de música e, de tempos a esta parte, noto-a excessivamente tristonha. Pensei, então, em pedir-lhe um adiantamento sôbre os meus ordena­dos, a fim de comprar um cravo de segunda mão. Creio que isso reavivará o ânimo da pobre enfêrma.

Cirilo Davenport ouviu-a comovidíssimo.

— Com muito prazer — respondeu, solícito — e se quiseres eu próprio me incumbirei da compra.

— Não, não — atalhou a jovem, temendo a informação do enderêço —, o senhor não precisará ter êsse incômodo. Padre Amâncio, em São Jaques, me fará êsse favor. É pessoa entendida e não fará uma aquisição muito cara.

Cirilo contemplou-a edificado com aquelas rei­teradas provas de humildade e concluiu:

— Esperarei, então, a conta das despesas e po­des estar certa de que tenho nisso grande satisfação.

Ela ia referir-se ao plano do resgate, mas o interlocutor antecipou-se dizendo:

— Não penses em pagamento. Há muito que Beatriz me pediu um instrumento dêsses para que o guardasses em penhor de nossa amizade. Não será esta a ocasião de satisfazê-la?

Alcione rejubilava-se de encontrar tamanha ge­nerosidade.

Não se passaram muitos dias e a casinha pobre, de São Marcelo, tôdas as noites se impregnava de melodias maravilhosas. A doente amada submer­gia-se em ondas de sonoridade divina, encontrando ternas consolações às penas diuturnas. Robbie tam­bém percebeu que sua mãe adotiva não estava longe do têrmo fatal. Nessa angustiosa perspectiva, imprimia ao violino acordes de profunda beleza, traduzindo saudade e sofrimento indefiníveis. Al­cione, a seu turno, mostrava-se incansável no cari­nho dispensado à enfêrma idolatrada. Cada noite eram recordadas velhas árias castelhanas, antigas músicas da juventude de sua mãe, que a filha de D. Inácio escutava entre lágrimas de profunda emoção. Para Madalena, a ternura dos filhos era uma gloriosa compensação do mundo aos seus mar­tírios inomináveis de espôsa e mãe.

— Tenho a impressão, minha filha — dizia com um sorriso de sincera conformação — que nossa casinha se transformou num templo. Estou quase convencida de que disponho, agora, da estação religiosa, da qual poderei partir para a vida espi­ritual.

A filha multiplicava as expressões conforta­doras e as melodias cariciosas vibravam no ar, transportando a enfêrma a sublimes estâncias de puro gôzo espiritual.

Semanas se passaram assim, contemporizado­ras, até que um dia Madalena acusou astenia geral. Grandemente assustada, Luisa esperava por Alcione com angustiosa ansiedade. Robbie, porém, logo que chegou do trabalho, resolveu procurar o socorro do médico assistente. A enfêrma estivera desacordada alguns minutos e, em seguida, sucessivas aflições lhe causavam verdadeiro tormento.

À tarde, como de costume, Alcione voltou ao lar, experimentando dolorosa surprêsa com a gravi­dade do caso. Abraçou a mãezinha, mal podendo conter as lágrimas.

— Que foi isso, mamãe?

Percebendo a aflição que lhe transparecia do olhar afetuoso, a doente buscou tranqüilizá-la:

— Creio que não estou pior!... Talvez seja alguma perturbação do estômago. Aliás, nunca me senti tão bem como nas últimas semanas.

O coração filial, porém, adivinhava naqueles olhos úmidos um esfôrço supremo para tranqüilizá-lo. Ambas estavam convictas de que o fim se avizinhava. A jovem fêz o possível para renovar-lhe as fôrças com palavras encorajadoras, murmu­rando em seguida:

— Suponho que, por êstes dias, poderemos ir ao cemitério visitar o túmulo dos nossos entes ca­ros, como a senhora deseja. Reanime-se, mamãe! Pense nos passeios que gostaria de fazer, pense na saúde e verá que as dores desaparecem.

Entretanto, naquele momento, era a genitora quem se esforçava por consolar a filha ansiosa.

— Ora, filhinha — objetava com um sorriso forçado —, que iria fazer ao cemitério? Não sei onde tinha a cabeça, quando pensei e desejei conhecer a sepultura de papai, visitando igualmente a de mamãe!... Com o correr dos dias, fui ponderando melhor e acabei compreendendo que era mesmo um capricho extravagante. Nossos amados não devem mesmo lá estar, envoltos em montes de lôdo. Che­guei mesmo a sonhar com mamãe a elucidar-me da impropriedade do meu desejo, afirmando que seu coração está comigo, junto de mim, fortalecendo-me nas provações em curso...

Alcione ouvia confortada e surpreendida. A senhora Vilamil fêz uma pausa mais longa, devido à dispnéia, e prosseguiu ofegante:

— Espero, porém, que Deus me ajude a reali­zar o outro desejo. Quando pensas que vamos ter a visita dos teus patrões?

Alcione esboçou um gesto indefinível e asse­verou:

— Os pais de Beatriz, segundo creio, não tar­darão a vir...

— Ainda bem que assim é, pois quero agrade­cer-lhes o bem que nos têm feito, no desdobramento de nossas lutas em Paris.

A chegada do médico, em companhia de Robbie, interrompeu o diálogo.

O facultativo examinou a doente com minu­ciosa atenção, formulando conceitos otimistas que Madalena acolhia com melancólico sorriso, mas, ao retirar-se, chamou Alcione em particular, afiançan­do-lhe gravemente:

— Apesar de nossos esforços e da tua valiosa dedicação, minha boa menina, tua mãe está chegan­do a têrmo de vida.

A moça não conseguia articular palavra, sufo­cada pela dolorosa surprêsa, enquanto o velho es­culápio prosseguia:

— Qualquer medicação não passará de palia­tivo destinado a manter-lhe uns restos de vitalidade. Pelos meus conhecimentos e longa prática, digo que ela poderá expirar de um momento para outro; mas, na melhor das hipóteses, não irá além de um mês...

Enquanto a desolada Alcione enxugava as lá­grimas discretamente, o médico procurava confor­tá-la, exclamando:

— Procura entregar o caso a Deus. Não te martirizes com a idéia de perdê-la, porque a paralisia de tua mãe é um dos casos mais angustiosos que conheço, de há muitos anos, na minha clínica.

D. Madalena tem sofrido herôicamente, não seria justo perturbar-lhe o coração nestes dias em que se prenuncia o têrmo de longos padecimentos...

Alcione fitou-o reconhecidamente, murmurando:

— O senhor tem razão.

No dia seguinte, a jovem Vilamil chegou ao palacete da Cité, assomada de profunda tristeza. Olhos encovados, muito pálida, esperou que Susana se levantasse, e, quando a atividade doméstica en­trou no ritmo habitual, chamou-a por obséquio, em particular, assim falando:

— Senhora Davenport, infelizmente a situação em que me encontro obriga-me a importuná-la com um pedido de licença por alguns dias. Creio que minha mãe não terá mais que um mês de vida... Ontem sofreu a primeira crise cardíaca mais grave, e o médico me declarou que suas horas estão con­tadas...

A filha de Jaques condoeu-se sinceramente da governanta de Beatriz, pela comoção e humildade com que lhe confiava a amargura do seu lar, e respondeu com interêsse amistoso:

— Sem dúvida. Faço questão que permaneças ao lado de tua mãe, pelo tempo que fôr preciso. Não tens sômente um irmão adotivo?

— Sim — disse a moça, desejando conhecer a intenção da pergunta.

— Neste caso, poderei combinar com Círio, e tua mãezinha, se julgares conveniente e útil, virá para nossa casa. Como sabes, temos muitas depen­dências desocupadas. Com isto não estou conside­rando a pausa das tuas obrigações, mesmo porque, há muito, pretendia oferecer-te alguma oportunidade de repouso no que concerne ao tratamento da enfêrma. De antemão, estou convencida de que a providência daria a Cirilo muito prazer. Aqui, na Cité, os recursos são mais fáceis e tua mãe seria uma doente também nossa...

A filha de Madalena confortou-se com tama­nha afabilidade, verificando o poder regenerador do Evangelho sôbre aquela alma, e respondeu como­vida:

— Pode crer, senhora Davenport, que minha mãe e eu lhe seremos eternamente reconhecidas pela lembrança amável; no entanto minha genitora não poderia deixar nossa casinha. Seria impossível transportá-la...

— Já que assim é — explicou Susana aten­ciosa —, levarás contigo uma de nossas criadas para ajudar no trabalho necessàriamente aumen­tado nestes transes.

— Agradeço muito, senhora, mas nós temos uma velha criada de confiança, que se incumbe de todos os serviços. A senhora pode estar descan­sada.

Susana, porém, desejando externar, de qual­quer modo, o desejo de ser útil, buscou uma centena de escudos, colocando-os nas mãos da governanta, a murmurar:

— Então, leve êste dinheiro. Talvez sobre-venha alguma despesa imprevista.

Alcione aceitou, emocionada, e, quando preten­dia retirar-se, a dona da casa perguntou solicita:

— E o teu enderêço? Antes que te vás, desejo sabê-lo, para que Beatriz lá chegue de vez em quando e nos traga notícias.

— Nossa casinha — esclareceu a filha de Ma­dalena dissimulando o embaraço — não tem uma característica com que se possa identificar, mas a senhora pode ficar tranqUila que eu aqui virei sem­pre que fôr possível e, no caso de qualquer ocor­rência mais grave, não deixarei de mandar um portador.

Mais uma vez, Susana preocupou-se com as evasivas da moça, nesse particular, mas não fêz qualquer objeção. Todos os familiares se interes­saram pelo caso e procuraram expressar votos sin­ceros de solidariedade e feliz desfecho.

Alcione afastou-se apressadamente para o ar­rabalde de São Marcelo, tôda entregue a penosaS cogitações. Observara em Susana sincero desejo de aproximar-se. Que aconteceria se os Davenport lhe descobrissem a residência? Infelizmente, o es­tado da genitora não lhe permitia ponderar a pos­sibilidade de se retirarem para alguma aldeia dis­tante. Rogava a Deus o socorro divino de sua bondade nas inquietantes expectativas que lhe as­saltavam o espírito. Prometia a si própria voltar sempre à Cité, para desviar da segunda espôsa de seu pai a idéia de uma visita a São Marcelo, cujas conseqüências seriam demasiadamente dolorosas para todos. De volta ao lar, verificara que a doente querida não obtivera qualquer melhora. Fêz o possível para dissipar os pensamentos que a tor­turavam, entregando-se à tarefa de enfermeira ca­rinhosa, com todos os desvelos do coração.

Os dias escoavam-se com expectativas atrozes. A senhora Vilamil alcançava apenas rápidos mi­nutos de repouso, para voltar logo às dispnéias angustiantes. De quando em quando, vinha o médico e esperançava a enfêrma com palavras amigas, me­neando, porém, tristonhamente a cabeça, tão logo se via a sós com a filha, a comentar a situação.

A pobre moça não sabia como atender à com­plexidade dos problemas torturantes. De três em três dias, corria à Cité, onde, exibindo olhos fundos e considerável abatimento, procurava tranqüilizar os Davenport. Ante as interrogações afetuosas de Cirilo, ou de Susana, alegava que a enfêrma estava melhor e mais forte, ansiosa por lhes desvanecer a intenção da visita.

A situação, porém, era outra. A filha de D. Inácio, ao fim de três semanas, apresentou os sinto­mas inequívocos da morte. O facultativo recomendou preparar-lhe umas gôtas calmantes para o sono necessário.

A agonizante pareceu confaanar-se e per­guntou:

— Onde está Robbie?

A jovem foi buscá-lo imediatamente. Instado por ela, o rapazinho enxugou o pranto, compôs a fisionomia como pôde e acorreu à cabeceira da mãezinha adotiva. Madalena deu-lhe a destra muito branca, que êle beijou enternecido; mas, notando-lhe o abatimento extremo, o nariz afilado pela dor da agonia, as unhas roxeadas, os olhos fulgurantes dos últimos lampejos, não pôde atender aos rogos da irmã e rojou-se de joelhos, a soluçar convulsivo. A senhora Vilamil deitou à filha um olhar de quem roga cooperação e, passando a mão descarnada e trêmula pela sua cabeça, perguntou:

— Por que choras assim, meu filho?

Alcione procurava erguê-lo com delicadeza, mas Robbie, como que desejando desabafar com a en­fêrma, que sempre o tratara com ternuras de mãe, murmurou em pranto:

— Ah! que será de mim se a senhora morrer?

— Que é isso, Robbie? — falou Alcione com afetuosa energia — pois mamãe está doente e can­sada e tu não tens pena de vê-la com tanta neces­sidade de dormir .....

Madalena sorriu tristemente, mostrando que desejava consolá-lo, e disse com esfôrço:

— Deus é Pai, meu filho, e nunca nos separará em espírito... A morte aniquila o corpo, mas a alma é indestrutível... Não chores assim, porque essa atitude demonstra falta de confiança no Todo Poderoso...

— Sei que a senhora não me esquecerá — disse o rapaz comovedoramente — e que, se partir, pe­dirá por mim, lá no céu... mas por que não morro em seu lugar, se vivo tão escarnecido neste mundo? Sem a senhora, como suportarei as ironias da rua e as sátiras ferinas daqueles próprios meninos con­fiados aos meus cuidados para os serviços da mú­sica, na igreja?

E vendo que Madalena olhava para a filha, como a inculcá-la sua substituta, para o futuro, Robbie reclamava em tom de lástima:

— Alcione trabalha fora o dia inteiro, nunca terá tempo de ouvir-me!... Luisa não me pode compreender. Se a senhora se fôr, a casa para mim

fica vazia, sem ninguém...

A filha de D. Inácio deixou escapar uma lá­grima.

— Se Deus me chamar, Robbie, lembra que aqui estarei guardando-te em espírito... Seguirei teus trabalhos com o mesmo interêsse, cuidarei da tua saúde, dar-te-ei fôrças para ouvir os ditos ingratos do mundo, enquanto o Todo Poderoso fôr servido...

Alcione avaliou a angústia materna e, abra­çando-se com o irmão adotivo, observou:

— Vamos, Robbie! Estás muito nervoso. Luisa te levará um cordial, logo que te deites. Quem te disse que mamãe vai morrer? Não achas que éingratidão atormentá-la com êstes pensamentos lú­gubres?

O rapaz atendeu e retirou-se amparado pela irmã, a esfregar nervosamente os olhos.

Alcione regressou ao quarto da enfêrma para desmanchar-se em carinhos. De minuto a minuto, passava-lhe na fronte um fino lenço, enxugan­do o suor abundante. Em dado instante, Mada­lena Vilamil pareceu sossegar. À dispnéia sucedia uma relativa serenidade. Em preces fervorosas, a filha observou, porém, que os olhos estavam demu­dados, qual se apresentam nas febres intensivas. A agonizante parecia delirar de alegria. Começara um período de perturbação, natural em muitos casos de desprendimento, no qual a senhora Vilamil não sabia se estava na Terra ou noutra região.

— Por que vos demorastes tanto, padre? —insistia em perguntar, dando a entender que falava a uma sombra.

— A quem se refere, mamãe? — inquiriu Al­cione impressionada.

— Padre Damiano aqui está... Não o vês?

E olhando, ansiosa, para um canto do apo­sento, a agonizante perguntava:

— Ah! quem sois vós?

Mas, quase no mesmo instante, olhos desmesu­radamente abertos, rematava:

— Minha mãe!.., minha mãe!...

Alcione acompanhava-lhe o pranto natural, ro­gando a Jesus lhes enviasse o socorro divino da sua misericórdia.

Depois de um minuto, a filha de D. Inácio vol­tava a dizer:

— Minha mãe veio interpretar, para nós, a leitura evangélica... Sim, todos nós temos um hôrto de agonias, que atravessaremos a sós, no esfôrço valoroso da fé... todos teremos um cami­nho doloroso e um calvário... mas, além de tudo isso... a criatura de Deus encontrará a ressurrei­ção e a vida eterna...

A moça, que a ouvia entre lágrimas, não duvi­dou da visita espiritual de que era testemunha. Decorridos alguns instantes, sempre dando a enten­der que recebia a voz do invisível, a agonizante voltou a interpelar as sombras:

— E Cirilo, minha mãe? — por que não veio em sua companhia?

Os traços de Madalena iluminaram-se de con­tentamento.

— Amanhã? — bradou a enfêrma desvairada de júbilo.

Em seguida, misturando as impressões espi­rituais com as do plano fisico, dizia à filha, sur­prêsa:

— Teu pai chegará amanhã! Como me sinto melhor, minha filha!... Nosso quarto está cheio de luzes! Minha mãe diz que chegou o tempo da minha cura e que partirei com ela, amanhã, ao entardecer...

A moça estremeceu. Seu pai viria no dia se­guinte? Como interpretar semelhante afirmativa? Tratar-se-ia de uma expressão confortadora ou de promessa justa do plano espiritual? Fundamente espantada, pedia a Deus lhe iluminasse a razão para o entendimento de sua divina vontade.

Desde essa hora, Madalena, semi-inconsciente, dava a impressão de preparar-se para o amanhã jubiloso.

— Vai, minha filha — dizia inquieta —, abre a grande mala e traze os dois grandes cadernos de anotações de teu pai, a velha Bíblia, o livro de orações...

Alcione sentia-se compelida a obedecer ma­quinalmente. Minutos depois, as pequenas lembranças de Cirilo estavam alinhadas sôbre a mesa rústica, ao lado das drogas medicamentosas. Só então, quando as viu a tôdas, envolvendo uma a uma em delicioso olhar, conseguiu entrar em branda sonolência, como quem repousa após cumprir um sagrado dever. Alcione, porém, continuou vigilante, certa de que a mãezinha amada vivia na Terra os minutos derradeiros. Pela madrugada, voltaram as crises. Madalena abandonava o corpo, devaga­rinho, entre dispnéias dolorosas e visões do mundo espiritual, que lhe deixavam o espírito meio con­fuso. Pela manhã, duas vizinhas solícitas vieram ajudar nos afazeres domésticos. Alcione, sempre colada à cabeceira da mãe, que continuava a falar em voz alta, prosseguia em oração silenciosa, im­precando a intervenção de Jesus no lutuoso transe.

Voltemos agora ao palacete da Cité, onde, não obstante as informações tranqüilizadoras da governanta de Beatriz, reinava certa inquietude pela sua ausência prolongada. Todos sentiam a sua falta, não no trabalho prôpriamente dito, mas na assistência que seu coração dedicado sabia proporcionar a cada um. O culto doméstico, sem a sua presença, parecia desprovido das luzes ardentes que caíam sôbre os textos aparentemente obscuros, dilatando confortadoras e divinas inspirações.

Na véspera daquele mesmo dia em que a jovem aguardava o traspasse da genitora, os Davenport comentavam, durante o almôço, a sua demora, quan­do Susana obtemperou:

— Alcione cá esteve há cinco dias. Tranqüili­zou-nos sôbre o estado da enfêrma, mas eu tenho necessidade de visitá-la, de qualquer modo.

— Muito bem — respondeu Cirilo com aten­ção —, também acordei hoje com a idéia de fazer o mesmo. Poderemos então fazê-lo amanhã.

— E o enderêço? — objetou a senhora — até hoje, por mais que me esforçasse, não consegui obtê-lo. Quando o solicito, Alcione perturba-se e há muito, por isso, deixei de lhe exprimir o sincero desejo de me aproximar dos seus.

— É o acanhamento natural — justificou o chefe da casa, com bonomia.

O velho professor de Blois interveio, murmu­rando:

— O enderêço? É muito fácil. Sabemos que Alcione tem relações afetivas com o pessoal da igreja de São Jaques do Passo Alto. Basta recor­dar que ali visitamos os despojos do seu tutor...

— É verdade — concordou Cirilo —, como não me havia lembrado antes? Mandaremos o cocheiro tomar informações ainda hoje.

Susana, que se interessara vivamente pela lem­brança paterna, tomou as primeiras providências, chamando o servo para a incumbência.

— Então, Cirilo — disse a dona da casa —, podemos ir amanhã cedo a São Marcelo, caso tenhas tempo disponível.

— Eu também vou — disse Beatriz, resoluta-mente.

Observando a atitude da neta, o velho Jaques lembrou:

— Será melhor irmos todos. Além de atender a uma obrigação agradável, creio que faremos belo passeio, em arrabalde que pouco conhecemos.

O chefe da família concordou alegremente, ape­sar da objeção que a espôsa fazia com o olhar.

No dia imediato, por volta das dez horas, ele­gante carruagem entrava na ruazinha modesta, em que Madalena curtia a sua pobreza. Muitos mora­dores entreolhavam-se espantados.

Arrancada por Luisa da cabeceira da enfêr­ma, cuja agonia se prolongava dolorosamente, Alcione foi à porta atender a quem a chamava com tanta insistência. Reconhecendo que os Davenport se aproximavam sorridentes, seu primeiro impulso foi recuar, tal o assombro. Nunca encontrara na vida momento tão amargo. Quis caminhar, sorrir, mostrar-se calma e, no entanto, seus lábios se pren­deram, enquanto estranho palor lhe cobria a face num ricto de espanto. O coração batia-lhe descom­passado. Que iria suceder em tais circunstâncias? A agonizante, desde a madrugada, falava em voz alta, da chegada do espôso. Impossível evitar que os Davenport a ouvissem. Num ápice, porém, lem­brou-se do seu contato com as lições de Jesus e procurou dominar-se. Certo, o Evangelho não seria apenas um roteiro para os momentos fáceis. Era indispensável provar-lhe o valimento em tôdas as situações da vida. Olhou instintivamente o céu e disse consigo mesma: — “Senhor, ajudai-me a compreender vossa divina vontade !“

Seu desfalecimento durara um instante. Ener­gias cariciosas balsamizavam-lhe o coração dorido e ansioso. Não lhes podia determinar a fonte, mas estava certa de que Jesus lhe enviava sua bênção.

Nesse comenos, os visitantes já estavam junto dela, menos risonhos, por haverem percebido na sua atitude algo de grave, que não podiam prever.

— Que foi, Alcione? — perguntou Susana preocupada, abraçando-a. - — Assim tão pálida? A doente piorou?

Mais calma, a jovem teve fôrças para mur­murar:

— Mamãe está expirando.

Cirilo e Jaques, sinceramente compadecidos, abraçaram-na, comovidamente. Beatriz, como se desejasse prestar serviço imediato, adiantou-se ao grupo, varando casa a dentro. Alcione acompa­nhou-os à pequena sala de visitas, que dava justa­mente para o quarto da agonizante, convidando-os a sentar-se, com a gentileza que lhe era inata. Percebendo o empenho que tinham em socorrê-la naquele transe, seu primeiro desejo era correr ao quarto de sua mãe e esconder as lembranças pa­ternas, que lá estavam em cima da mesa; mas Susana e Cirilo, poderosamente atraidos para o quarto da agonizante, levantaram-se procurando lá entrar, no intuito de prestar qualquer auxílio.

A moça empalideceu e exclamou:

— Por favor, não entrem agora!...

A voz timbrava um mundo de aflições, que ninguém poderia perceber. Cirilo, porém, afagando-lhe a cabeça num gesto afetuoso, tentava dissi­par-lhe a inquietude:

— Não te acanhes, minha filha! Tuas dores são nossas também!...

Ela os acompanhou, quase cambaleante.

Nesse momento, Madalena deu um grande gri­to, misto de emoção e júbilo.

— Cirilo!... Cirilo!... — bradou, julgando-se visitada por uma sombra — por que demoraste tan­to? Ai! que longos anos de separação, que noites de angústia! Mas, agora, me levarás contigo para o mundo onde não existem nem sorvedouros, nem mar!...

O casal dava mostras de profundo terror. Magnetizado por estranha fôrça, o filho de Samuel colou-se à cabeceira do leito. Não podia enganar-se. Era Madalena, sim, envelhecida e semimorta.

As mãos de cera, as rugas do rosto, a cabeleira mal­tratada de moribunda, não revelavam a carinhosa e bela companheira da mocidade; mas aquêles olhos profundos e lúcidos, a voz inesquecível, não podiam deixar qualquer dúvida.

— Que vejo? Que vejo eu? — murmurava o negociante de fumo, terrivelmente surpreendido.

Madalena como que alucinada de alegria e de dor, estendia-lhe as mãos cadavéricas, exclamando:

— Vê como Alcione cresceu. Moça e bela!... Nunca contemplamos juntos a nossa filha!... Ela foi o meu consôlo na viuvez, o meu refúgio nos dias de saudade... Vê nossa casa como está pobrezinha! Mas Deus habita conosco em santa paz! Antes que a notícia da tua partida para o Céu me chegasse aos ouvidos, eu já havia perdido tudo da nossa felicidade de outros tempos... Fiquei só, Cirilo, mas Jesus começou a restituir-me a ventura que desaparecera... Não haverá no mundo hora mais feliz do que esta em que nos reunimos, para sem­pre, depois de tão longa separação...

Alcione, revelando poderosa energia moral, aproximou-se da genitora, enxugou-lhe o suor e afagou-a murmurando:

— É preciso acalmar-se, mamãe...

- Não estou alucinada, filhinha — retrucava Madalena de olhos fulgentes —, não vês o que vejo no limiar da morte... Ainda não podes divisar as feições de teu pai, que voltou do sepulcro para me levar com ele...

— Minha mãe tem experimentado longos delí­rios — exclamava Alcione timidamente...

Mas, voltando-se para os dois circunstantes, observou que Susana, lívida de mármore, ajoelha­ra-se, enquanto o genitor fixava a agonizante com ares de alucinado.

— Tua lembrança — continuou a dizer Ma­dalena, dirigindo-se ao espôso — sempre andou conosco, em tudo e em cada dia. Ali estão os teus cadernos de anotações, tua Bíblia, o livro de con­tos irlandeses...

Cirilo Davenport esboçou um gesto de pro­fundo espanto, como a registrar a confirmação da tremenda surprêsa.

— Estão limpos e intactos... — prosseguia a agonizante, dando satisfações do seu cuidadoso dever — tôdas as semanas, repetíamos o trabalho de conservação e limpeza, com o pensamento em ti, para que nos visses lá do Céu!...

O filho de Samuel, mudo e trêmulo, aproxi­mou-se da mesa. Sua palidez aumentava à medida que ia reconhecendo antigas notas de trabalho na Sorbone.

Susana, a seu turno, jamais poderia definir a angústia que lhe oprimia o coração. Via o que nunca poderia prever, na sua perversidade de ou­trora. Madalena Vilamil ali estava à sua frente, desafiando-lhe a consciência onusta de acerados remorsos. Anos de angustiosa expiação íntima ha­viam passado. Quantas vêzes procurara, à sombra dos altares, um bálsamo para as torturas do cora­ção? Tudo inútil! Apenas, naqueles últimos tempos, conseguira um farrapo de esperança com o culto doméstico em que Alcione esclarecia tão bem o problema das fraquezas humanas e da bondade de Deus. Agora, entretanto, sentia-se convocada ao testemunho pungente. Sômente agora compreendia a primeira impressão de repulsa, quando Alcione lhe entrara em casa, simpatizada por todos. Era impossível que ela ignorasse o segrêdo terrível. Contudo, pelas palavras da agonizante, pela situa­ção geral, compreendera que a filha de Madalena dispusera-se a um sacrifício quase sôbre-humano. Filha de Cirilo, suportara o papel de serva em sua casa e vítima do seu crime, nunca levantara a voz para fazer a mínima acusação... Quem teria dado fôrças àquela criatura tão simples, para tolerar ta­manho opróbrio do destino, sem um gesto de indig­nação e desespêro? A filha de Jaques lembrou as magníficas inspirações no culto doméstico do Evan­gelho. Alcione sempre se referira a Jesus como divino hóspede do seu coração. Do Mestre é que devia escorrer o manancial de tantas energias. E foi assim, ali, defrontando sua vítima nas vascas da morte, que a infeliz criatura experimentou sincera e dolorosa contrição. Os sofrimentos de Madalena e os heroísmos de Alcione falavam-lhe muito alto daquele Cristo, que tantas vêzes lutara por com­preender, sem resultados apreciáveis. Entendia, afinal, que um exemplo, às vêzes, podia substituir um milhão de palavras. Naquele momento, por certo, Jesus lhe impunha a confissão do crime ne­fando. Angustiosa batalha travava-se-lhe no íntimo atormentado. Onde estaria Antero de Oviedo, o comparsa da trama sombria? Não seria melhor atribuir-lhe a culpa do feito execrável? A família Davenport estava certa de que ela apenas assistira à morte de D. Inácio. Sempre afirmara ter che­gado a Paris no dia seguinte ao sepultamento da rival e para comprová-lo tinha o documento do cemitério. Seu velho pai era testemunha da sua saída de Blois e podia conferir mentalmente a data da sua chegada a Paris. Ela também já havia lu­tado muito. O consórcio, não obstante a vida de fausto que levavam, nunca lhe dera a felicidade ardentemente esperada. Alguns fios brancos já lhe riscavam a cabeleira, traduzindo o cansaço da vida. Não seria, também, mais acertado preservar a ventura de Beatriz, isentando-a da venenosa re­cordação de uma mãe ignóbil? E seu venerando pai? Como receberia a confissão dolorosa? Nessa terrível batalha em que os impulsos inferiores pro­pendiam para exibir uma falsa inocência, para que o sobrinho de D. Inácio fôsse o único culpado, Susana Davenport sentia-se morrer. Daria mil vê­zes a vida para tomar o leito da agonizante e entregar-se à morte, em seu lugar. Quando o mal estava a pique de triunfar concretizado em ato extremo, ela relembrou o vulto de Alcione nos seus sacrifícios diários. Quanto não teria sofrido a pobre menina para suportar o serviço a que fôra conduzida, talvez ignorante de que, ao procurar a subsistência, batia à porta do próprio pai? E Ma­dalena? Quantas privações duras e amargosas não deveria ter experimentado? Acerbo sentimento de pejo empolgou-a inteiramente. Sentiu-se, depois, envolvida nas alocuções evangélicas do culto fami­liar. Jesus estava sempre pronto a acolher os desamparados, os falidos, os criminosos e impem­tentes do mundo; mas não era lícito recalcitrar. O Mestre fornecia recursos à retificação dos erros; entretanto, o maior dos crimes deveria ser o rein­cidir no mal, perante o Mestre, tendo a noção de seus ensinamentos. Um vulcão de lavas ardentes rompia-lhe do peito, devorava-lhe o cérebro em cachoar de brasas vivas. Em meio de tanta deso­lação Intima, dúlcida voz lhe falava à consciência dilacerada: — “Confessa! Confessa e acharás o caminho para Deus...

Nesse instante, Cirilo Davenport, aterrado com os documentos que revirava nas mãos, voltou-se para Alcione, buscando esclarecimentos, mas, ven­do-a tão calma e transparente de candura, desistiu de lhe magoar o coração tão cedo sacrificado e dirigiu-se automàticamente a Susana, que se man­tinha muda e genuflexa.

Alcione percebeu que se iniciava o penoso pro­cesso de reparação e aclaramento, e sentou-se ao lado de sua mãezinha, murmurando com carinho:

— Quem sabe, mamãe, a senhora desejará um pouco d’água?...

— Não... não... — dizia a agonizante, pa­recendo interessada em não perder de vista a si­lhueta de Cirilo — onde está Robbie? Quero apre­sentá-lo a Círilo como nosso filho de criação...

Cirilo, porém, profundamente acabrunhado, re­tirara-se a um canto do quarto, onde Susana con­tinuava ajoelhada.

— Que pensa de tudo isso? — inquiriu êle extremamente pálido.

Ela teve a impressão de que aquela voz era um libelo terrível. Como se despertasse de medonho pesadelo, respondeu confusa:

— É ela!...

— Mas... explica-te — insistiu transfigurado pelo sofrimento.

A filha do professor de Blois, no último es­fôrço para vencer-se a si mesma, olhou para Alcione como a buscar na sua efígie a energia precisa àconfissão dolorosa, afirmando em seguida:

— Foi o maior crime da minha vida!

Cirilo fêz um esfôrço inaudito para não ba­quear aturdido.

— Que diz? — perguntou aterrado.

Mas Susana enterrara novamente a cabeça nas mãos; e o marido, cambaleante, deu alguns passos, abriu a porta e chamou o velho Jaques. O vene­rando ancião, pela fisionomia estuporada do sobri­nho, compreendeu de relance que algo havia de muito grave. Beatriz ficou só, folheando um livro.

— Meu tio — exclamou Cirilo amargamente, designando a agonizante —‘ esta é Madalena e Alcione é minha filha!...

O velho Jaques estuporou-se também. Era ela, sim! Não obstante o abatimento físico da extrema hora, identificava a filha de D. Inácio Vilamil, detalhe por detalhe. E sentia-se estrangulado pela surprêsa angustiosa. Dava a impressão de se haver petrificado pelo sofrimento. Queria amparar Cirilo, mas todo o corpo lhe tremia ao impulso da violenta comoção. Foi o próprio sobrinho quem lhe deu a mão, impedindo-o de tombar, ali mesmo, diante da agonizante. Nesse instante, porém, Jaques orou com fervor jamais sentido em tôda a vida, exorando fôrças para atender a amarga conjuntura do mo­mento. Passado o primeiro choque, teve fôrças para interrogar:

— Como se explica isso?

A filha levantou-se, em pranto convulsivo, emo­cionada com o testemunho inelutável, e, arrostando a angústia paterna, abraçou-se ao velho genitor, como a procurar o perdão de um espírito sempre generoso.

— Meu pai!... meu pai! — clamava entre lá­grimas.

Foi aí que Cirilo, respondendo à pergunta do tio, exclamou quase sufocado:

— Susana deve saber tudo!... Já me afirmou que êsse foi o maior crime de sua vida!...

O velhinho, estupefato, recordou maquinal-mente a remota noite de Blois, quando a filha se agastara com a sua adesão ao projeto do sobrinho de esposar a senhorita Vilamil. Parecia-lhe ter diante dos olhos o quadro que o tempo não conse­guira esfumar, ouvindo a confissão de Susana, de que também amava o rapaz. Relembrou as suas atitudes no lar, a ojeriza constante à Madalena, a insistência em desposar o primo viúvo, lá nas pla­gas americanas.

De pronto repassou a tela das reminiscências vivas, par a fixar depois o olhar na agonizante e na filha, considerando a dolorosa jornada de ambas. De que paragens de dor chegava Madalena Vilamil até ali, com as rugas lavadas de lágrimas e coberta de cãs prematuras? Pelas informações de Alcione, deveria ter vivido muito tempo na Espanha... Quem a teria conduzido a regiões tão distantes? A exemplificação da filha constituía, naquele mo­mento, um atestado de glória espiritual. Sômente agora compreendia o suave e irresistível magne­tismo que ela exercia sôbre todos os de casa. Era preciso, entretanto, ter um coração perpêtuamente unido a Deus para praticar o amor qual o fazia a jovem humilde, que ali se encontrava em atitude confiante, no cumprimento de um dever tão sagrado quão doloroso, O quadro o impressionava para sem­pre. Ponderando tudo isso, Jaques Davenport con­vocou as suas possibilidades morais para conservar a serenidade imprescindível e obtemperou, com afe­tuosa energia:

— Avalio que ação negra se mascara por de­trás da nossa angústia!...

E observando que os dois se achavam incapa­citados de dominar a própria emoção, lembrou sen­satamente:

— Deus nos está mostrando o ígneo bulcão de amarguras em que Madalena consumiu as energias de espôsa e mãe! Podemos imaginar que espécie de infâmia lhe argamassou o infortúnio. Mas, penso que se a pobrezinha foi reduzida a tamanha expres­são de sofrimento, em tôda a vida, não devemos perturbar-lhe o sono da extrema hora. É preciso defender a paz dos mortos!...

Ditas essas palavras, dirigiu-se à filha, excla­mando:

— Vai-te para casa com a Beatriz. Depois falaremos.

E voltando o olhar para o sobrinho, murmu­rava comovido:

— Quanto a ti, meu filho, que Deus te dê fôrças!.

Susana contemplou, pela última vez, Madalena no seu leito de morte e encaminhou-se para a porta, vacilante. Beatriz, que esperava calmamente na sala, não dissimulou o espanto ao ver a transfigu­ração da genitora.

— Que foi, mamãe? — interrogou ansiosa.

— Não te assustes — esclareceu a infeliz com dificuldade —, a mãe de Alcione está expirando... Vamos. Teu pai e teu avô ficam até mais tarde...

— Pobre Alcione! — murmurou a mocinha in­genuamente.

Enquanto a carruagem regressava, depois do meio dia, no quarto modesto de Madalena Vilamil a cena dolorosa continuava. Jaques identificou um por um dos papéis que estavam sôbre a mesa. De­pois de muito lagrimar, sentou-se contemplando a agonizante, com grande amargura. Sufocado de dor, o esposo apoiava-se no leito mortuário, como que­rendo galvanizar as últimas manifestações da ago­nizante com indomável ansiedade. Jamais Cirilo conhecera pranto tão acerbo. Obedecendo às re­clamações insistentes da genitora, Alcione trouxe Robbie ao aposento.

— Este, Cirilo — dizia a agonizante, exânime —, é também nosso filho pelo coração... Criei-o amorosamente desde o dia em que nasceu... Aju­dar-me-ás a pedir por êle aos pés de Jesus! Nunca o deixaremos só!...

E dando a impressão de querer consolar o ra­pazinho, acrescentava:

— Estás vendo, Robbie? Por que temer os pa­decimentos do mundo, se temos outra vida? Não dês importância aos que te escarneçam, meu fi­lho!... Tudo passa na Terra!... Por que haverás de permanecer em tristeza no mundo, quando sabes que te esperamos no Céu?

Fêz uma longa pausa, que ninguém se sentia com coragem de interromper. Ao cabo de alguns instantes, acentuava com placidez inconcebível, di­rigindo-se ao filho adotivo:

— Toma a bênção a teu pai, Robbie!... Pede-a também ao amigo que o. acompanha!... (1)

Então, verificou-se a cena tocante, que provo­cava novo contingente de lágrimas copiosas. Com sincera humildade, o pequenote atendeu, beijando a mão dos dois homens para êle desconhecidos.

O filho de Samuel contemplou-o, comovido. Jamais poderia dizer porque o pequeno descendente de escravos o atraía tão fortemente. Num gesto espontâneo, abraçou-o com ternura e murmurou:

— Serás também meu filho!...

Decorreram longas horas, pesadas, tristes.

(1) Madalena Vilamil permanecia entre as im­pressões de dois mundos, como acontece à maioria dos moribundos. — Nota de Emmanuel.

À tarde, Madalena Vilamil pareceu mais se­rena e mais lúcida. Em dado instante chamou a filha e declarou:

— Minha mãe e padre Damiano também che­garam... é o momento de partir...

Alcione recordou a revelação da véspera e ajoelhou-se. Em preces silenciosas, rogou a Jesus recebesse a genitora em seu reino de verdade e de amor, que lhe atenuasse as últimas amarguras A agonizante manifestou desejos de Confortar a filhi­nha, formulando carinhosas promessas de amor maternal; contudo, seus lábios apenas denunciavam o esfôrço supremo. Em profundo desespêro intimo, Cirilo estendeulhe a mão, que ela apertou forte­mente, como a selar uma eterna aliança e, aos pou­cos, entregava-se ao grande Sono.

Belos tons de crepúsculo invadiam a natureza, quando Madalena partiu. Pesada angústia desabara sôbre a casa de São Marcelo, onde se ouvia a voz de Robbie em dolorosos lamentos de criança inconsolável

O velório teve a presença de numerosos vizi­nhos, tão pobres quanto os Vilamil.

No entanto, Cirilo Davenport, embora tacitur­no e desesperado tomou tôdas as providências que a situação exigia. A modesta vivenda encheu-se de servas improvisadas, proporcionando à Alcione e à velha Luisa o repouso de que necessitavam. o ca­dáver foi amortalhado regiamente. As pessoas pre­sentes, que tinham relações com a morta, surpreendiam-se em face de tamanha generosidade.

O espôso de Madalena Vilamil não saberia ex­plicar o seu estado íntimo. Mil pensamentos lhe turbilhonavam no cérebro incandescido. Tinha ânsias de conhecer todos os informes de Susana, para ava­liar a natureza da sua falta e Puni-la sem quartel. Procurava recordar as lições do culto doméstico, concernentes à confiança em Cristo e ao perdão, mas os ensinamentos evangélicos pareciam-lhe agora envolvidos em nuvem distante. A idéia de uma reparação à espôsa, ofendida e sacrificada, era a nota dominante no seu espírito. Procuraria conhe­cer tôda a extensão do crime que reduzira a com­panheira a situação tão amarga, castigaria severa-mente os algozes. Desejava aproximar-se das re­cordações filiais, sentando-se junto de Alcione com a poesia do seu coração de pai; mas, era indispen­sável resolver primeiramente o caso da espôsa traida. Depois de tranqüilizar a consciência, então elevaria Alcione ao merecido altar. Aquilatava-lhe o valor moral, a grandeza dos sentimentos. Quanto não teria sofrido antes de fazer-se simples cantora da rua, qual a encontrara pela primeira vez? Ele ainda não sabia entregar a Jesus as situações sem remédio no mundo, desejava dar uma satisfação plena ao seu amor próprio ofendido. A seu ver, im­punha-se, antes de tudo, restabelecer a honra pes­soal. Submerso em amargura sombria, passou a noite vígil sem um momento de tréguas à mente incendiada por idéias quase sinistras. Que fizera Madalena durante tantos anos na Espanha? Quem havia forjado a burla da sua morte? Como vivera em separação tão amarga? As conjeturas atrope­lavam-se-lhe no cérebro, sem resposta. Depois de uma consulta ao cemitério dos Inocentes, recebia na manhã seguinte a notícia de que era impossível abrir um túmulo na mesma zona onde se haviam sepultado os variolosos de 63. Embora não pudesse satisfazer o desejo de inumar a morta inesquecível ao lado dos despojos do fidalgo espanhol, ordenou que o funeral se fizesse com o destaque possível. Alcione acatou-lhe os mínimos desejos, com humil­dade. Padre Amâncio, solicito, cuidou de todos os pormenores, sem disfarçar a surprêsa que a atitude dos Davenport lhe suscitava.

Quase à noitinha, grande carro estacionou jun­to ao palacete da Cité. Dêle apeavam-se Jaques e Cirilo, acompanhados de Robbie e Alcione. Na an­tiga casinha de São Marcelo, apenas ficara a velha serva, aguardando solução definitiva a seu res­peito.

Cirilo demandou o ambiente doméstico, asso­mado de poderosa inquietação. Susana recebeu-o desfigurada, abatida, parecendo haver envelhecido vertiginosamente.

— Não temos tempo a perder — disse êle com expressão rancorosa —, precisamos ouvir-te na sala de leitura. Onde está Beatriz?

— Por piedade! — exclamou ela desesperada — poupa-me a vergonha de apresentar-me à nossa filha como criminosa!

— Não posso — respondeu Cirilo inflexível —, Ignoro que providências terei de tomar para deso­brigar-me com a minha consciência e não quero que Beatriz mais tarde possa julgar-me injustamente.

Muito pálida, Susana encaminhou-se ao local indicado. Nesse momento, a pedido de Alcione, Robbie era recolhido ao leito por um velho criado.

Daí a minutos, a filha de Madalena, muito cons­trangida, figurava ao lado dos Davenport para as investigações amargas. Depois de sentados, Cirilo dirigiu-se a Beatriz nestes têrmos:

— Minha filha, ontem tivemos a revelação de que Alcione não é tua governanta e sim irmã mais velha. A agonizante que fomos visitar, e que o túmulo recebeu hoje à tarde, era minha primeira espôsa — Madalena Vilamil! Nunca pude saber o drama cruel que se formou no meu caminho, mas tua mãe, que deve ter lembranças bem nítidas do passado, vai expor certos fatos que nos poderão esclarecer.

A jovem Davenport tornou-se lívida. Jamais pudera imaginar que, por trás da felicidade domés­tica, dormissem angústias como a daquela hora inesquecível.

Susana, que se assentara um tanto afastada, afigurava-se antes uma ré acabrunhada e aflita, sem saber como iniciar a confissão do seu crime.

O velho Jaques, referto das experiências da vida, contemplava a filha num misto de dor e de vergonha. Círilo tinha os olhos fuzilantes de ansie­dade. Alcione recolhia-se em preces fervorosas no santuário do coração.

A infeliz criatura começou, dificilmente, a re­velar, detalhe por detalhe, a enorme culpa da sua vida. De vez em quando, um soluço abafado a in­terrompia. A confissão prolongava-se por mais de uma hora, e, como se obedecesse a poderosos impe­rativos da consciência, Susana não omitiu a menor particularidade. Emocionadíssima, pintava os seus estados dalma na época em que estudava tôdas as possibilidades do plano criminoso, para conquistar definitivamente o homem amado. Minudenciou as atitudes de Antero Oviedo, descrevendo os antece­dentes de suas relações com êle, os passeios que faziam e nos quais o sobrinho do fidalgo espanhol dava-lhe a conhecer a imensa paixão pela prima. Por fim, em frases comovedoras, narrou as cenas da varíola, de 63, a visita ao cemitério dos Inocen­tes, as sugestões sinistras que um nome lido ao acaso, no velho registro de notas fúnebres, lhe sus­citara.

Quando terminou, sob o olhar aterrado do ge­nitor e do companheiro, e com os soluços abafados das duas jovens, ajoelhou-se e suplicou:

— Conheço a vileza do meu crime e Jesus, que me preparou a alma para fazer esta confissão dolo­rosa e horrível, é testemunha dos longos sofrimen­tos que tenho amargado. A paixão me levou ao desvario de comprometer para sempre a paz de minhalma. Realizei o louco intento, vali-me de todos os recursos, meus e de meus amigos, para esposar Cirilo, crente de que, aparceirada com Antero, poderia corrigir um êrro do destino. Mas a verdade é que nunca encontrei um ceitil da feli­cidade ardentemente desejada... Os criminosos não podem lograr, nunca, a realidade do seu ideal. Aprendi cruelmente que não pode haver paz fora do dever cumprido; que não há alegria sem aprovação da consciência tranqüila. É verdade que infelicitei Madalena com a minha insânia de amor, mas não o é menos que lhe invejo agora a calma espiritual, a fé sincera e confiante com que se entregou a Deus no último transe! Ai de mim! O confôrto material que o mundo me concedeu é uma ironia da sorte. Para mim, que atravesso a vida taganteada pelo remorso impiedoso, os palácios são túmulos dourados, tudo se resume em punhados de sombra e de miséria! Sei que perante Beatriz sou mãe desnaturada e alma mesquinha; que perante meu pai sou a imagem da ingratidão imperdoável; que perante Alcione sou mulher sem coração! Para Cirilo não passarei de malvada e diabólica; mas, se puderem, peço de joelhos que me ajudem o espí­rito cansado, com o perdão da imensa falta! Não sei quantos anos me restam de vida neste mundo, mas prometo-lhes humilhar-me a todo instante, penitenciar-me como serva de todos, a fim de traba­lhar pela minha salvação... Jesus, que me deu a coragem de confessar o crime, não me há de faltar com as energias necessárias ao esfôrço regene­rador!...

Nesse momento, fêz uma pausa mais longa. Jaques, estático, permanecia calado, Alcione e Bea­triz choravam amargamente. O marido infelicitado, porém, parecia dementado pela dor. Olhos arrega­lados como a fitar o passado de sombras, Cirilo Davenport transportara-se em espírito ao ano de 63, esquecera momentâneamente todos os trabalhos e deveres das segundas núpcias. À sua frente via Madalena ultrajada, humilhada, perseguida. Sen­tia-se rodeado de inimigos implacáveis, que se ha­viam alojado em seu próprio coração. A idéia de vingança se lhe embutira no cérebro com vigor incoercível. Apesar dos conhecimentos evangélicos, não podia libertar-se da velha concepção que impu­nha lavar com sangue a dignidade ferida. Pela pri­meira vez, experimentava o supremo ultraje ao nome, à honra pessoal, ao amor próprio ofendido.

Enquanto se perdia em dolorosas reflexões, Su­sana fixou nêle o olhar e exclamou compungida­mente:

— Perdoa-me e terei fôrças para me trans­formar!...

Soluços amargos acompanharam o apêlo. Mas o filho de Samuel, com feições de louco sacou de um punhal e, cambaleando e rugindo, ameaçadora­mente, acercou-se da postulante, bradando:

— Não há perdão para o teu crime, Susana! As víboras hediondas devem ser esmagadas.

Entretanto, num ápice, Alcione colocou-se entre êle e a infeliz. Observando a atitude impulsiva e resoluta do genitor, abraçou-se à filha de Jaques e, quando viu que a mão armada ia desferir o golpe, exclamou com acento inesquecível:

— E Jesus, meu pai?

O braço ultriz pendeu inerte. Era preciso re­cordar Aquêle que não desdenhara o madeiro infa­mante. Cirilo sentiu-se apossado de estranhas e novas sensações. Pela primeira vez, Alcione lhe chamava “meu pai”. Por que não lhe seguir a exem­plificação de sofrimento e sacrifício? Madalena ha­via partido em paz. Quem sabe poderia acompa­nhá-la na mesma tranqüilidade de coração? Por que arruinar o porvir com uma ação execrável? Recordava, agora que as lágrimas lhe manavam dos olhos doridos, as lições evangélicas do culto doméstico. Ninguém poderia sanar um mal com outro mal, resgatar um crime com outro crime. O pranto corria-lhe em onda volumosa, quis andar livremente, mas uma sensação de súbito mal-estar lhe anulava as fôrças. Não conseguiu senão arras­tar-se com dificuldade e, apoiando-se em Alcione, que acabava de acomodar Susana no divã, entre­gou-lhe a arma perigosa, como a dizer que renun­ciava a toda idéia de vingança por suas próprias mãos. Jaques e Beatriz perceberam que Cirilo sentia algo de grave e correram a ampará-lo.

— Meu pai, meu pai — dizia a filha de Susana em tom angustiado —, não te entregues assim ao sofrimento!.

Ele, porém, não mais respondeu ao chamado dos circunstantes e foi conduzido ao leito, desfalecido, em deplorável situação.

Cirilo Davenport não resistira ao sofrimento que lhe causara a revelação tenebrosa. Alguns vasos cerebrais se romperam em penhor de morte. Mais de um médico foi convocado, a salvar o rico negociante de fumo, mas não houve meios de o seqüestrar ao coma.

Beatriz estava inconsolável. Enquanto Jaques e Susana atendiam à situação angustiosa, no quarto do enfêrmo, Alcione, considerando que a mocidade é sempre mais inquieta e inconformada, dirigiu-se ao aposento da irmã, no intuito de lhe preparar o espírito em tão graves circunstâncias. Era indis­pensável manter-se acima do próprio sofrimento, por corrigir o que fôsse possível.

— Ah! Alcione — exclamava a mocinha solu­çando —, como detesto minha mãe!...

— Não diga isso! revidava a interlocutora emocionada — então, Beatriz, em tão poucos momentos de provação e testemunho, já esqueceste o perdão que Jesus nos ensinou? Recorda os deveres filiais que devem ser sagrados em nossa vida!...

A filha de Susana, contudo, dando expansão a velhos sentimentos, não concordava, murmurando:

— Mas a mãe que Deus me deu é desleal e criminosa!...

— Por que não dizer antes que D. Susana foi doente do espírito quando lhe despontaraxn os pri­meiros sonhos da mocidade? Não seria mais nobre julgar assim? Por que, Beatriz, ver tão sômente o mal, quando Jesus sempre nos inclina a ver as qua­lidades mais preciosas da criatura? Nesta casa, há velhas servas trazidas da América, que abençoam tua mãe todos os dias, pelos benefícios dela rece­bidos... Nada se perde no caminho da vida... Quem encontra fôrças para julgar os próprios erros já recebeu do Senhor alguma luz.

E vendo que Beatriz se lhe conchegava ao peito, com lágrimas angustiosas, continuava:

— Não te penalizou vê-la soluçante, em con­fissão que nos foi particularmente dolorosa? Não lhe notaste a expressão de vergonha e padecimento quando se ajoelhou a exorar perdão? Cala as tuas mágoas e procuremos compreender a mensagem que Jesus nos destinou.

— Mas, quanto haverá sofrido tua mãe em conseqüência dêsse crime?

— Sim, sofreu e lutou muito, mas hoje des­cansa das fadigas terrenas, abençoando, talvez, as lágrimas vertidas neste mundo. E, porque tenha­mos chorado muito, será justo atormentar a mãe que Deus te concedeu...

— Ouço as tuas observações carinhosas, quero guardá-las no espírito, mas não posso! A lembrança da confissão desta noite destrói minha felicidade, alguma coisa me turva o pensamento... desejo raciocinar, esquecendo o mal, e não posso.

— É porque ousas enfrentar as penas do mundo sem o Cristo. Estamos na Terra para adqui­rir ou provar alguma virtude. Na realização dêsse escopo não podemos desafiar a luta sozinhas! É imprescindível buscar a companhia do Divino Ami­go, para sermos esclarecidas a tempo! Jesus tem uma palavra luminosa para cada situação, uma energia inspiradora a cada momento mais amargo, desde que lhe busquemos o socorro divino!...

A jovem Davenport sentiu profundamente o alcance sublime da advertência e acalmou-se. Daí a instantes, voltou a dizer:

— Compreendo, sim, a elevação de teus con­selhos fraternos; entretanto, não me furto ao receio de que papai não resista a esta tragédia que nos aperta o coração... Esperarei que Henrique che­gue para contar-lhe o que se passa. Muitas vêzes tem êle falado da possibilidade de nos casarmos breve. Se o papai não escapar da morte, concor­darei, pois assim, pelo menos, poderei deixar a com­panhia de mamãe e oferecer ao vovô tranqüilidade para o resto dos seus dias.

— Não penses tal. Não poderemos desampa­rar tua mãe. Quanto ao mais, nada dirás ao Sr. de Saint-Pierre. Não temos o direito de confiar a ninguém a dolorosa revelação do nosso caso. É pre­ciso lançar a rega do silêncio e da paz à fogueira das lucubrações tormentosas, para que nossa exis­tência não se transforme em voraginoso inferno.

Beatriz concordou.

Dentro de poucas horas o noivo aparecia cheio de interêsse familiar. Outras visitas se sucederam durante a noite. Fatigadíssima, Alcione manteve-se no seu papel de serva, em que todos a conheciam. A alvorada encontrara Círilo moribundo. Decorri­das vinte e quatro horas do tremendo choque, o filho de Samuel desprendia-se do mundo para a vida espiritual.

O palacete da Cité logo se cobriu de crepes negros. Pesada atmosfera se espalhou no solar do abastado comerciante de fumo.

No dia seguinte o velho Jaques teve fôrças para providenciar o enterramento do sobrinho, ao lado do túmulo de Madalena Vilamil. O amoroso casal, que vivera separado pela astúcia maliciosa do mundo, reunia-se agora para sempre.

O funeral realizou-se com muita pompa, na tarde imediata à do falecimento. Numerosos eclesiásticos acompanharam o féretro com luxuosas exéquias. A viúva, com ares de alucinada, seguiu o cortejo amparada por Alcione, que lhe dava o braço com zelos filiais. Mas, quando os padres dis­seram as últimas palavras do ritual para que o corpo baixasse à campa, ouviu-se estranha garga­lhada no ambiente silencioso e triste.

A assistência numerosa entreolhou-se atônita e curiosa!

Susana Davenport havia enlouquecido...

 


5

Provas redentoras

A vida familiar no palacete da Cité tornara-se bem amarga. A viúva Davenport perambulava pelos aposentos, dementada e combalida. O velho Jaques, dominado pelos dissabores acerbos, vivia entre o leito da decrepitude e as lágrimas sem consolação. Beatriz, na sua mocidade cheia de sonhos, ainda não saíra da penosa estupefação, dando mostras de singular abatimento.

Foi aí que Alcione fêz valer as virtudes da sua fé, por maneira a satisfazer plenamente os novos deveres. Nunca abandonava Susana, de quem se fizera enfermeira dedicada e afetuosa. Robbie con­tinuava trabalhando em São Jaques, vindo sômente três vêzes na semana visitar a irmã adotiva, sem­pre mergulhado em profunda melancolia.

Certa ocasião em que o velho professor enta­bulou com o rapaz uma palestra mais longa, Alcione foi chamada pelo generoso velhinho, que a inter­pelou carinhosamente:

— Não posso consentir que o nosso Robbie con­tinue ausente desta casa, por motivos de serviço. Considero mais acertado que deixe a igreja de São Jaques do Passo Alto, vindo morar conosco. Não podemos esquecer que êle é teu irmão, isto é, filho adotivo da nossa querida morta.

— Sim — respondeu a jovem, solícita —, nada tenho a opor, mas olhe que seria uma falta grave o privar meu irmão dos benefícios do trabalho.

— Mas Robbie, Alcione, é muito doente para desdobrar-se em tantas ocupações.

— Mas o senhor não está de acordo comigo, relativamente às vantagens de uma vida laboriosa? Não quero parecer cruel, antes quero reconhecer a magnanimidade do seu coração, com semelhante lembrança; mas o amor ao trabalho é uma das mais nobres heranças que mamãe nos deixou. Bas­ta lembrar que, embora paralítica, ela costurou por muitos anos para nos criar e manter. Além do mais, é sempre útil ao enfêrmo entreter-se com alguma coisa. A inatividade costuma induzir-nos a falsas apreciações dos desígnios de Deus, a impa­ciências, a desesperações e rebeldias...

Percebendo que o amoroso ancião anotava-lhe mentalmente as palavras com sincera atenção, acrescentava, dirigindo-se ao rapaz:

— Não é verdade que sempre ganhaste muito com a dedicação ao trabalho, Robbie?

— Sim, isso é incontestável.

Mas, deixando perceber que desejava umas tantas alterações de regime, acrescentava:

— Entretanto, se possível, gostaria de trans­ferir-me de São Jaques para outra parte. As recor­dações de São Marcelo me acabrunham e, depois, aquelas crianças irônicas muito me atormentam com os dichotes e indiretas.

Ora, Robbie — disse Alcione com bon­dosa austeridade —, ainda te preocupas com as tolices de meninos ignorantes?

— Estão sempre a tecer comentários dos meus aleijões..

— E que tem isso? Quando cumprimos nosso dever perante Deus e a consciência, a grosseria ou a ingratidão dos outros são relegadas ao baixo plano a que pertencem.

O bondoso ancião acompanhava a neta admi­rado de ver como conseguia aliar tão fàcilmente a energia à meiguice.

— Se invocas as lembranças de São Marcelo prosseguiu a moça ternamente —, dando-me a en­tender tua saudade de mamãe, recorda que ela cum­priu o seu dever até ao fim, nunca nos pediu uma casa mais confortável, nunca reclamou contra as águas da chuva que invadiam nosso quarto, conser­vou-se de agulha na mão enquanto Deus lhe permi­tiu a graça de trabalhar, enriquecendo o nosso esfôrço... Os aleijões do corpo, Robbie, são melhores que os da alma...

O rapaz experimentou certo abalo ao ouvir as últimas palavras. Reconhecendo-lhe a estranheza, Jaques procurou intervir carinhosamente:

— Alcione tem razão — exclamou atencioso —, o trabalho é uma bênção de Deus. Não te deves agastar, meu caro Robbie, com os obstáculos en­contrados. Todos nós temos uma dificuldade a ven­cer na vida. O próprio Jesus não caminhou sôbre flores.

E dirigindo à neta um olhar significativo, mur­murava:

— Apesar disso, minha filha, espero não te aborreças se eu pedir a Henrique a colocação do rapaz mais próximo de nós. Poderá, por exemplo, empregar-se nos serviços de São Landry.

O filho adotivo de Madalena agradecia com a expressão satisfeita, enquanto a jovem concordava:

— Não tenho objeção a fazer, desde que Robbie continue a descobrir, cada dia, a grandeza do espí­rito de serviço.

Daí a alguns dias, Henrique de Saint-Pierre, o noivo de Beatriz, conseguia a mudança desejada, com grande júbilo para o rapaz, que se transferiu definitivamente para a Cité, podendo assim ficar em contato diário com a irmã adotiva.

A dedicação de Alcione à viúva Davenport era um exemplo vivo de amor, a calar fundo no coração dos familiares. A própria Beatriz parecia mais con­centrada nos problemas graves da vida. Aquêle ar de despreocupação, que lhe caracterizava a juven­tude, desaparecera. Tornara-se mais acessível aos criados, ouvia com interêsse as advertências do avô, que não se sentia muito encorajado a prosseguir enfrentando as borrascas fortes do mundo, O noi­vo notara, satisfeitíssimo aquela transformação. A jovem Davenport aliava, agora, beleza juvenil, larga dose de reflexão ao cogitar dos problemas do destino e do sofrimento. A dor abrira-lhe novas POSsibilidades de inspiração religiosa. A perturbação mental da genitora impedia o culto doméstico, tais as condições precárias do seu organismo, mas, sempre que lhe era possível, lia e meditava longa e atentamente O Evangelho de Jesus. Sua conver­sação tornara-se mais rica e substanciosa. Alcione tinha com isso grande consolo.

Havia um mês que morrera Madalena Vilamil.

O estado mental da viúva apenas se agravara. Noites inteiras passava ela, era gritos alarmantes, em sinistras visões. Alquebrado pelos anos, cheio de achaques e mais pelos desgostos profundos que lhe golpearam o coração, o tio de Cirilo esperava a morte resignado, Beatriz atendia aos múltiplos encargos domésticos e apenas Alcione velava pela doente, com as suas infinitas reservas de amor cristão.

Às vêzes, alta noite, a demente sacudia-se com gestos de pavor:

— Vês, Alcione? Satã vem chegando com as suas sentinelas perversas! Ah! que desejam de mim? Já confessei tudo... Esta casa não é lugar de demônios! Voltem para os infernos!... (1)

E rojava-se de joelhos, exclamando:

- Deus me livrará das fúrias do Maligno. Porque confessei a verdade, Satanás persegue minhalma! Não a levarás, bandido!

— Não se exalte, senhora Susana — obser­vava a moça com doçura. — Vamos orar pedindo a Deus calma e resignação. Tranqüilizes! O poder

(1) Tôdas as manifestações de Espíritos obses­sores, no tempo antigo, eram tomadas à conta de aproximação de Satanás - Nota de Emmanuel.

das trevas se anula ante a luz divina. Vamos fugir para os braços de Deus, como as crianças que buscam o colo materno quando uma fera se apro­xima!...

Suplicava a proteção de Deus, em voz alta, no que era seguida, palavra por palavra, pela infeliz demente.

Terminada a rogativa, Susana mostrava-se mais calma, agradecia com sorrisos infantis e ponderava:

— Só o teu coração compreende as minhas necessidades! Todos me dizem que estou alucinada, que não vejo senão perturbações do meu próprio espírito! Meu pai me manda reagir sem que eu possa fazê-lo; minha filha crê que eu esteja sendo vítima de ilusões! Entretanto, Alcione, o demônio vem sempre ao meu quarto tripudiar do meu re­morso intraduzível! Quando oras comigo, êle se prontifica a sair, mas faz um sinal dando a entender que voltará no primeiro ensejo!...

— Acalme-se, senhora — procure pensar na magnanimidade da Providência Divina. Quando se aproximarem os maus Espíritos, ofereça-lhes um pensamento de sincera confiança no Altíssimo. Peçamos-lhes perdão pelo mal que acaso lhes tenha­mos feito em outras eras, humilhemo-nos recor­dando Jesus, que era imaculado e aceitou a cruz imposta pelos algozes...

A enfêrma escutava-lhe as exortações carinho­sas, de olhar desvairado e respondia:

— Teus conselhos são justos... Sabes que meu estado não é apenas uma alucinação...

— Sim, a senhora não mente.

Ao ouvi-la, Susana Davenport, em pleno dese­quilíbrio das faculdades mentais, exibia olhares mais estranhos e replicava, com os seus remorsos pungentes:

— Já menti quando sacrifiquei tua mãe, mas agora desejo só a verdade... Porque deixei a falsi­dade, Satanás me atormenta...

— Tudo isso, porém, passará depressa. — es­clarecia a jovem pacientemente.

— Sim, passará.. passará. — concluía a enfêrma atenuando a exaltação.

Em seguida, a filha de Madalena vigiava, em prece, até que a mãe de Beatriz conseguisse adormecer.

O ambiente doméstico continuava carregadís­simo.

Numa noite de grandes perturbações, Susana dirigiu-se à carinhosa enfermeira em pranto convulsivo:

— Não me deixes ir para o cárcere! Já estou sendo castigada rudemente, minha santa menina! Não será melhor que a morte me colha aqui mesmo, como lição para todo o mundo? Muita gente na Cité há de evitar o pecado, quando souber que estou morrendo atormentada, no seio das coisas que per­tenciam a tua mãe!...

— Não pense nisso! dizia a interlocutora generosa, tranqüilizando-a. — Ninguém a levará daqui. Esta casa é sua e pessoa alguma poderá atentar contra os seus direitos.

— Hoje — voltava a exclamar a louca de olhos esgazeados — vi o infame Padeiro (1) aproxi­mar-se de meu pai e soprar-lhe alguma coisa aos ouvidos... Daí a momentos, êle e Beatriz decla­ravam-se resolvidos a me afastar de casa.

— A senhora ficará comigo — murmurou a jovem Vilamil consolando-a —, não precisa inquie­ar-se porque, antes de tudo, Deus nunca nos aban­donara.

Com efeito, no dia imediato, ao almôço, dando a impressão de que houvera pensado muitíssimo, antes de apresentar a proposta, Jaques falou, muito trêmulo:

(1) O povo de Paris dava ao Espírito das trevas a designação de Padeiro a fim de não pronunciar a palavra” Diabo” — Nota de Emmanuel.

— Minha querida Alcione, Beatriz e eu esti­vemos pensando na dilação dos teus sacrifícios e no melhor meio de atender à situação da nossa doente. Como talvez não ignores, temos estabelecimentos em Paris onde a enfêrma pode ser bem tratada, sem exigir tanto da tua proverbial dedi­cação.

Pensam, assim, em afastá-la do convivio doméstico? — perguntou a filha de Madalena sur­preendida.

— Efetivamente; as prolongadas vigílias te consomem a saúde. Por minha vez, não te posso ajudar, dado o meu grande esgotamento físico.

— Não, não — retrucou Alcione firmemente, não concordo. D. Susana não deve, não pode sair daqui. Estou habituada a vigílias e, além disso, a pobrezinha haveria de sofrer muito.

— Mas estaria a salvo de qualquer necessi­dade no estabelecimento onde tencionamos inter­ná-la.

— Mas isso não lhe garantiria a tranqüilidade nem melhoras quaisquer, pois o de que ela mais necessita é de carinho, no transe doloroso por que passa. Estou certa de que não lhe faltariam enfer­meiras dedicadas, mas, ainda assim, sempre se con­sideraria abandonada por nós, no meio de doentes de tôda espécie, quando pode perfeitamente tra­tar-se ao nosso lado, sem que lhe falte o confôrto da ternura familiar.

Beatriz, que prestava grande atenção aos argu­mentos da irmã, objetou:

— Tua atitude é nobilíssima, porém nós não podemos pôr de lado a tua saúde. Além disso, as observações de minha mãe, no estado de loucura em que se encontra, são muito impressionantes para quantos nos visitam.

— Pois eu me comprometo a tê-la sob a minha guarda exclusiva. Não se preocupem comigo. Sin­to-me forte. Os cuidados com a doente vêm cons­tituindo para mim um grande consôlo. A ausência de deveres imediatos nos inclina, por vêzes, a re­flexões indevidas. Eis por que a companhia de D. Susana tem sido de imensa utilidade para mim. Desde a partida de mamãe, sinto certo vazio na alma... Ao tocar o cravo para a enfêrma, recor­do-me que seu espírito deve estar satisfeito. Será possível que desejem suprimir semelhante satisfa­ção ao meu trabalho diário?

Beatriz lembrou a realização das suas aspirações de moça, sua infância confortada e a juventude feliz; comparou-a com a exemplificação de Alcione e sentiu os olhos rasos d’água. Nem ela nem o avô se atreveram a falar mais na remoção da enfêrma.

Nesse ínterim, quando se levantaram da mesa, o velho Jaques valeu-se da oportunidade de esta­rem a sós os três e chamou a atenção da filha de Madalena para certo problema que o preocupava:

— Alcione — dísse afávelmente —, aprovei­tando êste momento de calma, devo dizer-te que mandei buscar, por pessoa de confiança, tua cer­tidão de batismo, em Versalhes; mas, quero crer que fôsses batizada na Espanha, por iniciativa de Ântero de Oviedo, porqüanto em Versalhes nada se encontrou.

— Ah! sim... — murmurou a moça hesitante posso saber o motivo da providência?

— É a necessidade de regularizarmos a ques­tão da herança paterna. Beatriz e eu precisamos atender a essa parte.

A. jovem Vilamil fêz um gesto de grande admi­ração e exclamou:

— Por favor! Não façam isso!... Renuncio voluntariamente em favor de Beatriz. Sua felici­dade, seus bens, são os meus.

— É impossível, minha filha — respondeu o avô atenciosamente —; é justo pensarmos no teu futuro. O destino dá muitas voltas e não seria ra­zoável descuidar da tua situação, quando te assiste um direito sagrado!...

— Agradeço tanta dedicação — acentuou a moça com firmeza e ternura —, mas a minha re­núncia à herança material de meu pai é decisão que não posso modificar.

— Por quê? — interrogou Beatriz ansiosa de repartir com a irmã o copioso quinhão de sua for­tuna.

— Já que me perguntam, devo esclarecer. Minha irmã se casará muito breve e não temos o direito de degradar D. Susana no conceito do genro, que, afinal de contas, será também seu filho... Henrique de Saint-Pierre sempre enxergou na fu­tura sogra uma desvelada amiga. Neste amargo período de enfermidade, tem-na tratado com espe­cial carinho. Seria justo desfazer uma atitude tão nobre, tão só por uma razão de possibilidades fi­nanceiras, que passam com o tempo? Creio que não. Beatriz, por certo, receberá das mãos do Altíssimo alguns filhinhos que lhe enriqueçam o coração fe­minino. Que seria das pobres crianças, quando se recordassem da avó, entre observações descaridosas e pouco dignas? Naturalmente que Saint-Pierre éincapaz de desfazer o noivado pela revelação do pretérito, mas nunca poderia subtrair do lar futuro o mau pensamento, acêrca da genitora de sua com­panheira. Com o tempo, semelhante recordação poderia tornar-se para a querida Beatriz um fardo bastante pesado... Nem todo o dinheiro do mundo bastaria para lhe restituir a tranqüilidade. Isso pôsto, que motivo nos poderia induzir a tornar D. Susana mais desventurada do que é? Descermos a certas explicações num processo de herança, seria enlamear sua memória para sempre. Seria um ato muito indigno de nós. Creio que meus pais, na vida espiritual em que se acham, aprovam plenamente esta conduta.

O bondoso ancião e a neta estavam profunda­mente surpreendidos. Nunca poderiam pensar que o desprendimento da filha de Madalena atingisse ta­manha renúncia. Beatriz permanecia emocionada, sem saber manifestar a gratidão que lhe vibrava na alma. Foi o amoroso velhinho quem rompeu o silên­cio, considerando:

— Gostaríamos de restabelecer a verdade, ape­sar de bastante dolorosa. Estou certo de que Hen­rique se conformaria, de bom grado, e que Beatriz não sofreria qualquer dissabor de futuro, satisfeita e feliz por se edificar no teu exemplo. Quem sabe poderias ponderar o assunto com mais vagar e mo­dificar tuas idéias neste particular?

— Não, não creiam, minha resolução é irre­vogável.

— Essa resolução, Alcione — prosseguiu o velho educador —, não poderia parecer menosprezo a um esfôrço de teu pai? Se Cirilo pudesse ver-te e falar-te, certamente que te argüiria por isso.

A interpelada compreendeu que tal argumento era lançado, de maneira mais peremptória, ao seu coração afetivo, no intuito de lhe modificar as dis­posições íntimas, e retrucou com argumento ainda mais forte:

— A consciência me diz que o nosso amado ausente me abençoa as intenções. Além de tudo, meu genitor deixou-me uma herança muito sublime, para que eu viesse a preocupar-me com dinheiro. Deu-me um avô generoso e uma irmã devotada... E acaso deixei de receber êsse legado Santo?

Jaques experimentou alguma coisa no coração cansado, como nunca sucedera em todo o curso de sua longa existência. Reconhecido e feliz, exclamou:

Deus abençoe todos os teus caminhos...

— Suas bênçãos, meu avô, são para mim uma riqueza eterna...

Beatriz, sensibilizada ao extremo, beijou-a e retirou-se, enxugando uma lágrima.

E, dada a desistência completa de Alcione, a situação no palacete dos Davenport continuou sem modificações apreciáveis.

A enferma, atendida em suas mínimas neces­sidades pela enfermeira afetuosa, continuava gozando a consideração de suas prestigiosas relações parisienses. Não raro, nobres damas da Côrte visi­tavam-na, testemunhando-lhe carinhosa atenção. Retiravam-se, muitas vêzes, fortemente impressio­nadas pelo que ouviam da pobre demente.

— Acreditas, Marcelina — dizia a enfêrma a uma colega da juventude —, que o demo não nos persiga diàriamente? Vejo-o em luta constante, tra­balhando por aniquilar minhalma... Será que tu também tens algum crime a confessar? Se come­teste alguma falta grave, liberta-te do remorso quanto antes! Satanás nos está espreitando!...

E, rematando as considerações com gargalha­das sibilantes, gritava:

— Ah! Ah! Ah!... Vamos tirar as máscaras, vamos tirar as máscaras!...

As visitas, quase sempre se retiravam impres­sionadas e admiradas com a paciência da enfermeira.

Um ano fazia que Cirilo e Madalena haviam falecido, quando o velho Jaques apresentou sinto­mas alarmantes, O velho médico da família reco­mendou o máximo cuidado, porque o enfêrmo tinha a existência por um fio, podendo morrer de um momento para outro. Enquanto Beatriz se desfazia em lágrimas, Alcione duplicava a coragem, de modo a atender os doentes, como se fazia necessário. Um portador foi enviado ao Norte, a fim de solicitar a presença de Carolina e dos seus.

Quando a senhora de Nemours chegou com os dois filhos, o genitor estava a despedir-se.

A irmã de Susana mui raramente vinha a Paris e, por ocasião da morte do cunhado e da enfermida­de da irmã, limitara-se a escrever, enviando à viúva condolências e votos de pronto restabelecimento. Mas, percebendo que o velho pai estava prestes a deixar o mundo, dera-se pressa em se abeirar do seu leito, em vista da pequena fortuna do antigo edu­cador de Blois.

Carolina encontrou a irmã em lamentável es­tado. Não obstante as preocupações egoísticas de um temperamento somítico, não abraçou Susana sem chorar. A desventurada viúva dirigiu-lhe como­vedoras exortações, que lhe calavam fundo no es­pírito.

— Talvez não saibas, Carolina — dizia exal­tada —, que me tornei criminosa aos olhos dos homens e diante de Deus... Condenei Madalena Vilamil ao destêrro e à miséria, para desposar Cirilo, na América... Fiz tudo quanto quis, mas Deus deixa agora que o diabo me peça contas de meus atos condenáveis!...

— Acalme-se... - exclamava Alcione em ati­tude de serva devotada. — A senhora está se entre­gando a emoções muito fortes com a chegada de sua irmã.

— Quem é esta enfermeira tão adequada às nossas necessidades? — perguntava Carolina à Beatriz, com interêsse.

Vendo, porém, que a irmã encontrava certa dificuldade em se explicar, a própria Alcione esclareceu:

— Sou empregada da senhora Davenport, ainda ao tempo em que ela gozava saúde.

— Pois bem, minha menina — replicava a visi­tante como quem se sente bem ao reconhecer que outros tomam para si o trabalho ou a dificuldade que lhe pertencem —, Deus há de ajudá-la pelo de­votamento com que cumpre os seus deveres.

Carolina permanecia ali, sob forte impressão.

— A loucura de Susana é bem singular —disse espantada. — Por que se referirá a crimes que absolutamente não praticou?

— Diz o médico — esclareceu a enfermeira com serenidade — que essa perturbação é comum à maioria dos que têm o cérebro transtornado – Em vista de D. Susana haver-se casado com o primo que a ela se unia, em segundas núpcias, parece sempre preocupada com o assunto, alegando situa­ções imaginárias.

— A explicação do facultativo é muito plau­sível — acrescentava a tia de Beatriz. —; minha irmã era muito amiga de Madalena Vilamil e, pos­sivelmente, lembrar-se-á muito da extinta, nos de­lírios de sua demência.

— Acresce notar — ajuntava a filha de Ma­dalena — que meu nome é Alcione Vilamil e esta circunstância não deixará de influir no ânimo da enfêrma, sempre em minha companhia...

— Isso é muito curioso — explicava a inter-locutora —, mesmo porque suas feições são muito semelhantes às da primeira espôsa de Cirilo, quando moça.

— Muitoa dizem isso — confirmava a moça, com humildade.

A senhora de Nemours não ocultou a simpatia que a enfermeira lhe inspirava, tecendo-lhe francos elogios, junto de Beatriz.

No dia imediato ao de sua chegada, eis que o velhinho generoso, depois de longos padecimentos físicos, despede-se do mundo com grande sereni­dade. Alcione resistiu a todos os embates, herôica­mente, transformando-se num anjo de socorro para cada um, em particular.

Depois do funeral, foi debalde que um dos jovens, filho de Carolina, insistiu para regressarem ao Norte. A espôsa do Sr. de Nemours alegava, confidencialmente, precisar conhecer o testamento paterno, O genitor deixara regular quantia em dinheiro de contado, e Carolina queria tomar conhe­cimento das suas últimas disposições.

O documento, no entanto, aberto daí a três dias, reservava grande surprêsa ao seu coração egoísta. Jaques Davenport deixava a pequena for­tuna para Alcione Vilamil, declarando que sua reso­lução obedecia ao fato de que as filhas e os netos se encontravam devidamente amparados por vastas possibilidades financeiras, e que a sua deliberação testamentária nada mais representava que um ato de gratidão para com a enfermeira amada, a cujo carinho se sentia ligado por eterno reconhecimento.

Alcione chorou, comovidamente, ouvindo a lei­tura, e, enquanto Beatriz não conseguia dissimular a satisfação que lhe vagava nalma, a tia mergu­lhava-se em contrariedade intraduzível.

Reconhecida a última vontade do morto, Caro­lina Davenport entrou a pensar sêriamente na pos­sibilidade de uma destituição. À noitinha, aproxi­mou-se da filha de Susana, falando-lhe do assunto com gravidade.

— Beatriz — começou a dizer a senhora de Nemours algo irritada —, não posso calar a estra­nheza que me causou a disposição testamentária de papai. Francamente, estou decepcionada.

— Pois eu, titia, muito pelo contrário, penso de outro modo. Acho que vovô praticou um ato de grande justiça.

— Como assim? Não vejo razões que justi­fiquem êsse ato. Nunca acreditei que meu pai olvidasse a prole para valorizar apenas os serviços de uma criada. Estou disposta a pleitear a anula­ção do testamento. Meu velho pai deve ter sido lamentàvelmente enganado...

— Não diga isso! — tornou a sobrinha reve­lando nobre preocupação. — Alcione, em nossa casa, desempenha o papel de uma filha. Sou teste­munha da sua extrema dedicação. Aliás, até ontem, a senhora não lhe negou os maiores elogios...

— Sim, como serva. Não podia, porém, supor que papai houvesse atingido êsses extremos de con­sideração.

— A senhora, minha tia — esclareceu Beatriz com a delicadeza firme de quem não está disposto a ceder —, é porque tem vivido ausente, anos conse­cutivos. Naturalmente, não pode aquilatar as ele­vadas qualidades de que Alcione é portadora. Ainda é bastante feliz neste mundo, para conseguir enxer­gar as almas que desempenham a tarefa dos anjos. Desde que se casou, vive tranqüilamente em sua propriedade, ao lado do espôso abastado e dos fi­lhos que participam do seu bem-estar, inalterado até hoje. Aliás, devo dizer que esta opinião era a de vovô, sempre queixoso da sua ausência. Nós, porém, não podemos partilhar com a senhora a mesma apreciação. O falecimento de meu pai nos trouxe lições muito amargas, que Alcione nos tem ensinado a compreender com a sua bondade sem limites... Em todo o curso da moléstia de minha mãe, seu devotamento tem tocado ao heroismo.

A interlocutora parecia ouvir superficialmente os argumentos da jovem, respondendo com certa secura:

— Não posso aceitar a opinião da tua mocidade inexperiente. A meu ver, Alcione é criatura com muitos predicados excelentes, mas não lhe vejo outros títulos que os de serva.

E mostrando o ciúme que lhe envenenava o espírito, em virtude da predileção paterna, rematava:

— Susana está demente, mas eu ainda não perdi a razão. Não concordo com a decisão testa­mentária e recorrerei à justiça.

A sobrinha, contudo, endereçando-lhe um olhar autoritário, sentenciou:

— Jamais supus que a senhora descesse a tal deliberação apenas por alguns milhares de francos, concedidos por um coração generoso a uma órfã. Saiba, porém, minha tia, que não ficarei inativa ante os juizes de Paris. Sua reclamação poderá vingar, mas eu darei à Alcione, püblicamente, um legado que possa equivaler à pequena herança dei­xada por vovô... Assim, nossos amigos terão ciência de que a reclamação não parte desta casa, e sim de um espírito inconformado e mesquinho.

Ante a nobre atitude de resistência, a senhora de Nemours fêz um gesto de forte irritação e mur­murou desolada:

— Insultas-me? És muito nova para discutir comigo. Estou a ver que tu e a serva transtornaram a cabeça do velhinho doente, induzindo-o a testamento tão singular...

— Poderá julgar como lhe ditam os sentimen­tos próprios.

Carolina corou, fortemente excitada e res­mungou:

— Volto hoje mesmo para casa. E ficas ciente, Beatriz, que não precisamos do dinheiro do papai, nem do teu. Tratei do assunto da herança, porque todos somos obrigados a honrar a justiça, mas nunca precisarei dessa miséria de alguns escudos. E que Deus te proteja, para que a serva intrusa não te cause sérias decepções.

A sobrinha lançou-lhe um olhar altivo e mur­murou muito calma:

— Agradeço a sua decisão de partir. É me­lhor que o escândalo fique só entre nós e que a senhora renuncie à primeira disposição que me levaria também a público, como sua adversária.

Não obstante a preocupação de abandonar o palacete da Cité, naquela mesma noite, Carolina Davenport, contida pelos filhos, esperou pela manhã, quando se retirou de Paris, despedindo-se da so­brinha sêcamente.

Por essa época, Henrique de Saint-Pierre co­meçou a cooperar mais assiduamente na solução dos negócios que envolviam a antiga residência de Cirilo. No círculo de tantas dores e preocupações, sômente a perspectiva do casamento próximo de Beatriz oferecia ensejo a determinadas esperanças de paz. A noiva aguardava as melhoras da geni­tora para marcar a data do consórcio. Desde há muito, o rapaz manifestava desejos de não adiar o enlace por mais tempo; no entanto, Beatriz não se sentia bem, entregando à Alcione o pêso de todos os encargos, relativamente à enfêrma. Su­sana, logo após o falecimento do velho professor, atingira um estado especial de inércia, piorando sempre, a olhos vistos. As duas filhas de Cirilo revezavam-se devotadamente no sentido de amparar a doente com todos os recursos ao seu alcance. Alcione andava abatida. No entanto, as lutas agra­vavam-se, cada vez mais.

Certa noite, Robbie, já quase homem feito, demorou-se mais que de costume. A filha de Mada­lena inquietou-se, sentindo que algo de grave suce­dera, amargurando-lhe o coração. De fato, en­quanto confiava à irmã os pensamentos que a atormentavam, um portador do abade Durville, clé­rigo de São Landry, pedia sua presença urgente.

— Senhorita — exclamou respeitosamente, di­rigindo-se à moça, que o ouvia surpreendida —, o Sr. Robbie há duas horas foi vítima de um desastre, quando mal havia saído da igreja...

— Que foi? — inquiriu Alcione sem disfarçar a enorme aflição.

— O rapaz ia distraído quando um carro o colheu, brutalmente! Os cavalos espantaram-se e o cocheiro não teve tempo de evitar o desastre lamen­tável.

— E como está êle?

— Muito mal. As feridas do peito sangram com abundância, mal pode falar e pediu ao Abade Durville que a prevenissem com urgência.

— Não há tempo a perder — murmurou Beatriz.

Daí a minutos, o carro dos Davenport saía à pressa, conduzindo as duas irmãs.

Em um recanto da igreja de São Landry, o filho adotivo de Madalena experimentava o esgotamento rápido de suas fôrças. O sangue borbulhava, incessante, das feridas abertas. Debalde um médico aplicava os recursos limitados da sua ciência, O afluxo de sangue cedera em determinadas regiões, mas a incisão profunda, ao longo do peito, era uma fonte inestancável. Não havia mais esperanças. Durville e alguns companheiros assistiam-no, cer­tos de que o músico estava perdido.

Percebendo a seu lado a irmã muito querida, o rapaz pareceu concentrar as energias supremas, no desejo de lhe transmitir os últimos pensamen­tos. A voz era-lhe como um sôpro. Alcione incli­nou-se, esforçando-se para não chorar; beijou-o com enternecimento fraterno e sentou-se, ali mesmo, para que a fronte dilacerada lhe repousasse no regaço fraterno. O ferido esboçou um sorriso leve que sensibilizou os assistentes.

— Então, Robbie? como foi isso? — pergun­tou a irmã, quase colando os lábios aos seus ouvidos.

— Deve ser... a vontade de Deus.., que se cumpriu...

Alcione, muito comovida com a doce resigna­ção do moribundo, voltou a dizer:

— Levar-te-ei comigo para casa. Haveremos de tratar das feridas, com atenção, O carro nos espera à porta.

O ferido tentou fazer um gesto que significasse a sua impossibilidade absoluta, chegando tão sómente a murmurar:

— Não posso mais...

Beatriz procurou o facultativo, que tirava o avental tinto de sangue e pediu licença para remo­ver o rapaz. O doutor, entretanto, não concordou, exclamando:

É inútil! A providência apenas agravaria os padecimentos do infeliz. Seus minutos estão contados, O grande ferimento do peito, produzido pela pata do animal, é irremediável.

— O caso é assim tão grave? — indagou a filha de Susana, alarmada.

— A morte é uma questão de momentos —respondeu o médico, um tanto displicente.

Alcione, que compreendia a situação, inclina­ra-se para o moribundo, como se estivesse acariciando um filhinho.

— No instante em que se verificou o desas­tre — esclarecia o Abade Durville em voz alta —, quis prender o cocheiro culpado, a fim de puni-lo, como de justiça, mas Robbie não consentiu, dizen­do-se o único culpado do incidente.

O rapaz olhou a irmã, longamente, ansioso de ler no seu rosto a aprovação de sua atitude. A filha de Madalena entendeu a sua linguagem silen­ciosa e disse:

— Fizeste muito bem, Robbie. É preciso não disputarmos com o mundo, a fim de encontrarmos o caminho que conduz a Deus.

O agonizante teve uma expressão de grande confôrto íntimo e, reunindo as suas reduzidas pos­sibilidades orgânicas, falou entrecortando as pa­lavras:

— Desde que mandei os gendarmes libertar o cocheiro, por entender que me cabia a culpa... sinto que não tenho mais a pele negra, que tenho a mão e a perna... curadas... veja Alcione...

E fazendo um esfôrço ao qual não podia cor­responder a mão quase hirta, continuava, murmurando:

— Minha mão tem agora cinco dedos... e tenho a impressão de que me curei dos olhos para sempre... Sômente não posso levantar-me e acom­panhar-te.. Mas depois que dormir... penso que ficarei bom.

A irmã adotiva acentuou vertendo algumas lágrimas:

— São estas as provas redentoras, meu que­rido Robbie! Deus te restitui a saúde da alma, por te considerar novamente digno -

Mas o médico que conversava com Beatriz e o abade. Durville, a distância de dois passos, acres­centava:

— Creio que a pobre rapariga não conhece o delírio da morte. O agonizante começa a desvairar. Deve ser o fim.

Longe de ouvir a opinião descriteriosa do mundo, Alcione conchegava o irmão de encontro ao peito, elevando-se a Jesus em preces fervorosas.

— Sinto... muito sono... — disse Robbie num sôpro débil.

A filha de Madalena afagou-o com mais ter­nura e o músico adormeceu para sempre, no mundo, para despertar numa vida mais alta.

*

O doloroso incidente, que arrebatara o irmão adotivo para a esfera espiritual, deixara Alcione muito mais abatida do que fôra de prever. Saint­-Pierre cuidou do funeral com a maior solicitude. Terminada, porém, a cerimônia fúnebre, que se havia revestido de tocante simplicidade, a jovem Vilamil começou a experimentar penosa angústia no coração. Nunca sentira tamanha sensação de soledade no mundo. Robbie era o último traço da sua infância e da sua juventude. Amargurosa sau­dade empolgou-lhe o coração. A antiga chácara de Ávila ficara muito distanciada no tempo. Dolores e João de Deus, os bons amigos da meninice, jamais haviam dado sinal de vida, do seu longínquo recan­to; padre Damiano e sua mãe haviam partido, seu pai e o avô lhes haviam seguido os passos no cami­nho da morte, Carlos afastara-se pela incompreen­são, Robbie descera à sepultura.

Dominada pela tristeza dos espíritos solitários, a filha de Madalena recolheu-se ao aposento par­ticular. Aí chegando, chorou convulsivamente, em atitude contrária a todos os seus hábitos. Abra­çando o velho crucifixo, junto do qual tantas vezes D. Margarida e Madalena haviam chorado, dizia sentidamente:

— Ah! meu Jesus, não me desampares!...

Foi aí que a pobre louca, dando pela sua falta, aproximou-se, depois de abrir a porta levemente cerrada, exclamando de olhos inexpressivos, num impulso maquinal:

— Alcione!... Alcione!.

A interpelada enxugou o pranto, recolocou o crucifixo no lugar primitivo, levantou-se solícita e foi ao encontro da enfêrma, com ternura:

— Ah! como me esqueci da senhora!...

E abraçando a pobre demente, conduziu-a com muito carinho ao quarto de dormir.

 


6

Solidão amarga

Susana Davenport ainda viveu pouco mais de dois anos, após a morte de Robhie. A filha de Ma­dalena passou todo êsse tempo em largos sacrifícios domésticos, exemplificando o amor mais puro. A genitora de Beatriz teve agonia prolongada, recupe­rando a razão nas derradeiras horas. Olhos fixos na filha, tomou-lhe a mão e colocou-a nas mãos de Alcione, dando a entender que a filhinha, em tempo algum, deveria esquecer de tomar a irmã como um símbolo.

Alcione descansava agora de uma luta imensa, mas, afeita ao trabalho desde os mais tenros anos, chegava a estranhar o repouso.

O próximo casamento de Beatriz, com os nume­rosos trabalhos conseqüentes, foi por ela encarado como um alívio à solidão que começava a experi­mentar. Tôdas as horas do dia, em carinhosa dedicação, eram consagradas ao bordado e à costura, surpreendendo a irmã pelo gôsto artístico e habi­lidade, em cada detalhe do serviço. Beatriz não conseguia eximir-se ao pêso das recordações doloro­sas, mas o consórcio com o homem amado revigo­rava-lhe as esperanças. O palacete da Cité, sempre envolvido num manto de saudades, dava a impres­são de jardim abandonado que começasse a reflorir. Os servos evitavam referências à morte dos antigos senhores, para que os rebentos de alegria nova não fôssem arrancados. Se acaso via a irmã entristeci­da, Alcione fazia questão de tanger as teclas de as­sunto confortador, para que a moça não se entregasse à tristeza e ao mal-estar. O culto doméstico do Evangelho foi restaurado. O próprio Henrique de Saint-Pierre associou-se ao movimento, partilhan­do das reflexões religiosas com muita satisfação. A inspiração da filha de Madalena causava-lhe surprê­sa cariciosa. Sua palavra penetrava problemas com­plexos da existência, como se já tivesse vivido nu­merosos séculos em contato com os homens. Para Henrique, tais reuniões tinham caráter providen­cial. Indiretamente, a irmã de sua noiva, sem qual­quer intenção, preparava-lhe o espírito para as tare­fas sagradas do lar, para os benefícios do casamento. O rapaz começou por abandonar as com­panhias perigosas que, não raro, tendiam a compro­meter-lhe o nome e a saúde; a vida revelou-lhe pro­fundos segredos, seu coração parecia agora aberto para o orvalho divino do sentimento superior. In­cansável no trabalho, Alcione estendeu o culto dominical aos serviçais numerosos. Todos puderam participar das bênçãos de Jesus, no vasto salão que Beatriz mandou preparar jubilosamente. O movimento familiar continuava em santas vibrações de fraternidade e alegria. A moça Vilamil orga­nizou hinos de carinhosa devoção a Deus, que as crianças dos servidores entoavam, com encanto singular. O cravo parecia falar harmoniosamente da fé, sob a pressão dos seus dedos. A filha de Susana não cabia em si de contente. A grande residência de Cirilo perdeu o aspecto sombrio, adquirido em todo o curso da moléstia da viúva Davenport. Júbilo sadio estabelecera-se entre todos. Quando alguém demonstrava indisposições súbitas, recordava-se o ensinamento do Cristo e o culto do­méstico ia ganhando todos os corações.

O enlace de Beatriz e Saint-Pierre realizou-se com muita simplicidade, e concorrência, apenas, das relações mais íntimas.

Alcione acompanhou satisfeita todos os trâ­mites do auspicioso evento, mas, em seguida, entrou num período de grande abatimento, do qual apenas saía nas horas rápidas do culto familiar.

A filha de Madalena não conseguia furtar-se à saudade dos seus inesquecíveis ausentes e, simultâneamente, ex­perimentava a falta do trabalho ativo, que se torna­ra a incessante religião dos seus braços fraternos.

A Irmã impressionou-se Que fazer para ar­rancá-la daquela melancolia que a empolgava devagarinho? Ela esquivava-se às festas sociais, não tinha inclinação para os prazeres do seu tempo. Tendo passado dos trinta anos, seus traços fisio­nômicos conservavam a beleza da primeira juven­tude, revelando, ao mesmo tempo, a madureza do espírito. Beatriz começou a pensar, sêriamente, em inclinar-lhe a alma sensível e afetuosa para um casamento feliz. Dominada por êsses pensamentos. a espôsa de Saint-Pierre aproximou-se certo dia da irmã e lhe disse, com bondade:

— Tenho andado bastante cuidadosa de ti e preciso cooperar para que a tristeza seja banida do teu coração e dos teus olhos!...

— Por que te afligires, minha querida? O re­pouso involuntário de nossas mãos costuma agravar o esfôrço dos pensamentos. Não estou acabru­nhada, podes crer. Tenho meditado um pouco mais e essa circunstância te induz a perceber mágoas imaginárias em meu espírito.

Beatriz abraçou-a com enternecimento e falou:

— O coração me diz que não estou enganada. Consomes-te a olhos vistos. Por vêzes, Alcione, quando em passeio com Henrique, não posso evitar que meu júbilo se misture ao remorso...

— Mas, como assim, querida?

— Não me conformo em ser feliz só por mim, quando mereces as bênçãos do Céu, muito mais que eu.

Depois de ligeira pausa, a filha de Susana con­tinuava:

— Quem sabe desejarias fazer alguma viagem que te distraísse? Essa providência seria mais que justa, após tantos anos de luta e sacrifício. Quando não quisesses ir a país estrangeiro, poderias des­cansar em alguma praia e fortalecer-te em contacto direto com a Natureza.

— Mas, se eu estou muito bem e nada me falta?

Beatriz contemplou-a, com mais carinho, e, quase suplicante, tornou a dizer:

— Alcione, desejava lembrar uma possibili­dade, pelo que espero me perdoes com a tua gene­rosidade fraternal...

A irmã comoveu-se com o acento caricioso da­quelas palavras e obtemperou:

— Dize sem receio. De que se trata?

— Tenho pedido a Deus, ansiosamente, me conceda a alegria de ver-te formando igualmente um lar, onde um espôso fiel ilumine a tua estrada com as bênçãos de uma ventura sem fim. Se te pudesse ver amada por um homem leal e puro, cer­cada pela ventura de filhinhos carinhosos, como seria feliz!... Dá-me a satisfação de te auxiliar a refletir nesse particular.

Beatriz notou que a irmã fazia enorme esfôrço para reter as lágrimas. Adivinhando o seu embaraço para responder, a espôsa de Henrique ga­nhava ânimo para prosseguir:

— Eu e meu marido vimos pensando na colô­nia distante, onde os nossos bens materiais são consideráveis. Henrique vem ultimando alguns ne­gócios e creio que, daqui a alguns meses, tomaremos a nova decisão. Meus tios insistem pelo meu re­gresso e, além dêles, temos na América velhos amigos de meu pai a nos esperarem de braços aber­tos. Claro que não dispensamos tua companhia e peço-te permissão para ir meditando, desde já, na tua felicidade futura. Na minha terra natal, encon­trarás relações carinhosas e devotadas, e — quem sabe? — talvez Jesus te reserve por lá um espôso fiel e cristão, que faça por ti tudo que te deseja­mos de coração.

Alcione comoveu-se profundamente. O terno respeito de Beatriz, a delicadeza da sua exposição, penetraram-lhe o espírito como um bálsamo celes­tial. Demonstrando o interêsse de sua dedicação fraterna, respondeu reconhecidamente:

— E se te dissesse que tenho meu coração pri­sioneiro, desde a primeira mocidade?

A espôsa de Saint-Pierre, com um franco sor­riso, revelava o prazer que a declaração lhe causava. Se a filha de Madalena Vilamil já havia ele­gido o homem do seu afeto, não lhe seria difícil contribuir eficazmente para a sua ventura. Ansiosa e confortada, Beatriz insistia de olhos muito brilhantes:

Ah! conta-me tudo! Certo, o feliz eleito de tua alma não estará aqui em Paris. Quem sabe é algum gentil-homem espanhol, a esperar tua reso­lução há longo tempo?

Reconhecendo a sinceridade da irmã, Alcione passou a historiar a sua juventude, recordando a figura de Clenaghan com a vivacidade dos seus imensos tesouros afetivos. Longas horas estiveram ambas no divã, desfiando o rosário das lembranças queridas. A filha de Susana seguia as palavras da irmã, demonstrando enorme estupefação, pela sua capacidade de sacrifício. Alcione crescia espiritual­mente, cada vez mais, no seu conceito. Ao terminar o relato de suas agridoces reminiscências, a jovem esclarecia:

— Quando nos encontramos pela última vez, aqui em Paris, notei que êle não podia compreender os meus deveres filiais. Estava taciturno, talvez irritado com as lutas da sorte. Não podia ver em mim senão a noiva que lhe atendesse ao ideal hu­mano, mas eu ainda retinha comigo deveres sa­grados para com meus pais, e não pude acompa­nhá-lo de volta a Castela. Ele não se despediu de mim, mas o fêz de mamãe, antes de se pôr a cami­nho do Havre; e mamãe sempre dizia que o notara bastante transformado, suspeitoso e desesperado. Sofri com isso muito mais do que se pode imaginar, mas entreguei a Jesus as minhas mágoas íntimas. Lembro-me, perfeitamente, de que, impossibilitada de lhe revelar o que ocorria entre minha mãe e meu pai, que o destino havia separado, prometi que o procuraria a qualquer tempo que as circunstâncias permitissem...

— E não terá soado essa hora de conciliação? — interrogou Beatriz ansiosa por lhe renovar o bom ânimo.

— Tenho pensado nisso, sinceramente, nestas últimas semanas — confessou a filha de Madale­na, prazerosa por sentir-se compreendida. — Estou certa de que Carlos confia na minha sinceridade e não terá desposado outra mulher. Nesta fase de minha vida, talvez lhe possa ser útil, poderia con­correr para seu retôrno à vida religiosa, embora sem esperança de reintegrá-lo no ministério sa­cerdotal.

— Que dizes? — murmurou a espôsa de Saint­-Pierre com infinito carinho. — Não penses obri­gá-lo a retomar um serviço contrário à sua vocação. Teu coração e o do homem amado têm direito ao banquete da vida. Hás de casar-te e conhecer a felicidade que parecia remota e irrealizável. Quero beijar teus filhinhos, num futuro risonho.

O semblante de Alcione iluminou-se, mostrando a beleza do seu mais secreto ideal de mulher. Rubo­rizada e quase feliz, perguntou:

— Supões, acaso, Beatriz, que Deus ainda me concederá semelhante felicidade?

— Por que não? — voltou a dizer a interlo­cutora com sereno otimismo. — Estás moça e bela, como aos vinte anos. É preciso cuidarmos imedia­tamente do contato com Ávila.

A filha de Madalena dirigiu à irmã um olhar significativo e indagou:

— Estarias de acôrdo que eu fôsse até lá? Tenho desejado surpreender Carlos com o exato cumprimento de minha palavra.

— Sem dúvida — respondeu Beatriz bem hu­morada, ao perceber que novas esperanças brota­vam daquela alma generosa e santificada —; se fôsse possível, acompanhar-te-ia. Creio não ser possível, mas tudo se arranjará de maneira a visi­tares Castela-a-Velha, na primeira oportunidade.

— Irei sozinha — esclareceu Alcione, de olhos vivazes.

No dia seguinte, ao almôço, Henrique de Saint­-Pierre partilhava do entusiasmo de ambas.

— Beatriz me fêz ciente de tuas intenções —disse-lhe em tom fraternal — e podes crer que já estou à espera de Clenaghan, com justa ansiedade. Preciso de um companheiro para o desdobramento de nossos negócios. Claro que não necessitamos de capital, mas sim de um auxiliar operoso e leal, que nos ajude a zelar o patrimônio adquirido. Sinto que teu futuro espôso solucionará o nosso pro­blema.

— Ah! sim — respondeu Alcione risonha — Carlos é um homem honesto e trabalhador. É ver­dade que faltou ao compromisso sacerdotal, falta essa que não pude aprovar, desde os primeiros tempos em que a decisão não passava de projeto; mas nada se poderá dizer contra a sua lealdade. É portador de caráter nobre e de valorosos senti­mentos.

— Para nós, será um irmão — disse Beatriz satisfeita.

— Certamente — continuou Saint-Pierre aten­cioso — já se entenderam sôbre a nossa transferência para o Novo Mundo?

— Sim — acentuou a filha de Madalena, con­fortada.

— Pois bem — prosseguiu o novo chefe da casa —, Clenaghan irá conosco, como pessoa da família. Quanto a ti, Alcione, conheço o plano de viagem à Espanha, onde cuidarás da agradável surprêsa ao teu escolhido. Quisera seguir-te e mais a Beatriz, mas negócios urgentes impedem fazê-lo. Poderei, no entanto, mandar um empregado ao Havre, a fim de conhecermos o movimento das em­barcações mais seguras. Se queres, poderei de­signar alguém que te acompanhe na viagem tão longa...

Sinceramente reconhecida, a moça obtemperou:

— Não há necessidade, Henrique. Poderei se­guir só, visto conhecer o caminho. Além disso, Ávila é como se fôsse minha segunda pátria. Tenho lá inúmeras amizades.

— Não temos qualquer objeção a fazer. Ape­nas formulo votos ao Céu para que a tua ventura se processe ràpidamente. Dirás a Carlos Clenaghan que o esperamos nesta casa, com interêsse e sim­patia. Para mim, Alcione — acrescentava Saint­-Pierre comovidamente —, nunca fôste a governanta de Beatriz, mas nossa irmã muito amada, pelos laços sacrossantos do espírito. O companheiro de tua escolha será pessoa sagrada aos nossos olhos. Em chegando a Ávila, anima-o a vir em tua com­panhia, com presteza. Esperaremos tua volta, para então marcar a viagem para a colônia.

Alcione não sabia como traduzir sua gratidão. Em frases carinhosas, manifestou o sincero agrade­cimento dalma, ficando ali mesmo aprazada a via­gem à Espanha.

Precisamente daí a um mês, Beatriz e o espôso acompanhavam a irmã até o Havre, onde Alcione, corajosamente, tomou a embarcação que a levaria ao pôrto de Vigo.

Após as despedidas, quando o navio se afastava da costa francesa, levado por ventos favoráveis, a filha de Madalena encontrou-se à sós com as suas profundas recordações. As figuras da genitora, de Robbie e padre Damiano apresentavam-se-lhe àmente, mais vivas que nunca. Era necessário muita energia para não cair em pranto, em face da sau­dade que lhe pungia o coração. Aqui, era um de­talhe do mar, que havia impressionado o irmão adotivo; acolá, um aspecto da costa que provocara certas explicações do velho sacerdote. Recolhida em sentimentos carinhosos, a filha de Cirilo desem­barcou em terra espanhola, com o peito oprimido de infinitas esperanças. Nunca mais tivera noticias de Clenaghan, era bem possível que não mais esti­vesse em Castela-a-Velha; no entanto, suas rela­ções de Ávila não faltariam com os informes pre­cisos.

A condução para a cidade da sua meninice não foi difícil. Em poucos dias, chegava ao seu destino. Embora provocasse a estranheza de muitos o fato de encontrar-se desacompanhada, Alcione mostrava uma atitude superior aos olhares curiosos que pa­reciam interrogá-la. Não encontrou qualquer dife­rença na paisagem. O berço de Teresa de Jesus repousava na terra pobre, cioso de suas velhas tradições.

Às dez horas do dia, dava entrada em humilde hotel, naturalmente fatigada, e deliberou não pro­curar as amizades antigas, até que se alojasse convenientemente. de maneira a não se tornar pesada a ninguém, pela sua chegada imprevista. Identi­ficou, de pronto, velhos conhecidos da mocidade, a quem, entretanto, não se revelou por não haver bastante intimidade. Depois de refeita da fadiga imensa, chamou um pequeno servidor da hospeda­ria, perguntando-lhe um tanto acanhada:

— Meu amiguinho, você poderá informar-me se reside aqui, em Ávila, um senhor chamado Carlos Clenaghan?

Após refletir um momento, o rapazote escla­recia:

— Sim, senhorita, conheço.

A viajante verificou que o coração lhe palpi­tava com mais fôrça.

— Sabe se é de origem irlandesa, domiciliado em Castela há alguns anos? — voltou a interrogar atenciosamente.

— Sim, é isso mesmo e sei mais que foi padre, noutro tempo. Hoje é comerciante abastado.

Alcione ouviu-o comovida. Não podia enga­nar-se. Pensou, então, em surpreender o espírito do amado em intimidade cariciosa. Convidá-lo-ia, por um bilhete, a comparecer, à tarde, junto à nave da igreja de São Vicente. Encontrar-se-iam na casa consagrada a Deus, onde tantas vêzes ha­viam tecido muitas rêdes de sonhos e esperanças, sempre desfeitos pelo vendaval das realidades dolo­rosas. Agora, porém, era lícito tratar do seu porvir venturoso. Escrever-lhe-ia sem se dar a conhecer no bilhete, declarando-se chegada de Paris, com notícias alviçareiras para o seu coração. Quando chegasse ao velho templo, vê-la-ia então, compreen­deria a sua fidelidade e devotamento. Logo após o reencontro, visitariam juntos as antigas relações afetuosas, buscariam rever o sítio de sua infância, bem como a casa modesta em que sua mãe traba­lhara tantos anos, curtindo as maiores privações.

Assim procedeu embalada por santas expecta­tivas do amor desvelado e confiante.

O rapaz que a esclarecera, longe de adivinhar o romance da nova hóspede, foi emissário da breve notícia ao ex-religioso, que leu o bilhete assaz intri­gado. Carlos identificaria aquela letra, entre mil manuscritos diversos. Mas era impossível, em seu modo de ver, que Alcione estivesse na cidade. A autora da grafia, por mera coincidência, deveria ter o mesmo tipo de letra, que jamais conseguira esque­cer, no círculo das experiências pessoais. Não con­seguia concatenar outras explicações. Curiosidade febril avassalava-lhe a alma. Que notícias de Paris poderiam ser enviadas ao seu coração? De há muito considerava Alcione perdida, no capítulo das suas aspirações mais sagradas. Dela não deveria esperar qualquer mensagem. Todavia, dilatando as ponde­rações, começou a imaginar que se tratasse de algum recado de Madalena Vilamil ou de Robbie, amigos dos quais não tinha notícias, desde que re­gressara da França, onde fôra na suposição de encontrar a noiva conformada aos seus caprichos de homem apaixonado. Prêsa de intensa sofregui­dão, aguardou o crepúsculo ansiosamente.

Antes do entardecer, Alcione dirigiu-se ao velho templo que constituía um centro de lembranças sagradas ao seu espírito sensível. Ajoelhou-se e orou à frente dos nichos, recordando, a cada passo, o velho sacerdote a quem consagrara o devotamento de filha afetuosa.

Olhar indagador, de quando em quando perscru­tava o caminho, a ver se Clenaghan atendia ao con­vite.

Por fim, quando o céu desmaiava aos derra­deiros clarões crepusculares, um homem surgiu no adro, fazendo-lhe o coração vibrar em ritmo ace­lerado.

O sobrinho do padre Damiano aproximava-se. Alcione notou-o um tanto abatido, parecendo can­sado das lutas da vida. Intenso desejo de propor­cionar-lhe consolação e confôrto aflorou-lhe nalma sensível.

Prestes a atravessar a portaria primorosa, o ex-religioso viu que alguém avançava ao seu encontro.

— Carlos!... Carlos... — disse a filha de Madalena com infinita emoção.

O recém-chegado estacou tomado de assombro. Enorme palidez cobriu-lhe a fisionomia, quis pros­seguir, mas as pernas trêmulas paralisavam-lhe o impulso. A inesperada presença de Alcione enchia-o de profunda admiração. Debalde procurava pala­vras com que pintasse o estado de espírito, em que o júbilo se confundia com a dor. A filha de Cirilo tomou-lhe a mão e falou com meiguice:

— Não me reconheces? Venho cumprir minha promessa.

— Alcione!... — conseguiu dizer o interlo­cutor num misto de sentimentos indefiníveis.

Um abraço carinhoso seguiu-se a essas pala­vras. Compreendendo-lhe a perturbação natural, a moça procurou confortá-lo:

— Ah! se eu soubesse, antes, que te causaria êste forte abalo, não teria feito esta surprêsa!... Perdoa-me...

Carlos se debatia intimamente entre idéias an­tagônicas. Diante dêle estava a mulher amada, que as lutas ia existência não fizeram esquecer. Alcione era sempre o seu maravilhoso e único ideal. As experiências vividas, longe da sua dedicação e dos seus conselhos, eram provas amargas que, aos poucos, lhe atassalhavam o coração repleto de san­tas esperanças. Mas, simultâneamente, recordava com estranheza a atitude da jovem em Paris, quan­do não pudera apreender todo o motivo das suas elevadas preocupações filiais. No seu conceito, a eleita trocara o seu amor pelos atrativos do mundo. Jamais conseguira olvidar aquêle palacete da Cité, onde a moça havia penetrado intimamente apoiada ao braço de um homem.

Mal se desembaraçava no meandro dessas re­flexões, quando a interlocutora voltou a dizer:

— Vamos respirar o ar fresco da noite que desce. Deus me concede a dita de reatar os inefáveis colóquios de outros tempos, neste mesmo am­biente das nossas primeiras emoções.

O ex-sacerdote acompanhou-a màquinalmente. Antigo banco de pedra parecia esperá-los para a revivescência dos mesmos idílios.

Clenaghan perguntou pelos amigos, recebendo com dolorosa surprêsa a notícia da morte de Mada­lena e Robbie, impressionando-se vivamente com a descrição do desastre que vitimara o músico. Al­cione o embevecia com os comentários criteriosos quanto emotivos. Tudo, na sua elocução vibrante, ressumava amor e devotamento. Êle a contemplava com paixão, dando mostras de que esperava, ansio­samente, aquêle bálsamo divino que lhe manava dos lábios. Em dado instante, respondendo a uma observação que ela lhe fazia com mais carinho o ex-sacerdote acentuou:

— Nunca pude forrar-me à mágoa que a tua atitude me causou. Senti que me tratavas friamente.

— Naquela ocasião, Carlos, Jesus me pedia testemunhos de filha, aos quais não poderia fugir senão pelos atalhos escusos da crueldade.

Ignorando ainda tôda a extensão dos sacrifícios da eleita de sua alma, o pupilo de Damiano objetou:

— Mas, se me oferecia para trazer tua mãe e Robbie em nossa companhia? Poderíamos ter sido infinitamente felizes se a isso não te opusesses...

A tonalidade impressa a essas palavras fêz que a interlocutora enrubescesse, calando-se.

— Que fazias, naquele palacete da Cité? Por que saías de casa a pé e ias tomar um carro discretamente? Ignoras que te segui os passos sem que me visses e que observei o homem que te abra­çou, no portão, quando lá chegavas sorridente? Ah! Alcione, não podes compreender todo o veneno que me lançaste nalma confiante. Jamais poderia ima­ginar que Paris te transformasse o espírito, a ponto de olvidar nossos compromissos e contrariar tua mãe enfêrma, cuja evidente preocupação era aban­donar a capital francesa para voltar à vida simples de Ávila, onde havíamos afagado tantas esperanças e sido tão felizes!...

A moça, depois de prestar muita atenção aos seus gestos e palavras, sentenciou:

— Não devias ter ido tão longe no teu julga­mento. Agora que nos reencontramos para nos compreendermos de uma vez para sempre, devo tudo dizer com franqueza. Sabes quem era aquêle ho­mem que me recebeu de braços abertos, naquela manhã?

Deteve-se ante a muda expectação do companheiro e prosseguiu:

— Aquêle homem era meu pai!...

— Teu pai! — exclamou Clenaghan aterrado.

E ela pausadamente começou a relatar todos os acontecimentos de Paris, a partir do instante em que a enfermidade do padre Damiano lhe impusera desdobrar-se em tarefas mais práticas. À medida que se desdobravam as revelações, o rosto de Carlos mais se anuviava, O ex-sacerdote sempre reco­nhecera na jovem as qualidades mais primorosas, mas não e nunca a supusera capaz de tamanha renúncia. Extremamente comovida com a evocação de suas reminiscências dolorosas, Alcione rematava:

— Não acreditas que tenha cumprido meu dever sagrado? Não admitas que meu coração pu­desse haver esquecido a tua dedicação e o teu amor. Desde o nosso primeiro encontro, venho arquite­tando um meio de enriquecer-te a alma de idea­lismo e confiança. Sempre sonhei, para o teu caminho, um mundo de felicidades nobilitantes. Antigamente, tuas obrigações sacerdotais. impuseram-nos a separação; mesmo assim, porém, vi­brava na ansiedade ardente de embelezar teu ro­teiro de nobres aspirações. Lutei para que não abandonasses o que sempre considerei uma sublime tarefa; entretanto, hoje busco harmonizar minhas idéias com a tua decisão e sinto que a consciência pura é o melhor dote que te posso trazer para a nossa eterna aliança...

Ouvindo-a, generosa e confiante, Carlos Cle­naghan sentia-se pequenino e miserável.

— Perdoa-me!... — disse, banhado em lágri­mas de sincera compunção.

— Compreender-te-ei agora por tôda a vida —esclarecia Alcione de olhar muito lúcido —, mas... por que choras? Temos ainda numerosas oportuni­dades de servir a Deus e a nós mesmos. Prometi que te procuraria logo que Jesus me permitisse o júbilo do dever cumprido e aqui estou para cuidar da tua, da nossa felicidade. Creio que não tens qualquer necessidade material, mas o marido de minha irmã, que, aliás, desconhece o passado que te confiei em caráter confidencial, põe à tua dispo­sição bastos recursos para grande prosperidade na América. Se quisesses, poderíamos partir talvez no ano próximo, recomeçando o destino numa terra nova. Lembro que minha mãe sempre suspirou pelo Novo Mundo... Quem sabe sua alma bondosa me inspira, agora, o caminho mais certo, acenan­do-nos com a possibilidade de partir?... Henrique de Saint-Pierre espera-te como a um irmão. Além disso, tenho também regular pecúlio que deposito em tuas mãos. Não tenho outra preocupação direta, presentemente, a não ser tu mesmo!...

E observando que o moço mantinha-se calado, em pranto, prosseguia com solicitude:

— Releva-me se te falo assim abertamente. A confiança de um coração não pode morrer. Dize-me, pois, se queres partir, para tentar vida nova sob as bênçãos de Deus. Estou certa de que viveremos felizes, em perpétua e santa união...

— Não posso! — sussurrou Clenaghan lasti­mosamente.

— Por quê? — indagou Alcione plenamente confiante.

Ele esboçou um gesto timido, revelando a ver­gonha que o assomava e explicou com indizível tristeza:

— Estou casado há mais de dois anos.

A moça sentiu que o sangue lhe gelava nas veias. Jamais pudera admitir que o dileto do seu coração fôsse capaz de olvidar antigos juramentos. O inopinado da revelação esmagava-lhe a alma tôda. Lágrimas ardentes, arrancadas do íntimo, afloravam-lhe aos olhos, mas, na meia sombra da noite, buscava dissimulá-las cuidadosamente.

Vendo que tardava em manifestar-se, Cle­naghan apertou-lhe a mão e perguntou com a delicadeza de uma criança:

— Poderás perdoar-me outra vez?

A filha de Madalena recuperou as energias intimas e falou com serenidade:

— Não te preocupes comigo, Carlos. Reco­nheço, agora, que a vontade de Deus é outra, a nosso respeito. Não chores nem sofras.

Extremamente comovido com aquela prova de humildade e renúncia, o ex-sacerdote ponderou:

— Sou casado, Alcione, mas não feliz... Nun­ca pude esquecer-te. Certamente, Deus nos criou para a união eterna. Cada coisa do lar, cada por­menor da vida doméstica lembra-me teus sentimentos nobres, porqüanto minha mulher não pode substituir-te.

— Sim — disse a moça com desvelado carinho —, também creio que há um casamento de almas, que nada poderá destruir. Este deve ser o nosso caso. O mundo nos separa, mas o Altíssimo nos reservará a aliança eterna do céu.

O pupilo de Damiano tinha o peito oprimido por indefinivel angústia. Coração prisioneiro das indecisões de quantos se afastam do dever divino, voltou a dizer:

— Quem sabe, Alcione, poderíamos repudiar as algemas terrestres e construir nossa felicidade longe daqui?... Minha mulher e eu vivemos em rixas constantes, atravesso a vida sem paz, sem uma dedicação verdadeiramente sincera. Estou pronto a seguir-te, desde que aproves êste recurso extremo, em detrimento de meus compromissos atuais.

— Isso nunca! — exclamou a filha de Mada­lena com bondade enérgica — amemos os trabalhos de nossa estrada, por mais duros que nos pareçam. Jamais construiríamos um ninho de ventura e de paz, na árvore do crime. Deus nos dará coragem nesta fase difícil. A existência na Terra não cons­titui a vida em sua expressão de eternidade. Quan­do o Senhor desatar os laços a que te prendeste num impulso muito natural e humano, encontrarás de novo meu coração... A esperança é invencível, Carlos. Tôda inquietação, tôda amargura, chegam e passam. A alegria e a confiança no porvir eterno permanecem. São bens do patrimônio divino no plano universal...

Ouvindo-lhe os conceitos profundos, oriundos da fé poderosa que lhe caracterizava o espírito, Clenaghan chorava num labirinto de remorso e so­frimento.

— Se fôr possível — prosseguia a moça com generosidade — desejaria conhecer tua companheira de lutas. Talvez pudesse incliná-la a melhor com­preensão das tuas necessidades. Ás vêzes, basta uma simples conversação para renovar a opinião de uma criatura. Não crês que eu possa contribuir, de algum modo, em teu favor, com semelhante aproximação?

O infortunoso Carlos sentia-se comovido nas fibras mais íntimas, com o delicado oferecimento, redargüindo em tom melancólico:

— Quitéria não é digna dessa esmola da tua bondade. Basta dizer-te que, conhecendo a ligação afetiva existente entre nós, pelas minhas sucessivas referências e por informações de antigas amizades nossas, em Ávila, sempre alude à tua pessoa com laivos de ironia e rancor.

A filha de Cirilo entrou em silenciosa medita­ção. O destino não lhe permitia nem mesmo aproximar-se do lar edificado pelo eleito de sua alma. Sua afetividade, bem como o espírito de renúncia não poderiam ser compreendidos. Restava-lhe re­gressar à casa de Beatriz, conformar-se com a nova situação e esperar por Clenaghan num outro mun­do, aonde fôsse conduzida pela mão da morte. Longa pausa estabelecera-se entre ambos. Foi ai que lhe nasceu a idéia de consagrar-se à solidão da vida religiosa, no intuito de trabalhar no seu elevado idealismo.

— Não ficas magoada pelas minhas confis­sões? — perguntou o ex-sacerdote angustiado.

— De modo algum — respondeu, esforçando-se por lhe parecer satisfeita —, tua espôsa tem razão. Depois de visitar o velho sítio de minha infância e a casinha tôsca onde minha mãe, tantas vêzes, me exemplificou a resignação, voltarei à França sem perda de tempo.

— Quando nos veremos novamente? — inter­rogou êle inquieto.

— A vontade de Deus nô-lo dirá mais tarde. Até lá, meu querido Carlos, não esqueçamos a de­dicação aos nossos deveres e a obediência aos di­vinos desígnios.

— Deixas-me em Castela, amargurado para sempre. Creio que jamais poderei apagar o remorso que tisnará minhalma doravante. Aprende­rei, duramente, a não atender aos primeiros impulsos do coração. Se fôsse menos precipitado no julgar, poderia oferecer-te, agora, a minha fide­lidade perene. Esqueci, porém, a prudência salva­dora e mergulhei num mar de angústias torturan­tes. Andarei, na Terra, como náufrago sem pôrto.

E terminando amargamente as suas considera­ções, rematava:

— Pede a Jesus por mim, para que o deses­pêro não me faça mais infeliz.

— Não te percas em semelhantes idéias — ex­clamou a filha de Madalena, completamente senhora de si —, estamos neste mundo, de passagem para uma esfera melhor. Por certo que a nossa felicidade não se resumiria em atender, por algum tempo, aos nossos desejos, com o olvido das mais nobres obri­gações. É indispensável encarar as dificuldades com ânimo decidido. Luta contra a indecisão, pela certeza de que Deus é nosso Pai, misericordioso e justo... Se nos vemos novamente separados, é que há trabalhos convocando-nos a testemunhos mais decisivos, até que nos possamos reunir nas clari­dades eternas.

Clenaghan prestava acurada atenção a cada uma de suas palavras sábias e carinhosas. Em seguida a uma pausa, Alcione prosseguia cheia de amor e compreensão:

— Não maltrates tua mulher, sempre que o seu coração não te possa entender integralmente. Quando assim fôr, fase por ver nela uma filha. Quando não filha de tua carne, filha de Deus, seu e nosso Pai. A bondade liberta o ódio e a deses­peração agrava os laços mesquinhos. A confiança em que o Pai Celestial nos ajudará, nos testemu­nhos diários, transforma nosso espírito para uma vida mais alta, ao passo que a revolta e a dureza nos prendem espiritualmente ao lôdo das mais bai­xas provações. Ainda que tua companheira seja ingrata, perdoa-lhe como amigo compassivo. Ne­nhum de nós está sem pecado, Carlos. Por que con­denar alguém ou agir precipitadamente, quando também somos necessitados de amor e de perdão? Vive no otimismo de quem trabalha com alegria, confiante no Divino Poder. À nossa frente desdo­bra-se a eternidade luminosa!... Embora separa­dos no plano material, nenhuma fôrça da Terra nos desligará os corações. Muitas obrigações po­derão encarcerar-nos transitoriamente na Terra, mas o elo do amor espiritual vem de Deus, e contra êle não prevalecem as injunções humanas...

Ante as observações judiciosas de Alcione, Car­los pôde reconfortar-se, de algum modo, para reto­mar a luta purificadora. Só muito tarde, separa­ram-se em penosas despedidas.

A filha de Madalena, disfarçando a dor que a empolgava, cumpriu rigorosamente a promessa. Depois de beber na taça da saudade, revendo os antigos sítios das primeiras esperanças, sem mesmo se dar a conhecer às relações de outros tempos, re­gressou a Vigo, onde se demorou quase um mês em meditações silenciosas e doridas. Sua permanência em Ávila poderia acarretar complicações à vida doméstica do homem escolhido. A jovem espôsa de Clenaghan, possivelmente, criaria pesadelos de ciúme, sem justificativa. Diàriamente, à tardinha, Alcione aproximava-se da praia, contemplando as velas pandas que se afastavam no estendal das águas movediças. Profunda saudade dominava-lhe o coração. Após longos dias, nos quais procurava rememorar, uma a uma, as velhas advertências do Padre Damiano, quando na vida religiosa, resolveu retirar-se do mundo para a soledade dos grandes pensamentos. Não desejava, de nenhum modo, ati­rar-se ao repouso permanente da sombra, mas, sen­tindo-se na plenitude de suas energias orgânicas, refletia que não era lícito pensar na morte do corpo e sim no melhor meio de atender ao trabalho, de coração voltado para Jesus. Se partisse em com­panhia de Beatriz, naturalmente não lhe faltariam as bênçãos da vida familiar, mas, o coração não se conformava com a idéia de repouso constante, O ‘destino não lhe dera um lar próprio, onde lhe fôsse possível consagrar-se inteiramente ao homem ama­do e aos filhinhos do seu amor. Seus pais já haviam partido para uma vida melhor, o irmão adotivo lhes fôra no encalço. Na condição de mulher, tomaria, então, o hábito religioso, a fim de atender aos tra­balhos do Cristo. Não faltariam os deserdados, os doentes, os enjeitados, para quem Jesus continuava passando sempre, nas estradas do mundo, distri­buindo energias e consolações. Consagrar-se-ia ao serviço de socorro às criaturas, em benefício dos que necessitassem. Iria ao encontro do Mestre, pelo aproveitamento mais nobre do tempo de sua vida.

Nessa disposição espiritual, regressou a Paris, onde a irmã a esperava ansiosa e saudosa.

Apesar de serena e confortada na fé, não podia mascarar o abatimento e a tristeza que lhe paira­vam na alma sensível, e foi com lágrimas que re­latou à Beatriz o resultado da longa excursão. A espôsa de Saint-Pierre, visivelmente emocionada, buscava confortá-la:

— Tudo isso passará com o tempo. Na Amé­rica hás de achar lenitivo ao coração sofredor.

Mas a filha de Madalena comunicou-lhe a re­solução de tomar outro rumo. Vestiria o hábito religioso, dedicar-se-ia ao coração de Jesus, en­quanto lhe restassem fôrças no mundo. A irmã tentou dissuadi-la.

— E nosso lar? — perguntava a filha de Su­sana, ansiosa por lhe modificar a decisão. — Como nos seria dolorosa a falta de tua companhia.

Alcione quis dizer que se sentia quase só, dis­tanciada das afeições primitivas, mas, para não suscetibilizar a irmã devotada, objetou solícita:

— Pedirei, mais tarde, para visitar a América e passarei contigo o tempo que fôr possível, mesmo porque não é justo olvidar que teus futuros filhi­nhos serão também meus.

E não houve como lhe modificar o intento.

De nada valeram as exortações de Henrique, os rogos da irmã, os carinbosos pedidos dos servos.

A filha de Cirilo tinha uma palavra amável e um sincero agradecimento para todos, mas justificava o caráter sagrado de suas intenções.

A mudança de Henrique de Saint-Pierre para o Novo Mundo já estava definitivamente aprazada, quando Alcione assentou a data do seu ingresso num modesto recolhimento de freiras carmelitas.

Na véspera, sem que alguém o soubesse, visitou o túmulo da genitora, levando-lhe a homenagem do seu respeito filial, naquele instante grave da sua vida. Defronte do sepulcro, de alma colada às re­cordações afetivas, pôs-se de joelhos e monologou baixinho:

— Ah! vós que experimentastes largos anos de reclusão e sacrifício; vós, minha mãe, que fôstes tão devotada e carinhosa, ajudai-me a levar a Jesus o voto silencioso de fidelidade até ao fim dos meus dias! Não me desampareis nas horas escuras, quan­do a saudade se fizer mais amarga ao meu coração. Inspirai-me pensamentos de fé, paciência e com­preensão das coisas divinas. Auxiliai-me nos tra­balhos, abençoai-me nos testemunhos. Não esque­çais, no céu, da filha a quem tanto amastes na Terra!...

Em seguida à prolongada meditação, voltou ao palacete da Cité, despediu-se afetuosamente de todos os servos e, já na manhã imediata, Saint-Pierre e sua mulher abraçavam-na, compungidos, à porta do mosteiro.

Um ano de noviciado passou, no qual a filha de Madalena deu provas exuberantes de coração puro e de consciência ilibada.

No dia que precedeu a resolução definitiva, a superiora chamou-a com austeridade, num gabinete particular, e sentenciou:

— Minha filha, estás francamente decidida a abandonar o mundo e os seus gozos?

Sim, madre — respondeu, humildemente.

— Deves saber que coisa alguma do passado te poderá acompanhar até aqui.

A moça fêz um gesto expressivo e rogou:

— Compreendo-vos; entretanto, pediria per­missão de levar para minha cela um objeto muito caro.

— Que é?

— Um velho crucifixo que pertenceu a mi­nha mãe.

— De acôrdo.

Depois de uma pausa, a madre abadessa voltou a perguntar:

— Que outros pedidos tens a fazer?

A nova professanda lembrou-se de Carlos, que não poderia excluir do coração e de Beatriz, a quem se sentia ligada por santo reconhecimento, e in­dagou:

— Desejava saber se poderei participar de algum trabalho na América, mais tarde, e se poderei futuramente pleitear minha transferência para algum convento de Espanha.

— Tudo isso é possível — esclareceu a supe­riora.

E os teus bens?

— Assinarei amanhã o título de doação do que possuo, a benefício da nossa Ordem.

— No momento crítico de tua resolução, Al­cione Vilamil deve estar morta para o mundo profano. Que nome desejas adotar na suprema união com Cristo?

— Maria de Jesus Crucificado — disse, cân­dida e naturalmente.

Terminou o interrogatório.

No dia seguinte, pela manhã, em solene ritual, cercada pela admiração das companheiras e de nu­merosos clérigos, a filha de Madalena ajoelhou-se ante o altar de Jesus coroado de espinhos, e fitando o maravilhoso símbolo da cruz, de olhos brilhantes e confiantes, repetiu enternecida a frase sacra­mental:

“Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a sua palavra.”

 


7

A despedida

Estamos nos primeiros anos do século 15III. Alcione Vilamil, agora Irmã do Carmelo, é um exemplo vivo de amor cristão. Tendo passado dos quarenta anos, a fisionomia conservava a beleza da madona esculturada pela virtude. Muitas vêzes, na solidão de si mesma, nos primeiros dias de reclusão, refletiu se não teria sido melhor acompanhar Bea­triz à América. O amor de Carlos, porém, lhe falava mais alto à consciência. Tal como outrora a genitora, em seus padecimentos, absolutamente prêsa à lembrança do marido, a filha de Cirilo sentia-se em perene viuvez de coração. A seu ver, não poderia seguir para a América, onde seria naturalmente convocada ao espírito de novidade, quando sabia o eleito de sua alma ligado ao solo de Espanha. Em sua luminosa compreensão da vida, via em Clenaghan um fraco, não um crimi­noso; e no recôndito dalma alimentava a esperança de aproximar-se um dia do seu lar, de maneira a lhe ser útil. Quando êle a visse envergando o há­bito religioso, certo que a espôsa lhe respeitaria a condição, abstendo-se de qualquer sentimento menos digno a seu respeito. Inconcebível, então, a ten­tativa de novas atividades na América, quando en­trevia possibilidades de auxiliar o pupilo de Da­miano em suas necessidades do coração.

Não obstante êsse poderoso magnetismo do amor, também nutria o sincero propósito de visitar a irmã, no Connecticut, plano êsse que ainda não fôra possível realizar, dado o nobre serviço a que se afeiçoara, para maior júbilo das companheiras.

Depois de pronunciar o voto definitivo, não esteve em França mais que um ano e transferiu-se para a Espanha, onde trabalhou primeiramente em Granada, por mais de um lustro, em favor das crianças desvalidas e dos desventurados da sorte. Por sua dedicação e humildade, convertera-se numa orientação viva para as irmãs de apostolado. Ge­ralmente, não faltavam as intrigas, o esfôrço in­grato da inveja e da maledicência, tão comuns nos conventos da época; ela, porém, sem exorbitar da sua conduta evangélica, desconhecia tôdas as ativi­dades da sombra, para cogitar sômente da sua tarefa espiritual com o Cristo. Por Isso mesmo, sua exemplificação constituía um símbolo precioso para a comunidade. Ao seu contato, inúmeras com­panheiras renovavam as concepções próprias. Sua dedicação ao serviço contagiava outros corações, que se sentiam seduzidos pela grandeza dos seus atos e ideais, dentro do Evangelho. Jamais conse­guira efetivar o velho desejo de visitar Beatriz, mas, em compensação, criava, em tôrno da sua per­sonalidade simples e poderosa, um verdadeiro co­légio de irmãs pelo coração, que a admiravam e seguiam devotadamente. Depois de longo tempo, conseguiu fixar-se na comunidade carmelitana de Medina Del Campo. Antes, porém, obedecendo a secreta ansiedade do coração, visitou Ávila, lá se demorando mais de uma quinzena. No entanto, com grande surprêsa, não mais encontrou Cle­naghan, sendo informada de que o comerciante irlandês, após enorme infortúnio doméstico, reti­rara-se para a França, deixando a mulher, que lhe havia conspurcado o lar e o nome. Alguns amigos chegavam a declarar que o sobrinho de Damiano estava resolvido a retomar a batina, se conseguisse permissão das autoridades eclesiásticas. Outros opinavam que o ex-padre pretendia insular-se nal­gum remoto convento, onde pudesse consagrar o tempo às meditações divinas.

Alcione tudo ouviu, lamentando profundamente, mas, abstendo-se de qualquer comentário, com aque­la discrição que lhe assinalava as atitudes. Entre­tanto. intimamente, examinava o assunto sem exi­mir-se a grande estranheza. Com que intenção viajaria Carlos para a França? Pretenderia revê-la? Essa hipótese não era plausível, pois êle estava mais que informado do seu plano de mudança para o Novo Mundo. Dolorosas considerações lhe vieram ao espírito sensível, mas, atendendo às advertências santas da fé, buscava entregar a Jesus as penas e anseios de cada dia, invocando-lhe o socorro divino.

Recolhida em Medina Del Campo, não nas som­bras do claustro, mas nos trabalhos nobres do co­ração que se consagra a Jesus, nunca mais teve notícia de Carlos, embora os anos perpassantes lhe trouxessem renovadas esperanças em cada dia.

Na época em que nos encontramos, Maria de Jesus Crucificado desempenha no convento a tarefa de subpriora, por fôrça da enfermidade rebelde e dolorosa que, de há muito, prende ao leito a madre-superiora. A instituição de Medina é realçada pelo seu espírito de atividade. Extensa porção de terra é aproveitada em trabalhos fecundos, que aprovei­tam aos desvalidos. A infância desamparada ali encontra escola ativa para a educação em seus prismas essenciais. Mães sofredoras recebem es­forçada cooperação das Filhas do Carmelo. Alcione é a alma de tôdas as tarefas, mas, por isso mesmo, começou a ser alvo do despeito e da perseguição gratuitos. Enquanto a velha superiora repousa em tratamento, sua atividade transformadora converte a casa num templo de trabalho e de alegria.

Quando sua ação benemérita começa a dilatar o círculo de trabalhos, eis que o Padre Geral da Ordem, falsamente informado, designa um capelão de Madrid para substituir o probo religioso que cooperava com a filha de Madalena em suas obras renovadoras, e a situação se modifica inteira­mente.

Frei Osório chega a Medina Del Campo com a secreta recomendação de averiguar o que existe sôbre a vigorosa atuação da carmelitana humilde. Seu ingresso na casa dá motivo a fortes preocupa­ções. E com efeito, no curto espaço de dois meses, algumas companheiras de Alcione levavam-lhe quei­xas bem amargas, a respeito da conduta do novo sacerdote. Osório ainda não havia atingido os cin­qüenta anos; mas, por suas atitudes exteriores, dir-se-ia um homem profundamente amadurecido nas experiências do mundo. Isso, porém, resultava tão só do velho hábito de afivelar ao rosto a más­cara da santimônia. No íntimo, não passava de um ser viciado e perverso, para quem o prestígio da autoridade era válvula de escapamento para os próprios desvarios. A princípio, esforçou-se por obter algum testemunho menos digno, comprome­tedor da subpriora; todavia, em cada coração, Al­cione estava entronizada como em altar de amizade e gratidão puras. A instituição, porém, ao con­trário de suas congêneres, dava-lhe a impressão de uma casa generosa do mundo, sem as características de monastério impenetrável, destinado ao recolhi­mento da piedade preguiçosa, O capelão inspetor começou a manifestar profundo desagrado por tudo quanto via. Aquêle intercâmbio constante, com o mundo secular, tirava ao núcleo carmelita a feição freirática dos demais conventos da ordem. As reli­giosas eram mais ativas e por isso mais habilitadas para conhecer as fraquezas humanas e dar combate às tentações. Frei Osório achava-se num ambiente para êle desconhecido, até então. Outras visitas des­sa natureza sempre lhe facultavam ensejo de nume­rosos regalos. A pobre freira afastada do mundo era, invariàvelmente, um campo vasto de mesquinha exploração para os seus sentimentos lúbricos. Ali, no entanto, a coisa mudava de figura. A subpriora, nas reuniões internas, comentava os ensinamentos de Jesus, em desacôrdo com os teólogos; prodiga­llzava oportunidades de serviço a cada companheira, como lhe parecia melhor, distribuía eqüitativamente o trabalho, de acôrdo com as vocações. Era impos­sível desconhecer o caráter inteligente e precioso da comunidade, mas Frei Osório, não encontrando a esperada vasa para as suas aventuras indignas, prometeu a si próprio modificar o espírito funda­mental da instituição.

Seu esfôrço caviloso começou no confessionário, onde empregou os mais baixos ardis para convencer uma que outra religiosa a lhe aceitar as indecorosas propostas. As pobres criaturas, aturdidas com as maquinações diabólicas do conquistador, procura­vam a nobre amiga, ansiosas dos seus conselhos. Alcione sentia-se amargurada. Não podia conser­var, sem perigo, um lôbo entre as ovelhas; por ou­tro lado, qualquer reclamação aos superiores da Ordem poderia ser interpretada como rebeldia. De­pois de longas semanas de meditação, resolveu sub­meter o caso ao critério da venerável madre-supe­riora. A bondosa velhinha, no seu leito de sofri­mento e resignação, ouviu alarmada a confidência penosa da filha de Madalena.

— Que nos aconselhais? — dizia Alcione como­vida. — A vossa experiência, minha boa madre, é para nós outras um seguro roteiro!

A anciã doente endereçou-lhe um olhar triste e sentenciou:

— Ah! minha filha, por desejar o caminho reto, muito sofri neste mundo, desde os primeiros tempos de noviciado. O flagelo da Igreja continua sendo os sacerdotes indignos. Quem sabe podere­mos chamar Frei Osório à senda do Cristo?

— Não considerais razoável pedir ao Geral que nos mande outro capelão?

— Não — respondeu a enfêrma —, se o fizés­semos, despertaríamos suspeita imerecida e, então, talvez tivéssemos êste mau religioso em nossa companhia por muitos anos... Será preferível que o chames, em particular, e lhe peças, em nome de Jesus, que não minta aos compromissos assumidos.

A filha de Cirilo quis responder que não se sentia com autoridade para admoestar a ninguém, mas a noção de obediência fê-la calar-se, humilde. A priore, todavia, parecendo adivinhar-lhe os pen­samentos secretos, acentuou:

— Naturalmente, minha filha, não vais exor­tar um sacerdote que deveria saber, muito bem, cumprir a rigor os seus deveres, mas apelar para um irmão, a fim de que nossa casa não seja perturbada. Sinto que as circunstâncias me indicam semelhante tarefa, mas, encontro-me bastante debi­litada para argumentar como convém. Além disso, tôdas reconhecemos que o Senhor te favorece com luminosas inspirações nos ensinos evangélicos. Com­preendo quanto esta prova te custa, mas não vejo outra irmã que possa substituir-te.

Maria de Jesus Crucificado calou-se, sem mais dizer.

Uma semana se passou, entre reclamações das freiras assustadas e preces fervorosas com que Alcione rogava a Jesus o poderoso socorro de sua assistência, de molde a desempenhar a incumbência que lhe fôra cometida.

Depois disso, valendo-se de um momento em que o sacerdote se encontrava só, na Capela, a filha de Madalena revestiu-se de coragem e lhe pediu licença para algumas palavras, em particular.

— Frei Osório — começou humildemente —, sei, de antemão, que não tenho capacidade para advertir a ninguém; sou fraca e pecadora; entre­tanto, ouso vir à vossa presença, a fim de apelar para os vossos sentimentos de irmão.

— De que se trata? — perguntou o padre abruptamente.

Ela o fixou num olhar muito significativo e acrescentou:

— Venho pedir a vossa cooperação a favor das muitas jovens que aqui se encontram sob a nossa responsabilidade.

Percebendo a natureza do caso, o interlocutor assumiu uma atitude hipócrita, como soía fazer, e replicou:

— Sou acusado de alguma falta? Desejaria conhecer a caluniadora.

— Ninguém vos acusa — esclareceu a religiosa, nobremente —, temos bastante consciência de nos­sas próprias fraquezas, para nos arvorarmos, im­pensadamente, em censoras de nossos irmãos. Ape­nas solicitamos ao vosso coração, em nome de Jesus, que nos auxilie com o entendimento de um pai.

— Devo dizer-lhe, irmã, que considero a sua atitude como um atrevimento.

— Talvez seja — murmurou Alcione, humilde —, mas sou a primeira a pedir-vos perdão, espe­rando me releveis pela intenção com que cometo esta ousadia.

— Este apêlo deixa subentender graves injú­rias — disse Osório, hipocritamente — e estranho muito que tivesse coragem para tanto.

— Já vos disse, padre, que não tenho autori­dade para admoestar a ninguém. A vós me dirijo como irmã.

Contrariado em seus propósitos inferiores, o sacerdote contemplou-a irado e redargüiu:

— Não a reconheço como irmã do Carmelo, sim como inovadora, passível de severa punição. Suas interpretações do Evangelho constituem um atestado de desobediência. Esta casa mais se asse­melha a um albergue mundano e creio que tôda perturbação se deve à sua influência anárquica. Esta instituição, de há muito, não vive de confor­midade com as regras, mas ao sabor de seus ca­prichos.

A interlocutora permanecia em silêncio, amar­gamente emocionada. Interpretando essa atitude como sinal de pusilanimidade, o sacerdote con­tinuou:

— Onde já se viu semelhante liberdade, qual a vemos a dentro dêstes muros? Ainda não ouvi qualquer expressão de acatamento aos nossos teólogos; a comunidade, sempre interessada em atender ao mundo, não encontra tempo adequado ao serviço de adoração. O nosso compromisso é de obediência absoluta à autoridade!...

As observações eram feitas com tanta acri­mônia que Alcione se viu constrangida a tomar a defesa do Evangelho, pelo muito amor que consa­grava ao seu conteúdo divino. Por si mesma, expe­rimentava tôda a extensão da fragilidade humana e jamais se animaria a discutir; entretanto, à luz da verdade cristã, outra deveria ser a sua atitude. Não podia considerar virtude a complacência com o mal. Osório invocava o próprio Cristo, no sen­tido de acobertar ações mesquinhas, e ela precisava defender a lição pura e simples do Mestre, sem perder a expressão de amor que lhe vibrava nalma. Como tantas vêzes lhe acontecera noutros tempos, Alcione procurou encará-lo, como a um doente e necessitado de luz. Depois de o envolver num olhar quase maternal, falou serenamente:

— Tôda autoridade humana, quando inspirada na justiça, deve ser venerável a nossos olhos; todavia, padre, é preciso não esquecer que o nosso primeiro compromisso é com Jesus.

O capelão inspetor experimentou grande sur­prêsa com aquela nova atitude da interlocutora. Falando de si mesma, a religiosa apagava-se nas afirmações humildes, mas, tratando do Cristo, parecia tocada de misterioso poder. Preparando-se para ser ainda mais cruel, asseverou com certa dose de ironia:

— Obrigações com Jesus? Não me parece que a senhora as preze tanto assim. Noto aqui muito maior preocupação com o mundo. As filhas do Carmelo, em Medina, sob a sua atuação prejudicial, não encontram tempo para tratar da alma. O dia inteiro, grande confusão se verifica às portas desta casa. Uma falsa piedade vai estabelecendo a de­sordem. Será isso obrigação com Jesus?

Fitando-o com nobreza de ânimo, ela respondeu:

— Não nos consta que o Mestre se afastasse do mundo para servi-lo, O Evangelho não o apre­senta enclausurado ou recolhido à ociosidade da sombra. Pelo contrário, Jesus atravessou a pé gran­des extensões da Palestina, ensinando e praticando o bem. João Batista, nas anotações de Lucas (1) nô-lo revela como o trabalhador que tem a pá nas mãos. Seu apostolado foi integralmente de realiza­ção e movimento. Era impossível atender à salvação do mundo, afastando-se de suas necessidades. Por essa razão, vemos o Messias entre fariseus e publi­canos, nas festividades domésticas e nos ajunta­mentos da praça pública, dando cumprimento à sua missão de amor. Como poderemos servir à sua causa divina, inclinando-nos à preguiça, sob o pre­texto de uma falsa adoração? Muitas de nós, reli­giosas, deixamos os afetos familiares para consa­grar tôdas as energias ao serviço do Cristo. Mas, de que natureza serão êsses trabalhos? Acreditais, frei Osório, que Jesus necessite de mulheres ocio­sas? Não admitais semelhante absurdo. A ativi­dade do Mestre, a que fomos chamadas, é a de colaboração com o seu devotamento na causa da paz e da felicidade humana. Em tôrno de nossos conventos, há mães que choram sob o guante de necessidades cruéis, criancinhas abandonadas que requisitam socorros urgentes, velhos respeitáveis totalmente desamparados. Seria razoável a conti­nuação das atitudes convencionais de falsa devoção, quando Jesus prossegue, pelos caminhos, animando e consolando? Por vêzes, padre, em nossas missas solenes, quando o luxo dos altares impressiona os nossos olhos, julgo que o Mestre está às portas do Templo, confortando as viúvas descalças e rôtas, que não puderam penetrar no santuário, pela de­ficiência das vestes. Por que manter o rigor das regras humanas, quando o ensinamento da caridade

(1) Lucas, 3:17. — Nota de Emmanuel.

cristã é tão simples e tão puro? Por que repetirmos uma prece mil vêzes, nas festas de Santa Cruz, e negarmos dois minutos de palestra carinhosa ao infortunado? Não seria essa nossa estranha atitude a perfeita personificação daquele sacerdote indiferente, da parábola do Bom Samaritano? Não considero a fé um meio de obter favores do Céu, ao sabor do nosso alvedrio pessoal, e, sim, um tesouro do Céu, que a Terra está esperando, por nosso intermédio.

Profundamente despeitado e surpreendido, Osó­rio aproveitou pequena pausa e objetou:

— Suas idéias denotam exaltação doentia. No desempenho de deveres inerentes ao meu cargo, condeno-as em bloco.

— E que entendeis por vosso cargo? — per­guntou Alcione com intenso brilho no olhar. —Todos os homens dignos têm tarefas respeitáveis, por mais simples que pareçam; um sacerdote, po­rém, recebeu do Céu missão divina. Um padre deveria ser um pai. Entretanto, vêde, os discípulos sinceros escasseiam em tôdas as comunidades, O mundo está cheio de eclesiásticos, mas só pode contar com raríssimos missionários.

— Isto é um insulto à autoridade da Igreja — acrescentou o interlocutor irritado.

— Estais enganado. Minhas afirmativas po­dem ser uma apreciação de nossa miserabilidade neste mundo, mas não podemos esquecer que a Igreja do Cristo é inviolável. Nossas fraquezas não a atingem.

— Vejo que sua opinião é a dos que trabalham atualmente pela destruição da fé.

— Grande é o vosso equívoco, frei Osório. Ninguém destruirá, na Terra, a Igreja de Jesus. Ainda que todos os homens se conluiassem contra ela, o instituto cristão continuaria puro e intangí­vel. Devemos considerar, contudo, que todos os elementos humanos, colocados a seu serviço sôbre a Terra, hão de ser necessàriamente modificados. Nossos templos frios e impassíveis serão transfor­mados mais tarde em casas de amor, como lares de Deus, onde as criaturas possam encontrar o verdadeiro culto da sua inspiração e do seu amor sublime, Os conventos deixarão de ser âmbitos de sombra, para que o Mestre nêles identifique taber­náculos da fé e caridade puras. Nós, monjas, tere­mos interpretado o serviço divino de outro modo, escalonando pelos hospitais, creches, asilos, es­colas.

O capelão contemplou-a assombrado e excla­mou com ironia:

— Com tôda essa veia profética, que nos prediz a nós outros, os sacerdotes?

A filha de Madalena fitou-o com serenidade e sem hesitação redargüiu:

— Vós, por certo, compreendereis, afinal, que os interêsses pecuniários deverão desaparecer das casas consagradas ao Cristo. Por essa época, talvez, vós, os padres, sereis como Paulo de Tarso repar­tindo a tarefa entre o tear e a pregação, para que a Igreja não seja acusada por nossos irmãos de humanidade!... Sereis, talvez, como Simão Pedro, fiel até ao fim, depois do período de negação!

Longe de esperar resposta decisiva e profunda como essa, o delegado do Geral arregalou os olhos e disse colérico:

— A senhora é uma herética!

— Se a sinceridade e a verdade são heresias, para o vosso critério pessoal, honro-me em servir ao Senhor com a minha consciência.

Tomando atitude terrível, qual se maquinasse odiosa vingança, Osório acentuou:

— Ignora que poderei processá-la e punir-lhe o atrevimento?

Sem qualquer vislumbre de receio, a filha de Cirilo respondeu:

— Estou certa de que poderão cair sôbre mim todos os males do mundo; não o estou menos de que Jesus tem todos os bens para me dar.

E, como se iniciasse o sumário dos pontos es­senciais da futura sentença, frei Osório continuou:

— Pela sua desconsideração aos nossos teólo­gos mais eminentes, poderá ser acusada como re­belde e traidora aos princípios da fé, partidária dos diabólicos luteranos, passíveis das mais fortes re­presálias.

— Deus conhece o meu íntimo e isso me basta — murmurou a filha de Madalena, com sincera hu­mildade.

— Por suas interpretações audaciosas do Novo Testamento, a ponto de seduzir diversas compa­nheiras para o seu cisma, a senhora deverá conhe­cer, naturalmente, uns tantos segredos da velha magia.

— O Mestre, por muito amar — acentuou Alcione tranqüila —, foi tido em conta de feiticeiro, por muitos religiosos do judaísmo.

O capelão inspetor dissimulava a grande sur­prêsa que o invadia, de minuto a minuto, pela inesperada resistência, e prosseguiu:

— A senhora tem desviado, na qualidade de subpriora, inúmeras e preciosas dádivas feitas ao estabelecimento, graças a um serviço desordenado de falsa piedade pelo próximo, com descaso com­pleto dos interêsses de Deus.

— Não creio que os interêsses de Nosso Pai Celestial — esclareceu a interlocutora — se adstrin­jam e se agitem entre algumas paredes de pedra; e enquanto estiver a meu cargo qualquer função religiosa, o dinheiro recebido atenderá não sõmente às nossas necessidades, mas, também, às de quantos possam receber os benefícios desta instituição, con­victa como estou de não haver obras sem fé, nem fé sem obras.

— Mas poderá pagar muito caro essa maneira de ver. Não são raros os religiosos condenados por latrocínio.

— Compreendo até onde desejais chegar com semelhantes alegações, mas a verdade é que nada possuo, além do meu hábito.

— Isso não impede que tenha comparsas fora dêstes muros.

Alcione fixou nêle um significativo olhar e acrescentou:

— Não posso impedir o vosso julgamento; todavia, posso afirmar que estou satisfeita com o juízo de Deus, em Consciência.

Reconhecendo-lhe a inquebrantável firmeza, Osório acentuou rancorosamente:

— Denunciá-la-ei ao Santo Ofício. Disponho de poderoso amigo junto do Inquisidor-Mor de Ma­drid, que pode fazê-la expiar tão grandes delitos.

A religiosa manteve-se impassível diante da raivosa e grave ameaça, murmurando muito tranqüila:

Podeis proceder como quiserdes. Quanto a mim, intercederei por vós em minhas orações e tenho em Jesus um amigo forte, que pode absol­ver-vos.

Em seguida, retirava-se para os serviços in­ternos, deixando o capelão inspetor rilhando os dentes.

No dia seguinte ao incidente, que ficara igno­rado para a própria superiora, em virtude do silêncio a que se recolhera a filha de Cirilo, frei Osório viajou para Madrid, arquitetando os planos mais perversos. Depois de apresentar capcioso rela­tório ao Geral da Ordem, procurou o seu amigo frei José do Santíssimo, um dos auxiliares do Inquisi­dor-Mor, a quem denunciou a religiosa de Medina Del Campo, solicitando, com empenho, o emprêgo de sua influência para que Maria de Jesus Cruci­ficado fôsse punida por suas tendências luteranas, recebendo aprovação aos seus propósitos sinistros.

Frei José do Santíssimo era Carlos Clenaghan, transformado em jesuíta. Depois da tragédia conjugal em que sentira espezinhados os seus brios de homem, o pupilo de Damiano voltara à vida reli­giosa, como um derrotado da sorte, em supremo desespêro. A princípio, lutara com certa dificuldade para conseguir seu intento, mas, a doação de todos os seus bens à Companhia de Jesus lhe abrira as portas da famigerada comunidade dos inquisidores. Acreditava que Alcione estivesse feliz na América, talvez casada com um homem digno de suas quali­dades de santa e, deixando-se levar pela desespe­ração, procurou instalar-se no Santo Oficio, a fim de perseguir os que lhe haviam infelicitado o lar honesto. Coração amoroso embora, Clenaghan es­tava agora completamente enceguecido pelo ódio. Sentindo-se um náufrago nos planos da vida, não encontrava em sua fé fôrças para confiar plena­mente em Cristo e dava pasto às mais venenosas disposições de vingança. Depois de alguns anos em que demonstrara hostilidade franca à sociedade humana, foi admitido à posição de relêvo pelo In­quisidor-Mor da capital espanhola, num cargo de confiança, em cujo desempenho conseguira realizar seu intento, perseguindo o sedutor da mulher, fa­zendo-o recolher a sombrio cárcere em Córdova. Pouco a pouco, esquecia os nobres ideais do pre­térito. As antigas palestras de Ávila, as obser­vações do tutor, os conselhos e a exemplificação de Alcione dormiam-lhe no coração, meio esqueci­dos. Por vezes, interpelava a si mesmo se não teria sido demasiadamente sentimental no passado dis­tante. A atmosfera pesada e sufocante dos interês­ses mesquinhos do mundo entorpecia-lhe o espírito.

Recebendo a queixa de frei Osório, um de seus colaboradores fiéis na perseguição movida aos de­safetos de Castela-a-Velha, o auxiliar do Inquisidor prometeu-lhe integral apoio sem nenhuma hesi­tação.

E, por isso mesmo, o capelão inspetor, apos­sando-se de alguns documentos, voltou a Medina acompanhado por dois guardas incumbidos de efe­tuar a prisão da religiosa denunciada. Osório, entretanto, conhecendo o grau de estima que a filha de Cirilo desfrutava entre as companheiras, abste­ve-se de falar em medida tão grave, deliberando comunicar que a irmã do Carmelo seria levada a Madrid para algumas admoestações necessárias.

Para êsse fim, determinou se realizasse uma assembléia interna, à feição das que se verificavam no Capítulo, e, logo que reuniu a congregação, co­meçou a falar com acrimônia:

- Solicitei a reunião das dedicadas servas do Cristo, que se abrigam nesta casa, para comunicar que o nosso muito digno Padre Geral, de comum acôrdo com outras autoridades das virtuosas filhas do Carmelo, deliberou convidar a Subpriora Maria de Jesus Crucificado a comparecer a Madrid, para receber algumas instruções indispensáveis à admi­nistração dêste convento. Como capelão inspetor, fui obrigado a expor perante os sapientíssimos diretores da Ordem as deficiências desta instituição, onde os serviços da fé têm sido grandemente sacri­ficados pelo contato quase incessante com o mundo profano. A longa enfermidade da superiora deu azo a que sua substituta ameaçasse esta obra por excesso de idealismo. O intercâmbio com os pro­fanos resulta sempre em escândalo e nas cruéis ten­tações de contato com os impenitentes. Assumindo o compromisso de orientar as vossas atividades, tenho de agir com a prudência de um pai, a fim de que não percais a graça do Senhor. Nossa irmã, portanto, será devidamente admoestada e receberá, em breve tempo, as novas normas de serviço da instituição, esperando eu que compreendais a exce­lência desta medida, com o espírito de humildade que sempre foi o luminoso apanágio das servas do Carmelo. No entanto, sem trair a caridade da Igreja, a Subpriora tem a palavra para qualquer explicação que considere oportuna, perante esta assembléia.

Alcione percebeu o véu da hipocrisia a ocultar a hediondez daquela atitude. As companheiras contemplavam-na, ansiosas. A maioria, conhecedora do condenável procedimento do sacerdote, aguar­dava com interêsse a sua reação justa. Mas, num minuto, a filha de Madalena compreendeu que, abrir luta, seria atirar a comunidade de moças frágeis contra inimigos perversos e poderosos. A seu ver, devia caminhar sôzinha para o sacrifício. Enquanto ouvia os conceitos fingidos do inspetor, lembrava o velho padre Damiano. À frente dos olhos da ima­ginação, rememorou as reuniões carinhosas do am­biente doméstico de Ávila e pareceu ouvir as res­postas do religioso às suas perguntas infantis, quando lhe dissera que o circo do martírio para os cristãos sinceros era agora o mundo, e que as feras seriam os próprios homens. Deparava-se-lhe o en­sejo de verificar a exatidão daquele asserto. Frei Osório, que dissimulava tão bem o verdadeiro móvel da sua animosidade mesquinha, certamente disfar­çava, em admoestação, alguma pena mais dolorosa e mais cruel. Não desdenharia, porém, o testemunho que o Senhor lhe oferecia. Longe de envolver as amigas e irmãs num movimento geral de confusio­nismo religioso, levantou-se dignamente depois de interpelada, e murmurou:

— Para mim, frei Osório, tôdas as humilha­ções serão poucas, como todos os nossos testemunhos de amor e reconhecimento a Jesus nunca serão devidamente dilatados. Estou pronta a atender vos­sas ordens. Nada mais tenho a dizer.

Amarga expressão de desânimo abateu-se so­bre as companheiras. Com ar de triunfo, o capelão voltou a dizer:

— Deverá, então, a Subpriora estar prepa­rada para seguir amanhã, ao romper dalva.

A assembléia dissolveu-se sob penosas impres­sões. Mais tarde, Alcione dirigiu-se à cela da vene­randa superiora e, confidencialmente, cientificou-a de todos os fatos. A velha amiga abanou a cabeça, desconsolada, e sentenciou:

— Prepara-te, filha minha, para testemunhos amargurados! Assim te falo, não com o fim de intimidar teu espírito carinhoso e sensível. Falo-te na qualidade de mãe espiritual, prestes a partir dêste mundo e cansada de espetáculos atrozes e de experiências ingratas...

— Ajudai-me, então, minha boa Madre — res­pondeu a filha de Cirilo com grande serenidade esclarecei-me para que corresponda à confiança do Senhor nos transes iminentes.

A respeitável religiosa contemplou-a enterne­cida, abraçou-a e beijou-a com afeto, suscitando-lhe profundas reminiscências da mãezinha inesquecível, e continuou:

— Quando os capelães inspetores falam de admoestação, isso significa fome no cárcere ou suplício nas escuras salas de tormento. É possível que Jesus te poupe o martírio perante os inquisidores cruéis. Para isso, filha, rogarei incessante-mente a proteção de sua misericórdia, em favor da tua alma generosa, mas não creio que te possas eximir da prisão infamante. Todavia, morrer ao abandono nas celas imundas do Santo Ofício é mil vêzes melhor que suportar os olhos despudorados dos maus eclesiásticos que infligem pesadas tor­turas às mulheres indefesas. Sei de irmãs nossas que morreram no segundo ou no terceiro grau de tormento, em completa nudez, por imposição de homens impiedosos.

A filha de Madalena não pôde dissimular sua admiração.

— Geralmente — prosseguiu a interlocutora veneranda — é muito difícil arranjarem um processo regular contra nós, as religiosas, por consi­derar a Inquisição que a nossa atitude represen­taria, no conceito público, um atestado de rebeldia tendente a desmoralizar os princípios da fé. Quase sempre, por essa razão, os religiosos presos apo­drecem no fundo dos cárceres, sem que sejam visi­tados pela pretensa justiça da nefanda instituição, que mancha nossos caminhos neste mundo.

Alcione meditou um momento e murmurou:

— Estou convencida de que Jesus não me abandonará, seja qual fôr o testemunho que me esteja reservado.

— Sim, minha boa filha — afiançou a supe­riora osculando-lhe as mãos com carinho —, Êle está conosco, segue-nos de perto, tal como nos pri­meiros dias de perseguição nas catacumbas. Lem­bremos as virgens que morreram nos circos, des­pojadas de suas afeições, espostejadas pelas feras sanhudas; recordemos as crucificadas entre as fo­gueiras, servindo de pasto aos infames festins cesa­rianos. Tenhamos confôrto em tais angústias, re­lembrando que o próprio Messias foi conduzido, seminu, ao madeiro de nossas crueldades. Lastimo que meu corpo alquebrado não me permita seguir-te no testemunho. Mas o Senhor me concederá fôrças para quebrar as algemas que me prendem ao leito da velhice e da enfermidade, a fim de louvar tua glória!...

A Subpriora, muitíssimo comovida com aque­las palavras sinceras e carinhosas, murmurou, enxugando os olhos:

— Não deveis falar assim, querida Madre! Sou uma simples pecadora e, nessa condição, todos os sofrimentos serão escassos às minhas necessi­dades de aperfeiçoamento espiritual.

A bondosa enfêrma abraçou-a com mais ter­nura, dizendo em seguida:

— Lembra sempre que deixas nesta casa uma velha amiga que te consagra maternal afeição!...

Alcione Vilamil engolfou-se em graves pensa­mentos, e, após alguns minutos, sem trair a serenidade de sempre, pediu à interlocutora:

— Madre, caso não volte a Medina, como devo esperar, cientifico-vos, desde já, de que é possível chegue até aqui algum pedido de informações a meu respeito. Tenho ainda duas amizades muito fortes no mundo. Trata-se de minha irmã, residente na América e de um ex-sacerdote, a quem me sinto ligada por sacrossantos laços espirituais. Caso isso aconteça, peço-vos dar noticias minhas.

A bondosa superiora fêz um gesto, como quem anotava mentalmente a solicitação afetuosa, e a filha de Madalena deu-lhe o último beijo.

No dia seguinte, pela manhã, a Subpriora, entre os dois emissários, punha-se a caminho de Madrid, levando tão sômente o velho crucifixo da genitora e um volume do Novo Testamento. Era tôda a sua bagagem. A viagem não foi muito fácil, atentos os percalços da época; entretanto, terminou sem incidente digno de menção. A religiosa de Medina Del Campo foi recolhida, sem mais nem menos, a uma cela escura e úmida dos cárceres da Inquisição, na capital espanhola.

No momento de ser deixada a sós, um dos ver­dugos que a conduziram ao interior seqüestrou-lhe o Evangelho, explicando:

— A senhora pode ficar com o crucifixo, mas não pode aqui ficar com o Novo Testamento, de vez que é acusada de herética e luterana.

Ela apenas esboçou um gesto de conformação.

— Frei José do Santíssimo, digno assessor de nossas autoridades — continuou o algoz com acen­to hipócrita —, recomendou que a trouxéssemos até aqui, onde receberá diariamente as rações de pão, até que êle tenha tempo de ouvi-la.

Ela quis indagar o dia da audiência, mas, te­mendo reprimendas injustas, calou-se. O frade, porém, continuou loquaz:

— Naturalmente que lhe será concedido o tempo necessário para despertar a memória para a confissão geral de suas faltas. O Santo Ofício nunca faz admoestações sem caridade.

Ao clarão da lanterna, a prisioneira nada mais identificou no compartimento estreito e subterrâ­neo, além de um mísero colchão no solo úmido. E em seguida a fastidiosas considerações do verdugo, relativamente ao espírito de generosidade dos inquisidores, achou-se absolutamente só, em pesada escuridão, ajoelhada, conchegando o cruci­fixo ao peito opresso.

Desde então, nunca mais pôde saber quando começava o dia ou a noite, a não ser presumindo pelo canto de galos distantes. Envolvia-a uma atmosfera de sombras invariáveis. De quando em quando, o irmão carcereiro renovava, em silêncio, a provisão de pão e água, e mais nada. Algumas vêzes, chegavam-lhe aos ouvidos os ecos amorte­cidos de gritos ou gemidos lancinantes. Não podia duvidar de que provinham das salas de tormento.

Entre a resignação e a humildade, passou a primeira semana, um, dois, seis meses.

Suas vestes estavam rôtas, o corpo enfêrmo e mirrado. Dadas a deficiência de alimentação e a atmosfera úmida, a saúde não resistira às longas semanas de reclusão. A religiosa de Medina sentia-se rudemente atacada pela moléstia do peito. Relembrando os padecimentos de padre Damiano, reconheceu que a tísica vinha partilhar das sombras da cela. Quando seria julgada? Agora, mais que nunca, recordava as palavras da carinhosa Madre, sôbre a crueldade que a Inquisição reservava às religiosas denunciadas como heréticas. Por certo, jamais seria ouvida. Sua atitude poderia ser levada à conta de desmoralização da Igreja, e o Santo Ofí­cio preferia recolher o seu cadáver a exibi-la num auto-de-fé. Contudo, de outras vêzes, a irmã do Carmelo experimentava amargurosos pesadelos, nos leves momentos de sono, entre as rudes vigílias, vendo-se à frente de algozes crudelíssimos, que a despojavam do hábito infligindo-lhe duras sevícias. Despertava aflita, banhada de álgido suor, abra­çando-se à única recordação de sua mãe, em preces fervorosas. Febre alta começou a minar-lhe o orga­nismo.

Dez meses correram sôbre a crueldade de frei Osório. Entre preces cariciosas e árduas meditações, a filha de Cirilo definhava devagarinho, sur­preendendo os próprios frades que montavam guar­da ao cárcere, os quais, por vêzes, contemplavam-na casualmente, nas visitas eventuais à sua gaiola de sombras.

Por essa época, a religiosa de Medina Del Campo experimentou o esgotamento quase total das energias orgânicas e, compreendendo que o fim de­veria estar próximo, encomendava-se a Deus em sentidas orações. Longos dias passaram, dando-lhe a impressão de uma noite invariável... Depois da primeira grande hemoptise, Alcione sentiu-se num plano diverso, O aposento, ordinariamente escuro, pareceu-lhe banhado de clarões cariciosos. Tanta era a luminosidade, que enxergou o colchão e o crucifixo amado, tomando-se de profunda admira­ção. Seu assombro não ficou aí. Em poucos instan­tes, divisou no fundo da cela três figuras distintas. Eram seus pais e o velho Damiano, que voltavam das regiões da morte por confortá-la. A enfêrma, em estado pré-agônico, concluiu que estava prestes a partir. Emocionada, lembrou, na delicadeza de seus sentimentos, que lhe competia apresentar aos visitantes queridos uma atitude de carinhoso res­peito e, não obstante a fraqueza, ajoelhou-se e ergueu as mãos, sentindo-se cumulada por bênçãos inefáveis. Jubilosa, observou que sua mãe estava bela como nunca, coroada por um halo de radiosa luz. Enquanto Cirilo e Damiano permaneciam a distância de alguns passos, Madalena Vilamil aproximou-se da filha, sorrindo ternamente e, pousan­do-lhe a destra na fronte de alabastro, murmurou:

— Alcione, minha querida, depois do calvário doloroso, gloriosa será a ressurreição!...

A interpelada inclinou-se osculando-lhe os pés e exclamando entre lágrimas:

— Não sou digna!... não sou digna!...

A entidade amorosa beijou-a num transporte de imensa ternura. Foi aí que a prisioneira, alon­gando os braços e, sob a forte impressão dos sofrimentos que percebia em tôrno do seu cárcere, im­plorou em tom angustiado:

— Minha mãe, sei que nada mereço de Deus, mas, se é possível, não me deixes morrer sob o desrespeito dos algozes impiedosos.

Em pranto convulsivo, notou que sua mãe en­xugava uma lágrima. Todavia, Madalena enlaçou-a nos braços, ternamente, e asseverou:

— Não temas, minha filha! Partirás com o amparo dos anjos!...

Nesse instante, contudo, o frade carcereiro abriu sübitamente a porta, a fim de ver com quem conversava a religiosa, em voz tão alta. Ao clarão avermelhado da lanterna, desfez-se a sublime visão. O vigilante fitou-a espantado. Genuflexa, mos­trando impressionante olhar a perquirir o desco­nhecido, a irmã do Carmelo tinha no hábito rôto largas manchas rubras. “A perda de sangue fê-la desvairar”, pensou o vigilante de si para si. E, assombrado com o que via, levou a notícia ao su­perior hierárquico, dizendo parecer-lhe que a pri­sioneira começava a experimentar os delírios da morte.

O Santo Ofício, por ironia, mantinha certo nú­mero de médicos a seu serviço, os quais muïtas vêzes opinavam sôbre a natureza e grau de tortura a infligir aos condenados, a pretexto de que os réus deveriam ser punidos com muita caridade. Um médico foi chamado, incontinenti, para examinar e informar o estado geral da religiosa de Me­dina. Após o exame, o facultativo, de autoridade a autoridade, chegou até ao gabinete de frei José do Santíssimo. Feitas as saudações de praxe, afir­mava solícito:

— A ré está irremediàvelmente perdida.

— Não suportará, sequer, as disciplinas preli­minares do potro? — indagou o representante do Inquisidor-Mor. — Trata-se de um caso ligado a reclamações de um amigo, a cuja bondade muito devo.

— Aquêle corpo já não resiste à menor tor­tura. Creio que ela está nas últimas.

O interlocutor fêz um gesto de contrariedade e voltou a dizer:

— É um processo que espera por mim há mais de dez meses; entretanto, tenho tido necessidade de atender a repressões de maior importância.

— Afirmo-vos — esclareceu o facultativo aten­cioso — que qualquer providência de ordem espi­ritual deve ser imediata, visto que amanhã talvez seja tarde.

— Hoje estou cheio de compromissos para a noite — explicou o assessor. — Irei amanhã muito cedo tomar-lhe as declarações.

Com efeito, logo que amanheceu, José do San­tíssimo, acolitado por dois outros religiosos, desceu às celas subterrâneas, a fim de estabelecer o pri­meiro e último contato com a freira carmelita de Medina Del Campo. Ao clarão da lanterna, apro­ximou-se da condenada que jazia na sórdida en­xêrga, abraçada ao crucifixo singular. Moribunda, apenas os olhos nela falavam, vivazes. Os membros e os traços fisionômicos estavam aniquilados, num conjunto de intraduzível abatimento. O eclesiás­tico experimentou estranha sensação e teve ímpetos de recuar, mas procurou manter-se firme e per­guntou:

— Maria de Jesus Crucificado, porventura já estará resolvida a confessar o crime de heresia, para que possa receber os sacramentos da extrema-unção?

A interpelada demonstrou no olhar impressio­nante uma atitude mental de júbilo e murmurou:

— Carlos!... Carlos!...

O jesuíta cambaleou, num ricto de terror, o livro escapou-se-lhe das mãos trêmulas, e caiu, ma­quinalmente, de joelhos. Aproximou a lanterna do rosto da agonizante, exclamando com indefinível angústia:

— Alcione! Alcione!... tu? Sonho? Ou en­louqueço?

A agonizante pareceu concentrar tôdas as ener­gias para o esfôrço daqueles supremos momentos e retrucou:

— Sim... O Pai Celestial atendeu aos meus rogos e eu não partirei sem o conforto do teu olhar...

— Que fazias em Medina? Que quer isso dizer, Deus meu?

— Não podendo aproximar-me do teu coração com os meus sentimentos de mulher, buscava-te com os pensamentos do Cristo... Nunca pude esque­cer-te!... Tomei o hábito religioso, desejosa de te reencontrar, para ser irmã desvelada de tua mulher e segunda mãe de teus filhinhos... Em vão te busquei nos sítios prediletos... no entanto, tenho esperado confiantemente esta hora divina!... Ago­ra, morrerei tranqüila e feliz...

Sem qualquer preocupação pela atitude de es­panto dos companheiros presentes, o eclesiástico entre soluços convulsivos falou amargurado:

— Sou um réprobo! Não tenho espôsa, nem filhos, nem ninguém. Tudo perdi em te perdendo. Sou hoje um condenado a perambular numa es­trada ignominiosa. Tua lembrança ainda é o meu único raio de luz. A espôsa traiu-me, os falsos amigos conspurcaram meu lar e busquei os poderes do mundo para exercer a vingança cruel! Ah! Alcione, mal poderia supor que te assassinaria, também, nestas masmorras infectas! Por que ha­veria de cair sôbre mim êste tremendo golpe da sorte? Sou, doravante, um miserável, um bandido execrando!...

A agonizante revelou no olhar, muito lúcido, grande e amorosa preocupação e perguntou:

— Que fizeste de Jesus?

— Sou réu que não merece perdão — redar­güiu o jesuíta fora de si.

— Não te julgues assim — murmurou Alcione, com esfôrço —, conheço tua alma, cheia de tesouros ocultos... Sômente o desespêro pôde cegar-te os olhos...

— Tudo me foi adverso na vida, o destino sem­pre me escarneceu! — soluçava Clenaghan, prêsa de intraduzível martírio.

— Esqueceste nossas crenças preciosas, meu querido Carlos, não mais te lembraste dos rostos pálidos daqueles meninos que nos procuravam na igreja de Ávila... Olvidaste nossos doentes, não mais refletiste na dor dos desamparados da sorte... Nunca mais atentaste para a nossa família de ami­gos simples e necessitados, a serviço de quem colo­cávamos, outrora, todo o nosso idealismo com Jesus!...

— Sinto que perdi, desgraçadamente, o meu sagrado ensejo de união com Deus! Tanto fizeste por mim, e, no entanto, esqueci os menores de­veres de fraternidade, sem me lembrar de que nas trevas do ódio poderia aniquilar-te também a ti, que tudo me deste! Que tremenda lição!

— Tranqüiliza-te — disse a agonizante com profunda expressão de ternura —, confia no Senhor que nos renova as oportunidades de redenção... Sua misericórdia nos aproximará novamente, sere­mos felizes na observância do “amai-vos uns aos outros”! Fortaleçamos o espírito, sem desalento injustificável. Não nos cansemos de recordar que o Mestre foi à cruz do martírio por amor a nós, e está à nossa espera de há longos séculos!... É preciso não desanimar no bem...

O sobrinho de Damiano chorava amargamente, incapaz de responder. Mas, depois de longa pausa, Alcione prosseguia:

— Saí dos círculos de revolta e vingança!... Jesus nos oferece irmãos e tutelados em tôda parte... Não permaneças nos lugares onde haja perseguições ou separatividades em seu nome... Volta, Carlos!... Volta à pobreza, à simplicidade, ao esfôrço laborioso! Se fôr preciso, pede, de porta em porta, o pão do corpo, mas não odeies a nin­guém... A desesperação te conservará algemado no lodaçal do mundo! Desperta novamente para o amor que o Mestre nos trouxe e perdoa o passado pelas dores que te deu...

O jesuíta não sabia como definir as emoções penosas.

— Mas sou culpado de tuas flagelações no cárcere! Sou vítima infeliz de mim próprio!...

— Não te acuses! Tu fôste, com o Cristo, meu hóspede efetivo aqui, nesta casa, cem todos os outros lugares em que vivi depois de nossa sepa­ração... A confiança em teu amor ajudou-me a dis­sipar as sombras de cada dia, proporcionou-me bom ânimo nas situações mais difíceis!... Nunca te amei tanto como agora, ao nos separarmos nova­mente... Mas, eu creio, Carlos, que os mortos podem voltar aos trabalhos humanos... Logo que Deus me permita êsse júbilo, voltarei outra vez... para ser-te fiel... Sofre com resignação, ama as tuas tarefas de redenção com desvêlo, e então (quem sabe?) nos reencontraremos breve, para construir nosso lar de felicidade infinita, na Terra ou noutros planos da Eternidade!...

Enquanto o eclesiástico tremia soluçante, a agonizante continuava com visível esfôrço:

— Nunca te esquecerei... Jesus abençoará nosso ideal de sublime união...

Não pôde continuar. As sagradas emoções da­queles momentos inesquecíveis lhe haviam aniqui­lado as últimas energias. Gelado suor caía-lhe em bagas da fronte palidíssima. A respiração torna­ra-se angustiosa e abafada. Clenaghan percebeu a aproximação do minuto derradeiro e exclamou:

— Dize, Alcione, dize ainda uma vez que me perdoas!

A sublime criatura fêz uma tentativa suprema, mas os lábios, quase imóveis, nada mais fizeram que um movimento inexpressivo. Foi aí que a filha de Madalena, no estertor da morte, alçou o crucifixo e cravou nêle os olhos lúcidos, dando a entender que chamava a atenção de Carlos para a cena longínqua da igreja de Ávila; em seguida, beijou longamente a imagem do Crucificado, e, num gesto inesquecível, levou-a aos lábios do homem amado, como a dizer-lhe que nunca lhe negaria o beijo do eterno amor e da eterna aliança.

Frei José do Santíssimo debruçou-se, a soluçar, sôbre os despojos sagrados, com a dor inexcedível do coração afogado nos remorsos extremos.

E ninguém da Terra, naquele compartimento úmido e escuro, poderia contemplar o quadro celeste a se desenrolar, como tributo de veneração à discípula do Cristo, que soubera vencer em seu nome tôdas as dificuldades, vicissitudes e penas da vida humana. Hinos de beleza angélica vibravam nos ares, mensageiros generosos iam e vinham com expressão de júbilo infinito. Cirilo, Damiano e outros amigos de Alcione, conservavam-se em ati­tudes de prece. Numerosos beneficiários de sua dedicação fraternal ali se prosternavam, ansiosos por lhe manifestar carinho e gratidão. Dai a instan­tes, sob a direção de Antênio, chegavam resplande­centes entidades do Grande Lar Celeste. Mada­lena Vilamil, guardando a filha ao colo, beijava-a com enternecimento. As orações dos redimidos uniram-se aos sublimes pensamentos da alma san­tificada que partia da Terra. E, enquanto melodias suavíssimas fluíam do plano espiritual, o bondoso Antênio unia sua voz aos harpejos do Céu, repe­tindo as sagradas palavras do Sermão da Mon­tanha.

— Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados! Bem-aventurados os humildes, porque herdarão a Terra! Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor à justiça, porque dêles é o Reino dos Céus!... - Fim