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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A Evolução Anímica-Parte 2-Gabriel Delanne

 

ÍNDICEPARTE 1PARTE 2- PARTE3

humano em sua passagem pela série animal. É também sob forma instintiva que eles se manifestam, e nós vamos ver, dentro em breve, como todos os atos decorrentes do instinto têm a mesma origem.

Este assunto, tão importante, do mecanismo orgânico do homem, não tem sido aclarado. Limitado o seu estudo as ciências naturais, nem por isso as teorias monistas, materialis­tas, etc., se remontaram, em qualquer momento, à causa dos fenômenos, e, assim, só podem safar-se do impasse atribuindo à matéria propriedades que ela nunca manifestou.

O Espiritismo, muito ao contrário, nada inventa. Demonstrando a existência do perispírito, e que ele reproduz, fluidicamente, a forma corporal dos animais; que é estável, a despeito do fluxo perpétuo das moléculas vivas, conclui ser nele que se incorporam os instintos e as modificações da hereditariedade.

Imutável em si mesmo, apesar das mudanças incessantes que o homem experimenta, o perispírito é, por assim dizer, o estatuto das leis que regem a evolução do ser. Não se dissolve na morte, e, porque nele se constitui a individualidade do principio inteligente, registra a mais insignificante das numerosas alterações que as sucessivas existências lhe determinam, de sorte que, percorrida toda uma série, torna-se apto a conduzir e dirigir, mesmo à revelia do Espírito, organismos muito complexos.

Há neste automatismo algo de analógico com o que se observa no pianista exímio, quando de primeira vista interpreta uma partitura nova: flexibilizado por longos treinos o mecanismo cerebral, tanto quanto o braçal e digital, obedientes à sua vontade, não há mais que se preocupar com os óbices materiais que embaraçam os principiantes bisonhos. Não lhe resta senão ler a partitura, porque os órgãos obedecem automaticamente ao espírito. Mas, quantos tropeços e labores, antes de conseguir esse resultado!

Esta maneira de encarar a utilidade indispensável do perispírito tornar-se-á mais clara ainda, à medida que melhor formos compreendendo a natureza das ações tão complexas de que resulta a vida física e intelectual dos animais e do homem.

O atavismo, isto é, o fenômeno pelo qual reponta, de repen­te, numa raça animal, um espécime com caracteres há muito desaparecidos e específicos nos ancestrais, é uma segunda confirmação da nossa maneira de ver. Trata-se de um fenômeno assaz freqüente entre os animais, e os naturalistas atribuem-no à hereditariedade, mas sem com isso explicarem melhor o papel dessa força. Adiante, veremos como e por que esse fenômeno pode ocorrer.

Por agora, basta assinalá-lo de passagem.

A teoria celular

E difícil compreender nitidamente o papel do sistema ner­voso no organismo e, portanto, o do perispírito, se não possuir­mos idéias bem precisas da maneira por que são constituídos os seres vivos.

Indispensável, pois, expor aqui os resultados a que chegou a ciência hodierna, no tocante à natureza íntima dos vegetais e animais.

Médicos, naturalistas, filósofos, falam constantemente de substâncias vivas, moléculas orgânicas, matéria organizada, te­cidos de órgãos, etc., mas poucos fornecem desses termos uma definição precisa.

Nos animais superiores nota-se carne, ossos, tendões, ner­vos, vasos, membranas, etc. De que se compõem essas peças tão variadas? Poderemos achar em cada uma elementos constituintes idênticos, cuja variação pudesse originar produtos assim diversificados?

Eis o problema agora resolvido pela ciência.

Já o célebre Bichat havia um tanto concorrido à coordenação das idéias, com o dividir todas as substâncias que formam a trama do corpo, apresentando por toda parte, e sempre, as mesmas propriedades, fossem quais fossem os seres vivos em que as estudássemos.

Vem, depois, a idéia emitida por Oken, de serem os tecidos formados de elementos simples, constitutivamente semelhantes para cada qual. Johannes Müller desenvolveu esta teoria, da qual compartilhou Schleiden; e, por fim, Théodore Schwann demonstrou que todos os tecidos são formados de células que não diferem das vegetais senão pela variedade de formas que afetam as células animais, e por sua membrana envoltória, geralmente mais delgada.

Destes, como dos trabalhos que se lhes seguiram, resulta a certeza de provir o organismo de um vegetal ou de um animal qualquer da reunião, da associação de um número formidável de células. As partes do corpo animal, ou vegetal, são oriundas das modificações experimentadas pelas células. Em química, os produtos mais complexos podem sempre ser reconduzidos aos elementos primários, aos corpos simples que os constituem, mediante uma série de decomposições sucessivas.

Assim, também, na História Natural a célula aparece como último resíduo, no estudo, cada vez mais profundo, dos tecidos mais diferentes. É o elemento anatômico por excelência, a molécula orgânica, com a qual se estruturam todos os seres vivos.

Mas, como é feita essa célula? Posto que extraordinariamente variável nas formas, ela se compõe, sempre, de três par­tes: - um núcleo interior, sólido; um líquido que banha esse núcleo, e uma membrana que envolve o todo. A parte essencial, verdadeiramente viva, é o líquido, a que chamaram protoplas­ma. De sorte que este líquido gelatinoso constitui, realmente, o fundamento da vida orgânica. Enquanto ele se mantiver vivente nos milhões de células que integram um corpo, esse corpo vi­verá. Se ele perecer numa parte qualquer de células compo­nentes de um membro, o membro morrerá. Finalmente, destruído o protoplasma no total das células, morrerá todo o corpo. A ser exata a teoria da evolução, a vida na Terra deveria ter começado pela formação do protoplasma. Este é um fato hoje verificado. A exploração das grandes profundezas submari­nas (43) revelou a existência de uma substância gelatinosa que parece corresponder à primeira manifestação vital.

Os belos trabalhos de Haeckel, concernentes a esses seres rudimentares, confirmam plenamente as deduções de Darwin, dando ao transformismo uma base séria.

As moneras, diz Haeckel, num artigo do Kosmos, são os seres mais simples que se possam imaginar. Não passam de massas pequeníssimas de protoplasma, destituídas de qualquer estrutura, e cujos apêndices proteiformes preenchem, por sua vez, todas as funções vitais e animais: - movimento de sensibilidade, assimilação e eliminação, nutrição e crescimento, re­produção. Consideradas do ponto de vista morfológico, seu corpo é tão simples quanto o de qualquer cristal."

Mas, as moneras não apresentam todas o mesmo grau de simplicidade, havendo as que possuem, no âmago da massa, um núcleo bem caracterizado. São as células nuas, chamadas amebas. Encontram-se na água comum e no sangue dos ani­mais. Quando, enfim, a ameba se rodeia de um invólucro, conceitue a célula propriamente dita. A reprodução celular opera-se de maneira simplíssima. Atingindo um certo volume, verificasse uma ou mais de uma divisão em sua massa, que assim se biparte ou multiparte. Cada parte de per si se autonomiza, nutre-se, cresce e a seu turno engendra outras células. Às vezes, sucede que as células nascidas da primeira não se separam e formam, então, uma série de células associadas, dando nascimento a outras também inseparáveis e assim por diante, con­forme o grau de vitalidade de que são dotadas.

E o que ocorre com todos os vegetais, com os animais e com o homem. Todos os organismos da nossa época começam por não ser mais que uma célula única: o ovo vegetal ou animal, e, segundo a maior ou menor complexidade do ser nascitura, a célula se diversificam, mais ou menos, guardando, entretanto, cada qual, a sua autonomia peculiar. (44)

Mesmo nas associações mais complexas, as células constituintes de um ser vivo não perdem completamente a sua independência. Cada uma vive por sua conta, e as diversas funções fisiológicas do animal outra coisa não são que o resultado de atos consumados por um dado grupo de células.

A finalidade de todo organismo é viver: cada parte con­corre, na sua esfera de ação, para o objetivo comum. Pode comparar-se o corpo vivo à manufatura de uma fábrica: cada órgão representa um grupo de operários e cada operário cor­responde a uma célula. Os operários têm, cada qual, a sua tarefa especial, e, uma vez reunidas às peças, separadamente fabricadas, obtém-se o produto fabril. Na escala dos seres en­contram-se associações celulares em todas as fases de desenvolvimento.

A este respeito, eis o que diz Isidore Geoffroy-Saint­-Hilaire (45)

“Tal como o indivíduo, a comunidade tem a sua unidade abstrata e a sua existência coletiva.E ; uma reunião de indiví­duos, muitas vezes numerosíssima, e, no entanto, pode ser con­siderada em si mesma como um só indivíduo, como um ser uno e, não obstante, composto. E assim é, não por uma abstração mais ou menos racional, mas, na realidade, material para os nossos sentidos como para o nosso espírito, constituída em ser organizado de partes contínuas e reciprocamente dependentes, fragmentadas de um mesmo conjunto, posto que constitua, cada qual, um conjunto mais ou menos circunscrito, membros de um mesmo corpo, ainda que possuindo cada qual um corpo organizado, um pequeno todo...”.

"Como a família, como a sociedade e como o simples agrupamento, a comunidade pode ser mui diversamente constituída. A fusão anatômica e, por conseqüência, a solidariedade fisioló­gica dos seres assim reunidos, pode limitar-se a algumas fun­ções vitais, ou estender-se à quase totalidade dos órgãos e funções. Pode, igualmente, apresentar-se em todos os graus in­termédios, passando por matizes insensíveis de seres organiza­dos, nos quais as vidas associativas permanecem quase indepen­dentes, e os indivíduos nitidamente distintos, e daí a outros em que os indivíduos se vão tornando de mais a mais dependentes e mistos, até aos em que todas as vidas confundem-se numa vida comum, desaparecendo, mais ou menos completamente, na indi­vidualidade coletiva, as individualidades propriamente ditas."

Os animais superiores são essas individualidades coletivas, mas simplesmente do ponto de vista vital.

Vimos que a força vital é simultaneamente um princípio e um efeito: princípio, por tornar-se preciso um ser já vivente para comunicar a vida; e efeito porque, uma vez completada a fecundação de um gérmen, as leis físico-químicas servem ao entretenimento da vida.

Aqui, não pode haver equívoco: a força vital tem uma exis­tência certa, pois cada ser reproduz um ser semelhante, e não podemos dar vida a um composto inorgânico. De resto, supondo que chegássemos, por exemplo, a fabricar um músculo sensível, de feição a produzir os mesmos fenômenos que um músculo na­tural, ele não poderia regenerar-se, como se dá incessantemente com o organismo vivo. Logo, posto que opere e se entretenha por meio de leis naturais, o princípio vital distingue-se dessas leis.

Ele é uma força, uma transformação especial da energia, não tem existência sobrenatural, mas é produto necessário da evolução ascendente, degrau primário não da organização, mas do entretenimento e da reparação da matéria viva. É possível encontrar laivos desse princípio reparador até na matéria bruta. Haja vista o cristal, que pode cicatrizar suas fraturas, como bem evidenciou Pasteur. (46)

Quebrado em qualquer parte, se o colocarmos na solução de sua origem, não só cresce em todas as suas faces, como de­senvolve na parte avariada um trabalho ativíssimo, prestes reparando o estrago e restabelecendo a simetria. Colocando-se o soluto de uma substância violeta., por exemplo, vê-se distintamente o trabalho suplementar reclamado pelo refazimento das partes destruídas.

O princípio vital é, pois, uma força essencialmente reparado­ra e, nos vegetais como nos animais, é ela quem refaz as células agregadas entre si, em função de um plano determinado. É, de alguma sorte, o desenvolvimento, o grau superior, a transfor­mação exaltada do que denominamos - afinidade nos corpos brutos.

Ao demais, o fluido vital age também sobre as moléculas orgânicas, como o fluido magnético sobre as poeiras metálicas que originam o fantasma magnético. Se negarmos a existência de uma força vital, ainda que invisível e imponderável, não nos será possível compreender por que um corpo vivo mantém umas formas fixas, invariáveis segundo a espécie, apesar da incessante renovação das moléculas desse corpo.

Enquanto a vida se apresenta difusa, como no caso dos ani­mais inferiores; enquanto todas as células podem viver individualmente, sem auxílio de outras, o princípio inteligente mal se revela nítido, visto que nos seres rudimentares apenas se cons­tata a irritabilidade, ou seja, a reação a uma influência exterior e, portanto, nenhuma sensibilidade distinta (47). Mas, tão depressa surge o sistema nervoso, desde o instante em que as funções animais nele se concentram, a comunidade viva transformasse em indivíduo, pois desde esse instante o princípio inteligente assume a direção do corpo e manifesta a sua presença com os primeiros clarões do instinto.

Desenvolvimento correlato do gânglio cerebral e da inteligência, na série animal

Alguns zoófilos (animais-planta), tais como as medusas e os ouriços marinhos, possuem alguns lineamentos de sistema nervoso; pelo que também se lhes distinguem rudimentos instintivos.

Na orla dos mares, receptáculo inexaurível de formas inci­pientes, quando se escava a areia úmida da onda que se retrai, é raro não se encontrar uma viscosa massa azulada como a goma de trigo, simples amálgama de geléia na aparência. Essa massa gelatinosa não oferece, à primeira vista, qualquer característico de animalidade; mas, se a, colocardes num grande vaso com água do mar, ou num poço assaz profundo onde ela possa desenvolver-se à vontade, vê-la-eis dilatar-se, arredondar-se e tomar, pouco a pouco, distintas formas a que não faltará elegância.

Tendes, então, à vista um ser singular, cujo corpo se com­põe de um disco mais ou menos convexo, como um cogumelo, e dotado de vários apêndices colocados na sua parte côncava, servindo-lhe à respiração e à apreensão dos alimentos. Esses órgãos são pendentes ou flutuantes em várias espécies, suge­rindo-nos à lembrança as serpes que exortavam a mítica Medusa, que lhes deu o nome. O vulgo conhece-as como geléias do mar. (48)

Lícito é perguntar por que as medusas, possuindo estrutura tão variada e formas tão elegantes e delicadas, quando observadas no meio líquido, se tornam, segregadas do seu elemento, massas informes e confusas, nas quais o olhar mais arguto jamais encontraria traços do animal antes fixado. Pois é simplesmente porque os tecidos são muito tênues para conservarem no ar o seu respectivo lugar, enquanto na água, perdendo uma parte de peso equivalente ao volume da água desloca­do (49), não precisam oferecer mais que uma fraca resistência para conservar a estrutura e impedir as diversas partes do corpo de. recaírem sobre si mesmas.

Por longo tempo esses bizarros seres foram desdenhados pelos próprios naturalistas, que não viam neles - como dizia Réaumur - mais que uma geléia viva. A ciência moderna, po­rém, soube penetrar os mistérios do seu organismo e determi­nar-lhe a verdadeira forma exterior. Nada de mais singular, certo, do que um animal sem boca, mas provido de trombas sugadoras, análogas a raízes vegetais, cuja cavidade digestiva se prolonga por todas as partes do corpo, à maneira de canais vasculares, e de feição a preencher, ao mesmo tempo, as funções de um estômago e de um coração. Outra não é, porém, a orga­nização que Cuvier descobriu nesses zoófilos. (50)

É de se ressaltar que, entre os seres mais simples, mesmo entre aqueles em que se não lobriga sistema nervoso distinto, nem órgãos sexuais, nem membros, o estômago é sempre encentrado.

Dir-se-ia ser ele o órgão da animalidade, por excelência, o fundamento da vida bruta e - parodiando Rabelais - que o estômago é o contramestre dos artistas do universo, tendo ensinado aos animais e ao homem o que lhes era preciso fazer para viver, suscitando-lhes todas as necessidades e, com elas, todos os instintos.

As actínias, que se assemelham a flores vivas e cujas pétalas brilhantes são dotadas de grande mobilidade, não são, na verdade, senão estômagos organizados, verdadeiras bolsas a transmitirem sucos nutritivos ao resto do corpo, por embebição. Nem outros instintos nelas se deparam, além dos reclamados para esse ato importante.

É que, nelas, o sistema nervoso ainda não está diferenciado. A sua substância encontra-se difundida por todo o corpo, como que amalgamada com a matéria gelatinosa que compõe o ani­mal, de sorte que as faculdades ativas, tais como a visão, a audição, etc. - que nós possuímos especializadas em órgãos distintos - jazem, de alguma sorte, uniformemente espalhadas, em estado latente, nesses organismos primordiais.

É sob a influência permanente, ativa, incessante dos meios que atuam sobre o animal, e pela impulsão resultante de necessidades sempre renascentes, que as espécies se transformam, concentrando em órgãos particulares, as diferentes faculdades originariamente confundidas entre si. Esses órgãos dos sentidos acabam perdendo uma parte de suas propriedades gerais, para só conservar e desenvolver as de sua especialidade.

A força nervosa, difundida em todas as partes do corpo nos zoófilos, centraliza-se parcialmente nos filetes nervosos, nos moluscos. As diversas ramificações de nervos, com seus raros, minúsculos cérebros, ou gânglios, começam a concentração, a coordenação, a unidade individual; mas isso só se dá progressivamente. O sistema nervoso, nos tipos melhor definidos, é for­mado principalmente por dois gânglios situados acima e abaixo do esôfago. O superior foi denominado - cerebral, e prende-se ao outro por cordões nervosos que formam o colar esofagiano.

À medida que o organismo se complica, o que vale dizer - se eleva -, o gânglio cerebral duplica-se e as duas partes componentes podem ficar separadas ou reunidas. Nos animais-planta temos comprovado ausência de quase todos os sentidos. Os moluscos apresentam já um progresso, pois reve­lam não só o tato, senão que muitos possuem vista, e, talvez, olfato. Outros há que possuem também audição. Este começo de aperfeiçoamento orgânico dá lugar aos instintos de nutrição, de propagação e mesmo outros, como atestam os ouriços marinhos, que perfuram os rochedos para neles fazer morada.

Estudemos os seres colocados um pouco acima, na série animal, e veremos que, nos articulados, o crescimento e o desenvolvimento do gânglio cerebral são muito acentuados.

Na quase totalidade dos membros desse grupo, os dois gânglios cerebrais aproximam-se e soldam-se, embora com indícios manifestos da primitiva separação. Daí resultam manifestações cada vez mais complexas dos instintos. Eis, segundo Leuret (51), a progressão dessas faculdades:

1 - Nota-se, em primeiro lugar, animais que parecem estabelecer uma transição com a classe inferior, apresentando instintos só adstritos à procura de alimento. (Anelídeos: san­guessugas.)

2.- Sensações mais extensas e numerosas, construção de um domicílio, extremo ardor genético, voracidade, crueldade cega. (Crustáceos: caranguejos.)

3 - Sensações ainda mais extensas, construção domiciliar, voracidade, ardil, astúcia. (Aracnídeos: aranhas.)

4 - Sensações amplíssimas, domicílio, vida de relação, pro­visão de guerra e defesa coletiva, sociabilidade, enfim. (Insetos: abelhas, formigas.)

Antes de passar aos vertebrados, parece-nos útil explicar o processo de elaboração dos instintos, bem como o papel que o perispírito representou na evolução, cujos pontos principais acabamos de expor sucintamente.

O perispírito

Temos insistido muitas vezes na íntima conexão existente entre os seres vivos, de sorte que os animais sucedem insensivelmente às plantas, havendo organismos que parecem partici­par das duas naturezas. Vimos, também, que o princípio vital representa o papel mais importante na existência dos vegetais, que é uma força nitidamente definida e não uma entidade vaga, visto como, sem a sua associação ao duplo fluídico, não se pode compreender a forma típica dos seres, mantida do nascimento até à morte.

Essa força, que impregna o gérmen e lhe dirigirá a evolução, não basta, porém, para explicar os instintos assinalados no ani­mal e, tampouco, as manifestações inteligentes por nós referi­das. Ao desenvolvimento do princípio anímico, portanto, atri­buímos esses fatos que tão profundamente diferenciam os dois reinos. Nos organismos ambíguos, situados nos confins de uns e outros reinos, e conforme seja mais ou menos intensa a união da força vital com o princípio espiritual, notar-se-á maior ou menor concentração, uma individualidade mais ou menos marcante.

Mas, tão presto se estabeleça o equilíbrio, entra a predo­minar o princípio espiritual, acelera-se a evolução, e as formas se condensam. Em vez de moles, flácidas, apresentam contornos determinados, nitidamente regulados, ao mesmo passo que surgem, e mais energicamente se acusam, os instintos.

Ficou também estabelecido que o princípio inteligente se reveste sempre de um envoltório fluídico, e os episódios relata­dos por Dassier, e sancionados pela lógica, não nos permitem duvidar da realidade desse duplo perispiritual.

Examinemos, agora, a sua função nos seres vivos.

Nos primórdios da vida, o fluido perisperitual está misturado aos fluidos mais grosseiros do mundo imponderável. Po­demos compará-lo a um vapor fuliginoso a empanar radia­ções da alma; e, como ele se encontra intimamente unido ao princípio espiritual, este, não obstante possuir em gérmen todas as faculdades fadadas a evoluir, não as pode manifestar, impedido pela espessa materialidade do cárcere fluídico.

E dessarte, nos primeiros tempos, os fortes estímulos da fome; tornam-se necessários para despertar a alma da sua atonia.

Sabemos que os fluidos são constituídos por estados de matéria eterizada, e que a rapidez do seu movimento molecular é proporcional ao grau de rarefação das moléculas. Quanto mais densos, opacos, viscosos, maior resistência oporão a toda e qualquer modificação: e, contudo, é necessário que a alma chegue a mudar a direção dos movimentos do seu invólucro, a regula­rizar-lhe a atividade, para que possa ela manifestar-se exteriormente. Podemos ter uma idéia dos sucessivos fenômenos que as diferentes encarnações determinam no perispírito, imagi­nando uma grande fonte luminosa, um foco elétrico, por exemplo, metido numa esfera de vidro cheio de espesso fumo negro, formado de enorme quantidade de partículas sólidas.

A fulgurância do foco seria tão bloqueada por esse véu escuro, que nenhuma luz se projetaria fora. Quando muito, uma tênue claridade, como indício apenas da potente radiação do arco voltaico. Pois seja acalma o foco elétrico, e o vapor cali­ginoso o perispírito, nos primeiros tempos da vida terrestre.

Suponhamos agora que, devido á manipulações diversas, tais como resfriamento da esfera, compressão de gases inter­nos, etc., conseguimos o precipitado de um pequeno número de partículas sólidas, e teremos que a luz já poderá manifestar-se com um pouco mais de facilidade. Sua expansão será um pouco mais forte, não se lhe poderá chamar ainda - luz, mas é força reconhecer qualquer progresso sobre o estado precedente. Renovando muitas vezes essa experiência e supondo que, em cada experiência, o vapor não se aclara senão em quanti­dades diminutíssimas, ter-se-á uma idéia aproximada do que ocorre com a alma e com o seu invólucro, enquanto percorre a série animal.

As faculdades superiores, assinaladas nos vertebrados, não se fazem notórias senão de intercorrência, não têm continui­dade, dir-se-iam como relâmpagos através de nuvem escura.

É só em grau de humanidade que o princípio espiritual tem bastantemente manipulado o órgão fluídico, para que as prin­cipais faculdades lhe não sejam de contínuo entravadas, in­firmadas.

Mas, quanto trabalho a realizar ainda, antes que chegue à completa depuração desse vapor! Quantas lutas por expurgar o fluido universal das suas moléculas grosseiras, até que possa a alma fulgurar na plenitude do ,seu magnífico esplendor!

A luz, sabemo-lo, é devida a um movimento vibratório do éter; mais quão rápidas são as ondulações do fluido peris­piritual de uma Entidade superior! Assim, não é metafórica, senão expressiva de fenomenalidade real, a descrição feita pelos médiuns videntes, referindo-se às almas puras, como se foram focos esplendentes de intensa luminosidade, ou estrelas cinti­lantes e variegadas.

Esta teoria será uma simples, imaginária concepção?

Absolutamente, de vez que a Ciência nos prova que todos os fenômenos podem reduzir-se ao movimento, qual fundamen­tamos com os físicos hodiernos. (52)

O grande erro do materialismo, ou do monismo, é tomar sempre, em tudo e por toda parte, o efeito pela causa. É consciente e voluntariamente que esses filósofos atribuem ao sistema nervoso faculdades que nunca lhe pertenceram nem pertencerão jamais. Eles elegeram como princípio negar, obstinadamente, toda e qualquer realidade que lhes não afete os sentidos de um modo imediato. Daí a prevenção e, conseqüentemente, o erro.

Contudo, como os fatos por eles observados são reais, basta demonstrar serem a alma e o seu invólucro que gozam das faculdades conferidas à matéria, para que tudo se torne claro e compreensível. Tão difícil, por não dizer impossível, é expli­car logicamente o que poderia ser memória orgânica, por exem­plo, quão fácil seria fazê-lo admitindo-a residente no perispírito, como vamos demonstrar.

Isto posto, comecemos nosso estudo.

Formação dos órgãos dos sentidos, papel do perispírito

Antes de tudo, limitar-nos-emos a mostrar sucintamente como puderam formar-se os primeiros lineamentos do sistema nervo-sensorial, e, paralelamente, o motor, inseparáveis que se apresentam, visto que a sensação se traduz sempre por um movimento, como vamos verificar (53). Isto assente, fácil é figurar, por analogia, como as outras partes do sistema nervoso tomaram, pouco a pouco, a direção da vida vegetativa e orgânico. Logo, o que em primeiro lugar nos deve ocupar são as funções da vida em relação dos sermos animados.

Essa vida compreende termos: ação do mundo exterior sobre o animal traduzindo sensibilidade, e ação do animal sobre o mundo exterior, traduzindo, movimento.

A faculdade de corresponder por movimentos a uma força externa é absolutamente peculiar a todos os seres viventes, e chama-se, irritabilidade.

O que precisa ficar bem compreendido é que, em toda a natureza, a força jamais se destrói. Não se perde, não se cria, de sorte que, toda força, mesmo agindo sobre um objeto inerte, poderá, talvez, transformar-se, mas persistirá em estado de força e encontrar-se-á, absolutamente integral, na matéria inerte que lhe sofreu a ação.

Um fato curioso demonstra à saciedade este princípio de conservação 'da força sob a forma de impressão. (54)

“Se colocarmos uma obreia - diz Draper - sobre um metal frio e polido, uma lâmina de navalha por exemplo; e se, depois de haver soprado sobre o metal, levantarmos a obreia, nenhu­ma inspeção, por mais rigorosa, revelará no aço polido qualquer traço, ou imagem qualquer. Mas, se soprarmos uma segun­da vez no metal, havemos de ver que a imagem espectral da obreia reaparece; e isso tantas vezes quantas o desejemos, mesmo depois de alguns meses transcorridos”.

"Uma sombra que se esbate numa parede, nela deixa traços duradouros."

Portanto, desde que uma força atue sobre um corpo, não deixará de o modificar, em certa maneira. Suponhamos um pedaço de ferro, por exemplo, num estado A de eletricidade, de temperatura, de equilíbrio mecânico e químico: se uma força qualquer F atuar nele, pô-lo-á em novo estado A de eletrici­dade, de temperatura, de equilíbrio mecânico e químico.

Supondo que a força F se esgotou inteiramente no corpo A, após a ação da força F, o corpo A será igual a A + F.

Isso leva-nos a admitir que, mesmo no caso de uma força não determinar movimentos aparentes num corpo, não deixa de lhe modificar a constituição molecular, transformando-se e imprimindo no corpo um novo estado diferente.

Ora, evidente é que o animal é muitíssimo mais sensível que o metal. Sendo a matéria que o conforma mais delicada, poderão ser irritadas por forças menos enérgicas do que as atuan­tes nos corpos brutos, deixando no ser vivente traços cada vez mais duradouros de sua influência, à medida que mais se exercita.

O calor, a eletricidade, a combinação química, o peso, que se nos figuram tão diferentes, não passam, então, na realidade, de formas de movimentos moleculares, atômicos, vibratórios, não perceptíveis aos nossos sentidos, mas, em suma, movimentos que a Ciência conseguiu demonstrar redutíveis às leis mecânicas. (55)

O ponto essencial, aquele que precisamos ter sempre em vista, é que o perispírito se liga, no ato do nascimento a todas as moléculas do corpo. É por meio do fluido vital, impregnado no gérmen, que a encarnação pode realizar-se, sabendo nós que o Espírito só pode atuar sobre a matéria por intermédio da força vital. Dá-se, pois, íntima fusão entre o perispírito e o fluido vital, sendo este o motor determinante da evolução contida no trinômio - juventude, madureza, velhice. Já notamos, igualmente, que cada célula, participando da vida geral nos orga­nismos complexos, goza, contudo, de tal ou qual autonomia; de sorte que, todo movimento nela produzido altera-lhe o equilí­brio vital, e essa modificação dinâmica logo lhe percute o duplo fluídico, determinando nele um movimento.

Temos, assim, que toda ação interna ou externa produz um movimento no invólucro perispiritual. Assim entendidos, procuremos explicar de que maneira puderam formar-se os órgãos dos sentidos. (56)

1 - caso - Imaginemos o mais elementar dos seres. Ele só poderá ser perfeitamente esférico e sem elemento diferenciado. A bem dizer, o organismo homogêneo é pura abstração teórica.

Se imaginamos essa massa sensível num meio homogêneo ou, o que vem a dar no mesmo, num meio que varia uniforme e concentricamente em relação a ela, compreendemos como possa experimentar um sentimento de tensão, mais ou menos pronunciado, conforme a maior ou menor correspondência do ambiente com o seu equilíbrio natural. E é tudo. Não terá sensação, visto não poder ressentir, como vamos ver, a mudança, e sim, apenas, o seu estado presente.

Não terá percepção, enquanto o meio se mantiver homogêneo, visto que, ao mover-se, nada muda em torno dela.

Pode, pois, compreender-se facilmente tal existência, ima­ginando que todas as causas exteriores se reconduzem por uma ação idêntica à da pressão atmosférica, e que a nossa sensibilidade se reduz à faculdade de sentir essa pressão.

2 - caso - Tal não acontecerá, porém, desde o momento em que o ambiente seja heterogêneo, e que o centro de sua ação não mais coincida com o centro da massa sensível, pois esta será, desde logo, modificada no ponto de sua superfície diretamente exposto à força perturbadora.

Para termos uma idéia da ocorrência, podemos prefigurar que toda a sensibilidade reduz-se à faculdade de sentir o calor, e que calóricas são as forças todas do ambiente.

O organismo começará a aquecer-se do lado voltado para a fonte calorífica. Esse lado será, por instantes, a sede única da sensibilidade, pois é aí que se dará, primariamente, a ruptura de equilíbrio. Ele equivalerá a um órgão, mas, órgão adventício, isto é, acidental e instantâneo, de sensação. E como ora um, ora outro lado será chamado a sofrer essa influência, poder-se-á, em tese, dizer que todo o corpo do animal venha a ser um campo perpétuo de improvisados órgãos sensoriais. Só condicionalmente, subordinada à diferenciação da substância, é que pode haver sensação, e, portanto, órgão momentâneo dos sen­tidos, visto que, neste caso, o animal percebe não apenas o presente, mas, ao mesmo tempo, o presente no órgão e o passado no resto do corpo ainda imune do foco.

Ele terá mais calor ou mais frio no órgão, antes de expe­rimentar um efeito geral, e assim conhecerá o sinal da mudança, o que vale dizer - saberá se há mais ou menos calor. E como, ao demais, haja de experimentar um sentimento inevitável de bem ou mal-estar, saberá em que sentido a tempera­tura o afeta, em relação com a posição de equilíbrio natural. Sentirá, vagamente, como faz frio ou calor, e deduzirá um jul­gamento, mais ou menos grosseiro, da temperatura absoluta do exterior.

Decomponhamos o que aí se passa. As vibrações calóricas., abalaram, por exemplo, a túnica de uma medusa. As células diretamente expostas aos raios solares foram irritadas, essa irritação engendrou mudança de equilíbrio na força vital dessas células e produziu uma vibração do fluido vital. Essa vibração repercutiu, imediatamente, no perispírito e, no mesmo instante, a alma da medusa foi advertida, por esse movimento perispi­rítual, de que lhe adveio uma modificação ao corpo. Toda per­cepção é seguida de um sentimento de bem ou de mal-estar, e, , a alma será levada a esquivar-se às excitações externas que a incomodem, tanto quanto a buscar as contrárias. Sem dúvida que nos referimos a uma percepção extremamente vaga, mas nem por isso inexistente, e, por muito confusa e lúrida que a suponhamos num animal tão rudimentar, menos dubitável não é que da sua persistência é que se origina o instinto.

Há uma curiosa observação que corrobora absolutamente a nossa, presunção.

Um fato que prova o instinto desses animais tão insignificantes é que eles nunca se encaminham para a costa, senão quando os ventos para ai os impelem. Dir-se-ia pressentirem os perigos que lá os aguardam. Nada obstante as precauções, eles dão à costa em grande quantidade e lá se esmirram, ou antes, dissolvem-se ao sol.

O receio do calor é, pois, mais que justificado e basta para criar-lhes um instinto, de vez que a medusa, assim perecendo inúmeras vezes, acabará por se afastar instintivamente, nas encarnações seguintes, das plagas que lhe foram funestas.

Mas, retomemos nosso organismo teórico, visto não termos expendidos todas as observações que ele enseja.

O órgão adventício, ou por outra, acidental, é o que possibilitou a sensação: é a condição do sentido adventício, isto é, a faculdade de perceber, de modo diferenciado, as mudanças exteriores diferenciadas.

De resto, dando o estado orgânico a medida do presente, enquanto o resto do corpo continua envolvido no passado, a comparação de presente e passado torna-se, não só possível, mas espontânea e constitutiva. Que se produza nova mudança e já lhe será possível apreciar a temperatura correspondente aos dois termos, sentir que faz mais frio ou mais calor.

Graças, pois, ao órgão adventício dos sentidos, a existência do animal compõe-se de uma série de experiências, cada uma das quais ligada às que lhe antecedem e sucedem. O órgão e a cadeia de associação de impressões a condição da individualidade psíquica permanente do animal

Mas, isso não é tudo. Observamos ser pelo órgão acidental, formado nos pontos expostos ao calor, que o animal percebe as alterações externas. É também por ele que adivinhará se a alte­ração lhe será agradável ou não, e que poderá fugir ou evitar o perigo antes que seja tarde, e a menos que a desorganização não seja geral.

O órgão é, pois, um produto cuja função está intimamente ligada ao que denominamos instintos de conservação, e que adverte, a tempo, o prazer como a dor.

Enfim, qual ainda o vemos, o órgão é um instrumento temporário da experiência. Graças à confiança que temos em sua atuação espontânea é que podemos, no banho, perceber a tempo o afluxo demasiado de água quente, ou fria, para fechar a torneira antes de sermos molestados.

Tais as particularidades da vida do animal rudimentar, sem órgãos diferenciados e não gozando mais do que de uma diferenciação adventícia.

A maior parte dos zoófilos não apresenta senão fenômenos desta ordem. Vamos, agora, examinar o caso mais com­plexo de um animal já dotado de um sentido permanente.

3.- caso - Acabamos de ver que a sensação é devida a duas causas: 1.- a uma diferença de ação externa; 2.- à exposição direta de uma parte do corpo do animal a essa mes­ma ação, que, assim, a recebe mais forte nessa que em outras partes.

Suponhamos que, por um motivo qualquer, essa região seja chamada a servir de órgão de sentido adventício, e teremos que ela se transformará em órgão de sentido permanente, ou seja, dotado, a título perpétuo, de uma sensibilidade mais delicada, que diferenciará no ser a ação exterior, ainda que esta acuse apenas variações ínfimas e incapazes de agir sobre as outras partes sensíveis do animal.

O órgão permanente é, pois, uma causa subjetiva de diferenciação; é a condição do sentido permanente, isto é, da fa­culdade de receber, de um modo diferenciado, as alterações ex­teriores, mesmo não diferenciadas.

Para tornar mais clara essas concepções, imaginem a sensibilidade uniformemente espalhada em todo o corpo, salvo num ponto, onde ela seja mais apurada, ou por outra: suponhamos só possuirmos o sentido tátil e que a sensibilidade es­teja acumulada no extremo de um só braço. Teremos que, no resto do corpo, se criarão órgãos adventícios, que advertirão das alterações supervenientes no mundo exterior. Mas, quando se tratar de conhecer mais exatamente a natureza e importância de qualquer dessas alterações, nós dirigiremos o órgão permanente nesse sentido, e será por ele, de preferência, que ha­vemos de sondar o meio ambiente, visto ser o mais apto a distinguir as menores diferenças. Assim é que, caminhando na obscuridade, estendemos as mãos para frente e avançamos em passo cauteloso, como que tateando o terreno com os pés. Os crustáceos e os insetos possuem antenas, que desempenham esse papel. São órgãos móveis, nos quais o tato está mais refi­nado, e é por esses apêndices que eles tomam exato conheci­mento dos objetos exteriores. O órgão permanente será, portan­to, o instrumento constante das experiências do animal, e, a esse respeito, adquirirá uma aptidão especial. Aperfeiçoando-se pelo exercício, ele fornecerá informes cada vez mais precisos e fidedignos. Além de todas as propriedades aqui reconhecidas no órgão adventício, e que, com mais forte razão, cabem ao órgão permanente, tem ele ainda a de religar a experiência da atua­lidade às do passado, tornando-se o elo de associação das ex­periências.

E como se dará a transformação do acidental em perma­nente?

É sabido que toda ação exterior pode reduzir-se, em última análise, a um fenômeno de movimento vibratório que vem con­trariar o das moléculas corporais. Para que haja sensações é preciso que essas moléculas oponham uma certa resistência à causa perturbadora. Essa resistência provém de tal ou qual inaptidão das moléculas para vibrar em harmonia com o exte­rior. Uma vez vencida a resistência, a transformação da energia exterior deixará de si um traço mais ou menos profundo. Não há dúvida de que, se a mesma atividade exterior não mais voltar a agir sobre essas mesmas moléculas, elas tendem a retomar seu movimento natural. A coisa, porém, passar-se-á de modo diverso, se a molécula experimentarem, não uma e sim milhares de vezes, essa atuação, e isso não só durante uma existência, mas através de cinqüenta, cem, mil passagens pela mesma forma. Nesse caso, elas perderão, pouco a pouco, a tendência ao retorno do movimento natural e ir-se-ão progressivamente identificando com o movimento que lhes é impresso, a ponto de se lhes tornar ele natural e de, mais tarde, lhe obedecerem ao menor impulso.

O mesmo raciocínio ajusta-se às moléculas perispirituais, pois, assim como no campo magnético do ímã se verifica a existência das linhas de força, assim também, no perispírito, se criam linhas dessa espécie, ao longo das quais o movimento vibratório é diferenciado e permite à alma um conhecimento mais exato do mundo exterior, do que o teria pelo movimento con­fuso do resto do invólucro. Aqui, cabe uma notação importantíssima e que demonstra, ainda uma vez, a utilidade e - di­gamo-lo também - a incontestável necessidade do perispírito.

Não esqueçamos de que em todos os seres vivos, tanto nos zoófilos como no homem, a matéria viva destrói-se e regenera­-se constantemente pela nutrição, e que, num prazo bem curto, todas as moléculas do corpo são renovadas. Indispensável é, pois, que exista no animal um elemento permanente, no qual residem as modificações adquiridas, sem o que as novas mo­léculas não seriam mais aptas que as antigas a vibrar mais rápido, nem poderia o animal adquirir órgão qualquer dos sentidos.

O perispírito é portanto o fator direto do progresso animal sem ele nada se explica e a teoria precipitada que é sem embargo a da ciência tornar-se-ia simplesmente inconcebível.

O movimento é indestrutível, na verdade; ela afeta e abala as células que encontra em seu percurso, as quais conserva, certo, esse movimento; mas, uma vez desaparecidas, levam con­sigo a modificação adquirida, e as novas células não mais pos­suem esse movimento vibratório.

Se, ao invés, admitirmos o princípio vital intimamente ligado a todas as regiões do perispírito, e que este, por sua vez, reproduza exatamente todas as regiões do corpo, tudo se escla­rece, visto serem as novas células organizadas pela força vital modificada, segundo o movimento das linhas de força perispi­ritual. Conseqüentemente, temos que o organismo físico repro­duz essas modificações e desenha no ser celular o local do siste­ma nervoso-sensorial e ao mesmo tempo motor, visto que o ser reage de contínuo contra o seu meio.

E dessa maneira que as células chegam a diferenciar-se e a manifestar propriedades particulares, em relação com o gênero de excitação especial, ou seja, com o movimento que atua mais vezes sobre ela.

As vibrações caloríficas são menos rápidas que as lumi­nosas, e as ondulações sonoras menos ainda que as duas pri­meiras, de sorte que as células que receberem mais vezes um que outro desses movimentos, acabarão adquirindo uma irritabilidade apropriada à natureza de cada um dos agentes. Terá, em suma, especificado os órgãos dos sentidos.

Essa teoria exige apenas uma condição - o tempo.

Ora, nós hoje chegamos a determinar o lapso provável que nos separa da aparição dos primeiros seres em nosso planeta. Os geólogos usaram para a resolução desse problema os seus métodos habituais, consistentes na apreciação da ancianidade de um terreno pela espessura de uma camada em depósito e a provável rapidez de sua erosão. Depois de numerosas observa­ções feitas em diversas regiões do globo, os naturalistas, com o ilustre Lyell à frente, presumiram que mais de 300 milhões de anos transcorreram da solidificação dos leitos superficiais terrestres. (57)

Essas conclusões foram contraditadas por alguns físicos que não admitiram mais que 100 milhões de anos. (58) Tomemos esse cálculo mais reduzido e teremos, para as três épocas geológicas, as cifras seguintes:

1.0 - Período primário..................75 milhões de anos

2.0 - Período secundário ............19 milhões de anos

3.0 - Período terciário ................06 milhões de anos

Vemos, portanto, que os animais do primeiro período tive­ram 75 milhões de anos para se diversificarem e adquirirem órgãos, criando o sistema nervoso.

As condições climáticas seriam mais ou menos semelhantes às que imaginamos para explicar a influência do meio sobre o animal, e a formação dos órgãos dos sentidos.

“Por toda a duração dos tempos primários - diz de Lap­parent -, um clima semelhante ao dos trópicos reinou do equador aos pólos, e não foi senão por meados da era secundá­ria que começou a manifestar-se o retraimento progressivo da zona tropical”.

Nos meados da era terciária, a Groenlândia ainda apresen­tava uma vegetação semelhante à da Louisiana dos nossos dias. A aparição dos gelos polares foi, portanto, assaz tardia e quase poderemos considerá-la como encerramento dos tempos geológicos propriamente ditos, para inaugurar a época atual. (59)

Os exemplos tomados prendem-se ao órgão do tato; mas, também poderíamos utilizá-los tratando de outro aparelho sen­sorial qualquer, como sejam os auditivos ou os visuais.

Os fenômenos vão-se complicando mais e mais, à medida que nos elevamos na série animal e que o sistema nervoso se vai, de paralelo, aperfeiçoando. O processo, entretanto, é sempre o mesmo. Vamos, pois, estudar as propriedades fisiológicas do aparelho nervoso, mesmo porque o seu conhecimento facultará uma compreensão, ainda melhor, do papel do perispírito.

Sistema nervoso e ação reflexa

Lembremos ainda uma vez que o sistema nervoso não é senão as condições orgânicas, terrestres, das ações psíquicas da alma e que, de si mesmo, não é inteligente nem instintivo, visto que, depois de sua destruição, a alma sobrevive, tanto a humana como a animal.

Mas, enquanto subsiste a incorporação, ele é a reprodução material do perispírito e toda alteração grave de sua substância engendra consecutivas desordens nas manifestações do princí­pio pensante.

Alguns sábios dizem: lesada gravemente tal região do cére­bro, desaparece a palavra articulada e, portanto, destruída fica a faculdade de falar. Isso é incontestável. Mas, deveremos con­cluir daí que uma parte da alma desaparecesse? Não. O que concluímos é, simplesmente, que impossibilitaram a alma de utilizar seu instrumento, e não pode ela, então, manifestar-se dessa maneira. Responda-se aos sábios: - não demonstrastes, com essa experiência, a destruição parcial da alma, e sim que lhe desorganizastes o funcionamento. Nada mais.

O adágio mens sana in corpore sano, alma sã em corpo são, é verídico. Importa, necessariamente, estejam os órgãos em perfeito estado de saúde para que o Espírito deles se utilize com liberdade; mas, abstenhamo-nos de concluir que uma alteração do órgão acarrete alteração da alma, quando o que só determina é a alteração da manifestação dessa alma, o que não é a mesma coisa. O certo é que estreitássemos são os limites adentram dos quais se conserva a integridade do sistema nervoso.

Eles dependem da circulação, da respiração, da nutrição, da temperatura, do seu estado de sanidade ou enfermidade. (60) Vimos como se pode representar a criação do sistema ner­voso sensorial e motor, mas é preciso não esquecer a importância das funções vitais, e, como os alimentos são irritantes inte­riores e a célula do canal digestivo reage sob a sua influência, criou-se um sistema nervoso vegetativo, que atua sobre a nu­trição dos elementos orgânicos.

Ocupemo-nos simplesmente do sistema nervoso que serve para manifestar a inteligência. Compõe-se ele de nervos ou cordões nervosos e de centros que, nos vertebrados, são a medula espinhal e as diferentes partes que compõem o cérebro.

Examinemos, de relance, um animal inferior, dotado de vi­são, por exemplo; ele quer fugir de um objeto ou persegui-lo: o deslocamento do corpo não lhe obedece imediatamente à vontade e deverá, por isso, fazer um esforço para vencer tais ou quais resistências provenientes de uma coordenação dos átomos perispirituais e das moléculas materiais pouco favoráveis ao movimento.

Esse movimento propaga-se, finalmente, seguindo a linha das moléculas cuja vibração natural se apresenta menos di­vergente, e, à proporção que se propaga, vai diminuindo a diver­gência. Daí resulta que o mesmo movimento, desejado pela se­gunda vez, experimenta menos resistência e exige menor esforço. Por fim, à custa de repetições mil vezes reiteradas, o movimento opera-se com esforço tão insignificante que se torna quase in­sensível.

Assim, de início penoso, torna-se fácil, depois natural, e, por fim, automático e inconsciente.

Logo, desde que um organismo responda automático, ma­quinalmente, a uma ação exterior, dá-se o que os fisiologistas denominam ação reflexa.

Nada mais fácil de compreender do que um ato reflexo ele­mentar. Excite-se um nervo em sua extremidade periférica e veremos que a excitação caminha ao longo do nervo, sobe aos centros nervosos e, ai se propagando, pouco a pouco passa pelo perispírito e desce aos nervos motores, para transmitir-se ao músculo que se contrai.

Muitíssimo importante é considerar que a consciência pode perfeitamente ignorar esse movimento, e nem por isso ele deixara de produzir-se com absoluta regularidade, pois acabamos de ver que foi o hábito prolongado, por tempos dilatadíssimos, que lhe conferiu essa prerrogativa de automatismo.

Da mesma forma que podemos ler sem recordar as fases de aprendizado para conhecer as letras, as sílabas, etc., assim também uma irritação do sistema nervoso determina um mo­vimento correspondente que pode perfeitamente ser ignorado pela alma, e independente da sua vontade.

As ações reflexas são de naturezas diversas, dá-lhes a seguinte classificação (61)

A - Reflexos oriundos de uma excitação exterior e portanto:

- a) sobre os músculos da vida animal, movimentos reflexos de relação

- b) sobre os aparelhos da vida vegetativa, movimentos reflexos de nutrição

B - Reflexos oriundos e, portanto: de uma excitação interior visceral

- a) sobre os músculos da vida animal.

A medula espinhal é considerada pelos fisiologistas sob um duplo aspecto, a saber: como fio condutor, transmite ao encé­falo as sensações e reconduz dele as excitações motrizes; como centro nervoso, é a sede das ações reflexas.

A ação reflexa simples, que se pode definir como a que é seguida de uma contração simples, é o primeiro ato de automa­tismo e inconsciência que se nos depara.

A ação reflexa consiste, essencialmente, no movimento provocado em uma região do corpo por uma excitação vinda dessa parte e agindo por intermédio de centro nervoso outro, que não o cérebro.

Exemplo: uma rã, cuja cabeça foi decepada, põe-se a ca­minhar regularmente como se nada lhe faltara. Se a prender­mos com os dedos, ou queimarmos qualquer ponto do corpo da rã decapitada, ela levará a pata ao ponto irritado, e o movi­mento do membro acompanhará a irritação onde quer que esta se verifique, e isso pelo hábito de reagir de pronto às excitações exteriores, por movimentos apropriados, que se tornaram absolutamente instintivos, isto é, automáticos.

O estudo minudente desses diversos reflexos, antes que a nós, interessa à fisiologia. Contudo, eles nos oferecem a seguinte notação importante:

Aqui, mais do que nunca, a existência do perispírito torna-se indispensável à compreensão desses fenômenos, pois não so­mente a matéria nervosa se renova constantemente e as mo­léculas novas devem adaptar-se ao organismo pela força vital modificada pelo hábito, como existe entre os reflexos uma tal coordenação, que eles se sucedem uns aos outros, tendo em vista uma ação determinada e visando uma função a comple­tar-se, como a digestiva, por exemplo.

Ora, ainda uma vez, digam-se, as propriedades notáveis do sistema nervoso não podem subsistir na matéria mutável, fluen­te, incessantemente renovada. Preciso faz-se, pois, tenham elas o seu fundamento na estabilidade natural do invólucro fluídico. À medida que o principio inteligente passou por organismos mais complexos, habituou-se, mediante reencarnações sucessi­vas, em cada forma, ao manejo cada vez mais perfeito do apa­relho material; e, como esses atos tornavam-se automáticos pela reiterada freqüência das mesmas necessidades, estabele­ceu-se estreita relação entre o organismo e o perispírito, ao mes­mo tempo que uma apropriação gradativamente mais perfeita do ser com o seu meio.

Pode quase se dizer que, na vida de um animal, excetuados os fenômenos da vida psíquica superior e os fenômenos normais do coração e da respiração, tudo mais é ação reflexa.

Assim se compreende a imperiosa necessidade de um orga­nismo fluídico invariável, que mantenha a ordem e a regulari­dade nesse mecanismo complicado.

Podemos comparar o corpo a uma nação, e o mecanismo fisiológico às leis que regem o povo. As personalidades mudam constantemente; morrem umas, nascem outras, mas as leis sub­sistem sempre, não obstante passíveis de aperfeiçoamento, à medida que o povo se moraliza e se torna mais inteligente.

O instinto

O instinto é a mais baixa forma, mediante a qual manifes­ta-se a alma. Já vimos que ò animal tem uma tendência para reagir contra o meio exterior, e que a sensação lhe determina emoções de prazer ou de dor. Procurando umas e fugindo dou­tras, ele realiza atos instintivos, que se traduzem por ações re­flexas de que pode ter consciência sem poder, muitas vezes, impedi-las, mas que se adaptam admiravelmente à sua exis­tência (62). Assim, na lebre que dispara ao menor ruído, o movimento de fuga é involuntário, inconsciente, em parte reflexo, em parte instintivo, mas é, sobretudo, um movimento adaptado à vida do animal, tendo por finalidade a sua conservação. Para ele não há que escolher, foge fatalmente, porque os seus antepassados outro tanto fizeram em milhões de gera­ções; e é só na fuga que pode encontrar salvação.

Se destarte examinássemos todos os movimentos reflexos de conjunto, a conduta, a atitude dos animais, neles encontraria­-mos sempre os dois característicos da ação reflexa simples - a fatalidade e a finalidade.

O meio exterior em que vive cada animal excita, por sua atuação no aparelho sensorial, uma dupla série de efeitos: em primeiro lugar, uma seqüência de ações corporais reflexas; de­pois, uma classe de manifestações mentais correspondentes.

Já vimos que as ações mentais são vagas, primitivas, estrei­tamente limitadas ao organismo e seu ambiente.

Por outro lado, tendo cada família de animais a sua estru­tura peculiar e quase idêntica para cada indivíduo do mesmo grupo, essa estrutura própria exige determinadas condições de existência física, as mesmas para todos.

Segue-se daí que ações e reações são sempre as mesmas, mais ou menos, para uma espécie e, por conseqüência, que pro­vocam as mesmas operações intelectuais obscuras.

Essas operações, incessantemente repetidas, incrustam-se de alguma sorte no perispírito, que petrifica, por assim dizer, o aparelho cérebro-espinhal ou os gânglios que lhe equivalem nos seres inferiores, assim chegando a fazer parte do animal.

A aptidão para manifestar exteriormente essas operações, que se acabam tornando inconscientes, é transmitida por here­ditariedade - diz a ciência -, perispiritualmente, dizemos nós, por isso que se trata, só, de seres modificados, que vêm habitar novos corpos.

Tal é, ao nosso ver, a gênese dos instintos naturais primi­tivos.

Ir nessa categoria que se colocam os instintos, cujo objetivo é: nutrição, conservação, reprodução.

Ao estado rudimentar dos instintos naturais primitivos su­cede, com o tempo e com a experiência, uma noção mais clara das relações do organismo com o seu ambiente.

A inteligência acaba adquirindo uma certa intuição do fim que, sob o aguilhão das excitações exteriores e interiores, o prin­cípio espiritual coluna sem cessar.

A inteligência um tanto desprendida do meio perispiritual grosseiro, intervém, portanto, para que o Espírito alicie, em pro­veito dos instintos naturais, melhor apropriação das condições ambientes.

Os instintos naturais são, portanto, mais ou menos modifi­cados ou aperfeiçoados pela inteligência. (63)

Se as causas que acarretaram essas modificações são persis­tentes, vimos que elas se tornam inconscientes e se fixam no invólucro fluídico. Assim, ficam sendo verdadeiramente instin­tivas.

“Pouco a pouco, entretanto, diz Edmond Perrier (64), a consciência se amplia (segundo o grau de aperfeiçoamento ce­rebral), as idéias são mais claras, mais numerosas as relações compreendidas, a inteligência insinua-se mais nítida”.

“De começo, ela se mescla em todos os graus do instinto, até que lhe chega o momento de mascarar, mais ou menos, os instintos inatos, que é quando o que eles têm de fixo como que parece desaparecer sob a onda movediça das suas inovações”.

"O que se transmite por hereditariedade não é mais que a aptidão para conceber, quase inconscientemente, tal ou qual relação; é a aptidão para procurar e descobrir novas relações, até que possa, enfim, mostrar-se na maravilhosa florescência da razão humana."

E como se torna compreensível este progresso, patrimonial de muitos milênios, quando admitimos a passagem da alma atra­vés da escala animal!

Como clara se torna a existência e a pertinácia dos instin­tos no homem! E que, na verdade, eles constituem, de qual­quer maneira, os fundamentos da vida intelectual; são os mais prístinos e mais duradouros movimentos perispirituais que as incontáveis encarnações fixaram, incoercivelmente, em nosso invólucro fluídico, e, se o verdadeiro progresso consiste no do­mínio desses instintos brutais, infere-se que a luta seja longa, quão terrível, antes de conquistar esse poderio.

Era indispensável passasse o princípio espiritual por essas tramas sucessivas, a fim de fixar no invólucro as leis que in­conscientemente regem a vida, e entregar-se, depois, aos tra­balhos de aperfeiçoamento intelectual e moral, que o devem elevar à condição superior. A luta pela vida, por mais impie­dosa nos pareça, é o meio único, natural e lógico para obri­gar a alma infantil a manifestar as suas faculdades latentes, assim como o sofrimento é indispensável ao progresso espi­ritual.

E, a menos que vejamos na alma o efeito de um milagre, criação sobrenatural, é força reconhecer o magnífico encadea­mento das leis que regem a evolução dos seres para um destino sempre melhor.

Temos assinalado o desenvolvimento dos instintos, à medi­da que o sistema nervoso se aperfeiçoa, nos invertebrados, mas essa ascensão torna-se ainda mais notória nos vertebrados. De fato, nestes, a gradação é simplesmente espantosa.

É de Leuret o seguinte quadro do peso médio do encéfalo em relação com o do corpo:

1 - Nos peixes a razão é de - 1 para 5.668

2 - Nos répteis - 1 para 1321

3 - Nas aves - 1 para 212

4 - Nos mamíferos - 1 para 186

Verifica-se, portanto, uma progressão contínua, à medida que ascendemos na escala; mas, tenhamos em vista a condicio­nal de que esses pesos abranjam cada grupo, em bloco, e não tal ou tal espécie, examinada separativamente.

Porque, se há hoje um fato bem demonstrado, é o de o pro­gresso animal operar-se não em linha única e reta, mas em linhas desiguais e paralelas.

Não podemos acompanhar em todos os pormenores os fatos tão numerosos e interessantes para o leitor, visto que alguns volumes não bastariam. Limitamo-nos, assim, a resumir, de es­cantilhão, tudo que se prende à evolução animal, assinalando a utilidade do perispírito para a compreensão dos fenômenos. Nossa maneira de ver pode justificar-se com uma hipótese assaz ousada, de Herbert Spencer, cujo resumo aqui apresen­tamos (65)

Nossa ciência, nossas artes, nossa civilização; todos os fenômenos sociais tão numerosos e complicados, quaisquer que sejam, reduzem-se a um certo número de idéias e sentimentos. Estes, por sua vez, se reduzem a sensações primitivas, patrimoniais dos cinco sentidos. Estes cinco sentidos, a seu turno, re­duzem-se ao tato. A fisiologia contemporânea tende a justificar a sentença de Demócrito: "Todos os nossos sentidos não passam de modificações do tato." Enfim, o próprio tato deve radicar nessas propriedades primordiais, que distinguem a matéria or­gânica da inorgânica. E muitos fatos tendem a mostrar que a sensibilidade geral abrolha dos processos fundamentais, integra­tivos e desintegrativos, que são à base de toda a vida. Destarte, integração e desintegração, sensibilidade geral, tato, sentidos especiais, sensações e idéias, seu desenvolvimento no tempo e no espaço seriam, de um ponto de vista fenomenal, a ordem de evolução do espírito, do mais simples ao mais complexo. A mais complicada sociologia radicaria, assim, nas fontes mais ínfimas da vida.

Resumo

Acreditamos ter estabelecido neste e no precedente capítulo, com exemplos tirados da História Natural, a grande probabilidade da passagem da alma pela série animal.

O princípio espiritual evoluiu lentígrado, das mais ínfimas formas aos organismos mais complexos. Durante o longuíssi­mo período das idades geológicas, as faculdades rudimentares do Espírito desenvolveram-se sucessivamente, agindo sobre o pe­rispírito, modificando-o e deixando nele, em cada etapa, os traços do progresso realizado.

O invólucro fluídico poderia comparar-se a essas árvores seculares que, de ano a ano, aumentam de diâmetro, imprimin­do no tronco indeléveis traços, visto que a energia se transforma e jamais se perde.

Sob os impulsos da alma excitada pelo meio cósmico e a luta pela vida, o organismo fluídico criou, por diferenciação das propriedades do protoplasma, todos os órgãos materiais subor­dinados à direção progressivamente preponderante do sistema nervoso.

E, pelo mecanismo cada vez mais desenvolvido e coordenado das ações reflexas, puderam, enfim, manifestar-se os instintos.

À medida que a ascensão vai-se acentuando, repontam os pri­meiros albores da inteligência e, por notável transformação, o hábito combinado com a lei da hereditariedade - que consi­deramos conseqüência do retorno da mesma individualidade, cada vez modificada, ao mesmo tipo - faz que se tornem in­conscientes os fenômenos de início desejados e inerentes à conservação do indivíduo. Assim é que categorias inúmeras de atos inconscientes atingem o automatismo e entram, por assim dizer, no físico da alma, incrustando-se no perispírito.

É de crer, portanto, que todos saímos do limbo da bestialidade.

Longe de sermos criaturas angélicas, decaídas; longe de havermos habitado um paraíso imaginário, foi com imensa dificuldade que conquistamos o exercício de nossas faculdades, para vencer a natureza.

Nossos antepassados do período quaternário, fracos em comparação com os grandes carnívoros do seu tempo, a vagaram em pequenos grupos, em busca de alimento, procurando nos galhos do arvoredo ou na cavidade das rochas um abrigo momentânea, tiritando aos açoites do vento ou às carícias da neve, longe estavam dessa idade de ouro que as legendas religiosas esmaltaram de ilusórios esplendores.

Terrível foi à luta do homem primitivo com os grandes es­pécimes da fauna. Ele teve de fazer guerra de extermínio às feras, até expurgar delas as regiões infestadas. Nem foi senão lentamente, por explorações dignas de Hércules, que ele con­seguiu triunfar de tão numerosos quão formidáveis inimigos.

Quem deixará de admirar essa marcha lentígrada, mas glo­riosa, para a luz? Quem se não emocionará diante dessa evolu­ção desdobrada sob o látego de necessidades implacáveis, que, arrancando o homem de sua abjeção primaeva, eleva-o às re­giões mais altas e mais serenas da racionalidade?

As sociedades hodiernas estão em progresso, relativamente às antecessoras; e se nós compararmos o nosso tempo ao de nossos pais, temos o direito de nos lisonjearmos com o resul­tado do esforço coletivo da Humanidade.

Entretanto, se fixarmos o olhar na eterna justiça, veremos todas as nossas imperfeições e o caminho que nos resta per­correr para nos aproximarmos desse ideal.

A luta pela vida, necessária à eclosão do princípio espiritual, tinha a sua razão de ser num mundo brutal e instintivo, onde nem uma consciência clara, nem uma inteligência viva repontavam. Hoje, que a alma se manifesta sob as mais altas modalidades de sua natureza, essa luta deve atenuar-se e desaparecer.

Assiste-nos o dever de reclamar uma distribuição mais eqüi­tativa dos encargos e benefícios da comunidade. Importa nos sobreponhamos aos funestos ditames da ambição, que impelem povos contra povos. Que reivindiquemos, finalmente, os imprescritíveis direitos da solidariedade e do amor.

Nossa doutrina, evidenciando a igualdade perfeita, absolu­ta, do ponto de partida de todos os homens, extingue as separa­ções artificiais, alimentadas pelo orgulho e pela ignorância.

Ela prova, à saciedade, que ninguém tem o direito de exigir o respeito alheio, a não ser pela nobreza de sua própria con­duta, e que nascimento e posição social não passam de meros acidentes temporários, dos quais ninguém se pode prevalecer, visto que todos podem auferi-los em dado momento de sua evo­lução.

Aí temos verdades consoladoras, dignas de serem difundi­das em torno de nós.

Mostremos que só o esforço individual pode conduzir ao progresso geral, e a mesma potência que nos trouxe ao estado animal abrir-nos-á as infinitas perspectivas da vida espiritual, a desdobrar-se na ilimitada extensão do Cosmo.

CAPITULO IV

A MEMORIA E AS PERSONALIDADES MOLTIPLAS

SUMARIO: A antiga e a nova psicologia. - Sensação e percepção. - O Inconsciente psíquico. - Condições da percepção. - Estudo da memória.- A memória orgânica ou inconsciente fisiológico. – A memória psíquica. - A memória propriamente dita. - Os aspec­tos múltiplos da personalidade. - A personalidade. - As altera­ções da memória pela enfermidade. - Personalidade dupla. - História de Félida. - História da senhorita R. L. - O sonambulismos provocado. - Os diferentes graus do sonambulismo. - O esquecimento das existências anteriores. - Resumo.

A antiga e a nova psicologia

No estudo da alma, a velha psicologia servia-se exclusiva­mente do senso íntimo. Afigurava-se-lhe racional, para co­nhecê-lo, estudar o ego pensante, em si mesmo, examinar os diferentes atos da vida do espírito, classifica-los segundo a sua natureza e examinar as relações existentes entre eles. Assim procederam todos os filósofos, da mais remota antiguidade aos nossos dias. Tal método, porém, não basta à explicação de mui­tos fenômenos intelectuais. Não se pode conciliar, por exemplo, a natureza da alma com a vida intelectual inconsciente, que, no entanto, forma a base do nosso espírito, visto não ser pos­sível presumir estados inconscientes no que é, de si mesmo, consciente.

Os progressos da fisiologia contemporânea evidenciaram a ligação íntima da alma com o corpo. Ficou assentado, extreme de quaisquer dúvidas, que as manifestações do Espírito encar­nado são absolutamente dependentes do sistema nervoso. Ela, a fisiologia, demonstrou, com provas e contraprovas, que toda a alteração ou dçstruição do elemento nervoso acarretava dis­túrbios e mesmo supressão de manifestações intelectuais. Mais adiante, veremos que a destruição de certas partes do cérebro determina a perda da palavra articulada, do conhecimento da palavra escrita, ou paralisa a audição da palavra falada, con­forme a parte do encéfalo lesada.

Essa correlação do estado mórbido do corpo com o desapa­recimento de uma fração do intelecto, e, nos casos de cura, o restabelecimento da função coincidindo com a restauração dos tecidos, é a base da doutrina materialista, que faz da alma uma função do cérebro.

Não nos demoraremos no exame e confrontação dessa teoria, porque há, em contradita, um fato peremptório, que demonstra haver pensamento sem cérebro, qual o da manifestação do Es­pírito após a morte. Entretanto, os fisiologistas, com o procura­rem as bases físicas do espírito, prestaram-nos um grande serviço.

Já dissemos que o perispírito é o molde do corpo. Estudar, pois, as modificações do sistema nervoso valem por estudar o fun­cionamento do perispírito, do qual esse sistema nervoso mais não é que uma reprodução material.

A força vital que impregna simultaneamente a matéria or­ganizada e o perispírito é o agente intermediário do corpo e da alma. Qualquer modificação na substância física produzirá modificação da força vital, que, por sua vez, modificará o pe­rispírito, nas mesmas condições de variação que sofrerá em si mesma.

E, como esta força vital necessita de um suporte, de um substrato material, é no perispírito que ela o encontra, de sorte que as alterações sobrevindas ao corpo físico poderão ser con­servadas, reproduzidas, mau grado às mutações perpétuas das moléculas orgânicas.

Em suma: a velha psicologia, fazendo da alma uma subs­tancia material, ficava reduzida a uma impotência absoluta para explicar a ação da alma sobre o corpo.

Depois de se haver afadigado em demonstrar que uma e outro nada tinham de comum, não conseguia tornar compreen­síveis as reações mútuas e incessantes.

Os maiores gênios, os espíritos mais argutos, com Leibniz e Malebranche; fracassaram no tentame, por isso que ignora­vam a verdadeira natureza da alma, que o Espiritismo veio revelar-nos.

Os materialistas, a seu turno, negando sistematicamente a realidade da alma e limitando-se a considerá-la não mais que uma emanação, um resultado do sistema nervoso psíquico, não podem fazer compreensível o eu, o que se conhece a si mes­mo - fenômeno este transcendente, que lhes escapa, dado que nada se lhe pode comparar em a natureza física.

Assim, ficam reduzidos a imaginar teorias inverossímeis, quando pretendem conciliar a perpetuidade da lembrança com o renovamento incessante do organismo, ou ainda, a transfor­mação de uma sensação em percepção.

Podemos, então, desde logo, emparelhá-los com os espiri­tualistas, visto que nem uns nem outros explicam corretamen­te os fatos psíquicos, só encarando unilateralmente a questão.

Pois o Espiritismo vem conciliar essas doutrinas tão anta­gônicas. A noção de perispirito - nunca é demais repeti-lo - não é uma inventiva humana, uma concepção filosófica adrede destinada a remover todas as dificuldades, a fim de as extin­guir, mas, antes, uma realidade física, um órgão até então ignorado, e que por sua composição física, tanto quanto pela função que exerce no homem explica todas as anomalias que as investigações dos sábios e filósofos jamais puderam elucidar.

A indestrutibilidade e a estabilidade constitucional do perispírito fazem dele o conservador das formas orgânicas; graças a ele, compreendemos que os tecidos possam renovar-se, ocupan­do os novos o lugar exato dos antigos, e daí a manutenção da forma física, tanto interna como externa.

Com ele, concebemos perfeitamente que uma alteração in­terna, como a produzida nas células nervosas pelas sensações do exterior, pode ser conservada e reproduzida, visto que a nova célula se constrói com a modificação registrada no envoltório fluídico.

O principio vital e o motor do perispírito, é ele que lhe desenvolve as energias latentes e lhe ministra atividades durante a vida.Admitida a sua realidade, compreensível se torna a evo­lução dos seres: nascimento, crescimento, maturidade, decrepi­tude, morte.

Alma e perispírito não fazem mais que um todo indissolú­vel, e, se nós os distinguimos, é porque só a alma é inteligente, quer e sente. O invólucro é a sua parte material, o que vale dizer passiva: é a sede dos estados conscienciais pretéritos, o arma­zém das lembranças, a retorta em que se processa a memória de fixação, e é nele que o espírito se abastece, quando necessita de cabedais intelectuais para raciocinar, imaginar, comparar, deduzir, etc. Também receptáculo de imagens mentais, é nele que reside, finalmente, a memória orgânica e inconsciente.

O espírito é a forma ativa o perispírito a passiva, e ambas, em seus aspectos, nos representam todo o princípio pensante. Vamos, tanto quanto possível, pôr em destaque estes carac­teres particulares, e, uma vez melhor conhecida a natureza da alma, não mais ficaremos surpresos de ver desaparecerem por matizes insensíveis, pouco a pouco, os fenômenos conscientes, fundindo-se no inconsciente.

Compreender-se-á melhor, então, o mecanismo da memó­ria orgânica, e ninguém se admirará de vê-la assimilada à me­mória psíquica. Elas são da mesma natureza, possuem o mesmo território, formam-se pelos mesmos processos, adquirem-se e perdem-se de igual maneira.

Sensação e percepção

Neste estudo e no subseqüente, recorreremos às investiga­ções dos cientistas contemporâneos, respigando em seus estu­dos, tão claros e convincentes, mas, precatando-nos para intro­duzír, na boa medida, o elemento perispírito, tornando, assim, compreensíveis os fenômenos, e dando-lhes uma explicação lógica, que de outra forma lhes faltaria. (66)

Distingamos, preliminarmente, a sensação da percepção. Quando um agente externo impressiona os sentidos, pro­duz-se no aparelho sensorial uma certa alteração a que chama­mos sensação. Essa modificação é transmitida ao cérebro pelos nervos sensitivos e, depois de um trajeto mais ou menos longo, chega às camadas corticais.

Nesse instante, dois casos podem apresentar-se: ou bem a alma toma conhecimento da alteração sobrevinda ao organis­mo e dizemos que há percepção, ou bem a alma não é advertida da ocorrência, a sensação registra-se sem embargo, mas fica inconsciente. Como anteriormente observamos, essa transforma­ção da sensação (fenômeno físico) em percepção ( Fenômeno Psíquico).torna-se absolutamente inexplicável desde que se não admita a existência do eu, ou seja, do ser consciente.

Isto posta, examinemos mais atentos os fatos sucessivos que se encadeiam, do choque inicial à percepção.

Já sabemos que tudo é movimento na natureza. Os corpos que nos parecem em repouso não o estão nem exteriormente, de vez que participam do movimento da Terra, nem interior­mente, de vez que as moléculas são incessantemente agitadas por forças invisíveis, que lhes dão as suas propriedades físicas particulares: estados sólidos, líquidos, gasosos e, para os sóli­dos, consistência, brilho, cor, etc.

Também os tecidos do corpo estão em movimento, e, du­rante a longa travessia pelas formas inferiores, vimos como certas partes do corpo se diferenciaram pouco a pouco do con­junto, para engendrar os órgãos dos sentidos.

Essas modificações fixadas no perispírito iam cada vez mais se encarnando na substância, à medida que aumentava o numero de passagens pela Terra, e nós verificamos que não foram necessários menos do que milhões de anos para graduar o organismo ao nível em que o vemos hoje.

Qual a natureza das modificações produzidas?

Ensaiemos demonstrar que ela reside nos movimentos. Toda sensação – visual, auditiva, tátil ou gustativa – procede, originalmente de um movimento vibratório do aparelho recptor. O raio luminoso que impressiona a retina, o som que faz vibrar o tímpano, a irritação dos nervos periféricos da sensibi­lidade, tudo isso se traduz por um movimento, diferente, segundo a natureza e a intensidade do excitante. O abalo propaga-se ao longo dos nervos sensitivos e, depois de um certo percurso no cérebro, chega, conforme a natureza da irritação, a uma zona especial da camada cortical, sendo aí que o movimento origina a percepção. Tocamos, aqui, no ponto obscuro, pois nenhum filósofo, nenhum naturalista pôde jamais explicar o que então ocorre.

Uns, como Luys, dizem que a força exalta-se, espirituali­za-se, o que vale por nada dizer; outros se contentam em dizer que a percepção pertence ao sistema neuropsíquico, quando modificado de certa maneira, o que vale por dotar a matéria das faculdades da alma, sem que nenhuma indução o justifi­que. A célula nervosa é o elemento que recolhe, armazena e reage.

Operará por vibrações, como a corda tensa que oscila, quan­do deslocada da posição de equilíbrio? Ou, antes, consistirá o fenômeno numa decomposição química do protoplasma?

É questão não resolvida, mas o que há de certo é que uma alteração ocorreu. Desde então, a força vital modificou-se num certo sentido, sofreu um movimento vibratório particular, este se comunicou ao perispírito. É então que se dá o fenômeno da percepção, se a atenção for despertada.

O Espírito não conhece diretamente o mundo exterior. En­taipado num corpo material, não percebe os objetos circun­dantes senão pelos sentidos, que lhos revelam. Ora, a luz, o som, só lhe chegam sob a forma de vibrações, diferentes se­gundo a cor, para a vista, e segundo a intensidade, para o som. Ele atribui um nome a tal ou qual natureza de vibrações, mas não conhece intrinsecamente a luz nem o som.

Exemplificando: a luz vermelha tem vibrações diferentes, em número, da luz violeta, e desde a infância nos ensinaram que a tal espécie de vibrações chama-se vermelho, e a tal outra, violeta. Pela mesma razão, tal vibração deverá atribuir-se ao som, aos odores, aos sabores, etc.: de sorte que o espírito não vê, mas sente a vibração correspondente ao vermelho; não sente tal odor, mas percebe a vibração que o determina, e o que lhe dá a impressão de uma nota musical é o número de vibrações perispirituais que, num segundo, correspondem a esse som.

O que dizemos de uma cor aplica-se a todas as cores, de modo que o globo ocular, que recebe milhões de vibrações dife­rentes, ao contemplar uma paisagem, ao ver uma ópera, trans­mite ao cérebro milhões de movimentos vibratórios, que se re­gistram em sua substância e no seu perispírito, ao mesmo tempo e de um modo indelével.

Já houve quem comparasse a célula psíquica ao fósforo, que, depois de sofrer a ação da luz, permanece luminoso na obscuridade. Nós, porém, como analogia, preferimos a compa­ração da placa sensível, que, impressionada pela luz conserva para sempre graças a uma reação química fixo e indelével o traço da excitação luminosa.

Poder-se-á superpor nessa placa uma série de imagens, qualquer que seja o número destas, em se sobrepondo inces­santemente às precedentes, não as apagarão jamais.

Haverá sempre uma adição, um amontoamento de imagens e nunca uma destruição, uma extinção das primitivas pelas supervenientes.

Todo mundo está de acordo em que as modificações pro­duzidas nas células são permanentes.

Maudsley diz: "Na célula modificada produz-se uma apti­dão e com ela uma diferenciação do elemento, ainda que nos não assista razão para acreditar que, originariamente, esse ele­mento diferisse das células nervosas homólogas."

Delboeuf opina: "Toda impressão deixa um traço inapa­gável, isto é: uma vez diversamente dispostas e forçadas a vibrar de outro modo, as moléculas jamais retornarão ao estado primitivo."

E Richet (67) : “Assim como na natureza não há, jamais, perda de energia cósmica, mas, apenas, transformação inces­sante, assim também nada se perde do que abala o espírito humano”.

"É a lei de conservação da energia, sob um ponto de vista diferente. Os mares ainda se agitam do sulco neles deixado pelas galeras de Pompeu, pois o abalo equóreo não se perdeu e apenas se modificou, difundiu-se, transformou-se em infinidade de pe­quenas onda, que, a seu turno, se transmudaram em calor, em ações químicas ou elétricas. Semelhantemente, as sensações que abalaram o meu espírito há 20 ou 30 anos, deixaram-me o seu sulco, ainda que esse sulco seja desconhecido de mim mesmo. Então, mesmo que não possa evocar a sua lembrança, ignorada e inconsciente em mim, posso afirmar que ela não se extinguiu e que essas velhas sensações, infinitas em número e variedades, exerceram sobre mim uma influência assaz poderosa."

É fato averiguado que a repetição de palavras e frases de um idioma acaba por tornar-se uma operação automática para o espírito. Ele não mais procura palavras e frases, que lhe acor­rem de si mesmas. É uma verdade incontroversa, máxime em se tratando da língua materna. A memória consciente se esva­nece e perde-se no inconsciente. Pois o que sucede com a lin­guagem ocorre com qualquer outra aquisição intelectual, seja matemática, física ou química, etc.

Em todos nós, a tábua de multiplicação tornou-se automá­tica; e, contudo, começamos por decorá-la conscientemente. Estas afirmativas colocam-nos justo em face do problema que assinalamos - a ressurreição das lembranças prístinas, a despeito da renovação integral e global das células.

Maudsley (68) presume que a rapidez extraordinária das permutas nutritivas do cérebro, parecendo, à primeira vista, uma causa de instabilidade, explica, ao contrário, a fixação das lembranças:

“A reparação, efetuando-se sobre o trajeto modificado, serve para registrar a experiência. Não é uma simples integração o que se dá, e sim uma reintegração. A substância restaura-se de um modo especial, o que faz com que a modalidade produzida seja, por assim dizer, incorporada ou encarnada na estrutura do encéfalo”.

De acordo, quanto ao resultado. Também acreditamos que os novos movimentos perispirituais, os que houverem sido de­terminados pela modificação da força vital da célula destruída, imprimem às células que se reformam as mesmas modificações que influenciaram as primeiras. Mas, se não houver perispírito, que será que imprime nas células novas o antigo movimento? E a eterna questão: quem faz a restauração? Poder-se-á presu­mir não seja a célula inteiramente destruída; que o seu rema­nescente tomou o novo movimento e que as moléculas substi­tuintes adotem o novo ritmo vibratório.

Vamos supor que assim seja. Mas, em se dando nova per­muta, haverá, necessariamente, diminuição de intensidade: 1 por causa do tempo transcorrido; 2 por causa da inércia das antigas moléculas a vencer. Renovada inúmeras vezes à operação - o que é tanto mais certo quanto extrema é a rapi­dez das permutas nutritivas -, o movimento primordial será tão fraco que se poderá dizé-lo quase desaparecido. E o que é verdade para uma célula também o é para um conjunto de células, de sorte que as sensações delas dependentes, e que, por associação, formam uma lembrança, ficarão quase apaga­das na velhice do indivíduo. Tais lembranças deveriam, pois, ser as primeiras a desaparecerem. Ora, o que se verifica é justa­mente o contrário, de vez que, nas pessoas idosas, as lembranças da infância são as mais persistentes.

Em suma: se adotássemos essa hipótese, nenhuma sensa­ção poderia conservar-se no ser, senão por tempo assaz limita­do. Demonstrando-nos a experiência que assim não é, importa procurarmos outra explicação.

Quando afirmamos ser no perispírito que reside a conser­vação do movimento, damos como prova direta a manifestação da alma após a morte. Ela, a alma, se nos revela dotada de todas as faculdades e lembranças, não apenas de sua última encarnação, mas abrangendo longos períodos pretéritos.

Acreditamo-nos, portanto, mais próximos de uma explicação adequada aos fatos do que aqueles que atribuem o pensamento à massa fosfórica de há muito destruída, quando a alma é imortal.

Condições da percepção

Para que uma sensação seja percebida, ou por outra, para que se torne um estado consciencial, há que notar duas condi­ções indispensáveis, a saber: a intensidade e a duração. (69)

1.0 - A intensidade é condição de tipo assaz variável, mas faz-se preciso -um mínimo para que se verifique a percepção. Nós não ouvimos os sons muito brandos, nem temos sabores de somenos. Temos logrado meios de diminuir, graduar a inten­sidade, graças ao invento de aparelhos que nos aumentam os sentidos, quais o microscópio, o telescópio, o telefone, etc. É por não guardarem intensidade constante que as percepções diminuem insensivelmente, até não mais poderem ficar presen­tes ao espírito, caindo, assim, "abaixo dos domínios da cons­ciência".

2.0 - A duração - O tempo necessário para que uma sensa­ção seja percebida, ou por outra, para que o espírito tome conhe­cimento do movimento perispiritual, foi determinado há uma trintena de anos para as diversas percepções.

A do som faz-se ao fim de 0",16 a 0",14; a do tato em 0",21 a 0",18; a da luz em 0",20 a 0",22.

Para o mais simples ato de discernimento, o mais próximo do reflexo, temos 0",02 a 0",04.

Se bem que os resultados variem conforme os experimenta­dores, as pessoas, as circunstâncias e a natureza dos atos psí­quicos estudados, ficou, pelo menos, estabelecido que cada ato psíquico requer uma duração apreciável, e que a pretensa velo­cidade infinita do pensamento não passa de metáfora.

Isto posto, é claro que toda ação nervosa, cuja duração seja inferior à requerida pela ação psíquica, não pode despertar a consciência. Para que uma sensação se torne consciente é im­prescindível que o movimento perispiritual tenha uma certa duração, sem o que se fará o registro sem que a alma tenha dele conhecimento.

Tal como o fazemos em relação à intensidade, notaremos que um ato inicialmente dificultoso, e que demanda um certo tempo, torna-se mais fácil e mais rápido, quanto mais repetido.

Ao fim de muitas repetições, o tempo exigido será tão curto que o eu não mais o percebe e ele se torna, então, inconsciente.

O inconsciente psíquico

Gravam-se, portanto, no perispírito as sensações, com uma certa durabilidade. Há que observar, contudo, que elas não per­manecem no campo da consciência. Desaparecem, momentanea­mente, para dar lugar a outras, e tornam-se, por assim dizer - inconscientes. A mesma coisa dá-se em relação a tudo que temos visto, lido e aprendido. Por conseguinte, desde o nasci­mento, nossa alma cria uma reserva imensa de sensações, voli­ções, idéias, de vez que, como veremos, o mecanismo mediante o qual a alma atua sobre a matéria é igualmente mantido no invólucro fluídico.

Cada painel contemplado, cada leitura que fazemos, deixa em nós um traço. As idéias ligam-se e entrosam-se por lei de associação, que também prevalece para as sensações e per­cepções.

O território em que se escalonam esses materiais, copiosos e multifários, é o perispírito. É nele que coabitam essas aquisi­ções todas, sem riscos de baralhamento. Delas poder-se-ia dizer que constituem a biblioteca de cada ser pensante.

É esse tesouro que denominamos - o inconsciente.

Tem, portanto, o Espírito o seu armazém de idéias e sen­sações.

Podemos compará-lo a um sábio, cujos conhecimentos esti­vessem escritos em livros separados, mas dispostos em ordem imutável e religando-se uns aos outros, ao mesmo tempo que representando, cada qual, uma fração de cérebro e de peris­pírito, por isso que um e outro são inseparáveis durante a encarnação.

Quer o sábio estudar a física, por exemplo? Basta abrir - na figura da nossa comparação - o livro em que estiver inscrito o que reteve sobre essa ciência. Na realidade, o que ele faz é despertar, voluntariamente, os conhecimentos que em si jazem no estado passivo, isto é, sob a forma de ínfimos movimen­tos vibratórios. Faz com que voltem ao estado ativo, ou por outra: - eles revertem do inconsciente ao consciente, por um aumento de vibratilidade perispiritual, e, conseqüentemente, das células em que estão registrados. É uma revivescéncia que ocorre normalmente, mas que também pode apresentar lacunas, conforme a idade e o estado de saúde do recorrente. O eu, o único ser que pode conhecer e compreender, é sempre ativo e operante; mas tudo o que aprende e sente classifica-se mecani­camente, em virtude da diminuição de intensidade e tempora­riedade das impressões, sob a forma de movimentos no seu in­vólucro, prontas a reaparecerem ao primeiro apelo da vontade. O inconsciente pode também ser movido pelo trabalho do espírito durante o sono. Os atos psíquicos que se produzem, sem a intervenção do corpo físico, não têm a intensidade suficiente para se tornarem conscientes no estado normal, e então se constatam coordenações de idéias, de sensações, de imagens às vezes desconhecidas do espírito acordado.

Podemos assim explicar as irrupções penosas de lembran­ças que nos parecem destituídas de qualquer associação, e que nos chegam a todo momento, no curso do dia; as lições escola­res lidas de véspera e sabidas no dia seguinte; os problemas longamente ruminados, cuja solução nos rebenta brusca da consciência; as criações poéticas, científicas, mecânicas; as simpatias e antipatias secretas, etc. Há um caso curioso, citado por Carpenter, de um homem que tinha uma vaga idéia do que se passava em seu cérebro, sem atingir o grau de perfeita consciência.

"Um comerciante de Boston contou-me que, ocupando-se com um negócio muito importante, chegara a pô-lo de lado, convicto de incapacidade para resolvê-lo. Entretanto, tinha consciência de que algo se passava em seu cérebro, e isso era tão penoso e extraordinário que lhe fazia temer uma paralisia ou acidente outro semelhante. Depois de algumas horas, passou esse estado incomodativo, desapareceram as perplexidades e a solução procurada apresentou-se de si mesma, naturalmente.

E que a solução se elaborara no período de perturbação e obscuridade." (70)

Em suma: reitor do corpo e guarda dos estados conscien­ciais, o perispírito está em constante movimento; já determi­nando o ritmo incessante das ações vitais da vida vegetativa e orgânica, já o correspondente a outras modalidades psíquicas da alma consciente, e já, finalmente de outras, bem mais nume­rosas, que representam os estados passados.

O perispírito é qual laboratório onde se processam mil tra­balhos simultâneos, e, assim, compreende-se que deve existir uma alma para pôr em ordem as sensações que lhe chegam a todo o momento. Demais, o cérebro, representação material do perispírito, com os seus 600 milhões de células vivas e seus 4 ou 5 bilhões de fibras, está no mesmo caso. Importa seja a consciência distinta desse amálgama, sem o que nenhum desses movimentos poderia, de si mesmo, harmonizar-se. Concebe-se, igualmente, a necessidade de uma classificação automática no perispírito, sem a qual não poderia o espírito aí se reconhecer. Outra faculdade especial que lhe pertence é a atenção, que lhe permite concentrar-se sobre uma ordem particular de idéias, eliminando tudo quanto seja estranho ao seu objetivo.

Estudo da memória

Acreditamos de nosso dever estudar a memória e procurar explicar o seu funcionamento, pois ela é o fulcro da vida men­tal, contribuindo para fundar a personalidade, e, se bem conhe­cermos todas as modalidades desta faculdade, poderemos com­preender por que não guardamos a lembrança de pretéritas en­carnações. Entrementes, como lhe cabe o papel mais importante no caso da personalidade dupla e nos diferentes estados de sonambulismo provocado, o seu conhecimento aprofundado tem para nós o maior interesse. Vamos, portanto, ver, sumariamente, os principais fenômenos que a caracterizam.

A memória orgânica ou inconsciente fisiológico

Na acepção comum do vocábulo, a memória compreende, para toda a gente, três coisas, a saber: a conservação de certos estados, sua reprodução e sua localização no passado.

Na velha psicologia, só o terceiro termo constituía a me­mória, mas nós pudemos comprovar a obrigação indeclinável de admitir o inconsciente, isto é, as lembranças não mais perce­bidas pelo eu normal, e que, no entanto, subsistem. Nesta cate­goria podemos colocar todos os atos funcionais do sistema nervoso, devidos às fixações seculares de movimentos do peris­pírito.

O instinto, dizem, é ato hereditário específico, e isso implica a existência de uma memória hereditária, memória orgânica, que sabemos residir no perispírito. Vamos uma vez mais de­monstrar o mecanismo dessa operação:

1 - Há na vida orgânica, primariamente, fenômenos auto­máticos dependentes da vida em si mesma e que começam e acabam com ela. São os movimentos do coração e os respira­tórios.

2 - Em seguida, temos toda uma série de ações reflexas, que se engendram sucessivamente, formando uma continuidade ininterrupta. O melhor tipo a apresentar, desses reflexos, é o conjunto dos fenômenos da digestão. Quando na boca, o ali­mento provoca deglutição, e, a partir desse momento, vai produ­zir-se uma série de ações reflexas e progressivas no tubo diges­tivo, com a dissolução do alimento pelos líquidos orgânicos.

Toda a série de atos, mecânicos ou químicos, da digestão, são a conseqüência do movimento inicial da deglutição, e os reflexos se encadeiam uns aos outros, provocam novas excita­ções determinantes de novos atos, até que a digestão se com­plete. (71)

3 - Uma excitação exterior provoca movimentos refle­xos de reação, que colimam uma adaptação melhor do ser vivente ao seu meio, seja por defender-se, fugir ou buscar.Definamos essas ações, hoje inconscientes, mas primitivamen­te voluntárias e tornadas instintivas, por efeito de repetições inumeráveis.

Se decapitarmos um pássaro e o lançarmos no espaço, vê-lo-emos voar até que se lhe esgotem as forças. A memória do movimento instintivo das asas fora-lhe conservada na me­dula espinhal. Porcos-da-India a que se extraem os lóbulos cerebrais saltam, caminham, tremem, quando excitados.

A substância parda da medula alongada preside a umas tantas contrações musculares, coordenadas, independentes da vontade e que, muitas vezes, não chegam à consciência. Um rato, privado dos hemisférios cerebrais, dá um salto brusco se dele nos aproximarmos imitando o miar do gato. Não há nisso um julgamento, é bem certo, mas um ato instintivo, irresistível. Decorridos milênios, aquele ruído teve como resultado determi­nar a fuga sem reflexão prévia; a ocorrência desse ruído está de tal maneira associada à idéia do perigo, que, em se produzindo, o animal foge sem reflexão, incoercivelmente. Não há racio­cínio nem consciência, é puro reflexo. O mesmo se passa em cães e gatos, que, privados dos lóbulos cerebrais, apertam os lábios como para se desembaraçarem de uma sensação desa­gradável, como se lhes houvéssemos ministrado uma decocção de colocíntida. São sensações inconscientes hoje, mas percebi­das outrora. (72)

4 - Também se produzem conjuntos de movimentos musculares pela simples ação da vontade, e que requerem quan­tidade enorme de ações reflexas apropriadas, a revelarem uma perfeita técnica orgânica, inteiramente desconhecida do espírito.

"Muitas vezes, diz o Dr. Despines, admirei essa ciência au­tomática, ao contemplar o cão que segue a carruagem do dono, a saltar adiante dos cavalos, a passar por entre as rodas, e tudo isso com destreza gradativa e adequada, sem jamais se deixar colher pelas rodas ou pelas patas dos cavalos.

"Que matemática precisão muscular não se impõe à exe­cução de todos esses movimentos! E dizer que tudo isso se executa sem que o deseje o animal, e sem que o saiba como!

No homem, essa ciência automática revela-se ainda mais mara­vilhosa.

"Os músicos de cerebelo imperfeito jamais poderão executar uma partitura da maneira por que a sentem. Homens há, muito inteligentes e inábeis, ao passo que outros, de inteligência me­díocre, possuem grande habilidade. Para ser bom peão, bom ilusionista, equilibrista ou atirador, basta possuir inteligência comum, mas não há que dispensar órgãos automáticos perfei­tos. Não é a forma da mão que dá a destreza, pois que mão e dedos não passam de instrumento operatório" (73)

O verdadeiro tipo da memória orgânica deve ser procurado naquele grupo de fatos que Hartley, com tanta felicidade, deno­minara - ações automáticas secundárias, em oposição aos atos automáticos inatos. Estas ações secundárias, ou movimentos adquiridos, constituem o fundo mesmo da nossa vida diurna. Assim, a locomoção, que, em muitas espécies inferiores, é um poder inato, no homem tem de ser adquirida, particularmente no que diz com essa capacidade de coordenação que mantém o equilíbrio a cada passo, graças à combinação das impressões táteis e visuais. (74)

De modo geral, pode dizer-se que os membros e órgãos sen­soriais do adulto não funcionam tão facilmente, senão mercê de movimentos adquiridos e coordenados, que constituem, para cada parte do corpo, sua memória especial, o capital acumulado de que vive e mediante o qual age, tal como, das suas passadas existências, age e vive o espírito.

A mesma ordem pertencem os grupos de movimentos de feição artificial, que constituem o aprendizado de um oficio manual; jogos de destreza, exercícios ginásticos, etc.

Examinando-se como se adquirem, se fixam e se reprodu­zem esses movimentos automáticos primitivos, vê-se que o seu primeiro trabalho é o de formar associações. A matéria primá­ria é fornecida pelos reflexos primitivos, isto é, pelos movimen­tos nervosos inconscientes, que temos estudado no capítulo anterior. Trata-se de os agrupar de certa maneira, de combi­nar uns com exclusão de outros.

Por vezes, esse período de formação não é mais que um longo tateamento. Os atos que nos parecem hoje tão fáceis e naturalissimos, foram, originariamente, adquiridos com grande e penoso esforço.

Com os movimentos automáticos secundários vemos repro­duzir-se o que ocorreu com os primeiros movimentos automá­ticos do perispirito. Impõem-se uma aprendizagem, ensaios numerosos e reiterados, antes que o organismo fluídico adapte aos novos os seus antigos movimentos.

Quando a criança aprende a escrever, diz Lewes, é-lhe im­possível mover a mão por si mesma. Vemo-la, então, contrair a língua, os músculos faciais, mover os pés, etc. Esses trejeitos acabam por suprimir-se com o tempo. Tornam-se inúteis. Todos nós, quando ensaiamos pela primeira vez um ato muscular, despendemos grande quantidade de energia supérflua, que gra­dualmente aprendemos a restringir ao necessário. Com o exer­cício, os movimentos apropriados fixam-se, excluindo outros. Formam-se no perispírito movimentos secundários que, asso­ciando-se aos movimentos motores primitivos, se tornam mais ou menos estáveis, conforme a maior ou menor repetência dos mesmos atos. E, se estes forem reiterados a ponto de adquiri­rem rapidez sempre crescente, chegam a utilizar um tempo tão curto que ultrapassa o mínimo exigido para que o esforço seja perceptível, tornando-se o ato, assim, inconsciente.

Não diremos, pois, com Ribot, que a consciência é um fenômeno de superadição, visto que ela é a causa organizadora desses movimentos, e não desaparece da série senão quando se torna inútil e o ato corresponde perfeitamente ao seu objetivo.

É fácil constatar, pela observação, que a memória orgânica que nos aproveita na caminhada, na dança, na natação, equita­ção, patinagem, dedilhação de instrumentos, etc., em tudo se assemelha à memória psicológica, salvo num ponto - a isenção da consciência.

Sumariando-lhe os caracteres, surgirá a perfeita similitude das duas memórias.

Aquisição ora imediata, ora lenta, repetência do ato, neces­sária em uns e inútil em outros casos.

Desigualdade de memória orgânica, conforme as pessoas: temo-la rápida em uns e lenta ou refratária em outros (a inép­cia é resultante de ruim memória orgânica).

Em uns, as associações, uma vez formadas, permanecem; noutros, há propensão de as perder, ou esquecer.

Disposição destes atos em séries simultâneas ou sucessivas, como para as lembranças conscientes.

Aqui mesmo, um fato digno de nota é que cada membro da série sugere o conseqüente, como sucede quando caminha­mos, inconscientes de o estar fazendo. Sabe-se que, adormeci­dos, soldados de infantaria e cavalaria prosseguem a marcha, ainda que os últimos hajam de manter-se em constante equilíbrio. Essa sugestão orgânica torna-se ainda mais frisante no episódio citado por Carpenter - o do pianista exímio que executa, dormindo, um trecho musical, o que ele atribui menos ao sentido auditivo que ao muscular, sugerindo a sucessão dos movimentos.

Sem recorrer a casos extraordinários, encontramos em nossos atos diuturnos séries complexas e bem determinadas, isto é, cujos começos e fins são fixos, e cujos meios, diferentes uns dos outros, se sucedem em ordem constante, como seja no subir ou descer uma escada, depois de um longo hábito.

A memória psicológica ignora o número de degraus e a memória fisiológica conhece-o, à sua maneira, tanto quanto a divisão dos andares, a distribuição dos patamares e pormenores outros, de sorte a jamais se enganar.

Não será, então, lícito dizer que estas séries bem definidas são, para a memória orgânica, o que para-a memória psicoló­gica sejam uma frase, uma quadra poética, uma ária musical?

Examine-se uma prancha anatômica e ver-se-á que, para produção do movimento, entra em jogo uma porção considerá­vel de elementos nervosos, diferenciados entre si, tanto pelas formas variadas, como por sua constituição anatômica.

As células do córtex cerebral, da medula, dos nervos são fusiformes, gigantes, piramidais, etc.; os nervos motores dife­rem dos sensitivos e estes, por sua vez, dos músculos: pois, se bem nos lembrarmos de que cada_um destes elementos concor­rentes à realização de um movimento jamais são utilizados duas vezes na vida, e que guardam, entre si, relações íntimas das quais depende a conservação dos movimentos automáticos se­cundários, então, mais que nunca, reconheceremos a utilidade do perispírito.

Estes estudos da memória inconsciente e existente no siste­ma nervoso tornar-se-iam incompreensíveis sem a noção da alma com o seu envoltório fluídico, pois, de outro modo, haveria que atribuir à matéria organizada uma série de consciências, e isso é inteiramente impossível, visto termos a prova de que essa consciência existe fora de toda a matéria viva.

Este fato, bem verificado, estabelece o papel da alma no corpo e mostra que a fisiologia não faz mais que evidenciar as propriedades do perispírito, que se manifestam tangíveis pelas propriedades do sistema nervoso.

Em suma, temos podido ver as transições insensíveis que religam a consciência à inconsciência, nos fenômenos psíquicos; comprovamos que, para tornar-se despercebida uma sensação, concorrem duas causas, ou seja, insuficiência de intensidade e curteza de tempo.

A mesma coisa se dá, qual o vimos, com os fenômenos fisio­lógicos, que denominamos memória orgânica, de sorte que o inconsciente é um território comum da alma e do corpo, confir­mando-se, assim, que o perispirito é a sua sede.

A memória psíquica

No registro da sensação reside, portanto, o fenômeno da memória.

Tendo visto como se dá a fixação no perispírito, resta-nos demonstrar onde se opera e localiza essa impressão.

Como de costume, guiar-nos-emos pelo sistema nervoso, que é a forma objetiva dos estados perispirituais.

Já assinalamos a estreita relação que existe e prende a alma ao corpo. Durante a incorporação, toda a manifestação intelectual exige, imperiosamente, o concurso do corpo, a inte­gridade absoluta da substância cerebral; de sorte que as míni­mas desordens do cérebro paralisam completamente as mani­festações da alma. Bem refletindo, essa concomitância não é surpreendente à face da nossa teoria. Desde que o Espírito não atua sobre a matéria senão mediante a força vital, qualquer destruição de matéria nervosa subtrai, passageira ou definiti­vamente, uma parte correspondente da força vital ligada a essa parte, e, desde então, o perispírito, que conserva o movi­mento, não mais pode agir, à falta do seu agente de transmis­são. Mais tarde, dado que a força vital seja ainda eficiente para reconstituir os tecidos, a função se restabelecerá.

Eis alguns exemplos demonstrativos de localização da memória. (75)

Perda da memória auditiva das palavras faladas, ou sur­dez verbal. - Um doente, acometido de apoplexia, restabele­ce-se mais ou menos completamente da paralisia, mas, na opinião dos que o assistem, parece ter ficado surdo e mente­capto, de vez que responde desconexamente às perguntas que lhe fazem, como se não compreendesse a conversação.

E, contudo, um exame metódico atestará que esse enfermo não é surdo nem idiota. Não é surdo, porque se volta ao ruído da janela batida pelo vento, e mesmo ao rumor insignificante de um alfinete, ao cair no assoalho. Mais: impacienta-se ao ver que não compreende o que lhe dizem. Não é idiota, pois, se fala, exprime-se corretamente; lê-se, responde com acerto às perguntas escritas. Que é que lhe falta?

Falta-lhe a compreensão da linguagem falada. Ouvindo o seu próprio idioma, age como se ouvisse linguagem estranha. Esse idioma, aprendera-o ele, como todos nós, por uma educação lenta, o que vale por dizer que se habituara a ligar uma idéia a um som. Esse mecanismo fixara-se nele, e o que agora lhe falta é precisamente esse mecanismo, que a enfermidade des­truiu. Nestes doentes, autopsiados, nota-se, com efeito, sempre a mesma lesão: foi atingida a primeira circunvolução tempo­ral. Podemos, pois, estimar como sendo essa circunvolução a sede da memória auditiva verbal.

Perda da memória das palavras escritas, ou cegueira ver­bal. - Atacado de apoplexia no hemisfério cerebral esquerdo, o indivíduo fica hemiplégico, paralítico dos membros do lado direito. Essa paralisia foi, entretanto, passageira; o doente le­vantou-se e não apresenta qualquer distúrbio oral ou auditivo. Trata-se de um negociante preocupado com a interrupção dos seus negócios e que, não podendo ainda sair de casa, quer dar uma ordem por escrito. Toma da pena e escreve legível, mas julga que lhe escapou qualquer coisa; e, por isso, recomeça.

Nessa altura, revela-se, em toda a sua originalidade fan­tástica, o seguinte fenômeno: o homem pôde escrever, mas não pode ler o seu escrito! Impacientado, desejoso de repetir a ex­periëncia, recorre aos seus registros e também não consegue lé-los, nem compreender o que eles dizem. Tudo se passa como se ele estivesse a escrever no escuro. Conservou os movimentos manuais, assina o nome com facilidade, mas não pode, em se­guida, distinguir sua firma da de outrem. As letras que acabou de traçar são-lhe tão significantes como se foram caracteres chineses, ou equivalentes.

Que perdeu, então, este enfermo? Não foi a palavra, nem a audição dela, nem os movimentos da escrita, e sim o conhe­cimento visual dos caracteres da linguagem escrita. Habitua­ra-se, da infância, a armazenar no cérebro a lembrança, as imagens visuais das letras, de feição a retê-las e reconhecê-las, ao mesmo tempo em que armazenava a lembrança dos movimen­tos da escrita. Ora, conservando a lembrança dos movimentos da escrita e perdendo a memória visual, é claro que foi ferido de cegueira verbal. Pela autópsia, constata-se a lesão na segunda circunvolução parietal do hemisfério esquerdo.

Perda da memória motriz das palavras verbais. - Os doen­tes desta categoria compreendem o que ouvem, escrevem, lêem, tëm mímica expressiva, mas não podem pronunciar regular­mente as palavras. Algumas, quase sempre monossilábicas, ou ditos familiares, é tudo o que lhes resta, e, desse tudo, servem-se eles a todo o propósito, como a criança de vocabulário ainda incipiente.

O poeta Baudelaire, atacado de afasia (afásicos são chama­dos estes enfermos) apenas podia dizer - cré nom! Essas cria­turas perderam a memória complexa dos movimentos da laringe e da língua para a expressão verbal, desapareceu-lhes a memó­ria motriz das palavras articuladas. Desorganizou-se-lhes a terceira circunvolução frontal esquerda.

Perda da memória motriz das palavras escritas. - A hemi­plegia direita manifesta-se em conseqüência da lesão do hemis­fério esquerdo. O enfermo se restabelece em poucos meses, fala, ouve, lê, e apenas uma coisa o perturba e preocupa, posto movi­mente e utilize com facilidade a mão direita para vestir-se, ali­mentar-se, etc. É que ela se recusa, absolutamente, a executar os movimentos da escrita. Quando o enfermo tenta fazê-lo, não consegue esboçar sequer uma letra. Diz conhecer perfeitamente os caracteres a traçar, nomeia-os, aponta-os num jornal, mas... não pode escrevê-los. - O mais curioso é que o doente pode segurar a pena ou o lápis e até desenhar. Apresentem-lhe uma palavra, escrita, ele a copiará lenta, laboriosamente, qual o fa­ríamos com um idioma estranho. É que ele perdeu apenas a memória dos movimentos da escrita, e essa perda coincide com a lesão da segunda circunvolução frontal esquerda.

Acabamos de apontar destruições pertinentes a toda uma categoria de fatos. Trata-se do desaparecimento de uma série de movimentos associados e coordenados, interessando à memó­ria auditiva da palavra falada, à memória visual da palavra escrita, ou à memória motriz da palavra falada ou escrita; e, assim, podemos localizar no cérebro as partes atingidas, deter­minantes dessas supressões. Não são estas, contudo, as únicas localizações estudadas e conhecidas. Vejamos, ainda, alguns exemplos dessas perdas em bloco:

1 - Perda do sentido fisionômico. - Notável cientista muito meu conhecido - diz Carpenter - perdeu a memória fisionômica. Tinha ele 70 anos quando nos reencontramos, cer­ta feita, em casa de outro velho amigo comum. Não me reconhe­ceu à entrada, nem à saída; mais tarde, a memória foi-se-lhe apagando, até que sucumbiu a um ataque de apoplexia.

2 - Perda do sentido musical. - Uma criança - é ainda o mesmo doutor quem o diz -, depois de forte traumatismo cerebral, ficou três dias desacordada. Ao voltar a si, tinha es­quecido tudo quanto sabia de música. Só de música, bem en­tendido.

3 - Perda de todos os números. - São casos freqüente­mente observados nas lesões do cérebro. Um frio excessivo pode acarretar o mesmo resultado. Sabe-se de um viajante que, por muito tempo exposto ao frio, perdeu a noção do cálculo.

4 - Perda de dois números apenas. - É de Forbes Winslow o seguinte relato: Em conseqüência de uma trepana­ção, um soldado perdera tal ou qual porção de massa cefálica.

Alguns dias após, verificou-se que esquecera por completo os números 5 e 7. Essa anomalia desapareceu mais tarde.

A fim de não nos alongarmos demasiadamente em citações, basta dizer que se verificou em diversos enfermos a perda de um idioma estrangeiro, a de todos os substantivos.

O doente designava os objetos chamando-lhes "coisa". Te­mos, ainda, a perda do alfabeto e, enfim, a de uma só letra.

Todas essas observações atestam a localização das percep­ções e dos movimentos associados. É provável que todos os es­tados sucessivos de consciência, que caracterizam a vida mental, tenham por fulcro uma zona particular do cérebro, correspon­dente a uma região definida do perispírito.

A memória propriamente dita

Chegamos, agora, à memória propriamente dita, ao que em filosofia se chamou reconhecimento, e que é uma capacidade de evocação, o ato pelo qual se transfere um fenômeno da in­consciência à consciência.

Se a revivescência não é, de si mesma, suscitada por uma percepção da mesma natureza, pode renascer, impelida pela vontade, quando concentrado o pensamento na lembrança que se quer reconduzir ao espírito.

Efetivamente, que vem a ser recordar? É, se bem nos lem­brarmos das fases por que passou a sensação para sair do campo da consciência, restituir-lhe as duas condições indispen­sáveis à percepção, ou sejam: intensidade e duração.

Ora, a atenção tem precisamente estas duas propriedades, como passamos a demonstrar:

Ensina a experiência (76) que a atenção redunda no aumen­to de capacidade motomuscular, ao passo que diminui o tempo de reação. Quando, voluntariamente, concentramos o pensa­mento numa coisa que desejamos recordar, enviamos na sua direção uma série de influxos sucessivos, que objetivam dar ao movimento perispirítico o mesmo período vibratório que ele tinha, pode dizer-se, um tanto mais fraco, no momento em que fora registrado, isto é, percebido. Essa repetência de excita­ção, provocando, por superatividade funcional, uma espécie de congestionamento do órgão material, produz, abaixo mesmo dos limites da consciência, uma espécie de atenção passiva. Depois de uma série de excitações da mesma intensidade, com exclu­são das primeiras, naturalmente insensíveis, a recordação tor­na-se nítida, muito embora momentos antes a lembrança não existisse.

Realmente, o papel da atenção é exagerar os movimentos; e é por isso que nós podemos fazer surgir um estado incons­ciente, nos umbrais da consciência, ou seja: lembrar-nos.

Se as sensações antigas, que constituem a imagem mental, são recordadas por sensações semelhantes, é claro que a lem­brança reaparecerá por si mesma, pois que a localização é a mesma.

Ouvindo, hoje, uma ópera inteiramente esquecida, as me­lodias nos virão de pronto à memória: -será como uma ressurrei­ção natural. Mas, não somente a imagem atual rememora a antiga, quando idênticas, como também se dá quando apenas se assemelham, e mesmo quando não mais se assemelham, sob a só condição de existir entre elas alguma analogia. (77)

Aí temos um dos mais estranhos fenômenos da inteligên­cia, que é a evocação inteiramente fantasista das idéias, umas pelas outras.

É como se cada idéia irradiasse em diferentes sentidos para evocar outra idéia que se lhe aderisse por um traço qualquer, comum.

Assim, se de improviso pensarmos num perdigueiro, logo nos vem a idéia de caça, e esta nos sugere a de um coelho a pastar.

Neste exato momento, a última -consonância desperta em nosso espírito a imagem do porto de Dieppe - que tem em

Le Pollet um importante subúrbio - e nós estamos avistando o mar e já lembrando os seus perigos, etc.

Assim, a evocação das idéias antigas segue uma rota mara­vilhosa, e pode traçar as mais caprichosas variantes. Quando, porém, queremos reaver uma lembrança precisa, o espírito em­prega outros meios, servindo-se daquilo a que Ribot chamou - o ponto de referência. Citemo-lo:

Teoricamente, para recordar, não temos senão um modo de proceder. Determinamos as posições no espaço, como no tem­po, em relação a um ponto fixo, que, no que diz com o tempo, é o nosso estado atual. Notemos que essa atualidade é um estado real, que tem o seu quanto de duração. Por breve que seja, ela não é, como fazem crer as metáforas, um relâmpago, um nada, uma abstração análoga ao ponto matemático, pois que tem um começo e um fim.

Ao demais, esse começo não nos aparece como absoluto, visto que toca sempre alguma coisa com a qual estabelece con­tinuidade. Quando lemos (ou entendemos) uma frase, na quinta palavra, por exemplo, resta da quarta alguma coisa. Cada esta­do de consciência não se apaga senão progressivamente. Assim é que a quarta e quinta palavras estão em continuidade, to­cando o fim de uma no começo da outra. Eis o ponto capital. Há uma contigüidade, não indeterminada e consistente, no con­tacto de dois extremos quaisquer, e com a circunstância de to­car o extremo inicial do estado atualitário no extremo final do estado que imediatamente o precede.

Uma vez bem compreendido este fato, o mecanismo teórico da localização no tempo também o será, desde logo, pois é claro que o retrocesso poder-se-á dar igualmente da quarta à terceira palavra, e assim por diante. Compreender-se-á que, tendo cada estado de consciência a sua duração, o número de estados consciências percorridos regressivamente e o quantum de sua dura­ção darão a posição de um estado qualquer, em relação com o precedente, bem como o seu afastamento no tempo.

Praticamente, temos recorrido a processos mais simples e expeditos. É um curso que raramente invertemos, através dos meios intermediários, em sua maioria. Consiste, a nossa sim­plificação, nos pontos de referência. Tomemos um exemplo assaz comum. A 30 de novembro esperamos um livro de que muito necessitamos. Esse livro tem de vir de longe, e a sua expedição requer mais ou menos 20 dias. Tê-lo-íamos encomen­dado a tempo? Lembramo-nos de que o pedido foi feito na véspera de uma rápida viagem, cuja data podemos fixar com exatidão: - domingo, 9 de novembro. Desde logo, completa-se a recordação.

Se analisarmos este caso, veremos que o principal estado de consciência, a encomenda do livro, é, em primeiro lugar, rejei­tada no passado, de um modo indeterminado; aflora, a seguir, dos estados secundários, e, entre estes, um muito nítido: - a lembrança da viagem; e, como a encomenda fora feita na vés­pera, a lembrança da viagem tornou-se o ponto de referência.

Os pontos de referência não são arbitrários, mas impõem­-se-nos. A condição única a preencher é que o seu afastamento da atualidade nos seja bem conhecido. Em geral, são indivi­duais, mas podem também estender-se a uma família, por um nascimento, um óbito, um casamento, ou, ainda, a uma coleti­vidade, por um banquete periódico, e a uma nação, por um epi­sódio como, por exemplo, a exposição de 1889.

Os pontos de referência permitem simplificar o mecanismo da localização no passado, pois, quando freqüentemente utili­zados, a localização torna-se automática, tal como acontece com o hábito. Uma vez inúteis, os intermediários desaparecem e não restam mais que dois termos: - a lembrança e o ponto de refe­rência.

Esse retorno dos estados intermédios ao inconsciente é uma necessidade da vida mental, visto que, se fosse preciso percor­rer todos os trâmites sucessivos, para atingir uma lembrança remota, a memória dar-se-ia por impossibilitada ante a lon­gura da operação. Sem a reentrada de um prodigioso número de estados conscienciais no inconsciente, não poderíamos recor­dá-los. Tal eclipse no campo da consciência é, portanto, a con­dição essencial de uma boa memória, e, daí, esta conclusão que poderia parecer paradoxal, sem as explicações precedentes, isto é: - que o esquecimento é uma necessidade da memória.

Temos estudado mui sumariamente, mas no que têm de essencial, a sensação e a memória, sob as suas modalidades conscientes e inconscientes. O pouco que temos visto bastará para explicar os fenômenos de personalidade múltipla e com­provar, ao mesmo tempo, que as ilações tiradas desses fatos anormais são absolutamente inexatas.

Os aspectos múltiplos da individualidade

A psicologia fisiológica, aquela que estuda o corpo humano como condição essencial, e mesmo, no seu conceito, primordial, das manifestações intelectuais, rejeitou por inteiro as antigas concepções filosóficas acerca da personalidade e das faculdades da alma.

Segundo a nova doutrina, o eu não passa de simples uni­dade, formado por coordenação de elementos, cada qual com a sua vida peculiar, o que vale por dizer que é a associação do senso da existência com a memória, com as percepções, com as sensações, com as idéias, etc., o que engendra um resultado momentâneo, ao qual atribuímos uma unidade fictícia, mas que não passa de ilusão do senso íntimo, porque na realidade não existe.

Eis o que a respeito diz Ribot (78)

"A unidade do eu, no sentido psicológico do vocábulo, é a coesão, por dado tempo, de um certo número de estados cons­cienciais claros, acompanhados de outros menos claros, e de uma multidão de estados fisiológicos que, sem se acompanha­rem da consciência, qual seus congêneres, atuam tanto quanto eles. Unidade quer dizer coordenação."

Esta afirmativa, em nada aberrante das do materialismo, será verdadeira?

Dar-se-á, realmente, que o nosso eu não tenha existência distinta? Claro que a prova experimental do Espiritismo fecha a questão, de vez que a morte não destrói o Espírito, que do corpo não deriva. Mas, então, de onde provém o erro?

Exatas as experiências que demonstram a dualidade e mes­mo à multiplicidade do eu pensante, elas são, a nosso ver, mal interpretadas pelos observadores, que tiraram - como tantas vezes sucede - deduções falsas de fenômenos reais.

A fim de torná-la mais compreensível, vamos expor sucin­tamente a questão. Estudaremos o que se tem impropriamente chamado desdobramentos da personalidade, nos casos que se apresentam naturalmente; depois, os provocados por manobras hipnóticas, e, assim, poderão verificar que a individualidade é una, embora revestindo aspectos diferentes; que é proteifor­me, posto que substancialmente idêntica, ainda quando nela pareçam coexistir diversas personalidades.

Sobretudo, é preciso não perder de vista que a manifesta­ção do Espírito encarnado liga-se rigorosamente ao estado físi­co do corpo material, e que qualquer alteração ou mudança neste resulta em perversão e falseamento do mecanismo inte­lectual.

Outra razão incita-nos a estudar particularmente o assun­to, qual a de haverem procurado nestes fenômenos uma arma contra a realidade de umas tantas manifestações espíritas.

Quando se estuda o Espiritismo, verifica-se, às vezes, que alguns médiuns adormecem espontaneamente e entram a falar. Notou-se que essas elocuções não tinham, as mais das vezes, qualquer relação com as idéias do médium no seu estado nor­mal, e que o novo ser, que dessarte testemunhava a sua presen­ça, dava pormenores, relatava episódios que o médium em absoluto não conhecia. Por vezes, a nova individualidade ex­primia-se em idioma estrangeiro, de que o médium não tinha a mínima noção.

Neste caso, dizem os espíritas, trata-se de pessoa que viveu na Terra que se apodera do organismo do médium, e dele se utiliza para comunicar-se. A esse fenômeno denomina­ram - encarnação. (79)

Temos descrito e comentado esse fenômeno em livro ante­rior (80), e não cabe aqui reincidir; mas, esses diversos aspectos da personalidade permitem-nos estudar experimentalmente a memória, o que tem para nós grande valor.

Por bem compreender os fatos seguintes, importa não es­quecer que, para tornar-se consciente um fenômeno, ou seja, para que o espírito o perceba, duas condições impõem-se como indispensáveis: - intensidade e duração.

Para experimentarmos uma sensação, importa tenha a causa excitante um certo grau de energia, um mínimo de intensidade variável, necessariamente, conforme a delicadeza dos órgãos sensoriais de cada um; mas, não há concluir daí que, em não ser percebida, a sensação se perca. Seria um grave erro o su­pó-lo, porque, sem embargo, ela registra-se no perispírito, em estado de inconsciência.

Assim, também, a durabilidade da excitação torna-se con­dicional indispensável à percepção. Toda ação sensorial que não tem o mínimo de durabilidade não desperta a consciência, mas se grava no perispírito, e possível será encontrar-lhe o ves­tígio, mediante uns tantos processos. Em suma: intensidade e duração são funções que variam com o estado de sensibilidade individual. Se a criatura tem o organismo muito delicado, muito sensível, a sensação será mui rapidamente percebida, o que vale por dizer - curtíssimo o tempo de reação. (81)

Se, ao invés, se tratar de um organismo grosseiro, a per­cepção será mais lenta, a ação demandará mais tempo, e mes­mo - qual se dá com os histéricos e anestesiados - a sensação não será percebida, absolutamente, pelo membro lesado, regis­trando-se, embora, no perispírito.

Pode, também, ocorrer que, no estado normal, não tenhamos consciência de todas as sensações corporais, como, por exemplo, quando temos o espírito absorvido, concentrado numa idéia.

Se o espírito estiver grandemente preocupado com assun­tos absorventes, com trabalhos mentais muito abstratos, ou ainda sob a impressão de um desgosto profundo, ipso facto, perturbadas as relações normais da alma com o corpo, deixa de existir a consciência das sensações exteriores, mas, nem por 11580 o cérebro deixará de reter a impressão e apossar-se da modificação sobrevinda. A fase psíquica, ou consciente, não vinga existência; mas, a etapa fisiológica, que é fundamental, subsiste. Não será, pois, de admirar que encontremos indícios desse trabalho cerebral, que não logrou atingir primordialmen­te a consciência. Mas, para isso, diga-se, é preciso que haja um abalo orgânico, um eretismo particular do sistema nervoso, que reponha o indivíduo no estado em que ele se encontrava quan­do se registrou a sensação inconsciente.

Isto posto, vejamos o que devemos entender por persona­lidade.

A personalidade

Já vimos que a memória é uma condição quase indispen­sável à personalidade, pois ela é que liga o estado de atualidade aos estados anteriores, e nos afirma sermos hoje o mesmo indi­víduo de há vinte anos. É a memória que constitui a identidade, porquanto, ao mesmo passo que persistem as sensações presen­tes, surgem, por ela evocadas, as imagens antigas, que são, se­não idênticas, ao menos muito análogas. Uma árvore, por exem­plo, vista agora - imagem presente, atual -, desperta em nosso espírito meia dúzia de lembranças quase idênticas, em­bora estejamos contemplando uma outra árvore. Do mesmo modo, um barco suscitará outra meia dúzia de imagens que se­rão ainda idênticas, seja qual for o barco entrevisto. Ainda em conseqüência da associação e complexão das idéias, não será preciso avistar um barco para reviver essas lembranças, que poderão aflorar da contemplação de uma praia, de um rio, de um objeto qualquer que lembre, ainda que longínqua, a idéia de barco.

Nossa consciência está, por conseguinte, sempre presente a um certo e limitado número de imagens remotas, e sempre as mesmas, mais ou menos. Essas imagens, iterativamente re­conduzidas ao mesmo ego, constituirão a personalidade do in­divíduo, que se tornou estável, pela comunidade das mesmas.

Se, em conseqüência de um estado psíquico qualquer, as imagens ordinárias e comumente presentes à consciência, se obliterarem de chofre, e se, por outro lado, aparecerem imagens até então desconhecidas, segue-se que o mesmo eu não mais se reconhece, julga-se outro e é todo um novo estado consciências que emerge. Emerge, porém, na mesma individualidade. Os so­nâmbulos apresentam, quase sempre, esse caráter, esquecendo­-se, ao despertarem, do que se passou no sono. Mas, o que prova a integridade individual é que o segundo aspecto da persona­lidade, isto é, o personagem sonambúlico, conhece a pessoa nor­mal, como veremos dentro em breve.

Essa falta de ligação, essa descontinuidade entre dois pe­ríodos da mesma existência psíquica, explica todos os fenôme­nos, desde que se tenha em vista um segundo fator da perso­nalidade, que é o sentimento da vida.

Todos temos a noção de vivermos corporalmente, como bem o demonstrou Louis Pisse (82) em contradita à doutrina de Jouffroy, que afirmava não conhecermos o corpo senão de um modo objetivo, tal como conhecemos um objeto estranho, um pano, um móvel, etc.

O médico filósofo responde:

"Será mesmo verdade que absolutamente não tenhamos consciência do exercício das funções orgânicas? Se com isso quisermos dizer que se trata de uma consciência clara, distinta, de locação determinável, qual a proveniente das impressões ex­teriores, é evidente que a não temos; mas, isso não obsta a que tenhamos uma consciência surda, inaudível, obscura e, por assim dizer, latente e análoga, por exemplo, à que provoca e acom­panha os movimentos respiratórios, sensações que, apesar de incessantemente repetidas, passam como despercebidas.

"Não poderíamos, então, considerar como ressonância lon­gínqua, fraca e confusa do trabalho vital universal, esse notó­rio sentimento que, sem descontinuidade nem remissão, nos adverte da existência e atualidade do corpo?

"O caso é que, as mais das vezes sem razão, se tem confun­dido esse sentimento com as impressões acidentais ou locais, que, na vigília, despertam, estimulam e entretêm o jogo da sensibilidade.

"Estas sensações, ainda que incessantes, não fazem senão aparições fugazes e transitórias no teatro da consciência, ao passo que o sentimento em apreço dura e persiste, abaixo do cenário móbil. Condillac chamava-lhe, aliás com muita proprie­dade, o sentimento fundamental da vida, e Maine de Biran – o sentimento da existência sensitiva. É por ele que o corpo se figura ao eu como propriedade sua, e que o Espírito se reco­nhece, de qualquer modo existente e íntegro, na extensão do seu organismo. Monitor perpétuo e indefectível, ele fornece à consciência, incessantemente, o controle do corpo, manifestan­do assim, da maneira mais íntima, o laço indissolúvel da vida psíquica e da vida fisiológica.

“No estado normal de equilíbrio que caracteriza a saúde perfeita, esse sentimento é, qual dizíamos, contínuo, uniforme, sempre igual, o que lhe impede chegar ao eu no estado de sen­sação distinta, especial e local. Para que se torne distintamente notado, faz-se-lhe preciso adquirir uma certa intensidade”.

"Nesse caso, traduz-se por uma vaga sensação de bem-estar ou de indisposição geral, indicando, no primeiro caso, uma sim­ples exaltação do ato vital fisiológico, e, no segundo a perver­são patológica do mesmo ato. Mas, neste caso, também não tarda a localizar-se a forma de sensação particular.

"Vezes há em que também se revela de maneira mais indi­reta, e, no entanto, bem mais evidente, que é quando vem a falhar em dada região do organismo, como, por exemplo, num membro atingido de paralisia. Tal membro prende-se ainda materialmente ao agregado vivo, mas desprende-se da esfera do eu orgânico, se assim nos permitem dizer. Ele deixa de ser percebido pelo eu como propriedade sua, e o fato dessa separa­ção, ainda que negativo, traduz-se por uma sensação positiva, particular, conhecida de quem quer que tenha- experimentado o entorpecimento completo de um membro, seja pela friagem, ou por compressão nervosa.

"Essa sensação não é mais que a expressão da espécie de falha, ou queda, que sofreu o sentimento universal da vida corpórea, e prova que o estado vital do membro era real, ainda que obscuramente sentido, constituindo um dos elementos par­ciais do sentimento geral da vida do todo orgânico.

"Assim, o ruído monótono da carruagem que nos conduz acaba por se tornar despercebido, mas, se a carruagem pára de súbito, logo perceberemos a cessação 'do ruído.

"Esta analogia pode facilitar a compreensão da natureza e do modo existencial do sentimento básico da vida orgânica, que não seria, nesta hipótese, mais que uma resultante, in confuso, das impressões produzidas, em todos os pontos vivos, pelo mo­vimento intrínseco das funções, trazido diretamente ao cére­bro pelos nervos cérebro-espinais, ou, mediatamente, pelos ner­vos do sistema ganglionar."

O que precisamos reter é que a individualidade constitui­-se, desde o nascimento, por essa sensibilidade geral, sobre a qual as sensações virão enxertar-se e servir-lhes de laço. O pe­rìspírito animado pela força vital é que dá à alma o sentimento íntimo e profundo do eu. Sejam quais forem, mais tarde, as variações do estado consciente, sempre restará esse sentimento para reatar entre si os diferentes processos da vida mental, desde que as condições associativas de alma e corpo se man­tenham invariáveis.

Há uma certa tonicidade geral do sistema nervoso, median­te a qual as sensações se registram. Se essa tonicidade alterar­-se, variam os mínimos de intensidade e durabilidade indispen­sáveis à percepção. Sem embargo, o registro faz-se, mas a alma não tem dele consciência quando retorna à tonicidade normal. Com alguns exemplos, far-nos-emos compreender melhor.

As alterações da memória pela enfermidade

Um doente foi, em pleno consultório, acometido de ataque epiléptico. Breve recobrou os sentidos, mas esquecido de haver pago de antemão a consulta médica.

Outro epiléptico, caindo numa loja, levantou-se presto, e fugiu, deixando chapéu e carteira. "Só voltei a mim - dizia -, depois de percorrer um quilômetro; procurava o chapéu em tadas as lojas, mas, na verdade, sem noção do que fazia. Esta, a bem dizer, só me veio uns 10 minutos depois, quando chegava à estação do caminho de ferro."

Um empregado de escritório foi, em plena atividade, e sem outro qualquer distúrbio, assaltado de idéias confusas. Lembra­va-se, apenas, de haver jantado no restaurante, e depois disso nada lhe ocorria. Voltou ao restaurante e lá lhe disseram que jantara, pagara e saíra bem disposto, como se nada sentisse.

A obnubilação durara três quartos de hora, mais ou menos. Examinemos este último caso, que explica os outros.

Durante 45 minutos, a vertigem epiléptica subtraiu ao pa­ciente a consciência de seus atos, mas lhe deixou o automa­tismo cerebral, e, aos olhos do público, era como se nada de extraordinário lhe houvera acontecido. Que se passou, então?

Acabamos de ver que, no estado normal, cada indivíduo tem, segundo a sua constituição fisiológica, uma tonicidade nervosa que lhe é peculiar, e mediante a qual se lhe registram na consciência as sensações, com um mínimo de intensidade e outro mínimo de duração: ora, esse homem, atingido subitamente por um ataque epiléptico, tem, de inopino, modificadas as condições de funcionamento normal do sistema nervoso, de sorte a se modificarem, concomitantemente, a força vital e as vibrações perispirituais correspondentes: as sensações inscre­vem-se-lhe no perispírito, e a alma as percebe, mas de outra maneira que não a normal.

De modo que, voltando a si, o paciente não tem noção do que sucedeu durante o ataque, enquanto, paralelamente, o auto­matismo cerebral, criado pelo hábito, levava-o a proceder como se o fizesse conscientemente.

Acentuemos bem que não há duas individualidades nesse homem, que o eu é sempre o mesmo; mas, durante o acesso, o ritmo perispiritico variou, as sensações inscreveram-se no or­ganismo fluídico, modificado. Quando o perispírito volta à toni­cidade normal, isto é, cessada a crise, a alma não mais tem consciência do que ocorreu, pois as relações normais se resta­beleceram, as sensações passaram ao inconsciente, perdeu-se a memória. i; um fenômeno que pode ser assimilado ao do sonho.

Enquanto dormimos, nossa alma mantém-se em incessante atividade, mas as sensações internas são extremamente fracas, e, se parecem fortes, não é porque na realidade o sejam, mas porque nenhum estado forte existe para relegá-las a segundo plano. Desde que recomece o estado de vigília, as imagens que não tiverem senão um mínimo de intensidade passam ao in­consciente: o sonho é esquecido.

No exemplo do empregado de escritório, há dois gêneros de vida a se sucederem no mesmo indivíduo, ignorando-se uma à outra; mas, a existência extranormal não durou mais do que um quarto de hora, e nós ignoramos se ela se reproduziu.

Examinemos, agora, um caso que amplifica o precedente, e no qual duas existências desdobram-se alternativamente, estra­nhas uma à outra.

Personalidade dupla

Este caso foi relatado por Machnish na sua Philosophy of sleep.

Jovem americana, depois de um sono prolongado, perdeu a lembrança de tudo o que aprendera. Fez-se-lhe a memória uma como tabula rasa. Tornou-se preciso ensinar-lhe tudo de novo. Ela foi obrigada a readquirir o hábito de soletrar, de ler, escrever, contar e conhecer objetos e pessoas que a rodeavam.

Meses depois, ei-la presa de profundo sono, e, quando acor­dou, era qual se mostrava antes do primeiro sono, com todos os conhecimentos e recordações de sua juventude. Em compen­sação, nada lhe restava do acontecimento intercorrido.

Durante mais de quatro anos, essa moça passou periodica­mente de um a outro estado, sempre precedidos de profundo sono.

De sua dupla personalidade, tem ela a consciência que te­riam, respectivamente, da sua própria natureza, duas persona­gens distintas.

Exemplo: no estado primitivo, possui todos os conhecimen­tos primitivos; e, no secundário, só possui os adquiridos depois da enfermidade. No estado A, tem bela caligrafia, e, no esta­ do B, apenas garatuja o que a escassez do tempo permitiu-lhe exercitar. Para reconhecer as pessoas, não basta lhe sejam elas apresentadas num só estado, porque o conhecimento de um não vale para o outro. E assim acontece com tudo o mais.

No caso observado, temos uma existência seccionada a in­tervalos mais ou menos regulares, em estados durante os quais desaparece a memória normal. E sempre após longo e profundo sono que se opera a mudança. Os estados novos religam-se entre si pela, lembrança, e, no período intermitente, a vida normal prossegue. Aliás, foi ela quem se interrompeu, e o indivíduo partiu da vida ordinária para voltar a ela, quando cessada a enfermidade. Ao conjunto dos estados intermédios é que se denominou dupla personalidade. Quiseram ver no fato um segundo ser psíquico, formando-se ao lado do primeiro, com exis­tência própria e análoga à da personalidade normal.

Esta maneira de ver firma-se na coexistência de duas me­mórias conscientes que se ignoram, e na circunstância do desa­parecimento, no estado anormal, da memória semi-orgânica, semiconsciente, que permite falar, ler, escrever. De nossa parte, acreditamos que se não formou nenhuma individualidade secun­dária, cuja existência temporária mal se poderia explicar, visto que, num como noutro caso, a inteligência e as faculdades fica­ram intactas. Essa senhora experimenta uma série de suspensões momentâneas da memória psíquica e semi-orgânica, e o seu eu, privado de associar as idéias que lhe serviam de cortejo habi­tual, vê-se obrigado a criar outras, mas se servindo, para isso, das faculdades habituais, que se lhe não obliteraram.

Não há, portanto, uma nova individualidade - uma per­sonagem parasita desenvolvendo-se a detrimento- do verdadeiro eu, e sim um novo aspecto do eu. Aliás, não é difícil compreen­der como ocorre o fenômeno.

Durante o sono prolongado, produziu-se numa perturbação da força vital, com repercussão imediata sobre o movimento perispiritual. Variante a força vital, nos centros cerebrais e no sistema nervoso, onde residem as memórias psíquicas, semi-or­gânica e semiconsciente, ipso facto muda-se a relação habi­tual do perispírito com o corpo.

As sensações antes registradas em dadas condições de in­tensidade e duração não mais podem reaparecer no campo da consciência, pois que outros são, agora, os mínimos de intensi­dade necessários à revivescência das sensações. O eu terá perdi­do a lembrança do passado. Importa não esquecer, nunca, que é o estado do corpo, durante a vida, o regulador da atividade intelectual.

As novas sensações, as dos estados intermédios, vão aco­modar-se aos novos estados, registrar-se-ão no órgão material e no invólucro fluídico, simultaneamente modificados pelo novo tônus vital.

Elas estarão, por assim dizer, sobre um outro plano vibra­tório e poderão associar-se entre si. O eu terá delas consciên­cia, poderá associá-las e formar um segundo reservatório, me­nos copioso que o primeiro, mas suficiente às necessidades

Ao reaparecerem as condições primitivas, isto é, quando a atividade vital retomar a tonicidade ordinária, as antigas sen­sações poderão renascer no campo da consciência, com exclusão das novas, naturalmente. Haverá, portanto, duas memórias para o mesmo eu, como poderão apresentar-se três, se três vezes mudar o estado geral da força nervosa, ou seja, os registro das sensações.

Temos de reclamar mui especialmente a atenção do leitor para este ponto, pois aí é que devemos, a nosso ver, procurar a explicação desses diferentes estados do eu, denominados se­gundos, terceiros, etc.

Parece-nos que, seja por moléstia, seja por ação anesté­sica, ou pela de irritantes físicos do sistema nervoso, ou pelo magnetismo animal, alterando-se o estado vibratório da força vital, em conseqüência se modificam as condições ordinárias da percepção.

Essas percepções registram-se mediante novo ritmo vibra­tório, noutras condições de intensidade e duração, que persis­tem enquanto se mantém a perturbação vital, para recaírem no inconsciente logo que o ritmo se restabelece, mas prontas a reaparecerem todas as vezes que se mergulhe o indivíduo no segundo estado.

Essa hipótese explica satisfatoriamente a ocorrência de duas memórias distintas que se ignoram, e poderá, igualmente, explicar todos os fenômenos observados, mesmo quando uma das memórias abranja o conjunto dos dois estados da vida, su­posto que o segundo estado seja apenas uma como exaltação do movimento vital. Com este reparo passaremos ao exame doutos fatos.

História de Félida

Até agora, temos visto casos nos quais os aspectos do eu ignoram-se. O eu normal não conhece os atos praticados du­rante os acessos, assim como, nos intervalos, também se não lembra da sua vida normal.

O Dr. Azam publicou um caso de longa duração, impor­tantíssimo, e que serviu de ponto de partida para observação de muitos outros.

Pensamos de nosso dever reproduzi-lo com muitos porme­nores, por isso que é um caso típico. (83)

Félida nasceu em Bordéus, em 1843. Seus pais eram sadios. Aos treze anos, sobrevindo-lhe a puberdade, começou a apresen­tar sintomas de histeria incipiente. Boa operária, inteligência desenvolvida, trabalhava, por jornada, como costureira.

Aos quatorze anos, sem motivo conhecido, e às vezes levada por alguma emoção, sentia uma dor nas têmporas e caía em profunda prostração, semelhante ao sono. Esse estado durava dez minutos, mais ou menos. Depois, abria espontaneamente os olhos, como se acordasse, e entrava no segundo estado, a que convencionaram chamar - condição secundária.

Durava isso uma ou duas horas, até que reapareciam a prostração e o sono, voltando a paciente ao estado normal.

Era uma espécie de ataques que se repetiam com intervalos de cinco ou seis dias. Tendo em conta aquela mudança de ati­tudes no estado secundário, e o seu completo esquecimento ao despertar, os pais da moça e quantos se lhe acercavam na intimidade, acreditaram tivesse ela enlouquecido.

Chamaram o Dr. Azam, isto em junho de 1858. Em outu­bro do mesmo ano, eis o que ele nos diz:

"Félida é morena, estatura mediana, assaz robusta e bem disposta; muito inteligente e bastante instruída, em relação à sua condição social, também se lhe nota um caráter melancóli­co e grave. Assim, fala pouco, sua conversação é séria, seus desejos ponderados e grandes o seu devotamento ao trabalho. Os sentimentos afetivos não me parecem muito desenvolvidos. O que particularmente impressiona é o seu aspecto sombrio e a sua discrição, quase mutismo, que apenas dá para responder ao que se lhe pergunta, e nada mais.

Se examinarmos com solicitude o seu estado intelectual, achar-lhe-emos perfeitamente razoáveis os atos, as idéias, a conversação.

Quase diariamente, sem causa conhecida, ou premida por alguma emoção, ela é tomada pelo que chama a sua crise. De fato, entra num segundo estado. Assentada, costura em mãos, de repente, sem que algo o faça prever, e após uma dor violenta nas têmporas, pende-lhe a fronte sobre o peito, as mãos imobilizam-se, caem-lhe os braços a fio, e dorme, ou parece dor­ mas, dorme um sono especial, visto não haver barulho, excitação, alfinetada, que a despertem. De resto, esse letargo apresenta-se absolutamente subitâneo, durando dois a três mi­nutos. Outrora, era muito mais longo. Por fim, ei-la que des­perta, mas, não já no estado intelectual anterior ao sono. Tudo se apresenta diferente: ela levanta a cabeça e, de olhos abertos, saúda, sorridente, os circunstantes, como se tivessem chegado naquele momento. O rosto, antes sombrio e inexpressivo, como que se ilumina e transpira alegria; a palavra é incisiva, lesta, e ela continua, cantarolando, o trabalho de agulha começado no estado precedente.

Levanta-se; a seguir, caminha lépida e, se de algo se queixa, é das muitas dores que pouco antes a torturavam. Despreocupa­-se, então, dos trabalhos caseiros, passeia pela cidade, diver­te-se enfim. O temperamento se lhe transformou por completo, de triste fez-se jovial, a imaginação como que mais se exalta e pelo menor motivo comove-se, na tristeza como na alegria. Passou da indiferença a supersensibilidade.

Nesse estado, lembra-se perfeitamente de quanto ocorreu nos estados análogos, anteriores, bem como da sua existência normal. Nesta condição, tanto como na outra, as faculdades intelectuais e morais, posto que diferentes, podem dizer-se ínte­gras: nenhuma idéia delirante, nenhuma apreciação falsa, nenhuma alucinação! Félida é simplesmente uma outra criatura, e nada mais."

Pode dizer-se, mesmo, que, neste segundo estado, nessa segunda condição - como diz Azam -, todas as faculdades pa­recem mais desenvolvidas e mais perfeitas. A segunda existên­cia, em que a dor física se torna insensível, é muito superior à outra, sobretudo pelo fato extraordinário de facultar a Félida a lembrança, não só do ocorrido durante os acessos precedentes, como o concernente à sua existência normal; ao passo que, durante a vida normal, não se lembra, em absoluto, do que lhe ocorreu durante os acessos.

A separação das duas vidas é tão radical que, tendo-se entregado, no estado secundário, a um rapaz que lhe prometera casamento, em regressando ao estado normal foi acometida de convulsões histéricas quando o médico, consultado sobre a dila­tação do ventre, declarou-lhe que estava grávida.

A condição secundária, que em 1858 e 1859 não correspondia a mais que um décimo da existência, mais ou menos, foi-se amiudando e aumentando em duração, de modo a igualar e ultrapassar a vida normal, até chegar gradualmente ao estado atual.

Presenciamos, aqui, dois aspectos do mesmo eu: no estado secundário, Félida sabe que é sempre o que foi, consciente de sua identidade e do prosseguimento da sua existência. Seu ca­ráter mudou; porque as dores lhe diminuíram, sente-se menos subjugada que no primeiro estado e reflete a sua alegria. Qualquer de nós pode constatar as diferenças que a doença acarreta ao caráter. Não há, por isso, que inventar uma segunda indivi­dualidade. Retornando ao estado normal, Félida experimen­ta todos os dissabores provenientes do olvido, já não tem a noção dos seus negócios, quais as visitas emprazadas, os com­promissos assumidos, etc. Dessarte, vê-se obrigada a escrever o que lhe cumpre fazer, sempre que, no estado secundário, prevê a crise de regressão ao estado normal.

Estes cuidados, aliados à enfermidade, podem muito bem lhe modificar profundamente o caráter; mas, nada autoriza a crer que haja nela duas individualidades distintas. Não é raro, infelizmente, encontrarmos criaturas extravagantes, incoeren­tes, de gênio caprichoso, e não há necessidade de recorrer a intermissão de uma personalidade suplementar para lhes justi­ficar o caráter ora meigo, ora irascível.

Acreditamos, portanto, que se não legitima aqui a presun­ção de duas individualidades distintas, antes nos parece mais verossímil e racional a manifestação de dois aspectos diferentes da mesma individualidade.

Esta manifestação difere da precedente, pela circunstância de Félida conhecer toda a sua vida no estado secundário e es­quecer, no estado normal, tudo quanto se passou durante a crise. Bastará supormos que essa crise, exaltando-se, modifica a força vital, para compreender o fenômeno.

Se o ritmo ondulatório dessa força muda de freqüência e torna-se mais rápido, o sistema nervoso será mais vibrante, mais sensível, mais delicado; não só poderá reproduzir as antigas sen­sações, mas também as novas registrar-se-ão no perispírito, com um mínimo de intensidade mais fraca do que durante a vida normal, de sorte que, ao reaparecer o estado primário, impos­sibilitará o eu normal de conhecer o que se registrou durante a crise.

Presumimos o aumento de freqüência vibratória do peris­pírito, porquanto, conforme uma experiência de Binet, que adiante veremos, o tempo de reação diminui, durante o sono hipnótico, para as sensações inconscientes. Supomos, então, que a crise tem, como tem o sono magnético, a virtude de aumentar e apurar as percepções sensoriais, visto que estas não mais se fazem pelos órgãos dos sentidos, e sim diretamente pelo peris­pírito, como vamos constatar num outro caso de dupla perso­nalidade.

A história da Senhorita R. L.

O Dr. Dufay (84) começou a tratar da senhorita R. L. em 1845, e teve ocasião de observá-la quase cotidianamente, durante 10 anos.

A paciente contaria, então, os seus 28 anos. Alta, magra, cabelos castanhos, gozava boa saúde, posto que excessivamente nervosa e sonâmbula, aliás, desde os verdores da infância.

Os primeiros anos, passou-os no lar paterno, lar campo­nês. Mais tarde, fez-se dama de companhia, servindo em casa de famílias ricas, com as quais viajou muito. Depois, acabou escolhendo uma profissão sedentária: fez-se modista.

Vejamos a descrição da primeira modalidade da sua crise histérica: sonhando, ela vê a genitora e quer partir imediata­mente para a sua aldeia; faz, apressada, um grande embrulho, pois a "carruagem está à sua espera"... Corre, então, a despe­dir-se das pessoas da casa, e não o faz senão derramando lá­grimas abundantes; admira-se de encontrar no leito essas pes­soas; desce rapidamente as escadas para só deter-se à porta da rua, da qual se teve o cuidado de retirar a chave. Aí, abate-se desolada, e resiste, tenaz e longamente, à pessoa que insiste para que volte ao leito, a queixar-se amargamente da "tirania com que a tratam".

Termina, mas não sempre, por voltar à cama, as mais das vezes sem se despir completamente. Esta circunstância é tudo o que lhe indica, quando desperta, não ter dormido tranqüila, visto nada recordar do que se passou durante o acesso.

Eis, agora, a segunda modalidade: - São 8 horas da noite, mais ou menos, diversas obreiras trabalham em torno de uma mesa sobre a qual está a lâmpada. R. L. dirige a tarefa, com­partilha dela ativamente e, o que é mais significativo, con­versando com jovialidade, quase sempre. Súbito, ouve-se um ba­rulho... É a cabeça da moça que se abateu sobre a mesa, pen­dido o busto para a frente. Assim começa o ataque. Aquela pancada, que impressionou a assistência, não lhe causou a mí­nima dor; ela perfila-se dentro em pouco, tira os óculos, agas­tada, e continua o trabalho encetado, não precisando agora das lentes côncavas que a ela, grande míope, tão necessárias se lhe fazem no estado normal. E agora, ei-la que se coloca de jeito a que a costura se exponha o menos possível à claridade da lâmpada. Precisa-se enfiar a agulha, leva as mãos debaixo da mesa como que procurando a sombra, e consegue, em menos de um segundo, o que no estado normal não logra sem dificulda­de e só depois de muitas tentativo, mau agrado o auxílio dos óculos e da lâmpada.

Falte-lhe um retalho, uma fita, uma flor de tal ou tal matriz, ela se levanta e vai, às escuras, procurá-las e encon­trá-las mesmo fora dos lugares próprios, e aí, sempre no escuro, compara e separa o que lhe convém, sem jamais se equivocar.

Pelo costume que tem de trabalhar conversando, quem não presenciasse o começo do acesso jamais perceberia qualquer alteração, se a senhorita R. L. não mudasse a sua maneira de falar, logo que entra nesse estado a que chamaremos secun­dário.

Assim é que entra a baralhar o pronome pessoal eu com a flexão mim, qual o fazem as crianças, e usando a terceira pela primeira pessoa do verbo. Por exemplo: quando mim está estúpida, quer dizer quando estou no estado normal.

Certo que a inteligência, já acima do vulgar no estado normal, adquire, durante o ataque histérico, notável desenvol­vimento; uma amplitude mnemônica considerável permite à paciente minudenciar episódios conhecidos e ocorridos em qual­quer época, quer coincidindo com os seus períodos normais, quer com os do estado histérico.

De todas essas recordações, contudo, as inerentes ou rela­tivas aos períodos histéricos obliteram-se completamente, logo que termina o acesso. Aconteceu-me muitas vezes - e Dufay - provocar a sua admiração, e até estupefação, lembrando-lhe procedimentos e atitudes da estúpida criatura, assim conceituada por ela, mas que a criatura histérica me havia revelado. Há assuntos que a senhorita R. L. trata com a maior natura­lidade no estado histérico, mas suplicando que não se fale deles à outra, porque, diz - "mim sabe que ela não vo-los quer con­fiar, e tornar-se-ia muito infeliz".

As pessoas do seu convívio cuidam, pois, de poupar-lhe a mágoa de saber que cometera uma indiscrição ou fizera qual­quer confidência, que ela própria prejulgava lhe haveria de ser profundamente lastimável.

R. L. tem a noção perfeita da superioridade intelectual de uma das suas personalidades, bem como da notável acuidade dos seus sentidos no estado secundário. Normalmente míope, adquire, no estado histérico, uma vista admirável, não só du­rante o dia como à noite. Paladar, olfato, tato, não parecem modificados, mas a alma adquire extrema sensibilidade.

Pensei - diz o Dr. Dufay - que essa indisposição diminui­ria com a idade e acabaria por desaparecer naturalmente. Mais tarde, informaram-me de que assim foi, depois de uns 15 anos.

No seu período de histeria, R. L. sabe perfeitamente que é a mesma criatura do estado normal, e, no entanto, desejaria permanecer no estado secundário, de vez que, neste, passa me­lhor e as suas faculdades são mais ativas.

Há, portanto, exaltação da personalidade normal, mas não mudança do ser. A alma é sempre a mesma, mais afinada e menos engolfada no corpo.

É essencial, com efeito, notar que, assaz míope no estado normal, a sua vista tornou-se não apenas excelente, mas su­per aguda nos períodos histéricos. Assim é que não mais necessita dos óculos e enxerga no escuro, a ponto de enfiar agulhas, distinguir cores, etc. Não se trata de automatismo, porque ela procura e encontra os mesmos objetos noutras gavetas, quando mudados sem que o saiba. Mais: não há meio de enganar-se, parecendo até que distingue melhor os ditos objetos do que no seu estado normal.

Como explicar essa retificação do órgão visual? Mudaram­-se-lhe os olhos? Ter-se-á: subitamente achatado o cristalino, antes tão acentuadamente bombeado? Não, certo, pois restituída ao estado normal, continua míope.

É, portanto, forçoso admitir que esse segundo estado lhe defere maior sensibilidade visual, e isso independentemente dos órgãos sensórios. Parece-nos difícil recusar, neste caso, o fenô­meno da vista dupla. O paciente não mais percebe o mundo pela forma habitual, desprendido, em parte, do seu corpo, ou, então, de qualquer forma, menos peado que no estado normal. O perispírito radia em torno dele, o corpo fluídico entra, seja como for, num estado de tensão superior ao normal, e daí a acuidade de memória dos estados remotos. A doença é que de­termina o eretismo da força vital. Desde logo, diminuem os mí­nimos de intensidade e duração necessários para que o estado normal se revele consciente. Tudo que venha a ocorrer no esta­do secundário será perfeitamente registrado no cérebro, mas num sintonismo cérebro-celular já não compatível com a vida ordinária. De sorte que, libertada da crise, a senhorita R. L. não se lembrará do que pudesse ter dito, ou feito, durante o estado histérico; ao passo que este, com o lhe facultar maior sensibilidade, permite-lhe conhecer o que se passam em ambos os estados.

Os fenômenos precedentes são em tudo semelhantes aos que se observam no sonambulismo espontâneo ou provocado.

É fato mil vezes comprovado que o sonâmbulo pode, em transe, lembrar-se de episódios passados, de conversas havidas nos transes anteriores, perdendo de tudo a noção quando e logo que desperta.

Os antigos magnetizadores e hipnotistas não julgaram ne­cessário criar uma individualidade suplementar, para esclare­cer esse esquecimento parcial, quando tão facilmente podemos verificar que é a mesma individualidade manifestando-se com caracteres diferentes, sempre que lhe superexcitam as faculda­des naturais. (85)

Poder-se-á ter qualquer dúvida quando duas pessoas pare­cem coexistir, viver simultaneamente no mesmo indivíduo, qual o pretende Binet; mas, ainda neste caso, supomo-la derivada de insuficiente interpretação dos fatos, como teremos ocasião de ver. (86)

O sonambulismo provocado

Numerosos são os meios eficazes para provocar o sonam­bulismo. Tão numerosos, mesmo, que seria fastidioso aqui apre­sentar uma lista completa e heteróclita.

Um dos processos mais usados pelos hipnotistas é o de Braid, que consiste na fixação do olhar. O paciente assenta-se, faz-se silêncio em torno e o experimentador pede-lhe que fixe o olhar num objeto qualquer, brilhante ou não, isto à medida que lho vai aproximando dos olhos, de modo a determinar uma con­vergência forçada e fatigante dos globos oculares.

Ao fim de algum tempo, a visão perturba-se, as pupilas tremem, contraem-se, o paciente adormece.

Também se pode hipnotizar produzindo um ruído monótono e prolongado, ou violento e subitâneo. Igualmente um jacto de luz - elétrica -, a compressão forte ou branda de uma parte do corpo, qual o vértex nos histéricos; a constrição dos pole­gares, os passes magnéticos, são outros tantos meios de hipnotizarão. Finalmente, também se emprega a sugestão, que con­siste em cerrar as pálpebras do paciente e ordenar-lhe impe­rativa e reiteradamente que durma, para que o efeito se pro­duza. Depois de repetidas experiências, a manifestação torna-se mais fácil, bastando, às vezes, a mais leve excitação, um sopro, um gesto, para que o sono se produza.

Podemos resumir todos os processos de consecução do fenômeno, nas pessoas a ele predispostas, classificando-os como outros tantos excitantes do sistema nervoso. Estes, sabemo-lo, são de três espécies: - físicos, químicos, vitais. (87)

Os irritantes físicos são: o ruído fraco e prolongado, ou brusco e estridente; a luz viva e de súbito projetada; as cor­rentes elétricas demoradas e fracas, o ímã, as chapas metáli­cas de Burcq.

Os irritantes químicos são: - o éter ou o clorofórmio, que, produzindo anestesia, muitas vezes ensejam o sonambulismo.

Entre os excitantes mentais, o melhor é a vontade, utili­zada na sugestão verbal. Pode empregar-se simultaneamente, às vezes, vários destes processos, como nos passes magnéticos, nos quais ações brandas e repetidas sobre a sensibilidade geral conjugam-se à vontade de produzir o sono.

Todos estes processos, tão variados, resultam na modifica­ção da força nervosa, engendrando uma espécie de eretismo e tendo por conseqüência a mudança das relações normais da sensação; - portanto, a do estado vibratório do perispírito. Em sobrevindo essa mudança, temos o sonambulismo, que se man­terá enquanto atuar a ação perturbadora.

Quem - pergunta Pierre Janet (88) - não se surpreende ao ver que uma histérica anestesiada no estado de vigília tor­na-se sensível no estado cataléptico? Torcei o pulso esquerdo de Leonina ou de Lúcia, despertas, e vereis que nada sentem; entretanto, se o fizerdes quando cataleptizadas, ainda que elas o não vejam, é possível sugerir-lhes um sentimento de cólera. Meta-se uma chave na mão esquerda de Leonina, em vigília, e ela não perceberá o que seja: façamo-lo no estado cataléptico e havemos de ver que logo gesticula como procurando abrir uma porta. Existe, portanto, no estado cataléptico uma correspondência tátil, inexistente no estado de vigília. Logo, não há que nos admirarmos maiormente se essas duas criaturas se esquecerem, no estado de vigília, de qualquer fato, para o re­lembrarem sonambulicamente, ou seja, quando experimentam a sensação tátil.

Essa maneira de ver confirma a opinião por nós emiti­da (89) há mais de 10 anos, a respeito das modificações do perispirito e consecutivas às variações da força psíquica nos centros nervosos. Temos, assim, a satisfação de registrar que as numerosas experiências posteriores mais não fizeram que con­firmar o nosso ponto de vista a respeito.

Não é por mera satisfação de amor-próprio que assinalamos aqui o fato, mas por bem demonstrar que o conhecimento do perispirito, com as suas

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