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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A Nova Civilização do Terceiro Milênio-Parte 1-Pietro Ubaldi

 

Índice do BlogParte 1- Parte 2

A Nova Civilização do Terceiro Milênio

Autor: Pietro Ubaldi

Tradutor: Oscar Paes Leme

PREFÁCIO

Embora o presente volume também possa ter significado autônomo e ser lido como tal, vem aqui apresentado como comentário sobre A Grande Síntese. Este não é livro que se pos­sa retocar, corrigir, cujo texto se possa ampliar, enxertan­do-lhe digressões, conceitos novos. Nasceu de um jato, em dado momento histórico, com determinada função social e espiritual, através de particular estado psicológico de intuição. Condicionado por esses elementos especiais e irrepro­duzíveis, conservou-se inalterável, como se vazado em bron­ze, inviolável e firme, qual rochedo que desafia as tempesta­des dos séculos. A primeira, por ele prevista e esperada, de­sencadeou-se de súbito, quase como resposta da História ao grito de alerta lançado ao mundo e para confirmar a previ­são de seu renovamento. Só hoje, nos fins desta guerra mundial, se pode começar a entender a verdadeira significa­ção de A Grande Síntese: ser o livro da nova ordem do mun­do, isto é, o código da nova civilização do III milênio. Livro assim, de essência inspirada e racional apenas quanto à for­ma, não pode, portanto, ser refeito ou modificado, pois é de substância completa, arquitetura equilibrada e estrutura de­finitiva. Isto posto, impossível voltar de novo a ele, que é pura intuição e síntese, senão com outra psicologia e dou­tro ponto de vista, preponderantemente analítico e racional, embora muitas vezes a inspiração volte a guiar e iluminar o texto assim analisado, desenvolvido, completado, aprofundado naqueles pontos em que, nessa obra não era possível, e ao mesmo tempo lógico, demorar-se. (Foi dito no capítulo LXXXVI de A Grande Síntese: "A natureza deste livro sintético não me permite descer a particularidades")

O momento histórico esta adequado a este comentário. Quem escreve deve saber que alguns conceitos só em deter­minados momentos podem ser compreendidos pela psicologia coletiva; é inútil enunciá-los antes do tempo porque, pelo menos, os leitores contemporâneos não podem entendê-los. Pois já chegou grande parte da destruição prevista; a dor atingiu os ânimos; a pobreza, conseqüência da guerra, pri­vando-nos de tantas coisas humanas, convida-nos e leva-nos compreender a riqueza das coisas do espírito; a ruína do mundo de nossos tesouros terrestres tornou-as mais necessárias; a tempestade conduz-nos à razão, através do exame dos pontos fracos do sistema e do reconhecimento dos erros co­metidos. Aí está! A Grande Síntese, o livro da construção, preparado antes do aniquilamento, quando ninguém o acredi­tava possível, já está pronto. Este é o momento de relê-lo, me­ditando-no, para melhor entendimento. Esse livro é legado ao atual momento histórico, foi escrito para nele funcionar como viva força criadora. Evangelho da renovação espiritual, livro da juventude chantado na soleira do futuro milênio, para além da qual já desponta o dia das novas construções, essa obra é legada à vida e à sua ressurreição. Universal e imparcial a sua filosofia, divina filosofia que, como expressão do pen­samento divino, a vida e os fenômenos nos expõem; simples e lógica filosofia dos fatos, que nos espera para dar nova di­reção à atividade humana, mais de acordo com o moderno progresso, isto é, capaz de dar sentido às conquistas mecânicas e científicas realizadas. Já de tal modo são estas no­táveis que, para conservarem a importância, é-lhe necessá­rio conquistar esta nova sabedoria. Este volume é o terceiro da segunda trilogia do mesmo autor. A primeira compõe-se de: 1) Grandes Mensagens e A Grande Síntese; 2) As Noúres; 3) Ascese Mística. A segunda, de: 1) História de Um Homem; 2) Fragmentos de Pensamento e de Paixão; 3) A Nova Civilização do Terceiro Milênio, com o que completa seu ter­ceiro termo O texto deste escrito (capítulo XVIII) explicará melhor o sentido das duas trilogias, cronológica e conceitualmente divididas pelo maior acontecimento de todos os tempos, a guerra mundial de nossos dias: a primeira trilogia, de espera e preparação; a segunda, de atividade e re­construção. Por esta diferente posição do pensamento é que A Grande Síntese se distingue deste volume. Enquanto na História de um Homem na luta pela vida terrena se drama­tiza essa verdade e nos Fragmentos de Pensamento e de Paixão se exemplifica essa luta, o ciclo da atuação avan­ça ainda mais, neste livro, chegando a sua fase de concreti­zação. Aqui se trata, pois, de iluminar, de clarear A Grande Síntese, de demonstrá-la melhor, especialmente descendo a pormenores, isto é, à parte humana, individual, social e moral que nos está mais próxima, com preferência à parte ci­entífica e cósmica, mais afastada e já amplamente desen­volvida. De fato, o objetivo principal neste trabalho é não só expor e convencer, mas, acima de tudo, aplicação prática.

Deste modo se fecha este segundo ciclo da obra, a que seguirá outro, isto é, a terceira trilogia, que começa com o volume já elaborado: Problemas do Futuro, seguido por ou­tros ainda em preparo. Tudo isso formará uma só obra, um único edifício orgânico que, através da solução dos problemas do ser, se propõe a contribuir para que se construa a nova civilização do III milênio, preparando a nova era do espírito.

I

A VERDADEIRA CIVLIZAÇÃO

O conceito fundamental de A Grande Síntese pode resu­mir-se nestas palavras: ordem em Deus. Esse trabalho[1] apareceu, com profética vidência, mesmo na véspera do clímax da hora histórica, no limiar da maturidade dos tem­pos, a cavaleiro da maior revolução social do mundo, no mo­mento em que devia produzir-se grande choque de dor a fim de preparar os ânimos para receber a boa-nova da concepção regeneradora, estranha a este mundo tão distante ainda do Evangelho. Hoje, que a destruição material e espiritual de tantos valores antigos preparou o terreno para a recons­trução, podemos entender muito mais esse livro, filho e pre­cursor dos tempos, paralelo aos acontecimentos, expressão viva de seu dinamismo, indissoluvelmente fundido neles e na renovação social e moral que representam.

Os fundamentos desse tratado são profundos. Ligam-se com a gênese do cosmos, encontramo-los até mesmo no pen­samento criador de Deus. Essa síntese, abrangendo e unifi­cando o conhecimento científico e filosófico do século, enun­cia tão sólido conceito, que é possível pô-­lo como base de nova civilização, e tão dinâmico que pode amparar-lhe o desenvolvimento. Trata-se de sistema orgânico e compacto em que todos os fenômenos, do campo cientifico ao moral e social, se prendem em lógica de ferro, de modo a impor-se à formação mental e racional do homem moderno. Trata-se de sistema que, ao mesmo tempo, dá a chave para a solução de todos os problemas, desde os teóricos e abstratos da filo­sofia até aos práticos e concretos de nossa vida como indivíduos e como sociedade.

Esta visão orgânica e completa apareceu pouco antes da hora em que o mundo, saindo da gigantesca experiência, deve caminhar para a reconstrução. Pode-se, pois, definir tal visão como o plano regulador da sociedade futura. E, além disso, apareceu em grande curva do caminho evoluti­vo do homem, no ponto critico de nova maturação biológi­ca, cujo grande significado se compreenderá mais tarde; ma­turação elaborada em silenciosa e subterrânea incubação milenar e que explode, justamente agora, em mortificante e necessário banho de dor, que purifica e renova. Nesse mo­mento apocalíptico e de ebulição, tal pensamento era expos­to como orientação e ajuda, porque orientação é o que nos falta e, acima de tudo, se toma necessário, pois como hoje em dia, quem sabe, nunca a vontade de Deus esteve, na ter­ra, tão luminosamente presente e tão ativamente criadora.

Enquanto, pois, a natural maturação biológica, presen­te nas leis da vida, possibilita ao homem na atual plenitude dos tempos a capacidade de compreender e fazer atuar novos critérios de vida e novas formas de relações sociais, suce­dem-se grandes acontecimentos históricos, com a função precisa de elaborar novos conceitos e acompanhá-los até a sua aplicação. O mundo agita-se em guerras destruidoras e cru­entas para aprender a assimilar esses conceitos que se não assumissem corpo tangível sob a forma de destruição e de dor, não seriam percebidos pelo homem surdo e indiferente dos nossos dias, vivo só na carne, mais ainda adormecido no que diz respeito ao espírito. Chegou a hora de compreender essa profunda sabedoria da História, esse sentido criador que possuem os acontecimentos que elaboramos e seguimos, esse significado divino presente em todos os fenômenos. O homem, em milenar ascensão, vai despertando formas mais sutis de sensibilidade e de consciência mais perfeita. Já se percebem no horizonte os clarões da vida nova do espírito. Lá, no futuro, há verdadeiro incêndio de esplêndidas afirma­ções e criações novas; e a divina lei de evolução que o homem, embora lhe resista e se atrase, fatalmente ali che­gue. Chegou a hora de dizer ao homem: Levante-se, filho de Deus, sob forma de consciência mais esclarecida, em es­tada social mais orgânico e completo, supere a ferocidade atual e civilize-se finalmente, mas a sério. Chegou a hora de compreender que a nossa assim chamada civilização atual não é civilização, mas barbárie, e no fundo o homem moderno é primitivo e inconsciente, pobre fantoche comple­tamente ignorante, presunçoso e prepotente quase sempre, cego e rebelde, e, apesar disso, sem o saber e querer, obedi­ente à lei que o guia, e que tudo sabe, tudo faz por ele, o manobra como autômato e, sem que ele o saiba, lhe traça a história, prepara os acontecimentos, entrosa os choques, apresenta as soluções, impõe as conclusões, elevando os lideres, edificando e destruindo, exaltando e abatendo, de acordo com sabedoria desconhecida pelo homem. Chegou a hora de compreender o significado das ações que indivíduos e povos todos os dias realizam, sem que lhes conheçam o verdadeiro significado e as conseqüências. Chegou- a hora de tornarmo-nos conscientes colaboradores de Deus no plano construtivo do que ele criou em nosso campo terreno ao invés de estúpidos servidores de Satanás, em absurda obra de re­belião. Chegou a hora de compreender, como mais inteligentes; de confraternizar, como mais honestos e justos; de colaborar, como mais conscientes.

A vida não pára, é movimento que não se pode fazer parar; deve, pois, inexoravelmente, amadurecer alguma coi­sa. Esse caminhar da História hoje se aproxima da grande curva, onde com o nosso século se completa novo ciclo de civilização e se prepara outro. Sintomas sutis advertem des­se fato os intuitivos que sabem percebe-los; isto nos vem indicado pela concatenação dos ciclos históricos, pela lei do equilíbrio nos desenvolvimentos e pela lei do equilíbrio entre ação e reação. Esta é nossa fase, tal como está inscrita na lógica da evolução orgânica do universo; esta é nossa posi­ção no tempo, na série das maturações milenares; este é o elo que hoje devemos soldar. Ai estão os germes, mas os germes foram feitos para desenvolver-se, aí estão as causas que tendem a atingir o efeito. A Grande Síntese é alarma estridente, antecipação reveladora, chamamento da atenção para profundas realidades ainda não vistas, advertência desesperada, apelo que acontecimentos mundiais logo subli­nharam e justificaram. Aquele brado de alerta - já foi lan­çado e ninguém pode extingui-lo, do mesmo modo que não há incompreensão humana a quem Deus tenha concedido o poder de parar a História ou a vida.

Trata-se de concepção que, se nos princípios adere ao Evangelho, tem agora meios próprios de demonstração e o escopo de, pela torça da razão, atuar na vida individual e social, onde é praticamente nova. Nova forma mental, or­gânica e harmônica, substitui aqui a antiga, inorgânica e caótica, mas neste sentido: não mais o indivíduo permanece isolado do conjunto, mas se enquadra harmonicamente no funcionamento orgânico do universo. Enquadramento gigan­tesco, em que a vida se torna imensa. Pode objetar-se que o indivíduo é o que é. Indiferente a tudo isto, completamente aprisionado na visão estreita de interesse egoísta, está léguas e léguas afastado de semelhante orientação. Mas pode-se também responder que essa é ignorância da mais profunda realidade da vida, ignorância de que ele sofre os danos, até mesmo nos próprios cálculos utilitários e egoístas; danos que deve sofrer, porque a sua. inconsciência não pode impedir o funcionamento das leis da vida e as reações das suas forças. Pode-se também responder que o progresso biológico é fatal, porque a evolução constitui tendência fundamental do ser e o homem, embora involuído, inerte e rebelde, deve mais cedo ou mais tarde ser impelido para o alto e transformar-se, cedendo ao irresistível e divino impul­so contido na essência das coisas. Em A Grande Síntese, o desusado atrevimento da utopia foi valorizado e enfrentado com conhecimento. Isso não é loucura, mas resulta do confronto da vontade e da força, de que o homem dispõe, com a potência volitiva e dinâmica das divinas leis da vida, possuidoras dos meios necessários para atingir seu escopo e que sabem muito bem consegui-lo. Há, de certo, luta entre o anjo e a besta, mas é da lei a vitória do anjo.

Muito embora o homem resista; não se lhe pode interromper a ascensão. A vida obedece a lei e, através de me­canismo de instintos, de reações e de fatalidade, de fato o homem a cumpre, apesar de não compreender ou não querer. O mecanismo que a executa, o sistema de forças motor desse mecanismo está mesmo dentro do homem, implanta-se-lhe­ na própria estrutura, pertence-lhe ao ser. Mas a este cumprimento da lei se chega através de erros e de conseqüentes retificações expiatórias; é, pois, fatigante e doloro­so. Em A Grande Síntese se ensina, pelo contrário, a respei­tar essa lei inexorável, à custa do menor dano e com a maior vantagem, possível; e ensina-se como, nesse complexo siste­ma de forças que é o universo, há de alguém movimentar­-se, sem doloroso choque a cada passo. O que torna atual essa síntese, em correspondência estreita com a momento histórico e com a moderna fase de evolução humana, é a maturidade do tempo, é o desenvolvimento nervoso e intelec­tual que torna o homem, hoje, apto a receber e aplicar na vida estes princípios que, se tivessem sido enunciados há anos atrás, não teriam sido aprofundados, analisados cientificamente, racionalmente demonstrados. Por isso aquele escrito apareceu em nosso momento histórico como novo en­sinamento, paralelo à nova capacidade de compreendê-lo.

Hoje essa compreensão é necessária e não apenas pos­sível. O homem vive e move-se em campo de forças inteli­gentes, em que se emaranha; forças que, em face de sua agi­tação inconsciente e desordenada, reagem e lhe fazem pagar caro o erro. Ora, se por causa de menor conhecimento e dis­ponibilidade de meios, esse erro era até agora mais limitado e, portanto, de conseqüências mais suportáveis, hoje que o progresso técnico e científico dilatou imensamente o raio de ação humano e aumentou o poder humano de incidir no dinamismo fenomênico do planeta, hoje não se tolera mais a própria ignorância, porque conduz a conseqüências prá­ticas que, agigantadas pelo aumentado domínio de meios e possibilidades, podem tornar-se catastróficas. Vimo-lo na potência destrutiva da presente guerra. Estamos em perío­do de desequilíbrio, porque o poder de agir é hipertrófico, desproporcionado ao poder de entender e iluminadamente dirigir a ação. O desequilíbrio está presente, hoje, em todas as nossas coisas e em toda nossa vida. Mas o próprio desequilíbrio é criador, luta, esforço genético. Procura desesperadamente reequilibrar-se, hoje, em plano mais alto, em ordem mais ampla, ordem em que o homem inclua e assimile elementos novos. Daí a necessidade de pensamento que seja dado como orientador desse esforço biológico, a neces­sidade de o homem, esse menor de idade, aprender ainda, não destruindo o preciosíssimo progresso científico já alcançado, mas completando-o com paralelo progresso moral; de modo a equilibrar-se a ascensão da matéria com proporcio­nada ascensão do espírito. À vida se rege, como já dissemos, por leis inteligentes que têm fins próprios, querem e sabem atingi-los, querem a perpetuidade e não a catástrofe, permitem o perigo, mas como elemento do esforço concluído com a salvação. É, pois, fatal eliminar-se a desproporção entre o desenvolvimento material a o espiritual e restabele­cer-se o equilíbrio. A vida quer. Por isso, na certa o espíri­to retomará amanhã a dianteira.

Aos detentores do poder e aos lideres das finanças e da indústria pode o problema do mundo parecer simples pro­blema técnico. Não é, porém, problema técnico somente. E isso porque, se as grandes agitações sociais se desencadeiam para conquista de objetivos concretas, utilitários, de interes­se econômico, a verdade é que a vida, além de vasta e complexa, é una e unitária. Se é esse, pois, seu aspecto, sua fase construtiva de momento, ainda existem sempre, embora momentaneamente adormecidos, em estado de latência, os outros aspectos da vida, principalmente o moral, hoje estacionário. É justamente esse o lado oposto, mas complementar, do hipertrófico progresso material de nossos dias. Ora, uma vez que as leis da vida impõe, em todos os pontos, desenvolvimento harmônico e progresso equilibrado, é lógico es­perar-se, agora, correspondente desenvolvimento espiritual, para compensar o contemporâneo excesso de progresso ma­terial. Quem conhece a organicidade funcional do universo deve admitir que o esforço genético das formas biológicas não pode criar o novo e gigantesco indivíduo coletivo, filho dos nossos tempos, assim desproporcionado, sem equilibradas correspondências simétricas, só membros e forças, sem paralela sabedoria diretora desses membros e dessa força. Esta sabedoria é justamente aquela que A Grande Síntese antecipa e prepara.

O progresso material de nossos dias representa, assim, desproporcionado desenvolvimento unilateral. O ponto cri­tico tangível, resultante desse desequilíbrio e revelador des­sa desproporção, é a moderna guerra de destruição. Trata-se de fase transitória, formadora de excesso que as leis da vida devem corrigir e reequilibrar, reagindo em sentido opos­to. Desse modo, demonstra atrofia espiritual a crença de que o problema do mundo seja problema técnico, utilitário, de recursos e matérias-primas. Mas por isso mesmo surge a complementação do organismo com o desenvolvimento do lado atrofiado. A guerra de destruição nasceu do fato de que, o novo poder da técnica, sendo mecanicamente acessível a todos e, assim, à maioria involuída, foi empregado sem discernimento os resultados práticos do progresso acaba­ram indo às mãos do homem ainda não moralmente desperto, sem preparo, insuficientemente sábio para fazer bom uso do novo poder. Foi o mesmo que pôr faca em mão de criança. Por isso antigamente a sabedoria era mistério para o povo. O progresso mecânico acabou sendo entrega de ar­ma perigosa a mãos inconscientes. O homem de hoje em dia, moralmente deficiente, foi tomado de surpresa diante das novas possibilidades que a ciência lhe oferecia. Corpo de gigante com cérebro de criança de peito. Resultado: en­trechocar-se o homem com dolorosa experiência, para que aprenda na dor e ela o obrigue a completar-se do lado do espírito. Assim, através do sofrimento, as leis da vida hão de reequilibrar o homem, que, a par de progresso material, conseguirá correspondente e proporcionado progresso espiritual. A Grande Síntese não é pensamento isolado, mas força viva que, colaborando com os impulsos biológicos, tende a reposição, em equilíbrio e contribui para esse progresso espiritual.

Aquele livro e estes comentários por isso se dirigem mais aos homens do futuro que aos de nossos dias, isto é, a ho­mens para quem estas afirmações não serão anacrônicas. O homem de hoje, cético, há de sorrir. Mas o certo é que todo o plano dessa construção espiritual obedece à lógica, que não é a lógica míope do momento que passa; visa a objetivos ele­vados e longínquos que não se identificam com o de salvar-­se e fruir a vida; corresponde a pressentimento, a visão pro­fética, a fé antecipadora, a sentido de missão, razão por que o autor deste livro não espera ser logo compreendido, sabe que em vida nenhum fruto verá e colherá; mas semeia para que outros, noutros tempos, vejam e colham. Estamos ago­ra na fase negativa. Todavia, quem conhece o necessário equilíbrio da vida sabe que, por causa de paralelismo antié­tico, o não vem antes do sim, do mesmo modo que a noite vem antes do dia. O cálculo das probabilidades faz-nos crer que os fatos, porque se repetiram muitas vezes, devam conti­nuar repetindo-se sempre. Mas os equilíbrios da vida recla­mam exatamente o contrário. Exatamente porque determinado fato se repetiu tantas vezes deve ceder o passo à posição contrária. Por isso, em lugar de continuação do passa­do, como vulgarmente se pensa, as situações futuras são, quase sempre, resultado de retorno ao passado. Confiamos muito nas aparências, mas especialmente na História, como vimos, as aparências enganam.

Muito na superfície vivemos. E, no entanto, a natureza é de profunda sabedoria. Se perscrutarmos o íntimo e des­cobrirmos o mistério das coisas, aparece algo bem diferente daquilo que habitualmente se diz, se crê, se faz. Há, no fun­do, divina lei, inteligente, boa e sábia, que a tudo rege e nos guia, como crianças, em direção ao bem. Ela exprime o pensamento de Deus. O homem, sem grave dano para si mesmo, não pode substitui-la na direção da vida. Tem toda­via, a presunção de fazê-lo e não se orienta senão por sua ignorância e prepotência. E como hoje em dia essa substi­tuição se torna cada vez mais extensa e profunda, por causa do aumento da capacidade intelectiva e da disponibilidade técnica, o perigo correspondente vai ficando mais e mais grave e ameaçador. Por isso A Grande Síntese é desespera­do brado de alarma solto no limiar mesmo da catástrofe em que a humanidade poderá encontrar a própria destruição.

Se tudo isso é estranho à moderna forma mental, alheio à corrente que a maioria segue, se, ao contrário, em geral se concebe a vida limitada e caoticamente, isso não impede que a ordem e a reação obrigatória, existentes no mundo astronômico e químico, existam também no universo moral, naquele mesmo em que, por ignorância das leis que o regulam, os homens gostam de agitar-se o mais loucamente possível. Essa pobre formiguinha, a mexer-se tanto na super­fície desse grãozinho de poeira cósmica chamado terra, sabe por acaso o que efetivamente faz e quais as conseqüências do que faz? A ilusão não é sua herança? Não é absurdo, mesmo, que por ignorância do modo como funciona a má­quina universal, indivíduos e povos vivam eternamente dan­do cabeçadas na parede, sem esperança de libertação, osci­lando continuamente entre o erro e a dor? E se se faz algum esforço para sair desse aperto, por que deve ser tachado de utopia?

Não. Seja qual for a incompreensão, a resistência, a di­ficuldade, a fadiga, não é loucura ensinar que se deve su­perar a ilusão e a dor e conquistar valores mais sólidos que os valores do mundo. Se pode parecer utopia, é utopia do Evangelho, utopia decorrente do sublime paradoxo do Sermão da Montanha, que menospreza a tudo quanto o mun­do estima, utopia de aceitação necessária a menos que se saiba viver como besta ou como inconsciente ou, então, se volte as costas para a vida tal como a vida é, quer dizer, a menos que se renuncie à reprodução e se vá em busca da morte. A existência oferecida por nosso civilizadíssimo mun­do moderno não é aceitável senão para os inconscientes, os involuídos, os desonestos, salvo se, no futuro, complemen­tar-se em melhor estado, estado que lhe justifique as dores e compense a bestialidade. Disso se segue: para o homem consciente, evoluído, honesto, a vida é apenas missão dolorosa, peregrinação de exilado que, passando pelo mundo que não lhe pertence, se dirige a sua verdadeira e longín­qua pátria. Isso tudo pode parecer utopia; todavia, sem ela nem ao menos a esperança de futura civilização permanece na palidez mortal do mundo moderno. Animada por essa esperança a caminhada do Exilado se transforma na fadiga do construtor. Os céticos poderão sorrir, desviando para a miséria terrena o olhar posto nas nuvens. E haverá até mesmo quem goze com essa miséria e se sacie. Cada qual julga como quer, mas no modo como julga revela a própria personalidade.

Não. O Evangelho e as teorias que o seguem são utopias apenas aos olhos do involuído; o céu só é paradoxo se olhado aqui do chão. Para quem não é capaz de sentir pela fé ou entender racionalmente que a vida continua no imponderável, para esses é absurda, por natureza, a doutrina evangélica da caducidade dos valores humanos. Para o in­voluído a vida não é continua, é finita, limitada ao breve pe­ríodo terreno. Questão de sensibilidade, inteligência, evolu­ção. Mas esta dor dos nossos dias, dor que acabará por atin­gir o mundo todo, é dom de Deus para abrir as mentes e levá-las a compreender a aparente utopia. Estamos numa curva de nossa maturação biológica, e a dor a acelera. Por isso podemos reafirmar estar próximo o reino do espírito. O mundo o repele porque, involuído, ainda não lhe compre­ende a beleza e a vantagem. Mas sente-lhe a falta, tem fome de algo que lhe falta e não sabe o que é. O mundo está insatisfeito. Procura e não acha. Por isso se agita. Só está tranqüilo quem achou. A procura da felicidade preocupa o mundo e atormenta-o; mas o mundo não a encontra porque se agita desorientado, fora do caminho certo. Entre ilusões e mentiras perde tempo. Ao invés disso, precisa de con­quistar conhecimento e, como conseqüência, a sabedoria de entrosar-se e colaborar com a Lei. O novo princípio é ordem. Ordem em Deus e não desordem com Satanás. Em A Grande Síntese não se faz ouvir a voz deste ou daquele partido, religião ou escola filosófica, mas a voz imparcial dos fenô­menos, que canta as harmonias não só da matéria ínfima, como as das regiões mais elevadas do espírito. Não se trata aqui de questões puramente teóricas, de remotos e abstratos problemas filosóficos que não nos dizem respeito. Trata-se da superação de nossa dor e da ciência que se propõe supe­rá-la e vencê-la; trata-se de enormes vantagens utilitárias compensadoras do esforço e do tormento da mortificação a que o homem está submetido; trata-se de, finalmente, ensi­nar e viver, não mais como crianças loucas, mas como adul­tos cheios de sabedoria. Trata-se de ver com clareza tudo quanto se relaciona com nosso destino humano, de obter resposta que esgote todos os porquês e todos os problemas que nos dizem respeito, e de comportarmo-nos, desse modo, com pleno conhecimento da conseqüência das nossas ações. Loucura continuar a atirar assim ao acaso e a embater-se continuamente contra reações que estupidamente desejamos e nos açoitam até sair sangue. Chegou a hora de compre­ender o delicado mecanismo dos fenômenos e de civilizarmo-­nos, não de brincadeira como até agora se fez; não mais na superfície apenas, mas em profundidade também; não só na forma, mas na substância; tanto nos meios como no fim; na matéria e no espírito.

Completou-se o ciclo de destruição anunciado por Grandes Mensagens e A Grande Síntese. A divina Lei deixou atuarem livremente as forças negativas do mal, que desem­penharam a tarefa Entramos na fase construtiva, a vida colhe seus valores positivos e, nos ânimos batidos pela dor, os reconstrutores encontram o terreno preparado para o trabalho. O espírito, que através de tanta destruição se li­bertou de muitas das incrustações e escórias da matéria, pode finalmente dizer, depois de superado o profundo des­moronamento da onda descendente do materialismo: eu sou, esta é minha vez, posso criar. E a vida, que parecia prostra­da e morta, torna a soltar mais forte e mais para o alto, seu eterno grito de juventude. Isso é o que, irresistivelmen­te, a lei de Deus quer agora. As forças do mal tiveram o seu dia. Mas Deus disse: basta. Em todo lugar, ato, fenômeno do universo estão presentes Seu pensamento e Sua vontade. A História está pronta; os tempos, maduros. Quer dizer: no ritmo da sinfonia dos acontecimentos humanos, no conca­tenamento de causas e efeitos, no desenvolvimento da fatal evolução do mundo, o caminho do tempo está próximo des­sa maturidade e a vida não pode recusar-se a percorrer e concluir essa evolução.

Aqui como em A Grande Síntese, se afirma para cons­truir, não se polemiza nem se ataca para destruir. Afirman­do as eternas leis biológicas iguais para todos, aderindo à divina verdade no Alto, inviolável, a que ninguém escapa e é forçoso obedecer, estamos acima das divisões humanas. Não falamos de filosofia pessoal e arbitrária, mas objetiva e pessoal, ditada não por simples homem, mas pela voz dos fenômenos. Essa voz é verdadeira para todos os vivos, quer creiam nela quer não, quer a confessem ou a neguem, quer a sigam ou contra ela se rebelem. Deriva de principio dire­tor, guia de todas as coisas, exprime o pensamento de Deus. Inútil negá-lo. Esse pensamento existe. Se às vezes alguém nega a Deus é porque Deus existe e de Sua existência não existe prova maior do que essa negação. Não se pode con­ceber e negar o que não existe. A negação se relaciona apenas com a posição de nosso pensamento que, seja qual for a verdade, pode oscilar desde o extremo positivo da afirmação até ao extremo oposto: a negação. A Grande Síntese anali­sou esse pensamento divino, isto é, o plano construtivo do universo; a ela remetemos o leitor desejoso de conhecer essa análise. Ai se diz derivarem as conclusões de caráter moral e social de premissas tão fortes que se torna impossível re­movê-las. Aquele livro é, de fato, demonstração que impõe essas conclusões como obrigatórias para todos os seres ra­cionais. Porém, com respeito ao "quadro geral", não nos permitiu demorar em particularidades, exemplificando,. ma­terializando o conceito no realismo da vida prática. Vamos agora transportar para o plano humano da ação essa mas­sa de conceitos, transformar em concreto impulso constru­tivo a luminosidade desse imponderável, isto é, vamos trans­formar o princípio em ação, mas ação que as premissas cósmicas iluminem, sustentem e justifiquem. Trata-se de dar forma bem mais próxima e tangível, mais particular, porém mais real (porque mais aderente à hora histórica), mais hu­mana, atual e prática, aos princípios universais de um tra­tado universal. Trata-se de aplicar, dentre as mil e uma ver­dades humanas relativas, entre as forças que operam nossa ascensão individual e coletiva, trazer até aos homens cá na terra, para atuar sobre ela, a eterna verdade de Deus. Trata-se de mostrar nos fatos o funcionamento ainda ignorado daquelas forças, a ignorância humana no movê-las e os cho­ques dolorosos que a acompanham. Trata-se de educar pa­ra melhores formas de conduta individual e de convivência social, fazendo o homem compreender que enormes tolices vinha fazendo até agora, com dano para si mesmo, e como com um pouco de inteligência e de boa vontade poderia ter-se poupado a tantas dores. Trata-se de aplicar injeções de bom senso em nossa sociedade, fazendo compreender que grande vantagem advirá, para cada um e para todos, de comportamento mais civilizado, independentemente de todo credo e de todo partido. Civilizar-se é o "slogan" do momen­to. Isso significa dever o homem olhar seu próximo com compreensão, superar a ferocidade e o egoísmo, isto é, a maioria dos inúteis atritos sociais, tão graves para o fun­cionamento de toda a máquina, que assim se move com di­ficuldade, e da qual cada indivíduo deve suportar a sua parte. A sociedade humana é organismo cheio de passividades infinitas, gasto por inúteis resistências, sempre em luta in­terna entre uma parte e outra. Isto, sem dúvida, exprime a fadiga construtiva do involuído. No entanto, para que altu­ras se poderia transferir essa luta, como seria mais belo e excelente, mais próprio de seres evoluídos, lutar por objeti­vos mais sublimes! Como seria mais inteligente e convenien­te compreender e admitir as necessidades do próximo e, da­da a necessidade e utilidade da convivência, torná-la possí­vel com maior senso de concórdia! Que interessam as dife­renças entre os vários planos políticos do mundo, se os imperialismos são todos iguais e tudo se reduz à substância biológica de vencer para dominar? Não se pode destruir em ninguém o direito à vida concedido por Deus, não se pode destruir as forças biológicas que, se golpeadas, ressurgem amanhã em outra parte, retorcidas pelo golpe, prontas pa­ra reagir. Não se pode postergar os equilíbrios e destruir as leis do universo.

O homem de hoje pode ser ateu, anarquista, delinqüente, pode crer-se cidadão do caos, árbitro de liberdades impossíveis. É próprio de cretinos permanecer assim à mercê da desordem e da ilusão, quando as leis de todos os fenô­menos nos falam de ordem, de divina lei inviolável e onipre­sente, de ações e reações, de liberdade, mas de responsabili­dade também; falam-nos do enquadramento coercitivo das rebeldes desordens do mal nos limites da lei do bem; dizem-­nos que a dor castiga o louco que se atreve a violar a lei de Deus. Como é mais útil e sábio para todos harmonizar­-se com essas forças que jamais poderão ser dominadas por nossa revolta e nos esmagam se contra elas nos rebelamos! Não é insensata essa brincadeira de desobedecer e pagar pela desobediência, sem nunca sentir vontade de aprender? A estrutura do universo é o que é, não pode ser alterada. O homem deve compreender que a dor lhe nasce da desorde­nada conduta e não está na criação, que é bem ordenada; não está em Deus, que é perfeito, mas apenas nele, homem, e que o plano regulador do grande organismo total tende irresistivelmente para a felicidade, embora pelos caminhos da dor. Isso não é ilusão, mas a verdadeira meta da vida. Mas buscamo-la onde não está e não deve estar; é natural que não a achemos. Assim, por meio da dor, a lógica do universo nos responde à absurda pretensão de subvertê-la. Quanto nos cansamos para errar o caminho e, no entanto, nosso bem já está escrito na lei natural das coisas; para atingi-lo bastaria cumprir essa lei expressa na assim chamada vontade de Deus! Desse modo a felicidade continua sendo meta quimérica, inatingível miragem. Até mesmo a experiência materialista do século passado a procurou, mas procurou mal, onde não está. Não a encontrou, natural­mente. Estamos, ainda, no começo da estrada e precisamos recomeçar tudo. Enganamo-nos. Mas a estrada existe e aqui o demonstramos.

II

O INVOLUÍDO E A PROPRIEDADE

Começamos das bases concretas da vida, de seus alicerces no mundo da matéria, de seus aspectos mais realistas, mais acessíveis e de maior compreensibilidade, mas ao mes­mo tempo menos adiantados Conseguiremos desse modo, ascendendo pouco a pouco na escala da evolução, atingir no topo os aspectos mais refinados e espirituais da vida, aque­les a que só os eleitos conseguem chegar. Em geral, os pla­nos orgânicos segundo os quais se traçam as diretrizes hu­manas do funcionamento coletivo são elaborados à luz de concepções filosóficas, políticas, sociais, todas relativas e ar­tificiosas. Como não se trata de castelos no ar, de fictícias formas, de produtos de cerebralismo ou criações de mundo mentiroso, que esconde realidade totalmente diferente, tra­ta-se então de erigir em sistema o caso particular e relativo do indivíduo que conseguiu sobressair-se ao ponto de tor­nar-se expoente. Explica-se dessa maneira como tais siste­mas muitas vezes não se realizam, historicamente terminem em ilusão, e como ao invés de atingir a meta proposta aca­bam na contradição e na luta. É lícito nos perguntemos ago­ra que é que de fato acontece sob as aparências da Histó­ria, que outro plano, diferente do visto na superfície, atua na profundidade e quais as verdadeiras e efetivas diretrizes do fenômeno social. O homem comum, de vistas curtas, pode a seu talante crer em todas as miragens que quiser, sem que a vida se preocupe com desiludi-lo, exceto diante do fato consumado com que ela termina, não antes. Esse homem pode imaginar ser a criação o caos a que só a sua vontade saiba e possa levar ordem, ordem a seu modo e a seu servi­ço. As forças da vida deixam-no liberalmente acreditar no que quiser, nisto ou naquilo; somente quando se trata de concluir na realidade dos fatos, tiram-lhe tudo das mãos e fazem as coisas a seu modo. Fato é a existência de diretriz dos fenômenos sociais e dos de toda a vida, independente­mente do homem, muitas vezes em antítese com a sua von­tade, muitas vezes para corrigir e dominar sua intervenção. Na melhor das hipóteses o homem é intérprete, instrumento cuja trabalho valerá tanto mais quanto mais fiel executor houver sido dessas diretrizes, quanto mais tiver sabido con­formar com elas a própria atividade, isto é, quanto mais houver sabido agir como função delas, em concordância e não em choque com o funcionamento universal. A presença de uma Lei, de inteligência superior aos meios de compre­ensão do homem normal, e que é mais forte, em poder de vontade e de ação, do que os meios postos à sua disposição, é fato que resulta de toda a demonstração de A Grande Síntese e não se precisa neste livro demonstrar desde o co­meço. Essa lei é lembrada, ilustrada e de funcionamento explicado em quase todas as páginas desse volume, como deste. Tudo quanto, a todo momento, se maneja e se aplica deve necessariamente existir.

A verdade que, a cada passo, não muda no espaço e no tempo, o plano firme, o verdadeiro plano orgânico regula­dor da História e dos acontecimentos sociais, o real sistema diretor dos fenômenos coletivos humanos, que de fato age contra as aparências e através delas, não reside sempre no que o homem diz, afirma e proclama em altas vozes, mas é estabelecido por essa Lei que, independentemente do homem, conhece e tem nas mãos as diretrizes da vida. Em outras palavras: se queremos entrar a fundo no problema e resol­vê-lo seriamente, não se entenda o fenômeno social como fenômeno histórico querido pelo homem, que o dirige e com­preende, mas como fenômeno biológico dependente de leis sábias e poderosas; diante delas o melhor que se faz é pro­curar impô-las a si mesmo, mas compreendê-las e a elas obedecer. Os fenômenos sociais e essa série de aconteci­mentos componentes da História, de fato ligados por intima lógica, e que desconexamente na História relatamos apenas ligados cronologicamente, serão compreendidos apenas se os reduzirmos ao que efetivamente são, isto é, à substância biológica, a momentos do funcionamento orgânico do uni­verso e ligados a ele. Plano orgânico diretor da sociedade humana, se não quisermos andar às cegas na tentativa e cair na ilusão, só no-lo poderá dar o conhecimento dessa Lei e nossa adesão a ela; as normas diretoras da vida coletiva não podem ser artificiosa criação humana, conseqüência de premissas abstratas, fora da realidade, mas devem ser as próprias normas de toda a vida aplicada ao caso especial da sociedade humana. Quem no próprio caso se separa do to­do, quem concebe os fenômenos isolados, permanece alheio à organicidade do todo, que é conjunto conexo e compacto, unitário e impecável. Era necessária tal premissa, que nos garantisse base de absoluta solidez, premissa indispensável para quem quiser construir seriamente, construir sem espírito de partido, não para uma classe social apenas, de acordo com interesse particular, para vantagem de um só grupo ou povo, mas construir universalmente, com estabilidade, acima da luta e das divisões humanas. As afirmações e con­clusões que derivarem dessas premissas, mais do que opi­nião, teoria, produto pessoal, serão simplesmente o resulta­do da verificação objetiva do funcionamento das leis da vida, serão a própria expressão delas, assim proclamada pela própria voz dos fenômenos. Procuramos com isso alcançar a imparcialidade e a solidez. De verdade partidária e interes­sada não saberíamos o que fazer. Nada se cria com isso. A solução do problema já existe; trata-se apenas de sabê-la ver e com simplicidade expô-la. Ligamos, pois, o fenômeno social, com o qual ficamos marcados, ao conceito fundamen­tal de A Grande Síntese resumido no princípio: ordem e Deus.

Os fenômenos humanos, políticos e sociais, encontram, pois, sua expressão mais simples na vida animal; nessa, que os encerram em embrião, têm as raízes; são os mesmos fe­nômenos levados a mais alto grau evolutivo. Os problemas sociais, no fundo são os mesmos fundamentais problemas da vida isto é fames e libido, conservação do indivíduo e multiplicação da espécie, comida e sexo. Crescimento demográfico, imigração, guerras, expansão, dominação, vitórias e derrotas, capital e trabalho, propriedade, coordenação de funções, disciplina das relações impostas pela convivência, aí estão problemas que a vida conheceu e resolveu antes de o homem tê-lo feito e, mesmo sem ele, em outros agregados sociais animais; resolveu-os segundo os princípios eternos, participantes do sistema orgânico que em toda parte rege todos os fenômenos. Não poderemos resolver esses proble­mas, como hoje se nos apresentam, na fase evolutiva ao ní­vel humano atual senão de acordo com os mesmos princípios por que as leis da vida os resolveram em graus evolutivos mais elementares, seguindo a lógica íntima segundo a qual foram construídos, penetrando-os em profundidade, reduzin­do-os à essência. Veremos quanto tudo isto os torna mais claros e simples, lógicos e harmônicos. Sob as mais desvai­radas teorias sociais, sob as mais complexas superestruturas ideológicas, o homem aplica simples leis biológicas, luta e progride biologicamente segundo os métodos da vida e para atingir-lhe os objetivos, seguindo as estradas já praticadas na vida animal, pois a vida é uma só para todos e guiada por lei única, embora diversamente adequada aos diversos planos evolutivos. Essa unidade de diretrizes é a base da fraternidade de todos os seres, que os mais adiantados sentem e não é utopia; fraternidade não apenas entre todos os seres, mas entre todos os fenômenos. E o homem inclui-se no âmbito da divina lei que, apenas com um princípio unitário, rege todos os seres e todos os fenômenos.

Os especiosos apelativos modernos, os inumeráveis "is­mos" com os quais se definem os vários sistemas humanos podem ser entendidos apenas se assim reduzidos a seu de­nominador comum biológico. Essa substância liga-os e re­conduz à única verdade mãe de todas as coisas, à que per­manece constante acima de todas as formas, em todos os climas, tempos e. povos, à verdade aplicada, por todos, em­bora calada, combatida, negada. Assim, os problemas sociais se reduzem, na base, à luta para obter meios de vida, ga­rantir-lhe a posse, proteger-se e à família e os filhos. Desse modo nascem os problemas do capital e do trabalho, da propriedade, da família e dos institutos jurídicos fundamentais. Se a substância do Direito não muda através dos sé­culos, devemo-lo ao fato de ela exprimir eternas leis bioló­gicas. O progresso aperfeiçoa as relações, completa-as nas particularidades, melhora-as na substância, fazendo-as pro­gredir, cada vez mais, em direção à justiça; mas a raiz não muda. O Direito só pode ser entendido, se o referirmos a sua substância biológica. Tem sentido apenas como ato de coordenação que, cada vez mais harmonicamente, exprime essa substância. Muitas vezes, pois, ao contrário, na base do direito público e privado se colocam abstrações metafísi­cas, axiomas arbitrários, premissas não enquadradas na fe­nomenologia universal e não justificadas pela realidade dos fatos. As verdadeiras premissas dos fenômenos sociais, enquanto fenômeno da vida são biológicas e não filosóficas, metafísicas, políticas.

Isso posto e esclarecido, classificam-se os homens, não teoricamente, com base em premissas artificiais e sistemas arbitrários, mas conforme seu real valor biológico, isto é, o grau de evolução atingido. Essa classificação diz respeito à intima e real natureza do indivíduo e é a única a levar em consideração a substância. Não é o caso de demonstrar aqui a realidade da evolução, embora no plano das ascensões hu­manas. A verdade desse fenômeno fica demonstrada em cada página de A Grande Síntese. Resulta da observação que, se­gundo o próprio grau de evolução, muda a estrutura orgâ­nica, nervosa e psíquica, e o estilo de vida do indivíduo. As classificações sociais, face a essas fundamentais diferen­ças de peso específico individual, são simples estruturas de todo fictícias, instrumentos de luta, meios de esconder a realidade que permanece debaixo, inviolável, a verdade pron­ta a revelar-se a qualquer momento. A nossa assim chamada civilização é em grande parte questão de forma, simples verniz: A fase de legalidade jurídica atingida por nós é man­to que cobre bem ou mal essa substância biológica; o ho­mem, se graças a ele pode parecer diferente, permanece substancialmente o que é na realidade biológica. Se se trata e ladrão ou delinqüente, o ordenamento jurídico poderá impedir que continue a prejudicar, mas ele permanece o que é. Isso, e não o que aparenta, é o que interessa conhecer. Posição social, poder econômico, valor aparente não tem importância. E até as classificações sociais, enquanto não corresponderem à classificação biológica, carecem de im­portância.

Isso nos permite levantar o véu das aparências e pene­trar na realidade da substância. Tudo fica mais verdadeiro, mais simples, mais compreensível. Assim, por exemplo, ex­plica-se o materialismo como fenômeno de involução, fase de descensão evolutiva, antecedente de novo surto evolutivo, e se compreende a psicologia negadora do materialista e do ateu como a de primitivo incapaz de sentir as forças do es­pírito. Assim, embora mais inferiores, o delinqüente, o anarquista, o gatuno são apenas tipos biologicamente bai­xos, ainda não civilizados na substância, não importa se o sejam na forma. Em nossa sociedade, podem prosperar até mesmo sob as normas da legalidade, mas em civilização ver­dadeira, que não considerasse, apenas a superfície, mas tam­bém a substância, isso não deveria ser possível. É evidente que não se pode levar a sério senão uma civilização em que isto não é possível. Todavia, quantos e quantos indivíduos hoje folheiam o código e aprendem a não infringi-lo. Esses aprenderam somente a afiar as armas, a conquistar em astúcia o que perderam em brutalidade, ao invés de transfor­mar-se evoluindo, firmam-se na estrada da involução. Per­manecem inadaptados à verdadeira vida coletiva orgânica consciente. Que importa a forma, se na substância conti­nuam agressivos egoístas, ignaros da sociedade como o ho­mem das cavernas?

Face à propriedade, primeira disciplina na aquisição dos bens esse tipo biológico revela-se o involuído que é. Está sempre pronto a roubar, apenas a reação protetora e defensiva da lei possa ser evitada, de modo a não produzir-lhe dano. Tal tipo deve ser muito comum pois a lei e o cos­tume humano foram constrangidos a partir da presunção de má-fé, até prova em contrário. Não tem senso de pro­priedade senão da própria e só o temor de uma punição o induz ao respeito alheio. E a ameaça defensiva pode tornar-se até mesmo educativa, enquanto este pouco a pouco aprende, através dos séculos, mais elevadas formas de vida. E, paralelamente, a defesa da propriedade pode assim tor­nar-se cada vez menos férrea, brutal, material e cada vez mais pacífica, simbólica e imaterial. Essa defesa será cada vez menos feita por muros, por grades, por armas, por san­ções materiais e cada vez mais reduzida a simples sinal in­dicador, a reações menos violentas, a sanções puramente morais; mas embora a defesa se desmaterialize, isto é, tenda à própria anulação no entendimento pacífico, é sempre o temor da pena que inibe esse tipo biológico e isso o revela como involuído. Mas, involuído que talvez já tenha o pressentimento de formas sociais mais elevadas, nas quais não domina já a usurpação e a força, mas o direito e a justiça. Tem o senso da superioridade do sistema bem diverso do evoluído e nesse sistema procura mimetizar-se para melhor esconder-se, justificando-se. Por isso eles gostam tanto de recobrir-se com o manto da justiça e eternizar-se no poder, para fazerem da autoridade, que é dever e missão, base de direitos e arma de ataque e defesa. Como o assalta a preo­cupação de justificar-se com encenação de legalidade! Com que cuidado procurava o Sinédrio dar forma legal de juízo à supressão de Cristo; com que trabalho procuravam os assassinos de Luiz XVI aparecer como juizes e não como assassinos comuns! E que satisfação para os homens poder, em todas as revoltas, roubar e matar legalmente, isto é, se­guramente, sem temor de sanções punitivas, único obstá­culo para eles, e fazê-lo como autoridade alta e tranqüila e não mais com a incerteza e o perigo de ladrões! E se a coisa dá certo o resultado da força e do furto assim se es­tabiliza e se regulariza depois sob o manto de legalidade humana que, como se crê, basta para tornar justo o injus­to. Pobre autoridade e pobre propriedade! Que triste gêne­se, que posição ao nível do involuído e que grande caminho para purgar e resgatar aquele pecado original! Mas, apenas em qualquer convulsão social o exercício da sanção jurídica diminui de intensidade, já vemos o involuído, mal possa fa­zê-lo sem perigo, tirar a máscara e revelar-se o que é, dan­do-se abertamente ao furto, a forma primitiva de aquisi­ção da posse, forma própria do involuído. Esse é caminho mais breve do que o trabalho, forma própria do evoluído, que o revela e presume estado orgânico coletivo ignorado na fase inferior do outro. Todavia, embora seguro da impunidade, o involuído, em, defesa, para justificar-se perante a própria consciência e a consciência alheia e a si mesmo dar, ao menos a ilusão de ter as mãos limpas, gosta sempre de assumir posição de justiceiro como agressor do rico e protetor do pobre; enfim, de camuflar-se de evoluído para fazer mais bela figura e não passar, coisa que mais o desagrada, pelo ladrão que ele percebe ser; e, afinal, para melhor servir-se, mais cômoda e seguramente, no banquete - seu supremo objetivo, assim vestido de juiz. Por mais astuto, porém, que o involuído possa revelar-se diante de tudo isso, todos com­preendem que realidade se esconde debaixo da mentira, re­veladora de toda a miséria moral do primitivo. Inútil ca­muflar-se. Roubando, não se pratica o bem; não tem valor a esmola que se faz com as coisas alheias. Embora se dis­farce, o ladrão bem sabe que, enquanto ladrão, não está, não pode estar do lado da justiça. Mesmo que o rico tenha sido ladrão, não é lícito roubar, nem mesmo aos ladrões. É inútil que o ladrão procure tornar justo seu furto, acusando de furto quem roubou antes dele. É vã sua desesperada tenta­tiva; belo e bom pretexto para enriquecer comodamente; simples astúcia que pretende dar a entender se possa rou­bar honestamente. O involuído chega até à astúcia, mas não pode subir mais, isto é, até à honestidade. O método que ele escolheu, embora camuflado, o revela, em flagran­te, tal qual é: involuído, primitivo, ignorante. Não conhe­ce as conseqüências e ilude-se. Esses justiceiros fingidos, que pululam, apenas a ordem social enfraqueça a reação de­fensiva, não sabem que, embora tenham conseguido, por meio da astúcia, fraudar a lei humana e apareçam cobertos pelo belo manto da justiça, deverão todavia, por lei biológica, mais cedo ou mais tarde, pagar com os próprios bens.

Poder-se-ia, porém, virar a medalha e ver a injustiça, oposta, vinda desta vez da parte da classe dominante, que se revela disposta apenas a defender-se a si mesma. É ver­dade: quem rouba é sempre ladrão; mas, também, muitas vezes é pobre a quem a lei biológica grita: você tem direito à vida. Esse direito de todos, até mesmo dos deserdados, é espécie de justiça, seja embora na forma primitiva do invo­luído. O evoluído não recorre a ela, nunca, por nenhuma razão, mesmo à custa da própria morte. Mas o involuído que, falto de outros recursos, deve, todavia, viver, pode ser constrangido a recorrer. O esmagamento do pobre, sua ex­pulsão da ordem dos vencedores, ordem imposta para van­tagem exclusiva destes, lhe justificam a revolta. E, então, a vida social reduz-se a luta de igual para igual, entre igualmente injustos, entre igualmente involuídos.

A rebelião do oprimido, por sua vez, justifica a posição defensiva e opressiva dos ricos dirigentes. Decaídas as apa­rentes distinções humanas, restam a qualidade comum de involuídos, única distinção interessante, e a característica de injustiça, inerente a seu sistema, que os iguala na mes­ma culpa e nas mesmas conseqüências. A vida social é, assim, na realidade, corrente de injustiças, de afrontas e reações; todos têm e, ao mesmo tempo, não têm razão; to­dos são credores e devedores, com a resultante estável, em que todos se reencontram, de invariável regime de incerteza e de ódio. O tipo biológico evoluído compreendeu, ele so­mente, a utilidade de diferente sistema de agir, de justiça ordenada; compreendeu, acima de tudo, que isso não se po­de inaugurar com a injustiça do lado, exatamente, da parte que reclama justiça apenas para si mesma, mas tão-só com a justiça praticada, antes de tudo, por si própria em rela­ção aos demais, sem nada pedir-lhes à injustiça. Só com tal sistema pode resolver-se o problema. Mas o involuído com­preende apenas o sistema primeiro e este não basta para resolver o problema. Contudo, é de lógica elementar a com­preensão de que a estabilidade só se obtém com o equilíbrio. Ao invés, o involuído prefere acreditar que se possa obtê-lo com o esmagamento e o engano. Absurdo. Mas, se compre­endesse, não seria involuído; apenas chega a compreender, muda de sistema e se toma evoluído. No entanto, hoje de involuídos se formam as massas humanas, que não imagi­nam serem O poder obtido pela violência e a propriedade obtida pelo furto é apenas ilusão e traição e, por isso, prejudicam e não ajudam a quem lhes adquiriu a posse; não imaginam que isso, por inviolável lei da natureza, é verdade igual para todos, como é de justiça. O homem comum, crendo-se árbitro de tudo, nem suspeita mover-se em meio a organismo complexo e perfeito, de forças muito mais inte­ligentes e poderosas que ele; se, sabiamente, soubesse mo­ver-se de acordo com elas, obteria a felicidade; movendo-se, ao invés, loucamente, em choque, obtém apenas perdas e dores.

Subiremos neste volume, pouco a pouco, até às mais al­tas formas de vida do evoluído. Mas, na base da humani­dade, o involuído, em número predominante, se acha pre­sente; a observação do fenômeno social não nos oferece de importante senão o espetáculo da sua psicologia. Nossa hu­manidade é primitiva. riquíssima de energia. mas pobre de sabedoria; extremamente dinâmica e extremamente igno­rante. É fato conhecido. O homem é o que é e está bem onde está. As dores que o gravam lhe são proporcionais à sensibilidade e à ignorância. As provas que encontra e deve superar são as da sua classe, do seu nível evolutivo, adapta­das a suas capacidades. Para sermos práticos e compreen­síveis devemos permanecer ainda nessa atmosfera, com o objetivo preciso, porém, de levar-lhe a luz que lhe falta. Insistamos, pois, no fenômeno basilar da propriedade, ilumi­nando-lhe, porém, o conceito. O conceito jurídico e moral não basta. Nesse campo, estamos cheios de ilusões. O lado imponderável, que afinal pesa tanto ao ponto de revelar-se e impressionar o ponderável, nos foge, quase completamente, também nesse caso. Os princípios jurídicos fazem crer ao invo­luído que para tornar estável e segura a propriedade bastam as garantias sociais e jurídicas. Eis, contudo, o que de fato aconte­ce muitas vezes. Procura-se adquirir a propriedade através de qualquer meio, aí compreendido, se necessário, o furto. Será descarado e as claras em períodos de desordem; velado, astuto, nos períodos de ordem, legalizado na forma, para poder evi­tar a relativa sanção jurídico-social. Debaixo das aparências da legalidade trabalhará, imperturbável, o instinto de la­drão, característico do involuído. Embora atingida a posse, que é o objeto, através de furto mais ou menos evidente (não é fácil acumular riqueza, rapidamente, apenas com o traba­lho honesto), o primeiro instinto do ladrão é consolidar a posição, procurando segurança na legalidade que o proteja. Ninguém, mais do que ele, tem necessidade, para esse fim, do instituto da propriedade porque ninguém, mais do que ele, está em posição precária e tem urgência de garanti-la e estabilizá-la. Justamente o filho da desordem tem maior necessidade da ordem, necessária para gozar em paz os fru­tos da desordem. Assim, ninguém mais do que o revolucio­nário sente a necessidade de, enquadrando-se na legalidade, justificar essa posição, de, transformando-a em autoridade, garantir a atitude de violência. Atingido o objetivo, o invo­luído procura tirar vantagem das formas de vida mais evo­luídas, das conquistas superiores feitas no ordenamento so­cial, não por tipos do próprio plano, mas por mais adiantados. O ladrão e o violento apressam-se, então, a limpar de novo as mãos e assumir a atitude de pessoas de bem, natu­ralmente merecedoras do respeito de que necessitam pala gozá-la em paz. Com que ânsia procuram, então, esconder as origens obscuras e o passado desonesto, cobrindo-se de títulos, benemerência, relações conspícuas, envernizando-se de incorruptibilidade e senhorilidade! É a sua evolução. Se­rão, dai por diante, os mais encarniçados conservadores, os homens da ordem, porque só agora dela fazem parte. Mas esqueceram quem ficou para trás e, na miséria, espera a oportunidade, enquanto se civilizam e debilitam no bem-estar, de fazer nas suas costas o mesmo jogo por eles feito contra os que chegaram antes deles. O resultado final é in­terminável subir e descer de indivíduos em constante regi­me de engano e de furto, todos em luta entre si; todos igualmente ladrões e violentos, à caça de conquistas efêmeras, ladrões de miragens. Levando-se-me em consideração a psi­cologia e ignorância das leis da vida, é natural esse modo de agir. Mas, através de tantas fadigas e astúcias, conse­guem eles o objetivo a que se propuseram? A propriedade significa tentativa de estabilização de fase desse ciclo, mas a tentativa falha. O instituto da propriedade se reduz, desse modo, por parte da sociedade, ao reconhecimento oficial do furto consumado, à homenagem que a vida presta ao ven­cedor só porque é vencedor. A Revolução Francesa, camu­flada de justiceira, não acabou em nova aristocracia napo­leônica? Vale a pena fazer esse jogo de riqueza a turno? É certo que, com essas alternâncias, a vida atinge uma espécie de justiça distributiva, mas também é fato reduzir-se a propriedade, entendida como instituto jurídico protetor e coordenador, a tentativa falha, porque na realidade não atinge seu objetivo, não constituindo sólida garantia. A construção humana falha, pois. Vistas assim as coisas, além da aparência, na substância, podemos concluir que apenas a lei biológica não falha e atinge seu objetivo, a justiça, seja embora apenas a tornada possível pela ignorância hu­mana. O escopo da vida não é o enriquecimento de nin­guém, mas a existência garantida para todos, como meio para atingir fins mais elevados. Ela nos deixa a fadiga da luta, como prova para aprender e evoluir.

Depois dessas reflexões nos damos conta de quão falso e incompleto é nosso conceito de propriedade. Na realida­de, não é apenas instituto jurídico que as convenções sociais bastem para regular, mas jogo de forças vivas e inteligentes em movimento no campo da vida de acordo com leis pró­prias. Daí segue que a estabilidade não pode ser qualidade exterior, com a virtude de modificar-lhe a essência intima e corrigir-lhe os erros cong6enitos; mas é qualidade interior, posição só resultante de estado de equilíbrio. Daí, ainda, novo modo de entender as formas de aquisição, modo contrário ao em voga. Em outras palavras, a tão procurada estabilidade não é absolutamente, dada pelas exteriores garan­tias jurídicas, mas por íntimo e substancial estado de equilíbrio dos impulsos constitutivos do fenômeno; ou, então: por muito tempo poderá reger-se estavelmente não só a pro­priedade juridicamente protegida, condição que se torna de importância secundária e fictícia, como, também, a proprie­dade constituída de forças equilibradas ou, seja, a proprie­dade adquirida pelo trabalho e não pelo furto. Face a essa realidade biológica mais profunda, desvanece-se a impor­tância da defesa jurídica do Estado, substituída pela defe­sa das leis da vida, defesa muito mais segura e profunda. O conceito de proteção por meio de individual e livre cumpri­mento da lei de Deus substitui o de proteção por meio de convenções humanas. Qualquer pessoa, então, adaptando-se a ela pode pôr-se em posição de equilíbrio e, pois, de se­gurança; qualquer pessoa, rebelando-se, pode pôr-se em po­sição de desequilíbrio e, portanto, de insegurança. Essa a substância, a vida íntima do fenômeno, sua vontade, esse o jogo de forças que o animam e o levam à conclusão. A le­galidade é forma, roupagem qualquer, que nada tira ou acrescenta à substancia do fenômeno.

O ditado popular "O crime não compensa" já observou que o ganho por mal não frutifica, não nos causa gozo, aca­ba em ruína, traz mais dano que vantagem. Há, pois, além do elemento jurídico, algum outro, decisivo, invisível, mas de força capaz de desconjuntar os resultados a que a estru­tura jurídica se esforça por chegar. Pode existir, pois, pro­priedade que, embora jurídica e formalmente justa não o seja, de fato, em substância. Então, essa diversa estrutura íntima anula a forma; e a imperfeição da primeira anula a perfeição da segunda. É necessário, para perdurar, que a propriedade seja sã, íntegra, justa e inteiramente honesta, da cabeça aos pés, em todos os momentos, até mesmo nas origens, nas raízes. De outra forma, por mais que se cubra de justiça formal, é edifício construído na areia. Existe im­ponderável lei interior, que tão pouco se leva em conta; lei de funcionamento automático; lei a que, por ser interior, ninguém escapa, sempre presente, inerente às próprias coi­sas. O tipo involuído, dominante não compreende esse fato elementar, isto é, que o furto, embora nobilitado na forma, não pode, de fato, apoderar-se de nada e, se o faz, não man­tém, o que, para ele mesmo, é o mais importante. Ora, se quisermos subir para formas de vida que, a sério, se possam chamar civilização, é necessário que o tipo comum compreenda não ser a propriedade somente fenômeno biológico natural e indestrutível, comum até mesmo para os animais, que bem o conhecem, mas fenômeno determinado também por outros elementos além dos comumente levados em conta; e, entre todos eles, ter a primazia o mais insuspeitado e descurado: o mérito. É da lei: se existe mérito a propriedade perdura e rende se não existe, dura pouco e não rende. A Lei é justa e impõe que cada ato nosso nos renda de acordo com o que de salutar nele introduzimos de bem ou de mal, propor­cionalmente, isto é: tanto gozo quanto a porcentagem de honestidade e de nosso valor intrínseco em nosso ato conti­do; e tanto veneno quanto de mentira e de traição lhe inje­tamos. Chegou a hora de o homem compreender: é perigo­so manipular as forças do mal porque, embora dirigidas con­tra os outros, recaem sobre quem as maneja; a mentira é perigosa porque gera o erro em quem a diz. A astúcia, a for­ça, consideradas como armas úteis, tornam-se prejudiciais porque automaticamente se voltam contra quem as emprega.

Poder-se-ia contudo objetar: não faltam exemplos de la­drões que conservam e gozam as suas riquezas. Para res­ponder é preciso dar o significado correto da palavra mérito. Sem dúvida o furto é a forma original de aquisição de bens. Em sociedade ainda não civilizada o problema é tirar do mundo externo tudo o que nos serve, seja qual for o meio. Não se fazem, pois, distinções nos métodos de aqui­sição; é indiferente atingir o objetivo com o furto ou com o trabalho. Estes, em fase caótica de formação então se confundem. Todo meio é bom desde que atinja o objetivo: viver. Em mundo assim não surgiu ainda a idéia do respei­to à propriedade alheia, idéia que é produto de longa ela­boração social na convivência. Se com o progresso a coe­xistência dos impulsos leva pouco a pouco a seu coordena­mento, o homem todavia aprende a executar o esforço de aquisição e, aplicando nele múltiplas atividades, forma os instintos que a convivência disciplinará em formas mais evoluídas e pacificas transformando-os em atitudes de pro­dução, em qualidades técnicas, em hábito de trabalho. A fase primitiva de formação é, em seu tempo e lugar, neces­sária, embora em sociedade civilizada revele o involuído. De fato, é através do furto que se formam as capacidades porque estimula a inteligência e a atividade. Se em fase pri­mitiva as leis da vida premiam, o ladrão com a posse, isso mostra que ao nível dos selvagens o sistema pode ser justo e servir a determinada função. Começa-se assim, por este modo, a formar no indivíduo essas qualidades que mais tar­de constituirão o mérito, isto é, o trabalho, habilidade, pri­meiros dos elementos constitutivos do direito de posse e, de fato, adaptados a manter os bens nas mãos do possuidor protegendo-lhes e mantendo-lhes a posse. O processo evo­lutivo que parte do furto vai em direção ao instinto e à ca­pacidade de fazer, representativos do método de aquisição em plano mais evoluído. A propriedade não deriva de momento único, mas é formação contínua: é economia de ca­minho. Não basta conquistá-la; é preciso saber mantê-la. Pode acontecer então ter o desonesto, que conquista a pro­priedade através do furto, adquirido aquelas qualidades de operosidade e de habilidade que lhe formam a base e lhe permitem a conservação em sociedade civilizada. Sendo sa­dio e equilibrado, isto é, correspondente ao mérito, este se­gundo momento do processo pode, segundo o seu valor, sa­nar e equilibrar o primeiro. Assim, produtos da injustiça podem transformar-se gradativamente em produtos de jus­tiça; e desse modo se explica por que se mantêm eles de pé, quer dizer, como alguns ladrões possam gozar em paz rique­zas roubadas. Nestes casos, o pecado original da aquisição ilícita vai pouco a pouco sendo absolvido e neutralizado por aquela dose de trabalho e habilidade que o sujeito possui e desenvolve. Essas qualidades ele as conquistou com suas canseiras; constituem-lhe, pois, o mérito, o direito; repre­sentam a porcentagem de justiça com que pode compensar a injustiça. Não podemos parar no momento apenas de aquisição da propriedade, pois nas trocas e na administra­ção ela se reconstitui a cada momento. Pode até acontecer o caso oposto: a honestidade, na aquisição, ser depois cor­rompida por dose tão grande de preguiça e de inaptidão, isto é, de demérito que fique neutralizada em sentido opos­to e se chegue à perda de propriedade honestamente adqui­rida; isso também é justo. Assim, a posição do justo pode passar a ser a do injusto; e a do injusto, a do justo. Como na fase mais baixa o objetivo era roubar para viver, hoje o objetivo é produzir, e a lei do mérito tende a atribuir a pro­priedade a quem melhor saiba trabalhá-la e fazê-la dar fru­tos para o bem de todos. Esta higienizarão retificadora po­de funcionar mais ou menos, mas a propriedade permane­ce sempre na dependência da lei do mérito, isto é, em estrita relação com a porcentagem de mérito contida no fenôme­no, porque essa porcentagem é que lhe estabelece o grau de justiça e de equilíbrio. Simples caso de relação. Pode-se assim prolongar a vida de posse viciosa até ao caso-limite do resgate que se verifica quando todo o débito originário es­teja pago com trabalho e rendimento sociais, como, de ou­tro lado, se pode perder posse justamente conquistada, usan­do-a, injustamente. Todo caso depende dos elementos cons­titutivos particulares e por isso se desenvolve diversamen­te. Mas o princípio segundo o qual se desenvolve é único e imutável: o da justiça e do mérito.

Muda assim o conceito da vida a partir da mais elemen­tar base da sociedade: a propriedade. Se toda aquisição de bens pode conter dada porcentagem de furto, é em propor­ção a essa porcentagem que a propriedade será corrompida e, portanto, levada à destruição. A propriedade gerada pelo furto nasce enferma de íntimo desequilíbrio e não pode tor­nar-se sadia e resistente senão gradativamente se livrando dessa moléstia; isto significa ser ela constituída por siste­ma de forças em equilíbrio estável. É o mérito, pois, filho da honestidade, da operosidade e do valor individual que vale, pois estabelece o grau de equilíbrio do sistema, o grau de pureza do organismo e, portanto, o seu grau de resistên­cia. Se há mérito, a propriedade embora roubada renasce; se não, automaticamente atrai o furto e por natureza tende a fugir das mãos do possuidor. Assim, a força protetora dos bens, que compreendeu tal mecanismo não busca proteção, na tutela jurídica e nas astúcias administrativas, mas no intrínseco direito representado pelo mérito. Esta é a semen­te criadora da verdadeira riqueza, a única que a mantém. Só nessa força há segurança, a que em vão pedimos às defesas legais. Eis tudo quanto encontramos nas raízes da vida social. Todo o nosso mundo é falso, baseia-se na ilu­são; naturalmente por isso colhe o que vimos. Mas isso é tudo quanto de fato merece. O involuído infelizmente domi­na; a ilusão constitui sua natural herança. Um dia se com­preenderá que vale o que somos, queremos e sabemos fazer e, portanto, merecemos, e não o que possuímos. O objetivo hoje é possuir e o homem é o meio; no entanto, o possuir e meio e o homem, fim. Pode-se perder o que se possui; mas a que somos, isso vale e dá mérito. Quem merece e sabe, tem em si o germe que o fará recuperar, multiplicado por cem, tudo quanto perdeu. Quem, não merece é usurpador em posição de equilíbrio instável, continuamente ameaçado pela tendência da lei à justiça, isto é, ao equilíbrio pelo qual as forças biológicas continuamente o assediam, não se acalmando enquanto não lhe houverem retomado o que foi mal ganho. O efeito é dado pela causa; toda forma de vida tem as características derivadas das de seu germe. Assim, todo fenômeno se plasma e se desenvolve diversamente se­gundo a natureza das suas forças determinantes. Só quando o homem começar a compreender esses princípios tão elementares poderá começar a chamar-se civilizado. Neste capítulo desenvolvemos, do ponto de vista prático e concre­to, começando pelo fundamento da vida em sociedade, os conceitos de A Grande Síntese sobre a propriedade. (cfr. cap. XCIII: "A Distribuição da Riqueza").

III

TIPOS BIOLOGICOS E MÉTODOS DE AQUISIÇÃO

As considerações do capitulo precedente levaram-nos ao interior e à substância do instituto jurídico-social da pro­priedade, esse com que o homem disciplinou o fenômeno biológico, comum até aos animais, da aquisição dos bens, fato que interessa sumamente à vida porque representa os meios necessários da sua continuação. Mas vimos que essa disciplina pára na superfície e que sozinha não é suficiente para regular estavelmente as forças do fenômeno. Não se nega com isso a importância dos ordenamentos jurí­dicos, mas observa-se que eles não sabem ordenar senão até certo ponto e devem ser por isso completados com princípios mais perfeitos, que nos permitam penetrar mais a fun­do na substância do fenômeno. Trata-se de progredir e sa­bemos que a evolução é processo de progressiva harmonização. Não se trata por isso de demolir nenhuma das precio­sas conquistas já realizadas, frutos de fadigas e obra de gênio, mas tão-somente de continuar o caminho, de ajuntar coisa nova ao que já está feito e aperfeiçoar-se mais. Che­gado ao mais alto grau de maturação espiritual, o homem espontaneamente se apercebe da insuficiência da disciplina jurídica para atingir a justiça, meta instintiva da vida, pa­ra conseguir a estabilidade, condição necessária à fruição. Nasce então a necessidade de completamento, o que implica em mudança de posição e renovamento de método. Como na superfície das coisas há imperfeição, caducidade, agita­ção e desordem e, na profundidade, perfeição, estabilidade, calma e harmonia, assim também no fundo das coisas há justiça, embora a injustiça apareça no exterior. A evolução, levando o centro da vida para o interior, torna atuais e vivos, fazendo-os emergir do fundo, esses estratos mais inferiores. Vem assim à tona e se afirma a justiça, a que, também nos eventos humanos, é reservada a ultima palavra, não importa depois de que longas vicissitudes. Com a evolução aflorará mais evidente a substância das coisas, mais facilmente esta se revelará, reduzindo ao mínimo o obstáculo da ignorância humana. Então, o método atual da força ou da astúcia será considerado como método de primitivos ignorantes das leis da vida, método de natureza falsa, desequilibrado, destinado por isso à ruína, método inútil, pelo menos em face do objetivo que se prefixou. Chegado ao mais alto grau evolutivo, o homem compreenderá que de fato no fundo, na realidade das coisas, existe balança de justiça, representa­da pelo equilíbrio querido pela lei e que nela é inútil pre­tender colocar pesos falsos para obter de Deus uma falsa medida em vantagem própria, inútil porque essa força re­presenta invisível peso verdadeiro, que cedo ou tarde faz tudo voltar à medida certa, segundo a justiça e a verdade. Dar-se-á então o valor merecido a este intimo imponderá­vel que, todavia, tanta força possui e a que hoje geralmente fugimos; compreender-se-á então como os valores reais, in­teriores, possuem, comparativamente, maior poder que os valores fictícios, exteriores.

Dado que a posse dos bens é necessária à vida e é que­rida e imposta pela lei como necessidade inderrogável, ela também representa direito. Mas, para este poder realizar-se é indispensável se verifiquem as condições supra men­cionadas. Em tal caso, atua espontaneamente; em caso contrário, embaraçado pelo próprio homem, não pode obter seu cumprimento. Se o homem seguisse a Lei, esta natu­ralmente proveria todas as suas necessidades. Essa é a base do fenômeno da Divina Providência, sempre pronta a inter­vir espontaneamente, apenas nossa conduta lhe permita, pondo-nos nas condições necessárias para que ela possa ve­rificar-se. A garantia dos bens não nos pode ser dada por simples enquadramento exterior, que de modo algum é de­cisivo, mas acima de tudo pelas íntimas qualidades por nos­sa conduta conferidas ao próprio fenômeno, pela força com que o tivermos construído. É verdade que a posse dos bens constitui direito e o mundo está farto de bens a serem gozados pelo homem. Eles estão prontos à espera disso, debaixo das nossas próprias mãos; mas à posse se antepõe obstáculo criado pela ignorância humana, que não sabe apreendê-lo ou o apreende mal, violando a justiça substan­cial jacente no fundo do fenômeno da posse; ele se desfaz sem ela, que é necessária para que o direito de pose, ine­rente à vida, possa exercitar-se. Torna-se necessário com­preender o erro e superar a ilusão. O que mais vale não é possuir, na forma exterior, mas na interior; não nos efeitos, materiais, mas nas causas, espirituais; não nas garantias legais, mas nas nossas capacidades e qualidades. A única verdadeiramente segura é essa riqueza inalienável que não pode ser roubada porque é inseparável da personalidade, dada pelas nossas próprias qualidades. É segura e duradou­ra porque é a única verdadeira, honesta, justa, em equilí­brio com as forças da vida. Isso deriva das próprias quali­dades, é filho do mérito porque as qualidades só com o pró­prio trabalho se conquistam e nos tornam conceituados porque foi a nossa atividade e fadiga que as gerou e fixou. Se as possuímos é porque as conquistamos. Só então os bens são verdadeiramente nossos porque temos, fixadas em nós como instintos, as capacidades para sabê-los manter; e se os perdermos, para saber reconquistá-los. Doutro lado, quando não possuímos as capacidades e, portanto, o mérito e, assim, o direito, o dinamismo do fenômeno é cheio de desequilíbrio e se esgota, cedo ou tarde. Então os bens tendem a fugir-nos das mãos; perdemo-los porque não os sabemos administrar e, perdidos, não sabemos reconquistá-los. Eis como finalmente, não obstante todas as protetoras barreiras humanas da injustiça, a interior justiça da lei emerge. Esta, através das mais profundas forças da vida, tende a exerci­tar essa justiça, com todos os seus meios. E o homem que procura usurpar esta justa posição que não corresponde a seu mérito, é, com seus métodos de usurpação, o construtor da injustiça social. Bastaria seguir a natural lei de Deus para que espontaneamente reinasse a justiça econômica e houvesse o necessário para todos e por si mesmo se verifi­casse o equilíbrio entre capacidade, mérito, direito e gozo, equilíbrio que a lei quer e o homem com tanta fadiga pro­cura violar.

Tudo quanto dissemos em relação à disciplina jurídica da propriedade e à posse dos bens não é senão aspecto do dinamismo fenomênico e dos equilíbrios de que ele se compõe e se sustenta. Pode dar-se a tudo isso sentido mais uni­versal. Poderemos então dizer que a cada plano de evolução corresponde grau respectivo de realização da justiça e nada mais. Quem age no nível das leis animais e lhe segue os métodos poderá obter posse, poder, domínio, vitória, como prêmio da sua fadiga, mas o prêmio será efêmero porque a estabilidade é característica de planos de vida mais evoluí­dos e harmônicos. Poderá servir-se da força e da astúcia, mas espere também ilusão e engano. O sistema da vida não contém, naquele nível, maior grau de justiça que esse. O homem não peça nem espere mais. Não fale mais de justi­ça verdadeira quem vive no reino da força; e não a espere também. A verdadeira justiça, que ele procura em vão, per­tence a plano de vida mais alto e dele fica excluído quem venceu à custa dos métodos do mundo animal. Que ele se contente de dominar, vingar-se, esmagar. Isto lhe exaure o direito porque já recebeu mercê. Apenas se enfraqueça, não invoque a bondade e a justiça, mas considere-se inexo­ravelmente vencido. Só o evoluído seguidor do evangelho se ri desse alternado jogo de desequilíbrios, entre vencedor e vencido, rico e pobre, patrão e servo. Mas só ele tem o di­reito de liberar-se porque só ele desfez a miragem necessá­ria para induzir o involuído egoísta a afrontar fadigas e provas que doutro modo jamais seria induzido a suportar.

Os homens são desiguais; não pertencem ao mesmo grau evolutivo. Se os bens para manutenção da vida são-lhe in­distintamente necessários, o modo por que os homens os procuram lhes exprimem a evolução, isto é, assume o papel de índice revelador da natureza humana. Aprofundemos a classificação dos tipos humanos com base no real valor bio­lógico, de acordo com a real natureza do indivíduo; em fa­ce dessa natureza, como já dissemos, as distinções sociais têm valor todo fictício. Escalonemos, assim, os vários tipos humanos conforme os métodos de aquisição dos bens. Três podem ser esses métodos: furto, trabalho, justiça, próprios de três tipos biológicos que sobem do involuído ao evoluído, isto é, o selvagem, o administrador, o espiritualista. Cons­tituem três raças de homens, correspondentes às três leis da vida: fome, amor, evolução. (Cf. História de um Homem - Cap. XXIII e A Grande Síntese - cap. LXXVIII).

O primitivo escolhe, como meio de aquisição dos bens, o furto, ainda freqüente neste mundo que chamam civilizado. O raciocínio é este: "Por que hei de cansar-me, pro­curando, com o suor do trabalho, ganhar o necessário, se posso facilmente conseguir tudo, roubando meu vizinho?" Nesse nível, a ignorância das reações das forças da Lei é completa; inconcebível, o princípio do coordenamento cole­tivo; atingem o máximo a inconsciência do indivíduo e sua falta de preparação para formas de vida superadoras de ani­malidade. Psicologia desagregadora, caótica, anárquica. Ma­nifesta-se desregrado e sem controle o instinto de subtrair para si mesmo tudo quanto satisfaça necessidades e desejos. O progresso é que, cada vez mais, ordena as coisas, vis­to que a evolução significa subida ao encontro de Deus e aplicação sempre maior de Sua Lei. De fato, apenas a humanidade retrocede, em crises de revoluções ou guerras, e a superestrutura jurídica desaba, a vida involui e, então, se reativa esse método do primitivo. E a disciplina jurídica, representada pelo instituto da propriedade, vacila e retorna ao furto, fase precedente mais involuída, de que a sociedade conseguiu emergir. No trabalho de construir e manter-se no alto, as coletividades humanas passam por esses perío­dos de cansaço, descensão e aniquilamento, em que retor­nam às primitivas formas de aquisição. Então, prosperam os involuídos, oprimidos pelo enquadramento da ordem social. A opressão só é sentida pelos involuídos, porque imaturos; no entanto, para os mais adiantados, essa ordem cons­titui a forma de vida espontânea e normal. Admitem-se os involuídos a conviver, nessa ordem, com os mais evoluídos, justamente para que aprendam; e, se de qualquer modo conseguem enriquecer, começam a participar dela; então, de inimigos se transformam em seus mais estrênuos defen­sores. Agora lhes interessa, ao máximo, defender a ordem e as instituições que antes combatiam e são produto de tipo biológico mais evoluído. Para maior fruição dos resultados do furto e da conquista violenta, procuram discipliná-los no Direito e estabilizá-los na legalidade. Assim, lentamente, pelo menos na forma, apropriando-se dos métodos de vida dos mais evoluídos, os menos adiantados procuram evoluir. Isso, porém, é apenas forma e sabemos que, na realidade da vida, vale a substância, não a forma. Os retardatários, os excluídos do banquete, os estratos sociais profundos aguardam a passagem dos vencedores da vida, que cresce­ram na forma e não melhoraram na substância, para fa­zer-lhes exatamente o mesmo que eles fizeram aos outros. E assim por diante. Neste plano, formado em grande par­te pelo plano humano, só pode dominar regime de perpé­tua luta, baseado na força e no aniquilamento, em estado de instabilidade completa. Esse método de aquisição não atinge, assim, o objetivo aparente, o de possuir, mas alcan­ça o objetivo recôndito e real, o de induzir o involuído à aquisição de experiência e, portanto, a evoluir.

Essa, desordem, porém, só pertence a este plano evolu­tivo. O sistema de forças constitutivas do fenômeno con­tém até mesmo os impulsos tendentes à própria auto-reor­denação. Do que acenamos se vê como esse caos tende a harmonizar-se em mais evoluídas formas de vida. A fase da força tende a evoluir para a do Direito; o furto a esta­bilizar seus resultados na fase de propriedade; e desponta novo método de aquisição de bens: o trabalho. Gradativa­mente se disciplina, desse modo, o desencadeamento caóti­co da agressividade conquistadora. O método do furto, inor­gânico e violento, reordena-se no do trabalho, orgânico e pacifico. O egoísmo sobrevive, mas, suprimida a força, fica disciplinado no hedonismo econômico do “do ut des[2]”, pri­meiro rudimento de justiça expresso no balanço entre o “deve” e o “haver”. A defesa não é mais a força, os mús­culos ou as armas, mas o Direito, o cérebro, a legalidade a astúcia. Aqui o dinheiro é arma e o capital, poder; a vio­lenta luta biológica para conquista dos bens torna-se a luta econômica de classe, do capital contra o trabalho e ao con­trário. A indústria organiza-se; o Estado e o Direito regu­lador intervêm, para garantir, ressarcir, prever. Estamos em fase orgânica de coordenamento e estabilização. Essa a grande criação iniciada pelo Direito romano. Mas, ai de nós! Disciplina e não justiça. Construiu-se a balança; nin­guém, todavia, nos garante ser o peso justo. Cristo, sola­pando os fundamentos do Império, já pregava, muito mais que a disciplina, a justiça. Mas também é verdade: para chegar a esta, necessário se tornava passar por aquela. Não se poderia passar do plano da força ao da justiça, sem per­correr o trajeto representado pelo equilibrado método do jus romanum.[3] As fases biológicas são contínuas e sucessi­vas. Hoje o mundo vive na segunda fase, a do Direito, isto e; a da disciplina da força e do furto da organização da conquista, da legalização e estabilidade mais ou menos com­pleta, de seus resultados. Fase mais adiantada e complexa que a precedente; instável, mas ainda menos do que ela; tentativa de equilíbrio e não, ainda, o equilíbrio; e por isso tudo, fase em grande parte insegura, funcionando aos arrancos, em crises, quedas e novos surtos: tentativa de justiça, não porém justiça. Civilização de nome e forma, não de fato e substância­

A nova conquista de nosso século, sua grande realização histórica, é o advento da justiça social. Por isso, tantos sis­temas, tantas lutas e destruições. A fase puramente jurídi­ca e de economia hedonística, fase de disciplina e não de justiça, não basta para o homem novo do III milênio nem para as novas consciências coletivas dirigidas para justiça mais substancial. A afirmação do conceito de Estado; a nova concepção orgânica da vida social a necessidade de sabedoria espiritual que guie a nova potência conquistada pelo homem, através da Ciência e da técnica; mais alto senso cri­tico da vida, que a maturação dos ânimos dá; eis outros tantos impulsos que se; dirigem para ordem mundial mais justa e abrem caminho para nova fase biológica, em que a distribuição mais eqüitativa dos bens garanta a vida de to­dos e, finalmente, atue o princípio de justiça anunciado pelo Evangelho. Trata-se de inaugurar o sistema da esta­bilidade fornecido pelos equilíbrios espontâneos e substan­ciais, correspondentes às necessidades e aos valores intrín­secos, às qualidades e ao mérito; ele substituirá o sistema precedente, instável e involuído, das violações contínuas e da justiça trabalhosamente atingida apenas através do exa­cerbamento de reações corretivas. Atuação difícil e demorada, porque o novo sistema presume o tipo, que falta, de homem mais evoluído. Na prática, ao invés, domina o ima­turo, que, apenas com psicologia de involuído, sabe empre­gar esse sistema e desse modo o engana, desfruta e destrói. Todavia, o progresso não pode parar e essa é a sua direção. Trata-se de leis biológicas fatais, de objetivos que a evolução deve atingir e aos quais encaminha todas as forças, fazen­do pressão para superar os obstáculos; trata-se dessa ordem divina presente na substância das coisas, ordem cuja reali­zação é o objetivo da vida e deve, pois, cedo ou tarde, ine­xoravelmente realizar-se. Assim é que à primeira fase, caó­tica, baseada na força, em regime de violência no qual a propriedade se conquista com o furto, se seguiu a atual fase de disciplina da força pelo Direito, em que o método de aquisição passa a ser o do trabalho; a esta segunda fase sucederá terceira, orgânica, coletiva, de mais estreita disci­plina do Direito pela justiça e nessa serão títulos de posse: as qualidades, o mérito, o valor, as capacidades pessoais.

Temos, pois, três tipos humanos, que se revelam no mé­todo de aquisição dos bens, a saber: 1) o involuído ou sel­vagem: concebe apenas a defesa de si mesmo e o sistema do furto; 2) o civilizado: vive em sociedade, administra, orga­niza; concebe a defesa da família e do Estado e emprega o sistema do trabalho; 3) o evoluído: superou o egoísmo in­dividual do primeiro tipo e o egoísmo coletivo do segundo; o espiritualista, completamente desprendido dos bens mater­iais; administra-os apenas porque percebe ser essa sua mis­são e emprega-os somente como instrumento de trabalho para obtenção de objetivos morais; o tipo biológico, que vive conforme a justiça e não aceita bens senão de acordo com a necessidade, as qualidades, o mérito. Neste último caso, o limite e a medida das aquisições não se encontram, como nos dois primeiros; no Código, e não se impõem por meio de sanções punitivas; estão na consciência, espontaneamente inscritos. Infelizmente, os sistemas coletivos, chamados de justiça social, necessitam, para serem dirigidos seriamente, desse tipo raro de homem e dificilmente poderão construir-se, estavelmente, com o tipo de homem hoje dominante, que em última análise pensa, de si para si, em coisa bem diferente da justiça social. Para compreender e exercitar essa justiça, princípio evangélico, é preciso ter alcançado o grau evolutivo do homem evangélico, isto é, do terceiro tipo. Mas, os sistemas, embora inadequados aos homens, podem, por outro lado, servir para educá-los, amadurecê-los, prepará-los, assim para a futura realização. Para chegar a essa rea­lização, torna-se necessária dupla e paralela maturação, in­dividual e coletiva; sozinha, nenhuma delas basta. A pri­meira conduz a nova concepção da vida, do trabalho, da propriedade, a novo modo, consciente, orgânico e harmôni­co, de o indivíduo sentir e comportar-se, no seio da coletividade humana e do funcionamento do universo. A segun­da leva ao enquadramento do indivíduo em sistemas sociais orgânicos e passa, não por vias interiores, de persuasão, mas por vias exteriores, mais ou menos coativas; consegue, por isso, resultados formais, e não substanciais, porque, se os sistemas não são sentidos, sua atuação não é integral.

Para obter essa atuação que deve ser estado espontâneo e de convicção, seria necessário aplicar o sistema ao tipo evoluído ainda inexistente em grande massa, de que é ilu­são presumir-se a existência; para a formação desse tipo, todavia, esses sistemas podem contribuir, através da práti­ca educativa e formadora de novos hábitos e instintos.

IV

ERROS E ASCENSÕES HUMANAS

Começamos a subir os primeiros degraus das ascensões humanas. A atual maioria da humanidade vive e age in­conscientemente como fantoche manobrado por instintos, sem saber nada a respeito do porquê das coisas, sem com­preender o que e por que faz, as reações a que dá nasci­mento, as conseqüências dos próprios atos. Por esse conhe­cimento fundamental, que, segundo a lógica mais elemen­tar, deveria anteceder qualquer ação, o homem de nossos dias raramente se interessa e prefere, em primeiro lugar, agir, para depois compreender. Parece que os problemas do animal bastam para encher-lhe a vida e saciá-lo. Talvez o homem comum se perdesse em meio a essas questões que devem parecer-lhe de complexidade espantosa, a ele que vive na periferia, na superfície, e não no centro, na profundida­de. O pensamento das filosofias, apresenta-se-lhe contradi­tório; o das religiões, insuficiente; o da História, desconexo; o da política, faccioso e interessado. Em face dos mais im­portantes e, contudo, mais simples e necessários problemas da vida como, por exemplo: "Quem sou? Donde vim? Para onde vou? Por que vivo? Por que sofro?", o homem se per­cebe desnorteado e só porque o pensamento humano ainda não soube encontrar a síntese completa que lhe responda a tudo e, se tivesse sabido, conseguiria interpretá-la apenas de acordo com sua relativa maturidade. O homem de nos­sos dias vive, assim, em uma espécie de resignação à. igno­rância, de adaptação à inconsciência; contenta-se em vegetar. Se isso pode ser dura contingência de sua evolução, é também triste aceitação e humilhante declaração de incom­petência. Podemos continuar a viver nesse estado? Só o in­voluído pode contentar-se com ele. Podemos continuar a agir sem entendimento, somente à custa de suportar as dolorosas conseqüências dos inevitáveis erros e desastres de que está cheia a vida individual e coletiva. Não é por isso? Certamente, que aos acontecimentos humanos, individuais e coletivos, faltará diretiva; esta, porém, não é confiada ao homem, não pode ser revelada a inconscientes; mas sê-lo-á qualquer dia, quando houver conquistado conhecimento e sabedoria. A formação de nova civilização do espírito, a for­mação do novo tipo humano do III milênio significa a con­quista de novo e imenso domínio, com o controle exato das diretivas da vida em nosso planeta. Não se trata de revolução social, exterior e formal, mas de maturação biológica, profunda e íntima. Os enquadramentos políticos, nacionais e internacionais, poderão ajudar; o que decide, porém, acima deles, é o tipo de formação do novo homem, cuja sabedoria e maturação evolutiva possam finalmente permitir, não que as forças da Lei o dominem, como se torna necessário fazer com os inconscientes, por meio dos fios de seus instintos e das reações próprias, mas lhe revelem o segredo da própria estrutura e confiem a função de dirigir a vida no ambiente terrestre.

O homem atual crê estar sozinho no caos; no entanto, participa de imenso organismo. Involuído e, pois, insensível Inconsciente e ignorante, vê a desordem da superfície em que vive e nem suspeita a ordem presente nas causas, no interior das coisas. Enquanto evolui, deve o homem apren­der a tornar-se cidadão dessa pátria maior, o universo, e colaborador consciente desse grande organismo, harmonizando-se com todos os fenômenos irmãos e criaturas irmãs, com seus semelhantes, com as forças da Lei. A felicidade e o paraíso consistem, exatamente, nessa harmonização. Semeando, como fazemos, em ignorância e rebelião, só se po­dem colher reação e dor. Semeando em sabedoria e harmonia, colheremos felicidade e paz. Isso significa civilizar-se a sério e não, ter aprendido a construir máquinas sem, depois, saber fazê-las trabalharem. Em todo campo, políti­co, social, científico, filosófico, moral, torna-se necessário passar do sistema caótico ao sistema orgânico. O sistema do universo é perfeito. Nós, que não sabemos mover-nos nele, é que somos imperfeitos. Esse sistema contém a pos­sibilidade de toda a nossa felicidade. Todavia, em nossa in­consciência, apenas dor sabemos extrair. Culpa do homem, não de Deus. Pode-se eliminar a dor que, conforme a sabe­doria divina, aliás, foi feita para ser destruída. Mas, para chegar a esse ponto, torna-se necessário compreender. O universo funciona como instrumento musical de que se pode tirar música divina, alegria infinita. Torna-se preciso, con­tudo, sabê-lo tocar. Arrebentamos as cordas e vamos às ce­gas. Que podem tocar semelhantes músicos? Então, culpa­mos o instrumento que toca mal e não a nossa animalidade que não sabe tocá-lo. Quem insiste contra si mesmo o faz, toca cada vez pior, cada vez mais se engana e se divorcia da ordem e, dai, colhe sempre maior quantidade de dor. A Lei faz quanto pode para salvar-nos e de fato salva, apesar de todos os nossos erros e dores. Somos livres, no entanto: en­ganando-nos e sofrendo, devemos aprender porque temos de compreender, porque somos destinados a empunhar as rédeas do comando qualquer dia; qualquer dia, trabalhosamente conquistada a sabedoria, poderemos e deveremos em­punhá-las.

Ao sábio que se harmoniza, que sabe conformar-se, como se diz, com a vontade de Deus, a Lei se manifesta como ajuda amorosa e espontânea, música plena de bondade, proteção e previdência; ao contrário, ao inconsciente que se rebela e, se­guindo Lúcifer, substitui pela própria a vontade de Deus, ma­nifesta-se como prisão de ferro em que, prisioneiro, se agita. Quanto mais recalcitra e se debate mais a corrente magoa, os nós se estreitam. Pode bater com a cabeça nas grades invisí­veis: quebrá-la-á e elas continuarão imóveis e intactas. Para resolver os problemas, o caminho não é a violência e a impo­sição, mas a harmonia e a obediência. Basta havê-lo compre­endido, para se porem de lado todas as concepções de que habitualmente se vive. O homem com muita facilidade crê poder, impunemente, praticar o mal. Não! A impunidade é ilusão, filha da ignorância humana; a mentira, feitiço que se volta contra o feiticeiro. O mal não traz vantagem e a mentira acaba por enganar o próprio mentiroso que a diz. Quem rouba será roubado; quem mata será morto; quem engana será enganado; quem odeia será odiado. A Lei o quer; essa, a estrutura do sistema regulador do universo. Trata-se de organismo de forças inteligentes, poderosas, invisíveis, onipresentes, indestrutíveis. Por mais que se agite, o homem nada pode contra elas e toda revolta se transfor­ma em dor. O homem deve compreender que não pode con­seguir a expansão que o espera, à custa do dano alheio, aliás, do próprio dano. Crê na usurpação, na estabilidade dos desequilíbrios; a Lei deixa-o à vontade; depois, para aprender, paga com o sofrimento; mais tarde, porém, o re­conduz, inexoravelmente, à justiça e ao equilíbrio. O invo­luído, na sua ignorância, presume dominar; ao invés, obe­dece sempre. A Lei, bem mais sábia que ele, não lhe permite senão a prática das violações e erros úteis para sua dolorosa experiência. O espírito de rebelião, filho de Lúci­fer, está no lado baixo e involuído da vida; o de obediência e harmonia, no lado alto e evoluído. A evolução é, justamente, processo de reordenamento e harmonização, que atua através da fadiga e da dor, substância da redenção.

As massas humanas, vastas como o oceano, vão à deri­va, na ignorância dessas verdades elementares, e caem víti­mas das próprias ilusões. A realidade é bem diferente da que comumente se imagina; Quem rouba crê enriquecer, mas empobrece; quem mata não prolonga sua vida, morre; quem engana se engana; quem odeia se odeia Quem foi injustamente roubado receberá compensação; quem foi morto in­justamente ressuscitará em alegria; quem é honesto e de boa fé verá a verdade, embora tenha sido enganado; quem ama será amado, apesar de hoje ser odiado. A chave da felicidade não está na força ou na astúcia, mas na justiça e no mérito. No mundo reina a dor porque o homem não segue a ordem divina; é rebelde seguidor de Satanás. A cau­sa não está em Deus e, sim, no homem. Bem diferente, a falada seleção do mais forte! Se isto aparece na superfície, na profundidade existe lei biológica muito diferente, que diz: quem transgride paga. E a humanidade paga, porque é filha de seus erros milenares. Se olharmos, porém, a outra face da dor, revelar-se-nos-á seu poder criador e curativo, seu outro aspecto escondido, onde está escrito: alegria. A Lei é boa e ajuda-nos a pagar e sanar tudo, se o merecer­mos; auxilia-nos, tornando-nos possível transformar o mal em bem, a perda em ganho, a dor em felicidade. A bondade de Deus permite-nos a redenção, quer dizer, subir de novo através de provas a escada da evolução, que havíamos descido. Mas se transformam, ainda, outras concepções de que habitu­almente se vive. A posse dos bens, a propriedade referida aci­ma, pela qual tanto se luta já não é meio de gozo, mas ins­trumento de trabalho. O princípio de função e missão substitui o de egoísmo. Nascemos e morremos nus. Durante a viagem da vida os bens vão e vêm, a riqueza circula de mão em mão, pertence a todos; as trocas servem para que ela não diminua. Não há posse, estabilidade garantida. Tudo não passa de usufruto, empréstimo temporário que uma crise, um furto ou a morte podem a qualquer momen­to tirar; empréstimo concedido a título de instrumento de experimentação e trabalho na terra, de aquisição de qua­lidade na arena da vida, administrado pelo homem como meio de construir-se a si mesmo e não para seu gozo. De fato, como estabilidade, do ponto de vista hedonístico, a riqueza é mal e, do ponto de vista jurídico, impotência. É, pois, erro biológico conceber egoisticamente a riqueza, como faz o homem moderno, não obstante todos os coletivismos em moda. Não somente a propriedade, mas a própria auto­ridade e toda atividade social, não devem, egoisticamente, ser concebidas como meios individuais, e, sim, coletivamente entendidas como função social; todo exercício, atividade, posse e domínio deve encarar-se como missão. Por mais que procuremos isolar-nos para fruição dos bens, a vida é unitária; não podemos impedir que sejamos irmãos, pois nela tudo é intercomunicante e comum, apesar de todas as nos­sas barreiras protetoras e divisórias. Os bens não passam de ferramenta. E nada mais. Aprendido o ofício, são entregues a outros aprendizes. Não se encontra no caminho certo quem procura enriquecer só para si e seu gozo. Tornar-se-á incansável escravo do tesouro e condenado ao terror de perdê-lo. A verdadeira conquista não se dirige às coisas, mas às forças que as geram e movem. Pobres ladroes, arri­vistas, pobres invejados por fácil e rápido sucesso! Como vocês empobreceram, ao invés de ficarem ricos; como foram derrotados, vocês que assim triunfaram; como perderam, os que desse modo venceram!

Sem esse inusitado conceito da vida, sem essa subversão completa das ilusões do mundo, não se pode imaginar civilização nova. Tão lógico, tão simples, tão natural. Nela deverá desaparecer a distinção entre valores aparentes e va­lores reais, chaga de nossa humanidade. Levam-se em con­ta as qualidades. O que importa é ser e, não possuir ou aparentar. Só o que é possui a causa, tem o germe das coisas ou, seja, a potência e o modelo para reconstruí-las ad infini­tum[4]. Não há outro caminho para a posse, no transformis­mo universal mutável, senão o domínio sobre as forças ge­néticas do fenômeno. Na posse das capacidades intrínsecas, em meio a tanta avidez de furto e á precariedade de qualquer posição social, o involuído afinal encontra o indestrutível. O homem do futuro, mais adiantado, saberá dar mais valor ao que não se rouba e não se destrói; e muito menos, ao que se pode perder; prender-se-á mais a potência intrínseca, ge­ratriz e reguladora de tudo, do que às suas efêmeras mani­festações exteriores. O evoluído não se amedronta nas horas escuras da desordem; está prevenido e preparado, quan­do os acomodatícios são atingidos por golpe vindo de baixas camadas sociais; aceita-o como enérgica varredura na casa suja da vida e continua imperturbável, porque já encontrou e possui o indestrutível. Os nós humanos assim como se fazem, se desfazem; a riqueza e todo poder podem perder­-se exatamente como foram conquistados. O que tem prin­cípio só por isso há de ter fim. Tudo o que nasce deve mor­rer. Apenas o eterno não tem fim, o que não nasce vive para sempre. Só o involuído pode acreditar no contrário. De eterno não temos senão o espírito, com as qualidades que, vivendo, lhe imprimimos, com o feixe de forças de seu des­tino, postas em movimento por nós.

Os fatos de nosso tempo demonstram quanto é involuí­da a humanidade atual e quanta sabedoria diretiva lhe fal­ta. Resolveu-se em destruição medonha todo o progresso me­cânico, fruto da ciência do nosso século e vitória de nossa civilização. A soberba técnica, conquista o louvor de nossos dias, foi entendida como fim e não como meio; a sabedoria do espírito não lhe serviu de guia. Sem direção, a máquina não construiu, mas destruiu. Faltou-lhe sabedoria, predomínio dos valores morais hierarquicamente superiores. O homem subverteu a ordem natural e paga por isso. O materialismo moralmente destruidor atingiu, desse modo, a última fase de realização concreta. A negação, partida do espírito, atingiu a matéria; o ateísmo nietzscheano deu fru­to. A superprodução industrial, ao invés de trazer abundância, chegou à miséria. Espantosa Nêmesis[5], conseqüência lógica das forças incluídas no sistema. A orientação espiri­tual negativa da moderna civilização mecânica a entrega à destruição total. Os imponderáveis que ela negou e, negan­do, moveu em sentido negativo, amarram-na agora, pren­dem-na e seguem-na; não poderá parar antes de esgotado o próprio impulso. Só mais tarde, como homens mais evoluí­dos, a reconstrução, melhor e posta bem no alto, surgirá das cinzas do mundo atual. Os destruidores modernos serão excluídos do futuro, pertencente aos reconstrutores. Está passando a hora dos destruidores, que serão expulsos da vida do mundo. Nossa miséria será como deserto, mas, tam­bém, como terreno limpo, para reconstrução maior e melhor. Esse deserto atrai as potências inexauríveis da vida Jamais, qual na profundeza da destruição, a vida tanto se renova; jamais, como no abismo da necessidade, tanto se manifesta o poder criador de Deus. Na necessidade, doloro­sa e redentora, aparece para Seus filhos a providência do Pai.

Assim a vida sem cessar caminha. Por mais que o ho­mem procure cristalizar suas posições através de laços jurí­dicos, estabilizar suas conquistas por meio de convenções sociais, públicas e privadas; fixar seu estado em instituições e formas definitivas; por mais que procure, a evolução não pode parar e, a cada nova maturação, a velha construção, tendo crescido, não se encontra à vontade na velha casca e rompe-a para formar casca mais ampla. Há constantes ne­cessidades da forma, para se definirem as posições; essa for­ma, porém, a princípio cômoda habitação, torna-se prisão mais tarde. Necessária, também, a contínua destruição e re­construção da forma, único meio de poder conciliar a ne­cessidade, imposta pela evolução, de progresso e crescimen­to, com a de abrigá-la na forma que exprima exatamente as características atingidas em cada nova maturação evoluti­va. Não só nesse caso, mas em toda a vida se verifica a luta entre forma e substância: a primeira, imóvel, com o objeti­vo de definir-se; a segunda, fluida, tendo em vista a evolução; a primeira, por necessidade que tem, como invólucro continuamente despedaçado pela pressão interna da segun­da. Exatamente desse contraste de funções opostas e neces­sárias nasce a instabilidade de todas as formas da substân­cia, a caducidade dos corpos da vida. As formas constituem apenas etapas no caminho da evolução, paradas em que cada fase se define e exprime. Mais tarde, essa roupa não serve mais, pois o corpo cresceu; torna-se necessário rasgá­-la e fazer outra mais ampla, mais na medida. Assim as re­voluções destroem as instituições e as leis, revolucionam as construções jurídicas e os arcabouços sociais, como a morte destrói os corpos para que a vida possa fazer outros melho­res, mais de acordo com o novo grau de evolução atingido. O caminho evolutivo é fatal. Hoje o mundo é o campo da batalha entre o princípio da força, disciplinado e estabiliza­do em formas jurídicas, e o superior princípio da justiça. O homem do segundo tipo cresceu; está para tornar-se homem do terceiro tipo. As velhas instituições, tão adaptadas antes, à sua natureza, estão para tornar-se a prisão em que ele se agita, oprimido, e procura arrebentar a fim de fazer casa mais vasta e proporcionada. Nossa fase não é de estase, mas de progresso e criação. A destruição precede a re­construção, momentos sucessivos e ambos necessários do pro­cesso evolutivo. Os destruidores, como os reconstrutores, exercem função biológica; mas, cada qual em seu posto. Os primeiros fazem seu trabalho e, então, julgam-se donos da situação e iludem-se, supondo que podem fazer a evolução parar e progredir em seu plano Eis, porém, superada a fa­se. E eles, simples instrumentos da Lei, já esgotada sua fun­ção, de acordo com sua capacidade, são postos de lado. An­tes, sua qualidade era ignorância e a ilusão, a natural he­rança. A evolução que não compreendem vai-lhes no encal­ço e agarra-os. E, por mais que se agarrem às posições, não podem mantê-las Assim, as revoluções devoram os próprios homens. Depois, a vida fatalmente impõe a reconstrução e, para esta, escolhe diferente tipo biológico, a ela adequado, do mesmo modo como fizera para o trabalho de destruição. E, assim, na essência, os inimigos que se digladiam e os ri­vais que se odeiam, são companheiros de trabalho; confraternizam-se, sem o saberem, na mesma obra de progresso, em que, ignorando-se um ao outro, trabalham nas sucessi­vas fases. Mesmo o próprio antagonismo entre eles existen­te cifra-se apenas na instintiva e inconsciente necessidade de exercer ao máximo a própria função, necessidade impe­lida até à rivalidade e ao ciúme do trabalho. Somos todos, cada qual em seu posto, executores da Lei e servos de Deus.

A ascensão evolutiva não pode parar. As massas não sentem a proximidade dos tempos futuros. Assistimos hoje, de fato, ao desnorteamento da História, como nos tempos de Cristo. Podemos repetir com Virgílio: Magnus ab integro sacculorum nascitur ordo[6]. O futuro pertence à nova gera­ção de homens de tipo biológico mais elevado. É inútil re­tardarmos os passos em meio aos progressos do mundo ve­lho. A ignorância, o egoísmo e a preguiça não podem fazer a vida parar. A lei de progresso esmagará todas as resistên­cias, porque é também poder de expansão divino, que é cen­tro e princípio do universo. A História caminhou sempre assim, ascendendo passo a passo; nela, é normal a realiza­ção progressiva de ideais, em princípio utópicos. Desse mo­do, da potência íntima do sêmen desabrocham novas formas de vida. O novo já vibra no ar, no estado fluido e incorpóreo de vibração, de dinamismo, que é causa das formas, prestes a encontrar o corpo em que se fixe e se defina. Tipo biológico mais evoluído, dotado de consciência nova, deverá formar a classe dirigente. Depois do desenvolvimento mecânico, que termina pela obra de destruição deve acontecer proporcional desenvolvimento espiritual que torne seus re­sultados utilizáveis em obras construtivas. Os equilíbrios da vida e a lógica do progresso impõem que, fabricado o instru­mento para o domínio material do mundo, se produza tam­bém a consciência diretora, capaz de empregar utilmente esse instrumento. Isso porque, na vida, nenhum passo é inú­til, nada se desperdiça e tudo tende organicamente para de­terminado objetivo. Só assim o progresso técnico não terá sido inútil e o homem poderá alcançar, como espera, o do­mínio não só mecânico e material, mas inteligente e com­pleto do planeta. Para dominar, a sério, é necessário princípio de ordem, central e diretivo, que não pode estar senão no espírito. Só ele pode conferir caráter de organicidade ao conhecimento científico e à potência técnica. A caracterís­tica fundamental da nova civilização será a afirmação de ordem. Partindo do conhecimento da Lei e da consciência da ordem divina em todas as coisas, chegar-se-á a nova e mais completa harmonização entre os atos da vida e seus princípios; e daí a novo superamento da dor e à aproxima­ção da felicidade. Assim eliminadas e disciplinadas interiormente, as formas de vida individuais e sociais se transfor­marão e a existência assumirá novo significado. Carecerão de sentido amanhã as atuais distinções. O verdadeiro che­fe de todas as revoluções e de todos os poderes é a Lei de Deus; manobra os líderes que podem mandar apenas en­quanto obedientes às leis do progresso e à vontade de Deus. Tendo em vista os objetivos da evolução humana, a Lei esta­belece as posições e distribui as funções; humilha os gran­des e exalta os humildes aos postos de comando; depois, li­quida todos com justiça ou, seja: com honras, se cumpriram a missão; como refugo da vida, em caso contrário. Interessa é a ascensão de todos; dela somos, ao mesmo tempo, es­cravos e senhores. Embora quase todos queiram, com ego­ístico isolacionismo, que as coisas girem em torno de si mes­mos, qualquer ação nossa é função coletiva; e toda vida, missão.

A luta moderna se trava, como sempre, entre o velho e o novo. O primeiro se aconchega entre as gigantescas construções do passado, mas tem contra si as leis da vida. Não nos ensinaram elas todo o dia o superamento do passado? Todo dia não vemos, apenas em homenagem ao progresso da vida, os moços substituírem os velhos em suas posições? Isso acontece entre as plantas e os animais, como entre os homens. Não se pode resistir a essa vontade de renovação. A vida não pode existir senão na forma de ascensão ou como meio para caminhar, cada vez mais, em direção do divino centro do universo. Trata-se de imponderáveis; poderemos negá-los e até mesmo rirmo-nos deles; mas arrastam-nos e seguimo-los. A vida pertence a quem sobe e não a quem pára ou desce; o futuro está sempre mais em cima. A vida faz-se de construção, embora deva atravessar a destruição. O universo é função imensa e perfeita, dirigida pelo pensa­mento de Deus, movida por forças titânicas e imponderáveis, sempre e em toda a parte presentes e ativas. Tudo está regulado, previsto, tudo nele se resolve em ascensão.

V

AS GRANDES UNIDADES COLETIVAS

Nos capítulos precedentes desenvolvemos e comentamos alguns pontos de A Grande Síntese, especialmente os de ca­ráter social tratados quase no fim do volume. Foram ampliados, em especial, os capítulos: "Força e justiça — A gênese do direito"; "O problema econômico"; "A distribuição da rique­za"; "Da fase hedonística à de colaboração". Os conceitos, ali rapidamente expostos no quadro de conjunto, foram con­siderados de novo, mais minuciosamente e sob aspecto mais prático e atual, tendo em vista mais a sua aplicação do que a posição por eles ocupada no organismo universal. São diferentes a perspectiva de A Grande Síntese e a destas pági­nas. Partindo de premissas cósmicas, ali os problemas do homem e da sociedade apenas aparecem por último, à guisa de conclusão; aqui, pelo contrário, esses problemas repre­sentam a base e o ponto de partida do trabalho; daí a con­clusão se eleva pouco a pouco, desde a grande massa cole­tiva até ao caso individual mais seleto e muito menos numeroso, mas, em compensação, mais evoluído. O caminho fatal de ascensão, entrevisto no fim do capítulo anterior, não se manifesta somente com a formação de tipo biológico mais elevado e, naturalmente com funções de direção, colo­cados como guia da sociedade; manifesta-se, também, de maneira diversa. Esse impulso evolutivo tende não só ao aperfeiçoamento do indivíduo, mas à investidura das gran­des massas sociais, de maneira cada vez mais extensa. Creia-se ou não no Estado, aceite-se ou não a estatolatria moderna, basta considerar o fenômeno biológico universal e imparcial, para verificar, em nossos tempos, tendência à organicidade social. O povo, considerado mais ou menos sem valor nos séculos passados, com a Revolução Francesa surge no palco da vida política. Antes valiam só os indiví­duos e as classes dominantes; a aristocracia selecionada es­tabelecia os valores coletivos e imprimia seu cunho nas massas populares, que continuavam obedientes e, exceto nos momentos excepcionais, mudas e sem pensamento próprio. Os estratos inferiores da sociedade jaziam abandonados. São muito modernos os conceitos de povo organizado, que exprime seu pensamento e toma parte na vida política, e o princípio de massa organizada em grandes unidades coletivas. Ocupar­-nos-emos, agora, desse aspecto diferente, coletivista e não individualista, da evolução humana, isto é, da formação des­se novo e múltiplo indivíduo coletivo, característica de nossos dias, e não, como antes, do sazonamento de novo tipo biológico.

O novo e múltiplo indivíduo humano, organizado em sociedades nacionais e estatais; com cérebro dirigente, nervos, órgãos, membros, coordenamento de funções; semelhante ao organismo individual, embora com dimensões muito maio­res e formas muito mais vastas; esse novo ser físico (mas­sas) e psíquico (consciência coletiva) representa nova cria­ção biológica, produto da evolução. Enquanto, porém, a ma­turação do tipo biológico mais elevado significa desenvolvi­mento em altura, a formação desse novo e gigantesco indi­víduo representa desenvolvimento em superfície. No primei­ro caso exalta-se a qualidade; no segundo, conquista-se a quantidade. Completam-se, embora crescendo em direções diferentes e com importância própria. Ambos necessários, os dois impulsos se fundem na estrada das ascensões huma­nas. O individualismo do tipo biológico dominante não de­saparece nessa nova organicidade; ao contrário, nesta, suas funções se coordenam. Como indivíduo, geralmente primi­tivo, involuído, pode evoluir, seguindo sempre caminhos in­dividualistas. Mas é raro; e então o enquadramento coleti­vo o educa e faz progredir. Por isso o individualismo não fica mutilado; seus caminhos continuam abertos aos que têm força para emergir. Nos séculos passados a vida per­tencia apenas ao selecionado que se distinguira da massa. Hoje, é de qualquer elemento da sociedade humana, a que agora não serve de obstáculo, mas pertence como membro. A extensão de atividade a todo indivíduo, sua participação, se representa primeira tentativa de nova e gigantesca cons­trução, teria de rebaixar o nível social ao do tipo corrente, do homem da rua, que pode ser tudo menos tipo eleito. O nível social rebaixou-se até o do tipo comum, ligado, em compensação, ao círculo de vida por ele antes desconheci­da. A formação das grandes unidades coletivas teve, pois, como primeira conseqüência, o rebaixamento involutivo, até ao plano dos primitivos, do tipo de vida. Não se pode evitar e, assim, se paga o progresso em extensão. Nasceu, todavia, novo ser coletivo, que, a principio involuído e pri­mitivo e hoje embrião em crescimento, exprime a possibili­dade de imensos desenvolvimentos futuros. O povo desper­ta, sem dúvida, como se voltasse à vida. Nessa nova forma­ção coletiva o escasso valor individual do involuído cresce e se multiplica em rede de contatos e trocas; não mais apa­rece sozinho, reduzido a seu valor intrínseco, mas vive em função do organismo novo em que, participando como cé­lula, se multiplica. Nas unidades coletivas o indivíduo vem a conhecer novas formas de vida e de relação e sente-se transportado para novo plano orgânico, antes desconhecido.

A nova criação biológica de nossos dias é, pois, exata­mente esse novo indivíduo coletivo, com milhões de cérebros procurando coordenar o seu pensamento segundo correntes de consciência, indivíduo que nessas correntes busca formar personalidade própria e unitária, diferente da dos indivíduos componentes. A psique individual pode assim agir se­gundo dois diferentes pontos de vista: o do indivíduo como indivíduo; o do indivíduo como célula social; no primeiro caso tem funções e objetivos individuais; no segundo, coleti­vos. Trata-se de duas posições diversas: entre elas podem nascer contradições; e o indivíduo, como célula social fará, com finalidade social, o que jamais faria como indivíduo apenas. Pode, desse modo, sob a forma de delinqüência, exercer funções de justiceiro. Mas se, no seu conjunto, o indivíduo coletivo tende a adquirir consciência unitária, própria e distinta da dos indivíduos componentes, nas pe­culiaridades e na estrutura interior tende à especialização das funções. As grandes unidades coletivas são gigantes­cos organismos sociais, colossais, monstruosos indivíduos biológicos de que o homem é célula; as classes sociais, teci­dos; as classes dirigentes, cérebro; as massas, corpo. Estas unidades possuem sistema nervoso, órgãos de sensibilidade e coordenadores de funções. Nelas o indivíduo exerce as ati­vidades mais de acordo com suas capacidades peculiares. O involuído se encarrega de desempenhar as funções mais bai­xas: agressão, guerra, destruição; o evoluído desempenha funções intelectuais e de direção. Eis como o tipo biológico mais elevado se enquadra no novo organismo coletivo. En­tre os dois extremos os administradores se distribuem se­gundo suas qualidades específicas. Assim, os três tipos hu­manos, vistos no capítulo III, encontram lugar e fazem sua tarefa. O indivíduo coletivo, no entanto, está se formando ainda; não se definiu bem, até agora, o critério distintivo das funções; há, por isso, entre as partes, a luta e a incer­teza próprias do período de formação. Existe, sem dúvida, semelhança com o organismo biológico, mas organismo em­brionário e experimental, como no período paleontológico. Percebe-se, como no corpo humano, o princípio de especialização, o coordenamento das qualidades individuais, mas no estado de tentativa. Do ponto de vista biológico, torna­-se muito importante a observação do esforço feito hoje pela vida para coordenar suas conquistas individualistas e, no pla­no humano, disciplinar as suas forças. Neste período histó­rico chega a parecer que o esforço seletivo, de natureza tam­bém separatista, ceda o passo ao esforço orgânico e social, de natureza coordenadora. A primeira tendência se movia em direção individualista, para produzir poucos exemplares do tipo eleito; no entanto, a segunda caminha em direção coletivista a fim de que produza muitos exemplares do tipo medíocre e os valorize pelo número e não individualmente, transformando-os em grande organismo coletivo. Levamos em consideração neste livro ambas as formas de expansão vital evolutiva; necessitamos das duas para completar o fenômeno da ascensão e da construção. Veremos, enfim, como os altos níveis evolutivos não podem ser atingidos pelas mas­sas numerosas, mas medíocres; e como os poucos eleitos que os conquistaram tendem, - uma vez cumprida sua fun­ção e alcançado o rendimento das qualidades por eles adqui­ridas, - a separar-se da humanidade terrestre. Tornava-se necessário, porém, completar o exame do fenômeno evolu­tivo, observando-se também o aspecto coletivo; mas com­pletar; começando da base, baixa, mas extensa, da pirâmi­de social, onde se encontra a grande maioria que, embora de modo diferente do evoluído, procura ativamente a pró­pria construção biológica

Existem, pois, duas correntes de atividade evolutiva, dois trabalhos intensos: a primeira conclui na formação do su­per-homem, que se separa e afasta da humanidade, cujas for­mas de vida, para ele baixas e insuportáveis, seu grau evo­lutivo não tolera mais; a segunda não considera a exceção, por mais rara, mas a regra geral, embora medíocre; opera sobre primitivos e deserdados, para realizar com eles tão importante conquista como a outra. A vida não abandona ninguém; e a cada qual, de acordo com sua natureza, ofe­rece atividade adequada e confia tarefa. Este prefere subir sozinho até aos mais elevados cimos; aquele sabe viver e trabalhar apenas no meio da massa e em função dela. Am­bos os trabalhos, porém, merecem respeito e importam pa­ra o progresso; ambos contêm a incerteza da tentativa e o risco do inexplorado; representam esforço criador, o traba­lho da gênese biológica. Estes dois pontos resumem a du­pla fórmula vital do futuro, no duplo aspecto individual e social.

Observemos o novo indivíduo biológico coletivo. Como todas as primeiras formações embrionárias da vida, agita-se desordenadamente, procurando configurar-se mais esta­velmente; sente confusamente; move-se, desarticulado e in­certo, como todas as construções biológicas recentes. Tra­ta-se, na verdade, de novo e imenso corpo vivo, de corpo social com as características, as leis, os instintos, as moléstias e as defesas da vida orgânica e psíquica. O paralelo entre organismo individual e organismo social, se confirma nossa concepção biológica do fenômeno social, esclarece-o tam­bém, visto como reencontramos nele as leis reguladoras do organismo do indivíduo. Essa relação nos permite compreender o funcionamento da unidade coletiva e advinhar-lhe o futuro, utilizando-nos dos mesmos princípios já encontrados no caso individual. Poderemos, assim, compreender me­lhor a lei reguladora dos acontecimentos históricos; consi­derando-os como fenômenos de biologia social, poder-se-á fazer, à luz da patologia social, a diagnose das crises coleti­vas, e estudar, de acordo com a fisiologia coletiva (ou dos corpos múltiplos), o funcionamento do novo grande orga­nismo. Dos conceitos próprios da Anatomia poder-se-ão aplicar-lhes os de: atrofia, hipertrofia, circulação e metabo­lismo, centros cerebrais e nervosos e correntes de consciên­cia, gênese, crescimento, maturidade, senilidade, morte e hereditariedade, ciclos vitais, transformismo evolutivo Co­mo a propósito do indivíduo, poderemos, a respeito da uni­dade social, falar em personalidade, destino, responsabili­dade, missão.

Essas comparações são lícitas e lógicas, pois o universo é dirigido por uma só Lei, quer dizer, por legislação única, sempre onipresente. O fenômeno social, como o fisiológico; segue a mesma lei universal expressa pela trajetória típica dos movimentos fenomênicos e pela lei da unidade coleti­va. (Cf. A Grande Síntese - cap. XXVI e XXVII). Na matéria, na vida como no espírito, as formas desde as atô­micas até as siderais tendem para a unidade ou, seja, para o reagrupamento e a reorganização em sistemas, em asso­ciações cada vez mais vastas e complexas. Toda unidade já representa em si mesma a resultante da organização de uni­dades menores. O próprio universo é por excelência unitá­rio e orgânico; é de alto a baixo edifício único. Desse modo, é fenômeno social, não somente biológico, mas também conexo e logicamente entrosado no fenômeno cósmico; repre­senta momento da Lei, processo de mecânica universal. Não podemos considerá-lo isolado, fora do complexo da vida, dos métodos e da finalidade da Natureza. Assim, encontra­mos o fenômeno social, histórico e político orientados e em sintonia com o mesmo ritmo da lei reguladora de todos os fenômenos. Em toda parte ambos têm o mesmo esquema fundamental, redutível a princípio único. Torna-se eviden­te que: a Natureza age de acordo com esquemas simples e constantes; suas formações se fazem em modelos, embora não mecanicamente, em série; seus desenvolvimentos obede­cem a um plano e isso os prende sempre a um princípio diretor central. Retomaremos em melhores condições, mais adian­te, tal conceito. A criação tende para a uniformidade e a repetição dos modelos. Todas as formas, assim, possuem base comum a irmaná-las em parentela que mostra deriva­rem do mesmo e único princípio. Não se copiam, mas se reclamam mutuamente de todos os pontos do universo e de todos os planos evolutivos. Por isso na formação e funcio­namento das grandes unidades sociais vemos a reprodução dos fenômenos e o retorno das leis por nós observados nas unidades minerais, vegetais, animais, desde o átomo até às estrelas.

Isso posto, de modo algum podemos crer que o fenôme­no histórico se desenvolva sem lei, abandonado ao arbítrio individual ou ao capricho dos acontecimentos. A História nos conta como se sucedem no tempo os vários momentos do funcionamento dos organismos coletivos. Estas palavras po­deriam constituir-lhe a definição. O funcionamento do corpo social, expresso pela História não obedece ao acaso, mas se­gue o mesmo ritmo por nós encontrado noutros fenômenos. Em outras palavras: o transformismo fenomênico do com­plexo vivo do grande corpo coletivo obedece às mesmas leis do dinamismo universal. Ou mais exatamente: é dirigido enquanto pertencente ao binário da onda histórica. A vida das grandes unidades coletivas se desenvolve de acordo com movimento de amplas oscilações ascensionais e descenden­tes, de altos e baixos periódicos, movimento que repete o princípio das ondas do mundo dinâmico de que a vida par­ticipa... Isso naturalmente acontece sempre que se trata de dinamismo como neste caso. Observemos os períodos e as características desse ritmo histórico. A História se desenvolve de acordo com respiração rítmica por nós reencontrada na física e especialmente no eletromagnetismo. A exis­tência dos retornos históricos, já observados por Vico, é fe­nômeno de fácil observação. A trajetória típica dos movi­mentos fenomênicos de que falávamos acima segue o prin­cípio desses retornos ou repetições, reproduzindo-os, toda­via, em cada vez mais elevada posição; desse fato deriva a evolução. Desse modo, funciona também a história. Os acontecimentos humanos, sucedendo-se, tendem a repetir-se, ligam-se à lei dos retornos históricos que os obriga a percorrer de novo o velho caminho. Não nos surpreendamos por isso se a História parece não ensinar coisa alguma e se muitas vezes os mesmos erros são cometidos de novo pelos próprios dirigentes, que mais do que ninguém devem tê-la presente. Essa a lei do fenômeno, que só não se repetiria se progredisse sempre em direção evolutiva; é isso exatamen­te a coisa mais árdua na vida. Todavia, como na trajetó­ria dos movimentos fenomênicos, a repetição não se trans­forma em cópia autêntica; quem observá-la bem lhe notará alguma diferença, embora pequena. Esta representa todo o valor da conquista, o resultado da experimentação. Acon­teceu em direção ao alto, em direção evolutiva. E, se atuou na realidade, é construção acabada e real, embora sob a for­ma de força imaterial. Representa novo e indelével traçado, tipo mais aperfeiçoado de ritmo, fixador do binário em que pela mesma lei de repetição devem desenvolver-se mais tar­de os novos acontecimentos históricos. Estes, como sempre, retornarão ao passado, mas a passado que já fixou deter­minada diferenciação evolutiva, patrimônio já conquistado e ponto de partida para novas diferenciações e conquistas.

Observemos, pois, as características dos dois períodos do ritmo histórico. Trata-se de duas posições inversas e com­plementares, rivais e contudo irmãs na tarefa de construir. Trata-se de caso a que se aplica a lei universal da dualida­de, já desenvolvida em A Grande Síntese (cap. XXXIX) e que neste livro desenvolveremos ainda mais. No ritmo his­tórico continuamente se alternam os períodos clássico e ro­mântico. O primeiro, masculino, explosivo, guerreiro, mate­rialmente conquistador, destruidor, fecundante e semea­dor, violento, involuído, materialista. O segundo, feminino, tranqüilo, conservador e espiritualmente conquistador, cons­trutor, preparador e amadurecedor, pacífico, evoluído, espi­ritualista. Na trajetória dos movimentos fenomênicos o pri­meiro período representa a fase de queda involutiva, de re­torno e de recuo; o segundo, a fase de ascensão evolutiva, de progresso, de ímpeto. Ambos os períodos, porém, são ne­cessários porque têm funções diferentes e ao mesmo tempo complementares. O progresso caminha amparado nessas duas forças contrárias, impelido pelos seus choques e con­tradições. No fundo os dois períodos criam, embora sob for­ma diferente, emborcando-se um no outro; e, embora pare­çam inimigos em luta, cooperam, colaboram em lados opos­tos na mesma construção. Se o primeiro em plena tempes­tade não evidenciasse e no meio da morte não lançasse prin­cípios mais elevados de vida; se em ambiente de destruição não limpasse o terreno, tirando-lhe as velhas construções, o segundo na paz não teria nem novos motivos para desenvol­ver nem novas construções a levantar. Reencontramos aqui o conceito acima lembrado e segundo o qual, para poder con­ciliar a fluidez necessária ao transformismo evolutivo e a rigidez imposta pela necessidade de assumir formas bem definidas a vida deve renovar-se, alternando continuamente a vida e a morte, a construção e a tudo isso exprime, nesse caso, a íntima bipolaridade encontrada em toda individuação, representa os dois extremos opostos en­tre os quais, oscilando, funciona e evolui o fenômeno social; corresponde à característica de harmonia e equilíbrio fun­damental da Lei: os dois extremos, componentes de cada unidade, devem ser proporcionados e se contrabalançarem. A fenomenologia universal, reclama e faz-nos encontrar, pre­sente em toda parte, o organismo insecável de seus prin­cípios.

Mas o equilíbrio não aparece só na intimidade de cada unidade social, no seu desenvolvimento temporal, mas tam­bém na sua estrutura espacial. Noutros termos: o fenôme­no não é equilibrado apenas no futuro histórico, mas tam­bém na distribuição pela superfície da terra das várias uni­dades sociais. Quer dizer: há povos que vivem em determi­nada fase; outros estão situados em outra, de modo que a humanidade não concentra em direção única todo o seu di­namismo, mas o faz agir tendo em vista a compensação tan­to no tempo como no espaço. Evitam-se assim demasias e lacunas perigosas, atrofias e hipertrofias danosas; e em meio a tanto movimento e tal emaranhado de contrastes a harmonia permanece soberana no espaço e no tempo. No espaço, a civilização ocidental, mecânica e materialista, equi­libra a civilização oriental, mais madura e espiritualista. No tempo, o fato de estarmos hoje em pleno materialismo sig­nifica que se deve fatalmente esperar a fase de espiritualis­mo. Não se poderão saber exatamente o ano e o dia; mas diz a lógica das leis da vida que o atual ciclo histórico deve encerrar-se; as forças, que o movimentam e atuam há tem­po, devem parar e esgotar-se; e deve começar precisamente o ciclo oposto. Poder-se-á dizer: "não vejo, não creio"; mas o leitor, se capaz de raciocinar e compreender a mecânica do universo, que estamos procurando pôr-lhe sob os olhos em pleno funcionamento, deverá concluir que as aparências estão na superfície e enganam; deve nascer-lhe no espírito ao menos a suspeita de que debaixo delas, onde tantos vivem, exista outro mundo, imenso e muito mais perfeito. Enquanto o ciclo atual percorre a trajetória, completa a ta­refa e descarrega o dinamismo, o outro, presente em todas as coisas, espera a vez, espera em silêncio e repouso e recar­rega o dinamismo. O leitor olhe em torno, na vida vegetal e animal, no descanso hibernal e nas florescência prima­veris, no sossego da morte e nos trabalhos da vida, e veja se o fenômeno constitui exceção da regra geral.

No caso humano, os dirigentes, intérpretes e jamais cria­dores do momento histórico, jamais árbitros desordenados e sim servos obedientes à Lei sem a qual não há vida, põem em funcionamento esta ou aquela fase, de acordo com os tempos, sucessivamente, uma em conseqüência da outra; e as massas caminham, dando corpo ao impulso. A alternân­cia das duas tendências permite que depois do período de trabalho ambas as partes descansem Os componentes do imenso indivíduo coletivo são levados, assim, alternadamen­te, a turnos de trabalho e de repouso, exatamente como as equilibradas leis da vida querem. Enquanto uns repousam, outros, que já repousaram, agora trabalham; e assim, em­bora passando de mão em mão, a função progride sem in­terrupções. Divisão de trabalho necessária, porque executada por muito diferentes tipos biológicos, de funções especia­lizadas; necessária para evitar cansaços e esgotamentos étni­cos; necessária para corrigir qualquer direção individual tendente à hipertrofia unilateral e desse modo compensá­-la. Só assim podemos conseguir desenvolvimento homogê­neo e harmônico. Portanto, o grande indivíduo coletivo, co­mo simples homem equilibrado, divide sua atividade pelo trabalho físico e pelo espiritual.

Como em todas as formas da vida, os dois sexos se com­pletam. Há povos masculinos, conquistadores e fecundan­tes, e povos femininos, conquistados e fecundáveis. Mas têm ambos todas as outras características, como acima dissemos, dos períodos opostos, clássico e romântico. As duas extremidades se atraem, emparelham e compensam no tempo e no espaço. A unidade completa resulta da fusão dos dois contrários e cada qual nada pode fazer sozinho. Se a parte masculina não fecundar, a feminina nada gera. O fenôme­no da civilização pode parecer processo de efeminação por­que significa paz, conservação, bem-estar, luxo, refinamen­to, arte, cultura. Veremos mais tarde como a maturação, muito impelida nesse rumo, se resolve em podridão, assim como a oposta atividade viril termina em cataclisma, se muito forte. A Lei, nos seus equilíbrios, sabe corrigir os ex­cessos, intervindo a tempo com impulsos contrários e com­pensadores. Existe proporção entre os de uma fase e os da sucessiva, como entre ação e reação. Isto faz-nos pensar em quão grande deverá ser a nova civilização do espírito, se a compararmos com a atual destruição conseguida pela civi­lização da matéria. Os preparativos são, de fato, gigantescos.

Torna-se necessário que, efetivamente, a onda, por sua mesma estrutura, em dados períodos, eleve das raízes da vida forma masculina para salvar a humanidade da civilização acelerada demais, isto é, da efeminização ou, melhor, da maturação levada à putrefação. Então, o homem domina, tudo se viriliza, inclusive a mulher (como hoje acontece), enquanto no período oposto, a mulher domina e tudo se efemina, o homem inclusive (como aconteceu no século XVIII). Quando chega a hora, ele intervém para verificar, à luz da realidade concreta, as superconstruções do período român­tico; arrancar o que nele existe de falso e supérfluo, quer dizer, de não realmente verdadeiro na vida; reativar a cir­culação; dinamizar com novos impulsos. Nessa relação se encontraram a antiga Roma e a Grécia, na França, a revolu­ção e o império frente ao período monárquico imediatamen­te anterior; e no mundo, a fase atual e o século XIX. E tu­do isso para depois civilizar-se de novo com os produtos das civilizações vencidas, elaboradas na luta e introduzidos em novo ciclo. Assim, nada se perde ou destrói; se o acessório supérfluo desaparece, a substância permanece e revive sem cessar. Melindramo-nos com a destruição feita por essas tempestades, porque só vemos as formas e vivemos na superfície. Se, ao invés, olhássemos o germe das coisas, veríamos que ele não morre jamais; e esse perecimento menos nos per­turbaria, com essa explicação lógica.

Assim, onde há o perigo de excessivo efeminamento, on­de civilização muito impetuosa enerva e debilita as raças, aí a vida coloca reforços para, com injeções de virilidade, dina­mizarem a maturidade por demais cansada. Essa a função dos povos jovens, involuídos e primitivos, mas também mais próximos das origens da vida, transbordantes de energia, embora pobres de experiência e sabedoria; possuem dina­mismo cuja qualidade, evoluindo, por enquanto não trans­formaram em qualidade. Naturalmente oposta é a função dos povos maduros, cujas riquezas espirituais os primeiros avidamente querem possuir, como se fossem alimento de que carecem para, assimilando, evoluir. Os primeiros ofe­recem dinamismo rude e decomposto; os segundos, sabedo­ria, produto de longas experiências. Estabelece-se entre os dois o mesmo equilíbrio existente entre jovens e velhos, uns e outros necessários à vida, embora com funções opostas. Com isso se obtém, de uma só vez, dois grandes resultados: 1) o progresso do involuído por obra e graça do evoluído, que assim dá rendimento coletivo à sua posição, vindo esta a constituir função biológica; 2) o recarregamento dinâmi­co das coletividades civilizadas e cansadas, trabalho do in­voluído, que preenche, ele também, função biológica. Desse modo, cada qual se compensa, dando o que tem e adquirin­do o que não tem; todo tipo humano tem função e missão e os extremos da vida se ajudam alternadamente. A técnica regeneradora da vida, desde o caso sexual até ao da mistu­ra das raças, funciona exatamente de acordo com o siste­ma das cessões e aquisições recíprocas, isto é, com o das tro­cas entre elementos contrários.

Se do exame dos princípios passamos ao nosso atual caso particular, evidencia-se como se encontra hoje o mun­do na fase masculina, em que tudo, inclusive a mulher, ten­de para a virilização. Explica-se desse modo o assim chama­do despertar político-social da mulher, sua participação em atividade para que em outros tempos a consideravam in­competente. Encontramo-nos evidentemente em pleno pe­ríodo clássico, oposto ao romântico, quer dizer, em período de exaltação das qualidades do tipo guerreiro, materialmen­te conquistador, destrutivo, fecundante e semeador, vio­lento, involuído, materialista. Estão momentaneamente de­primidas as qualidades do tipo oposto, cujo dinamismo ago­ra se recarrega em silêncio, à espera da vez de entrar em ação. Quando isso acontecer, exaltar-se-ão as qualidades do tipo romântico e serão deprimidas as do tipo atual; e assim por diante. As verdades sustentadas pelo homem não ex­primem muitas vezes senão a tarefa particular à realizar­-se. Assim se explica a alternância da moda, - não só nos vestidos. mas em todas as coisas - forma mental essenci­almente mutável e expressa em tudo. No novo período não se dará valor ao que hoje se admira; ao contrário, valori­zar-se-á o tipo conservador, espiritualmente conquistador, construtor, preparador e maturador, pacífico, evoluído, espiritualista. A Lei nos obriga, instintivamente, a prezar o ti­po que, no momento, está exercendo função de valor por­quanto corresponde a determinado objetivo biológico e ten­de a alcançá-lo, explicando, como missão, suas qualidades particulares.

Chegará, pois, o período de refinamento espiritual. A ontogênese, diz-se, resume com rapidez a filogênese. Do em­brião a juventude, a história da vida se repete no organismo. Assim toda civilização ao surgir, recapitula o seu passado de acordo com seu tipo. A nova fase, porém, como vemos na trajetória os movimentos fenomênicos, não se esgota nes­sa repetição sumária, mas continua o caminho para subir mais, conquistando novo trecho. Isso representa a conquis­ta evolutiva da fase. Em princípio, pois, os motivos espiri­tuais do precedente período do mesmo tipo serão retoma­dos, rapidamente recapitulados e em seguida levados até mais longe. O que no passado foi ponto de chegada será agora ponto de partida, terminada a recapitulação. Os mes­mos princípios, posto haver continuidade na evolução, serão desenvolvidos sob a forma de construções que antes não ha­viam encontrado os meios de tornar-lhes possível a atuação. Já sob bases orgânicas coletivas, a nova fase poderá ir muito além da antecessora do mesmo tipo, depois de ter sido obtida na mistura de povos, raças e civilizações a recíproca cessão e aquisição, isto é, a troca em que atua a técnica re­generadora da vida ou, noutras palavras, depois de dinami­zados os exaustos e tornados maduros os involuídos. Desta vez o impulso espiritual encontra preparados meios bem di­ferentes de ação e, principalmente, esse movimento de massas característico de nossos tempos e em que poderá multi­plicar-se, enxertando-se nele. Os meios de divulgação e de contacto e o aumentado nível médio de cultura permitirão muito grande alargamento de bases e de comparticipação. Doutro lado, a concepção espiritual da vida não ressurgirá como tentativa, tendência ou na forma que para tantos é crença vaga, mas ressurgirá como conhecimento e consciên­cia das leis da vida acessíveis por via racional e experimen­tal, no modo evidente da objetividade cientifica. Desta vez o homem, servido pela técnica, será dono de muitas forças da natureza, de muitos instrumentos e capacidades novas que antes ignorava. Assim, a sua nova espiritualidade não se concretizará unicamente nos casos de individualismo ele­vado ou, então, como elementar e prévio fermento de mas­sas; mas se desenvolverá na reconstrução orgânica da civi­lização, impregnando-lhe todos os estratos e enquadrando-lhe todos os movimentos. A nova espiritualidade do tercei­ro milênio deverá realizar-se em plano coletivo muito mais amplo, mais profundo e orgânico do que qualquer dos pre­cedentes.

A construção é grandiosa, mas nova em grande parte; e o novo não está isento de perigos. Vamos assinalar dois. Eis o primeiro: a formação do organismo coletivo represen­ta moderna conquista que nossa fase apronta para a seguin­te. Ora, toda construção tende à hipertrofia e à caducida­de. Logo, o princípio de organicidade social ameaça tornar­-se o túmulo do individualismo. Este, excelente produto da velha civilização, hoje deve lutar para não deixar-se absor­ver pelas novas afirmações do coletivismo. Causa dano per­turbar os equilíbrios. O processo de unificação social não deve reduzir-se a processo antibiológico, destruidor de valo­res adquiridos que, ao contrário, se devem conservar e em­pregar. Assim, caminhando demais em direção da vida, ar­riscamo-nos a seguir caminho diametralmente oposto. A unificação orgânica coletiva não deve resolver-se no esma­gamento e morte do individualismo, que contínua a ser a "via regia" da evolução; deve, porém, significar-lhe a coor­denação em unidades maiores, em que ele, ao invés de mu­tilado e asfixiado, se torne expoente da vida social de relação. Produto biológico não se destrói sem dano. O novo trabalho consiste em coordenar os valores resultantes das conquistas realizadas, herança das fadigas humanas no transcurso dos séculos, e aumentar-lhe o rendimento na co­ordenação. A Lei quer o equilíbrio, isto é, não quer Estado onipotente de corpo social em que o indivíduo desapareça, mas a afirmação equilibrada dos dois princípios: o individual e o coletivo, opostos e complementares, por isso feitos para compensar-se mutuamente. Opostos, tendem a preju­dicar-se um ao outro; todavia, são reciprocamente indispensáveis. O primeiro vale como material construtivo: sem ele nenhum sistema é atuante; o segundo, como força disciplinadora e coordenadora sem ela os valores do individualis­mo se anulam na luta e na destruição. O primeiro se move em direções e tende a conquistas, ambas diferentes das do outro. Um, caminha para especialização cada vez mais avan­çada, profunda e perfeita ou, seja, é separatista; o outro, anti-separatista, dirige-se à unificação mais íntima e com­pleta. Os dois princípios preenchem função: o primeiro for­ma um por um os indivíduos; o segundo coordena-os em unidades cada vez mais vastas. Primeiro o princípio coleti­vo organiza os indivíduos em organismo familiar; depois, em classe social; em seguida, em Estado e Nação; mais tar­de, em raça; finalmente, em humanidade; e, além de nosso ambiente terrestre, em organismos de humanidade. O indi­víduo, segundo o grau evolutivo deve sucessivamente tomar parte nessas unidades múltiplas cada vez mais vastas e com­plexas, sem destruir a organicidade já atingida, mas enca­minhando a menor para a maior.

Um dos erros do princípio coletivo será a redução do homem a máquina e a número, à irresponsabilidade, à ser­vidão, à situação de indivíduo mantido pelo Estado onipo­tente, em posição crepuscular de segurança e passividade. Isso é antivital. Os desníveis de todo gênero, o estímulo do interesse, a liberdade de iniciativa individual, as competi­ções em todos os campos incitam a atividade necessária para os experimentos de que nasce a evolução. A proprie­dade, tão bem conhecida até dos animais, constitui fenô­meno biológico inviolável porque necessária para proteger e conservar a vida Se o enquadramento chega à absorção; se paralisa a liberdade de movimento necessária aos obje­tivos da vida do indivíduo; se a disciplina chega à destruição da fisionomia individual e à sufocação, o princípio coletivo torna-se antivital. Seria antibiológico que a estato­latria atuasse, oprimindo a célula constitutiva, pois o Esta­do existe justamente para desenvolvê-la. Deve existir pro­porção entre cérebro e membros, equilíbrio entre centro e periferia, harmonia em tudo. Toda hipertrofia é monstruo­sa. O novo corpo social tem necessidade de ser plástico, adaptável, multíplice, de partes compensadas, de elementos substituíveis precisa não emperrar por causa da excessiva complexidade da organização, tanto mais vulnerável quanto mais complexa e assim, reduzida a fator de perigo para a vida. Não deve resolver-se em centralização absorvente, mas compensá-la com descentralização adequada. A ameaça do novo sistema orgânico está na preguiça do indivíduo, que se adapta e abastarda, servindo-se dele apenas para deixar-se arrastar, abdicando à própria autonomia espiritual e ao direito de evoluir porque, guiado pelo Estado e pela técnica, acredita poder, enfim, furtar-se ao trabalho. A ameaça está em que a igualdade chegue à podre indolência dos servos e à criação de rebanhos passíveis se serem dominados. Infelizmente o senso de responsabilidade tende a decair na razão direta do número. O apoio recíproco encoraja a inconsciência e por motivo de confiança recíproca enfraquece o autocontrole; é convite à ação cega que, quando isolada, é mais ponderada. O número, principalmente aos fracos, dá ilusão de poder, de segurança e também de impunidade. O número constitui a grande defesa e a única força das nuli­dades; estas sabem disso e nele se refugiam. O coletivismo pode ser desfrutado por elas e significar-lhes a exaltação. Na massa, em que vale a quantidade e não a qualidade, o inferior se valoriza e o superior se desvaloriza. O número ni­vela, tira dos melhores e dá aos piores. Como os primeiros constituem a minoria, todo agrupamento implica em piora mais ou menos pronunciada. Os primeiros descem até aos segundos; estes não sobem até aqueles. Assim, toda coletividade vale sempre muito menos que a soma dos indivíduos componentes. " Senatores boni viri, senatus autem mala bestia[7]". E isso também porque o apoio recíproco diminui o esforço individual e, portanto, o rendimento coletivo. Desse modo, por causa dessa instintiva confiança de ovelha e da cessão de controle, as forças individuais de qualquer agrupamento humano se anulam ao invés de se somarem. Basta isolar o indivíduo, para dar-lhe de novo o senso de responsabilidade. Desfeita a miragem, cai logo em si. Nes­ses casos o homem se revela animal gregário. Mas, se deve ser enquadrado e disciplinado, deve também ser deixado so­zinho e livre diante dos problemas da vida, para que apren­da a resolvê-los por si mesmo. Torna-se necessário que a evolução como coletividade não signifique supressão do esforço, tão de boa-vontade abandonado, para evoluir indivi­dualmente, porque nesse caso a evolução trairia seu objeti­vo, a ascensão. De fato, entravando o progresso individual, perturba até mesmo o princípio dele resultante.

Eis o segundo perigo, capaz de causar o naufrágio da nova civilização do espírito, impedindo-lhe atingir as suas metas: o bem-estar a segurança, o refinamento, se significam civilização, constituem o primeiro passo do enfraquecimento e da decadência. Para não apodrecer a vida deve exercitar-se continuamente na luta porque é da lei que a vida não seja fim de si mesma, mas instrumento de conquista. Ai do homem se, atingido o bem-estar material, se contenta e pára em plena estrada da conquista, sem avan­çar mais, em direção ao altiplano do espírito. A ascensão material, para não degenerar deve ser apenas o meio para apresentar-se em novos horizontes intelectuais e espirituais, conseguir realizações mais elevadas, sob novas formas de luta, a fim de que a evolução continue. Só assim se poderá dar futuro à vida. A História já nos mostra como se mani­festa a decadência tão logo o homem se detém no progresso obtido, como nas comodidades diminui a intensidade do tra­balho evolutivo, e como a todo período de sofrimento segue período de ascensão. O alto padrão de vida pode adormecer as limitadas potências criadoras do espírito, que deve ser malhado e polido como os metais para manter-se brilhante. Para os indignos a vida pára e quem pára morre. Não se entenda o novo período como resultado de que se deva tirar gozo, mas como novo tormento de criação. Só se a lei de luta e seleção for levada para o plano mais alto, a vida não será traída e essa civilização terá conseguido seu objetivo. Só assim não será inútil e não tombará esperdiçando os fru­tos de passado tão longo. As civilizações deste tipo tendem a desagregar-se na efeminação, no refinamento, na inércia, como as do tipo oposto tendem a naufragar na violência e na destruição. Tão logo a civilização do espírito perde a substância e se torna forma brilhante, sem nenhum conteúdo mais, desperta ameaçador o fermento viril e masculinizan­te; desperta e sobe dos planos inferiores para jogar fora a estrutura que se tornou inútil. E isso lhe assinala o fim.

VI

A LEI DA HONESTIDADE E DO MÉRITO

Nos primeiros capítulos deste livro, pela verificação de fatos, partimos do que o homem hoje é, e isso deixando ape­nas entrever o que deveria e poderia ser. Começamos ago­ra a percorrer a longa estrada da ascensão. Levar-nos-á a vertiginosas alturas. E a grande massa humana, de que até mesmo no aspecto coletivo apreendemos os movimentos, irá diminuindo de tamanho até ficarem somente poucos casos excelsos, florescência de excepcional beleza e supremo esforço da raça. O problema coletivo só se concebe na base da evolução humana. A vida não sabe atingir os pontos culminantes senão sob forma individualista. Todavia, as próprias construções sociais não podem elevar-se sem ade­quado material humano, cuja formação constitui problema individual. Sem novo homem, mais sábio e consciente do que o involuído hoje em maioria, os sistemas coletivos que nos dias de hoje tentamos tornar atuantes não podem atingir os objetivos que prefixam para si mesmos. Mesmo para resolver a questão social torna-se necessário, pois, co­meçar pelo caso individual, visto como os dois fenômenos, individual e coletivo, se entrosam e amadurecem paralelamente. O engenheiro poderá fazer projetos maravilhosos, mas se não dispuser de bom material os edifícios por ele construídos desabarão. Tal entrosamento de fatos nos im­pele do aspecto coletivo ao individualista, da visão de con­junto à de suas particularidades. Se os cimos constituem ex­ceção e não interessam às massas, os primeiros passos das ascensões humanas são problema vital também para elas e outras construções coletivas com elas relacionadas. Para, também sob esse aspecto, construir o progresso. torna-se necessário começar pela construção do indivíduo, pelo renovamento da forma mental dominante, a do involuído. Sem o estabelecimento dessa premissa os atuais sistemas de enqua­dramento coletivo ou se reduzem a mentira ou não passam de utopia.

Comecemos então a observar o que o homem deve e pode ser, precisando cada vez mais o como e o porquê. Come­cemos a demolir racionalmente a psicologia do involuído pa­ra substitui-la pela de tipo biológico mais evoluído: a de­monstrar como de fato a vida é bem diferente daquilo que geralmente se pensa; a destrinçar a meada das falsas apa­rências a fim de chegarmos a compreender o engano das ilusões psíquicas que tantas vezes vitimam o homem. Só se a observação incidir-lhes, além das aparências dos fenôme­nos, na intima estrutura de organismo de forças em ação, poderemos atingir seriamente e sem desilusão o objetivo ins­tintivo e justo da vida: a felicidade. Como todos os jogos têm regras próprias, cada dinamismo, técnicas, e cada fenômeno, leis, então, neste caso também, se compreende a necessidade de disciplina reguladora e diretriz da atividade humana, se quisermos vê-la atingir o fim a que tende. Todos compre­endem que para se tornarem possíveis o melhoramento e a renovação sociais se necessita de tornar comum o tipo hu­mano excepcional em nossos dias, no qual predominam as características de honestidade. Trata-se de revolução bio­lógica, por esta razão: o princípio separatista do egoísmo agressivo para seleção do mais forte é substituído pelo ele­vado princípio coordenador e harmônico do enquadramento do indivíduo no funcionamento orgânico da humanidade. O involuído não sabe decidir-se a essa transformação que im­plica o abandono das armas de ataque e defesa, pois teme ficar desarmado, sem proteção, e, pensa ele, isso significa seu fim inevitável. Se olharmos bem o íntimo das coisas, veremos que só o desconhecedor das leis da vida pode crê-lo e quem pratica o Evangelho não é pessoa iludida, en­ganando-se ao seguir utopias, mas homem que descobriu outras leis mais profundas, mais sólidas e perfeitas e utili­za na própria defesa princípio protetor completamente di­verso. Como vêem, o indivíduo assim não renuncia precisa­mente às próprias defesas e, como pode parecer, não se aban­dona à mercê de todos os assaltos. Ao contrário, obtém outra segurança bem diferente, pois movimenta mecanismo de forças muito mais perfeito e resistente que a violência ou astúcia do involuído, mecanismo não compreendido por este, na ignorância inerente a seu grau.

Atualmente, a honestidade é considerada pelo involuído, muitas vezes, como debilidade, peso moral que embaraça a luta, posição de inferioridade, forma antivital de inconsci­ência, desequilíbrio, moléstia do espírito. Essa a perspectiva das coisas, do ponto de vista em que o involuído se colo­ca. Mas o ponto de vista pode mudar e então, obtemos pers­pectiva completamente diversa. Isso parece impossível até o momento da efetiva mudança do ponto de vista. Mas quando tal acontece, a perspectiva muda automaticamente. Como a retidão, a inocência e a obediência à Lei podem cons­tituir instrumento de defesa melhor que a força, o egoísmo e a astúcia? Simplesmente absurdo, dirá o involuído. Não. É absurdo apenas para quem não possui o sentido orgânico da vida. E esta organicidade da vida é qualidade essencial sua, estado universal e acessível a todos, em qualquer tem­po e lugar, porque depende da própria maturidade e não da compreensão alheia e do grau de organização social. Essa organicidade acha-se pronta a receber no seio todo indivíduo que saiba pensar e agir organicamente, não como arbí­trio individual, mas como função coordenada no funciona­mento universal. O indivíduo, ao contrário, pensa e age de­sorganizadamente. Crê ser forte e dominador; no entanto, não passa de caótico e destruidor. Seu egoísmo, que acre­dita ser-lhe necessário, é o princípio de sua desagregação; seu hábito de impor-se, para ele meio de poder, não passa de excitante de reações dolorosas da Lei; o imediatismo da vantagem obtida nos resultados próximos é apenas a im­previsão do dano que inevitavelmente os resultados longínquos lhe trarão. Observado à luz da mais profunda realida­de das coisas, o involuído não nos aparece como apanhador de conquistas e de alegria, mas semeador de erros e dores, míope enredado nas particularidades das coisas próximas e ignorante das que, embora afastadas, também lhe dizem respeito, louco que em organismo harmônico, equilibrado e perfeito se debate na falta de compreensão, chocando-se com forças que, para ele invisíveis, o ferem de morte. O mundo dirigido pela bondade e pelo amor estaria pronto para acolhê-lo em atmosfera de felicidade, se o involuído soubesse comportar-se como Deus quer, em harmonia e co­operação. Pelo contrário, não compreende coisa alguma de tamanha bondade e beleza e agita-se em atmosfera de re­volta e destruição, para acabar encarcerando-se em férrea gaiola de dolorosas sanções. Então, ainda se debate, deba­te-se cada vez mais e os nós vão-se apertando; aí, rebela-se mais ainda, maldiz, vai de vingança em vingança e, assim, agrava sempre mais sua autocondenação.

Inútil estar sempre cogitando novos sistemas sociais, enquanto não se puder dispor de outro tipo humano como material construtivo. Com esse homem anti-social e caóti­co não se pode pretender sólida construção coletiva. Para tanto, esse material deve ser cimentado pela fé e manter-se no espírito de cooperação, na disciplina material e moral e, acima de tudo, na retidão interior. Em face desse princípio fundamental de ordem, torna-se secundária, quase sem im­portância, a forma do sistema social, segundo o qual os ho­mens tanto se separam e tanto se batem. Não é a estrutu­ra do sistema o que importa e decide, mas haver entendido a lógica e a vantagem, até mesmo individual, da honesti­dade, esse novo e mais orgânico utilitarismo e ter compre­endido, ao contrário do que (assim dizíamos) possa parecer ao involuído, como a retidão é força, ajuda na luta, posição de superioridade, forma vital de consciência, equilíbrio, saú­de do espírito. Algum sábio, sem dúvida, já o disse e redisse. Mas na vida dos povos valem os atos de muitos e não as pa­lavras de poucos. Isso, verdadeira enfermidade do espírito, é pelo contrário a decadência do senso de retidão, causada pelo materialismo e de que tantos se orgulham como se se tratasse de superação. Significa decadência do senso orgâ­nico da vida, quer dizer, debilidade biológica, perigo social, perturbação que se paga caro. E, com efeito, a vida hoje se tornou campo de competições tão torturantes e impiedosas que qualquer alegria se torna impossível, desaparecem a fé e a segurança, todas as coisas humanas se envenenam; por todos os atalhos do injusto corremos para o arrivismo, mas fazemo-lo de respiração opressa porque esse sistema emba­raça e pesa; corremos, supondo-nos dinâmicos, mas é dina­mismo fictício e traidor, que culmina na destruição univer­sal. Neste mundo falso, o honesto é considerado estúpido e ingênuo. No entanto, é o único que, agindo de acordo com as verdadeiras leis da vida, pára e constrói parapeito pro­tetor à beira do abismo. A honestidade constitui sempre o melhor negócio E questão de compreender. E a desonesti­dade, diga-se o que se disser, é sempre o pior negócio, re­presenta, em outras palavras, forma de estupidez.

Para solução de todos os problemas, repetiremos sem­pre, necessitamos de compreender a Lei. Não vivemos no vácuo, em meio ao nada, no caos; estamos, pelo contrário, mergulhados em oceano de forças e, entre elas, somos força também; não podemos isolar-nos, fugir do regime de inter­dependência que liga tudo a tudo. Todo fenômeno tem vida e se move segundo trajetória determinada; representa impulso, vontade de existir em dada forma, de progredir em direção a determinada meta; representa dinamismo inteli­gente. Forma, vontade ativa e princípio diretor acham-se presentes em qualquer época e lugar. O conjunto imenso de todas as formas coordena-se em hierarquia; a rede de todos os impulsos, em sistemas dinâmicos; e o feixe de todos os princípios, na Lei. Tudo é ligado, sensível, correspondente. Não se podem evitar as proporcionadas e precisas reações a todos os movimentos. Tudo ecoa e repercute em cadeias de ações e reações. Qualquer ato nosso deve avançar fatalmente para o binário do determinismo causal e é, assim, guiado automaticamente em seus deslocamentos e enquadrado por limites e relações. As forças boas ou más, por nós movimen­tadas como causa, correrão ao longo dos canais do dinamis­mo universal; depois hão de voltar para nós sob a forma de efeito. De modo que, pensando com os nossos atos projetar impulso contra os outros, o que fizemos foi lançá-lo, bom ou mau, contra nós mesmos. As repercussões são infinitas, as conseqüências parecem inexauríveis, tanto se prolongam. O impulso do bem se multiplica tanto como o do mal. O vio­lento, que acredita dominar, impondo-se pela força, cons­trange milhares de pessoas a viverem amontoadas para dar-lhe lugar; e, assim, ensina-lhes a se defenderem, pois lhes impõe substituírem, pelo trabalho ingente da própria defesa, o trabalho benéfico e profícuo da produção e conservação dos bens. O dano recai sobre todos, principalmente sobre ele. A psicologia do involuído impôs à sociedade humana os agrupamentos de classe, obrigando-a muitas vezes, para ser­vir à defesa, a tornar-se instrumento de opressão. Assim nasce a norma jurídica primitiva, a sociedade torna-se agres­siva e o ser inferior acaba por suportar, com dano, a última das reações em cadeia por ele mesmo postas em jogo. Toda forma de vida implica a outra; educa, e é educada. Só a ignorância do involuído pode acreditar na utilidade do egoís­mo. O que o ilude é o imediatismo das vantagens obtidas. Não compreende, porém, que são momentâneas, se reduzem a adiantamento a ser compensado depois, a débito a ser pa­go; não compreende que são obtidas como imposição dos equilíbrios a que sempre voltamos, e, a que nenhuma força ou astúcia humana pode com o tempo impedir que devamos voltar. Por essas razões o evoluído, sabedor de como a vida funciona, prefere seguir caminho mais estável e seguro, substituindo o princípio da força pelo do merecimento. Não apelamos aqui para a bondade e para idealismos superio­res. Seria pedir muito. Trata-se apenas de sermos raciocinadores inteligentes para compreender o que é verdadeira­mente útil. Um pouco de inteligência e reflexão bastariam para mudar não só os fundamentos da vida individual e social, mas também tanta dor em bem-estar.

Como funciona, pois, essa lei do merecimento? Como podemos ter-lhe tão profunda fé a ponto de, até mesmo na defesa e na luta pela vida, fazê-la substituir a lei da força? Se tudo isso é incrível para o involuído, torna-se verdade e real tão logo escape à rede de reações que ele pôs em. jogo e agora o envolve. O involuído julga absurdo e inoperan­te tudo quanto, simplesmente, está fora de seu campo de compreensão e de atividade. Basta mudar-lhe a posição evo­lutiva para que também se lhe muda a técnica da vida. Quando, por evolução, se passa do plano da força, lei do in­voluído, ao da justiça, lei do evoluído, o sistema do mereci­mento substitui automaticamente o da violência e astúcia. Já agora não precisamos mais de armas, mas de qualidade, não encontramos mais extorsões e constrangimentos, mas equilíbrios. Então, a melhor defesa consiste na consciência tranqüila. Isso é lógico no regime harmônico de Lei feita de ordem. O problema todo se resume em sermos adianta­dos o suficiente para ver e compreender, em possuirmos a inteligência e a sensibilidade necessárias para manipular forças tão sutis. Eis porque fogem à psique grosseira do in­voluído. Trata-se de princípio protetor de qualidade, grau e potência diferentes do normal e cujo funcionamento não se pode verificar senão como forma de vida própria de pla­no biológico mais elevado. Para o evoluído que aí vive o verdadeiro sistema defensivo não consiste em acumular obstáculos protetores, mas em não merecer o golpe. A luta seletiva é substituída, agora, pela consciência da Lei, pelo princípio de ordem e de harmonia, em que não se trata de aprender a defender-se, como fortes, mas a merecer, como justos. O involuído nada sabe disso tudo, não sente esses equilíbrios, não vê esses jogos de forças, é material e mate­rialista, tem no sangue instintos de revolta e, com esse mo­do de ser e de sentir, constrói seu próprio mundo inferior. Crê só no corpo; fora dele não concebe a vida; crê que com a morte dele tudo acaba, apenas porque, além da morte, sem meios físicos sensórios, não é capaz de conservar-se cons­ciente como o evoluído, para quem a morte não significa interrupção da vida. Em última análise, em que posição de fraqueza vem a encontrar-se o homem que aplica a lei de seleção do mais forte! Julga-se merecedor da vida e não pas­sa de retardatário no caminho da evolução!

Quando recebe golpes, ingenuamente o involuído não os absorve e os dilui para eliminar de sua vida essa força, mas devolve-os e assim se liga sempre mais aos impulsos da rea­ção que, conforme a lei de equilíbrio, o golpearão tanto mais quanto mais energicamente ele houver golpeado. O segredo da defesa hábil está, pelo contrário, na libertação; e só é livre quem conseguiu não merecer a reação. A esse ponto chega­remos se não nos revoltarmos, mas conseguirmos assimilar os impulsos contrários, absorvendo-­lhes o valor corretivo. O involuído, de método desequilibrado, transforma todas as coisas em prejudiciais para si mesmo; o homem evoluído converte em vantagem pessoal o próprio mal. Sabe que todo erro deve ser pago, aceita por isso a reação como meio de reconquista do equilíbrio, não se revolta para não aumentar sua dívida. A diferença consiste em ver as causas remotas, e não apenas as imediatas, do golpe que nos atinge. Assim, para o evoluído toda adversidade se converte em campo de treino, em escola de progresso ascensional. O sistema de re­volta do involuído que, violentando-lhe os equilíbrios, pre­tende sobrepor-se à Lei, aumenta-lhe a dívida em lugar de solvê-la, aumenta-lhe o desequilíbrio e a desordem ou, seja, a dor. Ao contrário, o evoluído paga, liquida o débito, me­lhora de situação, readquire o equilíbrio e se harmoniza, ali­via e elimina a dor. O erro consiste no modo de equacionar o problema. O evoluído compreendeu a lógica da vida e o significado dos acontecimentos, percebe a justiça existente na vontade que a dirige e, por isso, a conveniência de segui-la e não a de sobrepor-se-lhe; de fato, a paciência esclare­cida pode criar mais do que a cega violência. Compreender a Lei e seguir a vontade de Deus constituem o caminho mais acertado.

O homem é livre, mas a Lei, inalterável. Livre para atrair sobre si todas as dores que quiser, não pode, porém, impedir o funcionamento da Lei. Livre para confundir li­berdade e arbítrio, nele acreditar e julgar-se senhor absolu­to, nem por isso pode impedir que liberdade, nesse regime de ordem, implique responsabilidade, quer dizer, sanção pu­nitiva do erro. O involuído, assim como luta contra todas as pessoas e coisas, também luta contra a Lei, quase consi­derando-a obstáculo à própria expansão. Nela, ao invés, o evoluído, coordenado, não encontra inimigo, mas amigo, au­xiliar, protetor. Sua força não lhe reside no egoísmo, mas em Deus. Tudo depende da posição em que o homem prefe­re colocar-se. Chegamos assim a este ponto: o inerme, que segue o Evangelho e perdoa, pode vencer, materialmente de­sarmado, em melhores condições que o involuído, forte e arma­do até aos dentes. Parece utopia, subversão, milagre o que não passa de lógica entranhada no desenvolvimento das for­ças da Lei, imponderáveis e no entanto mais potentes do que o pesado armamento das defesas humanas. Tudo isso con­fere outro valor e significado à conhecida lei biológica da luta para seleção do mais forte, reduzindo-lhe a importân­cia a limites bem estreitos. Outra lei se lhe contrapõe e anula. Ei-la: "Quem com ferro fere com ferro será ferido".

Quando se compreende o universo como construção or­gânica, compreende-se também ser mais lógico o equilíbrio do justo manter-se nele mais estavelmente que o esforço do rebelde. Tratando-se de organismo, aí prevalece logicamente a posição espontânea e harmônica em detrimento da irregu­lar e contrafeita. No conjunto o universo apresenta-se como perfeito e completo mecanismo, ordenado e harmônico. Nas exceções e casos particulares residem as perturbações, pre­vistas, porém, e compensadas, enquadradas na ordem. Para homens inconscientes e, todavia, livres, o ambiente huma­no representa um desses campos de desordem a título expe­rimental. A terra constitui-se por isso inferno dos evoluídos e, talvez, em paraíso dos involuídos adequados a esse ambi­ente. A opinião emitida a respeito deste mundo nos revela o tipo biológico a que pertence o opinante. Só a raça vale e justifica distinções. O homem, se quer alcançar determi­nado objetivo, compreende a necessidade de coordenar as fases da ação necessária e, assim, reconhece a ordem presen­te em todas as coisas; percebe, até mesmo no furto, no deli­to e na guerra, o rendimento utilitário da disciplina, do mé­todo e da estratégia, pois tudo isso pertence a seu plano. O que dissemos nos períodos imediatamente anteriores explica por que o homem, por imaturidade, não chega jamais, tam­bém no campo moral e nas diretrizes da própria vida, a sen­tir a falta e a utilidade dessa ordem. A ignorância e a in­consciência de plano mais alto explica-lhe a ação desorde­nada, baseada em violações e, por isso, em reações conti­nuas; mostra como o involuído pode crer na obtenção de re­sultado no campo do imponderável, sem coordenamento de ações, sem subordinação funcional, sem necessidade de se­guir a Lei, sem harmonizar-se na organicidade universal Exatamente a natureza de involuído é que estabelece o fun­cionamento de lei de força em lugar de lei de justiça. A bai­xeza do ambiente terrestre resulta precisamente das qualida­des do tipo biológico que o habita e, cada vez mais satisfeito consigo mesmo, se julga ente superior. E, até mesmo, culto e erudito; mas o entendimento não depende de estudo e erudição. Trata-se de maturação biológica natural e inaplicável ao exterior, como acontece com tantos produtos de nossa civilização. O que induz o homem de hoje a engano é a miopia psíquica e o imediatismo do resultado; a psicolo­gia do jogo amarrado e a ignorância dos fenômenos de lon­ga duração; a suposição de que de tudo quanto fica distante nada se pode aprender com segurança; a própria mentali­dade caótica que apenas não desorienta e desarticula a fé por nós depositada no que já nos caiu sob as mãos. Sobra-lhe apenas uma vida defeituosa e truncada, resumida ao dia de hoje e indiferente ao longínquo amanhã. Sabe que a justi­ça de Deus às vezes tarda; não falha, porém, pois Ele para julgar não dispõe apenas dos poucos elementos de uma só vida, mas dos fornecidos por vida muito mais longa, - a que, através de longa estrada de vidas e de mortes, se esten­de pela eternidade afora.

Outro fato capaz de induzi-lo a engano é a valoração, apenas sob o aspecto formal, do prazer e da dor, estados relativos e interiores. Sua posição sujeita-o naturalmente a muitas ilusões psíquicas que ele toma por verdade. Supon­do-os, erradamente, iguais a si próprio, para avaliar os ou­tros aplica-lhes as mesmas medidas com que mede a si mes­mo. Ao contrário, as reações dolorosas impostas pela Lei variam justamente conforme a diferente posição moral de ca­da indivíduo, face aos equilíbrios da justiça, quer dizer, se­gundo o mérito ou demérito. As próprias dores podem, de acordo com a natureza dos ânimos, impressioná-los deste ou daquele modo e causar-lhes as sensações mais diferentes. O evoluído, em grande parte liberto, já não possuí tesouros no mundo e torna-se intimamente muito menos vulnerável que o involuído que se atreve a julgá-lo. O justo sempre se sen­te mais tranqüilo do que o culpado. A realidade não constitui o golpe em si mesmo, como vemos por fora, mas reside na sensação interior com que o recebemos, no modo diverso de propagar-se na personalidade a repercussão do golpe, proporcionalmente às diversas qualidades individuais. Eis reali­zada a lei do merecimento. O estado moral interior não po­de modificar o exterior determinismo da matéria. Essa ve­rificação engana o involuído. O plano físico subordina-se a diferente espécie de leis e os fenômenos físicos seguem ca­minhos diferentes daqueles do mundo moral. O merecimen­to, observa-se, não nos distingue na fuga ao perigo. Justos e malvados, os justos às vezes muito mais, todos sem exce­ção recebem golpes. Isso mesmo. Não deixa, todavia, de tam­bém ser verdade que a posição moral muda o estado espi­ritual e as condições de nosso eu e, por isso, as repercussões, a receptividade, enfim, a sensação dolorosa. Assim, se o fato exterior não varia, mudam as posições internas de defesa, as qualidades de resistência, o estado de equilíbrio, de juí­zo, de orientação, de continuidade. Se o mundo exterior, o único que o involuído vê, não se altera, o mundo interior, - a outra metade do fenômeno, - mostra-se igualmente poderoso; e se, ao iniciar-se, esse poder nada pode deslocar, tudo pode fazê-lo à chegada. O involuído não compreende como o estado moral, invisível para ele, possa mudar as condições do fenômeno na segunda fase conclusiva interior. Desse modo, divergem muitíssimo as íntimas realidades pes­soais, os campos das sensações finais. A dor é estado inte­rior sobre a qual muitos elementos influem; entre eles, porém, não ocupa o primeiro lugar o choque proveniente do mun­do físico, dado pelo determinismo físico. Tudo seria tão di­ferente, se víssemos as coisas por dentro, ao invés de vê-las por fora! Ver-se-ia a possibilidade de gozarmos em plena mi­séria e sofrermos no fastígio da riqueza. O mártir na cruz pode sentir-se mais feliz do que o rei no trono! Tamanho poder tem esse mundo interior, na dependência tão-somente do merecimento. O estado de prazer ou dor não se mostra como fato objetivo igual para todos, mas relativo e depen­dente das condições interiores individuais. Prazer e dor, im­ponderável resultante do embate de forças e não do deter­minismo do mundo físico, fundem-se na intimidade do eu. O invisível escapa às vistas do involuído, crente de que tu­do se desenvolva no plano concreto em que vive e nada mais possa existir além dele. O evoluído, que em parte superou o mundo material, também em parte lhe superou o deter­minismo (cf. A Grande Síntese - Cap. LXVI) e recebe muito do próprio mundo interior, independente desse determinismo. Por isso sua vida não fica tão sujeita às sanções das leis do plano físico como às sanções das leis do plano espiritual e moral, bem diversas. Eis como este principio mais elevado, o do merecimento, pode entrar em atividade e tornar-se dis­tribuidor e regulador. Valorações e juízos dependem das di­versas perspectivas, mutáveis com as diversas posições. Daí nascem os desacordos, as valorações opostas. O mesmo fato pode assumir significado e valor oposto, ser compreendido como dano ou vantagem. A posição do materialista ou do espiritualista pode subverter o senso das coisas. Para o pri­meiro a morte significa o fim; para o segundo, o princípio de outra vida; para um a vida terrena é tudo; para outro, mero episódio; para um, a meta que deve conter todas as alegrias e realizações; para outro, meio de expiação, exílio, missão. Uns ganham, outros perdem com a dor; estes mor­rem na morte, aqueles na morte ressuscitam.

Os dois estados, de prazer e dor, não dependem apenas das leis do ambiente físico, mas também de leis próprias, que se deixam influir muito pouco pelas primeiras. Se o fe­nômeno nasce no mundo externo, continua e conclui no mundo interior. O tangível estado de fato exterior não tem tanta importância quanto a sensação que consegue produ­zir. Vejamos, então, de que realmente depende essa sensa­ção. Prazer e dor constituem ritmo que lhes regula o apa­recimento alternado, a forma de relação, a intensidade re­lativa. Os dois extremos são inversos e complementares, ligados por lei de compensação e equilíbrio, para verificar-se cada um dos dois estados não basta o choque exterior, mas torna-se necessário que a lei interior do fenômeno, — a lei do merecimento, — de acordo com a justiça permita ao cho­que produzir efeito e transformar-se na devida sensação de prazer ou dor. Contudo, esse choque, seja qual for sua na­tureza, amortece a entrada da alma e não entra. O fenô­meno é olhado em profundidade e entendido como desen­volvimento de forças; assim, liga-se à ordem universal, que não se pode romper, e deve equilibrar-se na justiça regula­dora de todas as coisas. Principalmente: o aparecimento ou o desaparecimento dos referidos estados, de prazer e de dor, pode ser determinado por essa lei e não pelo arbítrio humano ou circunstâncias exteriores. O arbítrio e as cir­cunstâncias podem ser injustos, mas a lei é justa, boa, pro­tetora.

Assim, o fenômeno se torna rítmico, equilibrado, compensado. Os dois estados se condicionam e compensam, não podem existir senão um em função do outro, o prazer em relação à dor e a dor em relação ao prazer. Desse modo se influenciam, se entrosam, se dosam reciprocamente. Segue­-se daí que quanto mais sofremos mais somos capazes de go­zar, visto como a privação nos permite saborear a menor alegria, que assim se torna inapreciável; e quanto mais go­zarmos tanto mais seremos vulneráveis à dor, porque, tendo perdido o contato com ela e a capacidade de suportá-la, im­pressionamo-nos demais e por isso o menor golpe se torna gigantesco. Quanto mais sofremos, menos o hábito nos faz sentir a dor e mais nos encouraça para suportá-la e nos confere certa imunidade; quanto mais gozamos, menos o hábito nos deixa saborear o gozo, que se dilui na repetição e se esfuma no fastio. Nem a nossa, nem a vontade alheia, nem as condições do ambiente podem mudar esses íntimos equilíbrios do fenômeno, sempre reconduzido em cada caso à posição de justiça. Em resumo: a continuação do sofri­mento automaticamente diminui a reação dolorosa e aumen­ta a capacidade de reagir em sentido oposto; a continuação do prazer automaticamente diminui a reação de prazer e aumenta a sensibilidade e, pois, a vulnerabilidade em direção contrária. Assim não há naturalmente correspondên­cia entre a soma de bens acumulados e a quantidade de prazer obtida. As duas progressões não caminham paralelamente; a primeira é geométrica; a segunda, aritmética. Pa­ra os pobres e deserdados, há justiça maior do que essa? A satisfação diminui na razão direta do aumento dos bens; desse modo a própria unidade de medida frutifica cada vez me­nos. O homem pode dirigir o fato exterior da acumulação de bens e não pode comandar o fato interior do rendimen­to. O homem egoísta gostaria de desequilíbrio eis, porém, a Lei reconduzindo-o ao equilíbrio e impondo-lhe limitação; além desta torna-se inútil acumular porque a unidade de medida terá exaurido todo o potencial e não poderá mais proporcionar prazer algum. O homem egoísta desejaria sa­tisfação ilimitada; mas, a Lei o reconduz ao equilíbrio e, agindo com critério diferente, impõe determinada medida de justiça e permite apenas o prazer e a dor necessários e úteis aos fins da vida. Assim, observamos agora como a Lei inter­vém para correção do abuso no sentido da qualidade. No fim do cap. II e no princípio do cap. III deste livro vimos, ao contrário, como a Lei influi para corrigir o abuso no sen­tido da qualidade dos bens, isto é, como permite que apenas a propriedade justa se mantenha. O primeiro e o segundo casos constituem aplicação da lei do merecimento.

Vimos, pois, como a Lei tende ao triunfo dos valores reais e à derrota dos valores fictícios que o homem desejaria impor. O involuído por ignorância prefere pôr-se em lu­ta contra a Lei; o evoluído, porque possui conhecimento, prefere pôr-se em harmonia com ela. Vimos como, não obs­tante a resistência do primeiro, em última análise impera a lei do merecimento, embora não a compreendam e não a si­gam. O involuído, rebelando-­se, não torce a Lei, mas inflige dano a si mesmo. Aprenderá, à custa do sofrimento. Não há outro caminho. Cada qual, porém, tem a liberdade de ordenar o campo de forças do próprio destino e, na própria vida, obedecer à justiça, embora em meio à injustiça do mun­do, tem a liberdade, enfim, de em pleno inferno construir dentro de si mesmo o paraíso. Ainda neste caso a lei do me­recimento muda o conceito da vida. As causas encontram-se dentro de nós mesmos e não fora. Quando chegamos a com­preendê-lo, aí nos tornamos livres. Enquanto aceitamos as coisas como provenientes de fora seremos seus escravos e tremeremos diante da vontade alheia ao invés de tremermos perante nossa própria consciência. Para quem compreen­deu, os valores normais se subvertem. O que nos golpeia não provém do arbítrio alheio mas do que somos, fazemos ou merecemos. No sistema orgânico do universo é absurdo, e impossível o desenvolvimento de forças dos destinos, os mo­mentos decisivos, as provas importantes, o prazer e a dor, a vida e a morte ficarem a mercê do acaso ou da vontade de outro homem completamente ignaro. A lógica e a justiça impõe que tudo quanto nos diga respeito dependa somente de nossa vontade e seja decidido por nós apenas. Dou­tro modo, não poderia haver responsabilidade e a reação da Lei golpearia inocentes. É absurdo que o arbítrio alheio possa exercer tanto poder sobre nós, a liberdade humana impor injustiças à Lei e implantar a desordem no universo. Então, o patrão não seria Deus, mas o homem. Não! Tudo não passa de instrumento, o mal é contido e guiado, torna-se meio de atingir as finalidades do bem. Coisa tão grave como pesos de chumbo, tão importante como experimenta­ção instrutiva e prova redentora, a dor não é força livre pa­ra aplicar-se ao acaso, mas força enquadrada no organismo universal. Essa dor só nos pode atingir, se a merecemos. Poderá produzir-se desordem particular e momentânea, mas em linhas gerais reina a lei de justiça. Diz o provérbio: "Quem não deve não teme". Merecemos tudo quanto nos acontece por "acaso"

Ao invés, o involuído acredita na lei do mais forte e na seleção à base de força. O evoluído por sua parte ouve a lei justa da honestidade e do merecimento. O sistema do pri­meiro, de conquista através de imposição, reduz-se ao con­traímento de dividas e à miséria. Face aos equilíbrios da Lei, isso constitui erro que se deve pagar e, se domina o mundo, o transforma em lugar de sofrimento. Aqui em bai­xo todos procuram fora as causas que residem em si mes­mos. Pertencem-nos. O problema consiste em saber fazê­-las funcionar e não em saber evitar-lhes os efeitos. A cau­sa é livre; o efeito, fatal. Posta em movimento a causa, a Lei se apodera dela, o impulso deixa de ser livre e não nos pertence mais. Nem força nem astúcia podem-nos livrar da obrigação de suportar os efeitos. Se semeamos o mal, colhe­mos o mal; se semeamos o bem, colhemos o bem. Mais adi­ante desenvolveremos esses conceitos (cap. XXIV e XXV). É justo que, em última análise, apenas a nós mesmos pos­samos fazer bem ou mal. Terminado, nosso ato torna-se ine­xorável desenvolvimento de forças. O destino é livre na fa­se inicial da formação, da determinação das correntes e do início da trajetória; fatal, porém, na fase de desenvolvimen­to das correntes e, especialmente, na fase final de eleito e conclusão da trajetória. Eis a justiça histórica. Geralmen­te consideramos o destino apenas nesse segundo aspecto de­terminista e ignoramo-lhe o momento mais importante da formação.

O conceito comum da vida desloca-se ainda. Não de­vemos temer o sermos desprovidos de força, mas o ficarmos contra a justiça. Devemos entender que, no fim, a justiça vence a força. As vezes demora, pois encontra muitas resis­tências no ambiente terrestre. Essas resistências conseguem embaraçar e retardar a Lei; jamais chegam a fazê-la parar. Pode o involuído iludir-se, acreditando no contrário; mas o evoluído sabe que a Lei acaba dominando. Se dominasse o acaso, o arbítrio, o abuso, a desordem, a vida se reduziria a cacos. Quem vai salvá-la? Quem vai garanti-la? Não pode­remos, certamente, crer na suficiência dos pobres expedien­tes humanos! A vida deve ser protegida de modo absoluto e o homem não possui nenhum meio seguro de proteção. A incerteza reina na terra. Torna-se necessária segurança não possuída pelo homem, defesa superior, às ilusórias defesas humanas. A segurança nos é dada pelo império da Lei, pela onipresença de Deus. Não nos protege a força, mas a ino­cência; a única posição de segurança consiste em não me­recer o golpe. Assim, nossas armas se desmaterializam no imponderável. Mas se o inocente é protegido, a Lei exige a responsabilização dos culpados. Os meios humanos poderão protelar, jamais conseguirão eliminar a necessidade de pagamento. Todavia, se a Lei é justa, ferreamente justa, exi­ge a responsabilização, mas respeita a vida, protegida por­que necessária ao aperfeiçoamento. Eis que a Lei corrige o impulso instantâneo e brutal de suas forças para ele não terminar em catástrofe; modera-o e amacia com novo impulso: a misericórdia divina. Podemos defini-la: "a elasti­cidade da justiça divina". Neste caso, elasticidade significa esperar, dosar, proporcionar a reação de modo a que eduque e não destrua. Assim a férrea lei do equilíbrio age com muito tato, adaptando-­se às circunstâncias do caso. No ma­ravilhoso organismo universal dirigido pela Lei tudo é elás­tico, provido de válvulas de segurança e meios de proteção. Conciliam-se desse modo, até se coordenarem em um só impulso de sabedoria, os dois opostos: misericórdia e justiça. No principio absoluto de equilíbrio se incorpora o princípio da bondade, ambos necessários. Parecem contraditórios e, no entanto, não passam das duas metades inversas e complementares do mesmo princípio. A unidade é sempre par. Assim, como feminino e masculino, se coordenam o amor e a força, o primeiro para gerar e conservar, o segundo, ven­cer e construir. Dessa maneira se compensam as duas ex­tremidades, postas por nós face a face: coletivismo e indivi­dualismo; o primeiro oferece o desenvolvimento em largura, a formação da massa numérica, a quantidade; o segundo, o desenvolvimento em altura, a formação do indivíduo, a qua­lidade. Mesmo essas duas extremidades tendem a equili­brar-se através das qualidades e funções opostas. Esse con­traste não se chama cisão, mas harmonia.

VII

RUMO A NOVO MUNDO

Tudo quanto foi exposto pode ser incrível; no entanto, é natural, lógico e simples. Logo depois de curta reflexão desapaixonada surge novo mundo, até ali aparentemente impossível. No entanto, é apenas fora do comum, afastado dos caminhos habituais, para lá da fase atual de evolução humana. Quando o atingimos, o mundo atual fica-nos pa­recendo tão espantosamente cretino que não sabemos se ha­vemos de rir ou de chorar; neste mundo cremos poder elimi­nar o inimigo, matando-o; criar correntes de pensamento, com propaganda, ou eliminá-las, sufocando-as no silêncio; não pagar o mal que fazemos. Mas o inimigo constitui vida indestrutível, pois os mortos continuam vivos, ressurgem e podem tornar-se instrumento de justiça contra o assassino; as correntes de pensamento são livres, a opressão as refor­ça e o engano ensina-lhes novas astúcias; podemos praticar o mal; porém, somos depois obrigados a pessoalmente re­para-lo.

Este livro é o roteiro desse novo mundo, o hino dedicado ao novo tipo biológico nele reinante e inicia o culto de novo ideal de vida. Esse tipo pode ao mundo de hoje pare­cer super-homem e até mesmo poderíamos assim chamá-lo mas super-homem bem diferente do de Nietzsche. A concep­ção materialista que lhe serve de ponto de partida poderia dar-nos apenas a exaltação do primitivo, a glorificação da violência ou, seja, da ignorância, pois quem só acredita na força demonstra nada haver entendido do funcionamento universal. Super-homem desse tipo não passa de involuído posto no vértice de hierarquia de involuídos, rei selvagem de mundo selvagem, prepotente em meio a outros tantos prepotentes. O novo imperativo não se cifra em enganar e dominar, mas em civilizar-se. Isso tudo pode parecer uto­pia, mas, guardando a devida proporção, no passado a evo­lução soube transformar em realidade utopias maiores; por isso essa utopia nos fascina e atrai. De tudo isso, que tem significado vital, possibilidade de realização e representa impulso biológico, emana radiação mágica, que nos prende com exato senso de vibração reverencial. O instinto da vida se manifesta em nós antes da razão calculista.

A luta moderna se trava entre o tipo biológico hoje em maioria e a lei de evolução. O primeiro parece que pretende fazer tudo quanto possa para impedir a realização desse novo mundo; a segunda tudo põe em condições de torná-lo realidade. Trata-se de dois sistemas opostos; um, ilusório e falaz; o outro, lógico e seguro. Com o método atualmente em voga, somos obrigados a reconhecer que o homem, ape­sar das conquistas e vitórias, não alcançou a felicidade e se agita como presa de insatisfação contínua. E como acima dissemos em relação ao indivíduo, também a coletividade não procura dentro de si mesma, mas fora, as causas de seus males. As causas, porém, residem no método. É fácil entrar no mundo novo; as portas acham-se abertas de par em par Mas o homem não quer entrar. A posição em que se encontra o impede. A Lei, sábia e boa, desejaria exata­mente o contrário, quer dizer, o bem; mas a Lei tem de res­peitar a vontade humana. O homem prefere viver em estado de tensão, de recíproca desconfiança e, por isso, de con­tração, a viver em estado de calma, de confiança e, em conseqüência, de expansão. Os bens da terra bastam demais pa­ia todos. A psicologia da insaciabilidade, generalizando-se, em plena abundância nos torna miseráveis. A avidez de lu­cro subtrai dos bens a função de instrumento útil à vida, transformando-os em instrumento de especulação, acumulando-os apenas para que apodreçam, sacrificando a vida à potência econômica. Assim se determinam as desproporções que justificam a revolta das classes pobres contra as dos ca­pitalistas, impedindo-as de gozar dos bens acumulados. O efeito atinge de novo a causa; não podemos gozar o que não é fruto da justiça, mas do abuso; toda posição de desequi­líbrio se destina à queda. Para que serve empregar meios ilícitos e usurpar, se mais tarde a Lei nos constrange ao pagamento? E, de fato, não faz o homem outra coisa senão pagar. O método atual de busca da felicidade representa verdadeira falência. Não se deve culpar a Lei, mas o siste­ma escolhido pelo homem. A Lei paga na mesma moeda, devolve-nos o que lhe oferecemos. A causa de nossas misérias reside em nós mesmos. O egoísmo conduz a dispersões imensas, como, aliás, todo separatismo. Não considerar o próximo como irmão, mas rival, e não ter-lhe os bens na conta de capital comum a conservar-se e, sim, na de objeto de conquista, leva à destruição nociva a todos. O homem, empregando-a mal, reduz a riqueza, em principio benéfica para a vida e tão útil ao progresso, a instrumento criminoso e manchado em que o evoluído com desprezo se recusa a tocar. Que sensação de bem-estar compensaria a fadiga até mesmo da primeira aproximação evangélica!

Não. O homem não compreendeu. Na lógica dos equi­líbrios da Lei, o método do Exclusivismo não passa de método de empobrecimento. Esses equilíbrios implicam a formação de correspondente atrofia ao lado de cada hipertrofia, vácuo eco­nômico a interessar não só o vizinho, cuja miséria talvez não nos impressione, mas a nós mesmos, quando chegar nossa vez na corrente dos efeitos. A vida é, de natureza, colabo­radora, forma-se de forças cíclicas, comuns e comunican­tes. Os equilíbrios da Lei dizem-nos: tudo quanto se rouba se perde e tudo quanto se dá se ganha; a riqueza provenien­te do furto constitui débito a ser pago; o ato de dar pode enriquecer-nos mais do que o ato de tomar. No mundo no­vo o problema econômico se transfere inteiramente para outro plano. Perdeu a razão de ser e está superada a mo­derna luta entre o capital e o trabalho, representativa de nossa atual fase econômica. No mundo novo o evoluído possui dentro de si mesmo, espontaneamente, a medida da posse das coisas, fornecida pelas próprias necessidades, ca­pacidades individuais e funções sociais e não, como acontece agora, pelo próprio poder de conquista com emprego da força ou de astúcia. O evoluído pede à vida apenas os bens neces­sários à consecução das finalidades dela mesma, individuais ou coletivas, e abandona aos outros o resto. O problema do mundo não passa verdadeiramente de problema de caridade cristã. Bastaria compreender e aplicar o Evangelho para conseguir a igualdade social e garantir a todos o pão de ca­da dia. No fundo, os numerosos problemas que nos afligem, econômico, político, religioso, social, reduzem-se a um só, o problema da educação moral. Desse modo o Sermão da Mon­tanha e a pobreza franciscana (cujo escopo é, através da esmola, substituir no pobre a violência pela humildade e, no rico, trocar pelo amor o egoísmo desprezível) assumem sig­nificado biológico na lei de evolução. Em verdade, para pos­suir a própria vida necessário se torna perdê-la. Apenas quando nos anulamos e não possuímos mais nada, nos tor­namos senhores das maiores forças da vida porque de isola­cionistas nos transformamos em colaboradores do grande organismo universal, entramos no mundo novo em que a Lei triunfa; passando a ser operários do Senhor, a Lei deve cuidar de defender-nos e garantir-nos a vida. Se nas mãos de Deus nos reduzimos a nada, parece que com isso perde­mos nosso pequenino eu; e, no entanto, em Deus nos torna­mos tudo pois, entrosando-nos no funcionamento geral, nos tornamos indestrutível parte orgânica dele, com direito ao necessário na terra e à futura felicidade no céu. Que vale e de que é capaz, em face dessa dilatação de personalidade e aumento extraordinário de meios, o involuído rei da força, prepotente e rebelde, escravo da ilusão e da matéria, jamais satisfeito, sempre inseguro, sempre abandonado às incerte­zas de suas pobres forças? No entanto, esse tipo biológico foi proclamado animal-modelo, posto pela ciência no degrau mais alto da evolução e considerado o produto mais apura­do da raça. Ainda mais: sua lei de seleção passou a ser con­siderada como lei da vida, de toda a vida! Mas esse sistema é o sistema seletivo do animal! Aplicaram-no ao homem, desse modo equiparado ao animal.

O involuído não quer entrar no novo reino, onde poderia ser feliz. Contudo, a Lei vê-se obrigada a arrastá-lo; mas o involuído se rebela, se recusa a sair do inferno, não quer despender o menor esforço para deixá-lo. A Lei deseja-lhe o bem; não pode, todavia, impô-lo porque a liberdade hu­mana é sagrada; além disso, através da imposição, a Lei criaria autômato inconsciente, quando o cidadão do novo mundo deve ser consciente e livre. A Lei quer felicidade de­sejada e compreendida e não felicidade imposta e incompreendida. Trata-se de dom bem mais difícil de obter, mas de valor imensamente maior. Trata-se de dom que não pode ser gratuito sem representar injustiça. Deve, então, ser ga­nho, condição necessária para que seja merecido, visto como nos equilíbrios de Lei nada pode existir de desarmônico nem vantagem alguma ser obtida se não for ganha e merecida. Condição necessária para ser apreciada e fruída Mas, como pode a boa Lei atingir o próprio objetivo, no caso do rebelde que deve, no entanto, permanecer livre? Como obri­gá-lo e ao mesmo tempo permanecer fiel à justiça? Como conseguir impor a felicidade a inconscientes, tornando-os conscientes? Como conseguir, de acordo com a bondade e a justiça, impor-lhes o esforço necessário para ganhá-la?

A própria estrutura do sistema diretor do universo en­cerra, em sábios equilíbrios, o impulso que tende fatalmente a esse fim Na forma correspondente aos supracitados requisitos necessários, a Lei põe em jogo o sistema de reações adequado. O homem continua livre, mas responsável; livre para escolher a revolta e a desobediência, mas obrigado a responder por elas. É justo que ao erro siga adequada san­ção. Assim, ação e reação equilibram-se e se põe a salvo a harmonia do sistema. E a dor constitui precisamente o modo mais adequado para despertar a consciência dos inconscien­tes e impor aos preguiçosos o esforço necessário à aquisição da própria felicidade. Por isso esse esforço não aparece, em primeiro momento, na forma positiva de conquista de ale­gria e, sim, na forma negativa de libertação da dor. O se­gundo momento revela-se cada vez mais evidente à medida que subimos e o evoluído trabalha, em sentido positivo, pa­ra conquistar o bem que já conhece; no caso comum, porém, o involuído trabalha em sentido negativo, de revolta e fuga em presença da dor, de luta para fugir-lhe. Normalmente, a evolução assume, pois, o aspecto de esforço para superar a dor. Através desse esforço a Lei obriga o homem a entrar no seu novo reino.

A concepção humana da dor resulta naturalmente de uma das muitas ilusões psíquicas próprias da fase biológica do involuído. Concebe-a ele como resultante da falta de for­ça para vencer ou de astúcia para fraudar, como fracasso dos fracos de corpo ou de mentalidade, como herança natu­ral dos que não sabem revoltar-se nem impor-se. Concebe a dor como inimigo a ser vencido e por isso acredita que tudo se resume em sermos bastante fortes o hábeis para vencê­-la. Concepção derivada do fato de o involuído julgar-se co­locado no caos, como centro de todas as coisas e árbitro da Lei. Se essa é sua perspectiva psicológica, própria da sua fase evolutiva, temos visto quanto ela se afasta da realida­de. A dor não é inimiga; não devemos, pois, olhá-la com hostilidade. Quanto mais a odiarmos mais nos afligirá; se a quisermos bem, tornar-se-á mais suave. A dor constitui sistema reativo-educativo de forças cujo objetivo se resume em guiar-nos para a felicidade. Tende, como reação, a re­construir o perturbado equilíbrio do homem, isto é, a har­monia, base de toda alegria verdadeira; e, como educação, a eliminar a repetição do erro, causa da dor. Por dois ca­minhos diferentes, é sempre disciplina e correção que, através das experiências da vida, impele o homem a rearticular­-se no todo, a pôr-se em acordo com as forças da Lei ou, nou­tros termos, com a vontade de Deus, fato em que consiste o triunfo do bem sobre o mal, da harmonia sobre a desar­monia, da felicidade sobre a dor. O homem deve compreen­der e todas essas coisas sabem fazer-se compreender muito bem por todos. Progredir, sem dúvida, quer dizer trabalho; mas também representa conquista. A ordem, na involução, se desagrega no caos. Ora, a evolução procura reconstruir a ordem a partir do caos. Em nossa experiência quotidiana percebemos que o prazer produz o nada e a dor cria. Como a nota fundamental de toda fase involutiva consiste na dispersão no gozo, a de toda fase evolutiva e a redenção pelo sacrifício ou, seja, a difícil ascensão depois de tão fácil des­cida. Verificamo-lo pela nossa vida como indivíduos, no nas­cimento e morte das civilizações.

Libertarmo-nos da dor assume o aspecto de problema dos mais angustiosos de nossa existência. Depois de tanto progresso estamos sempre a recomeçar. Prova de que a con­cepção e os métodos defensivos em voga estão errados. Con­tudo, podemos resolver o problema. Torna-se necessário, no entanto, enunciá-lo de modo diferente. É lógico que pode­mos resolvê-lo em universo regido por Deus justo e bom. Aí onde tudo se mostre lógico e harmônico, e parece-nos tê-lo demonstrado bem, seria absurda a existência de dor impos­sível de ser eliminada. Em universo em que tudo tem obje­tivo útil, a ser atingido mais cedo ou mais tarde, onde tudo acontece em função da chegada à meta, não passa de lou­cura acreditar que fato nuclear, como a dor, possa existir sem objetivo, e, onde tudo serve para alguma coisa, exata­mente aquilo que mais nos caustica e acabrunha não sirva para coisa alguma. Mas o homem de nossos dias não con­cebe o universo organicamente, como lei e ordem, mas cao­ticamente, como arbitrariedade e desordem. Se não se com­preendem em primeiro lugar as finalidades da vida e a ló­gica de todas as suas funções, é natural que desse modo não possamos resolver o problema da dor. O próprio homem, pondo-se na posição de quem nada compreende de tudo quanto lhe acontece em torno, nada pode resolver e, tudo ignorando, só pode cometer erros. Para, vivendo em deter­minado sistema, conseguirmos atingir certo objetivo, torna-se preciso primeiro conhecê-lo e, assim, conduzirmo-nos de acordo com as normas que o regem, sem pensar em violen­tá-las e torcê-las. É natural, então, que o sistema reaja e não se atinja o objetivo.

Embora mudemos continuamente a perspectiva, percor­rendo os vários pontos da periferia, a própria estrutura do universo nos orienta e sempre faz retornar ao mesmo concei­to fundamental ou, seja, ao pensamento central ao redor de que tudo gira e pode chamar-se: Deus, Lei, Ordem Não po­demos impedir que todos os conceitos desta obra gravitem em redor desse ponto, pois essa é a estrutura do universo e nosso pensamento deve amoldar-se a essa estrutura e cons­tituir-lhe a expressão exata. Desse modo, pode parecer que estamos a repetir sempre a mesma coisa; mas o universo é que é sempre o mesmo. Podem mudar o ponto de vista da periferia e a forma do relativo; não o podem, porém, a rea­lidade do centro e a substância do absoluto. No mesmo mo­do em que se construiu o universo, através de caminhos in­finitos, de qualquer ponto de que partamos terminamos por atingir sempre o mesmo centro. A criação apresenta-se variada e, quanto à forma, é mesmo, contudo, em substância permanece invariável. De modo que não fazemos nada mais senão fotografar a realidade, quando somos obrigados a repetir do princípio ao fim, sob infinitos aspectos, o mes­mo conceito de sempre: Deus, Lei, Ordem, Esse é o estado das coisas e não podemos mudá-lo. O princípio permanece sempre o mesmo; não podemos fazer outra coisa senão re­tornar sempre a ele.

O problema da dor também nos reconduz ao mesmo princípio, nosso ponto de partida e de chegada, em redor de que devemos girar sempre, isto é: o universo constitui sis­tema, organismo, funcionamento lógico. Se não respeitar­mos as normas e não percorrermos os caminhos desse siste­ma, não poderemos resolver o problema da dor. O ateu po­de descrer da existência de qualquer regra; o pessimista, julgar que domina o mal e a desordem; o epicurista, acre­ditar possível rirmo-nos de tudo; e o violento, pensar ser pos­sível impor-se a todos. Mas a Lei continua cada momento a exprimir sua natureza, que é ordem, sua vontade de con­tinuar sendo ordem, sua necessidade de sempre maior atua­ção da ordem em todo ser e em todos os momentos. Quan­do não se respeita a absoluta e fundamental exigência de ordem, a dor aparece, fato cuja gravidade indica como, pro­porcionalmente, se mostra importante o princípio a que se propõe defender. No sistema, a dor tem o papel de campai­nha que nos adverte do erro, corrige o desvio e impõe a cor­reção, exatamente como acontece no sistema nervoso do or­ganismo humano, feito à semelhança do organismo univer­sal. O homem pode pensar e fazer o que quiser; mas o sis­tema não tolera em absoluto alteração dos seus equilíbrios e, se os violam, defende-se, volta-se contra o violador e obri­ga-o a reconstitui-los à própria custa. A dor corre por con­ta do violador; quem errou paga com o que lhe pertence, pessoalmente. Trata-se de equilíbrio de forças cujos impul­sos poderiam ser calculados exatamente, em qualidade e quantidade, no modo como se relacionam em causa e efeito, ação e reação. Essa reação reequilibradora é fatal, a Lei não admite perturbações; se acontece violação, pois o homem é livre, o efeito não pode recair sobre a Lei, mas sobre o ho­mem. A este se permite fazer experiências à própria custa e aprender por tentativas; não se lhe permite, porém, alte­rar o funcionamento do universo. Essa reação reconstrutora de equilíbrios por parte das forças da Lei pode parecer-nos ato de justiça por parte de Deus ou, então, punição da culpa; aos primitivos, no entanto, pode parecer vingança. À dor não é, então, fracasso ou derrota, mas o meio providencial de reparação e prova na arena das experimentações humanas. Constituindo-se compensação expiatória e esco­la, assume o papel de retorno à ordem e método aquisitivo de qualidade, isto é, meio de auto-elaboração ou, melhor ainda, fator de evolução. Assim, a dor se transforma; não é mais, como na conceituação vulgar, obstáculo à felicidade; não é mais maldição ou vingança de Deus, mas bênção e ajuda; não é mais vergonhosa posição de inferioridade, mas nobre instrumento de redenção. Apenas se compreende a lógica do sistema diretor do universo, logo aparecem a absoluta justiça e a imensa bondade de Deus.

Todas as vezes que neste livro qualificamos o involuído como ignaro e primitivo não o fizemos em sinal de desprezo, de condenação ou de imputar-lhe culpa. O que queremos é apenas expor o mecanismo do universo e as conseqüências advindas, para cada qual, de sua conduta. O involuído está, biologicamente, exatamente onde devia, adequando-se, como selvagem em planeta selvagem, a dureza de suas provas à de sua sensibilidade. Todavia, os que compreendem como realmente a vida funciona não podem deixar de adverti-lo, somente no interesse dele, para fazê-lo compreender como executa mal suas tarefas; de indicar-lhe, se lhe convém, me­lhor modo de fazê-las, mostrando-lhe como é estulto alguém pretender construir com as próprias mãos a sua infelicida­de e como é possível corrigir a própria dor e transformá-la em prazer. O bom e sábio sistema do universo contém a so­lução do problema. O sistema é feito de ordem; a dor é conseqüência de desordem. A dor, logicamente, cessa com a desordem de que deriva e o método para eliminá-la consiste na harmonização, quer dizer, no retorno ao seio de Deus através da evolução. A estrutura do sistema implica a ces­sação da dor, à medida que caminhamos para a ordem. Re­construamos, então, a ordem destruída e teremos eliminado a dor, eliminando-lhe as causas. A evolução consiste exa­tamente em dispor mais harmonicamente as forças que somos e as que manejamos isto é, da desordem passar pa­ra ordem relativamente mais completa. Relação entre dor e felicidade significa relação entre dissonância e harmonia. O inferno é estado caótico de revolta (desordem satânica); o paraíso, estado orgânico de paz (ordem divina). A sabe­doria do sistema consiste exatamente em que a dor é força auto-dominadora por natureza, isto é, quando se manifesta tende a gastar-se e inverter-se. Como forma de dor, essa força caminha para o próprio aniquilamento e auto-destrui­ção; mas, como força, não se destrói e quer renascer em po­sição invertida ou, seja, como felicidade. Noutros termos, evoluímos por meio da fadiga do reordenamento, passamos do inferno ao paraíso através da própria dor.

Assim a dor nos aparece em toda a sua importância de reconstrutora da vida; na sua verdadeira função de reequi­libradora, como compensação expiatória; na de educadora, como assimilação de experiência e formação de consciên­cia; na sua função de reordenadora da desordem, como rea­bsorção do mal; enfim, como fator de evolução e instrumento de felicidade. A dor, devido à natureza equilibrada do sis­tema, é força que, manifestando-se, se consome, se esgota e se transforma em força contrária. Constitui-se ao mesmo tempo em estimulante de atividade, em adestradora e ins­trutora, isto é, em criadora de qualidade que lentamente melhora, se fortifica e enriquece. Enfim, é grande harmoni­zadora, que leva o ser rebelde e caótico a funcionar organicamente de acordo com o pensamento e a vontade de Deus. Também nesse campo o mundo não está, em absoluto, no caminho certo. Não eliminamos a dor por meio de sistemas exteriores, sobrepostos, coatores, distributivos, mas apenas através da compreensão e prática da Lei. O homem se irri­ta contra os efeitos, mas continua a semear as causas. Tor­na-se inútil querer suprimir as últimas conseqüências sen­síveis; ressurgirão sempre, enquanto não suprimirmos os precedentes de que derivam, ou não lhes. determinando a formação ou assimilando-lhes os impulsos resultantes. En­quanto agimos só externa e mecanicamente, com emprego da força ou da astúcia, perderemos o tempo. As causas que permaneceram intactas continuarão a repetir-se e a produ­zir os seus efeitos. Curam-se doenças, não pela eliminação coativa dos sintomas reveladores, mas cuidando das causas e condições do fenômeno e, por conseguinte, não lhes for­çando as leis, mas compreendendo-as.

Por isso apenas de dois modos podemos libertar-nos da dor. Se já se trata de causas em atividade, só nos resta sofrer-lhes os efeitos. Então, as forças por nós postas em mo­vimento continuam inexoravelmente a mover-se no sentido que lhes assinalamos, até se exaurirem. Nada podemos fa­zer senão suportá-las até que se esgotem, mas tentando sem­pre corrigi-las pela introdução de novos impulsos que lhes modifiquem lentamente a trajetória. Se escolhemos causas erradas, não podemos libertar-nos das conseqüências dolo­rosas senão através da dor. E necessário, então, expiar, re­construirmo-nos com tenacidade, trabalhosamente, na mi­séria onde jazem os que, neste caso, não foram vencidos pe­la força, mas pela justiça. Não há, pois, outro caminho para o paraíso senão o do purgatório. Isto em relação ao que passou. Existe ainda outro caminho para libertar-nos da dor, mas esse se refere às coisas futuras. Consiste em não errar mais, em não movimentar novas forças desarmônicas, causa de novas dores. Quanto ao passado, se erramos não nos cabe senão pagar; quanto ao futuro, apenas devemos, sem novos erros, construir-lhe os fundamentos. Neste ou naquele caso tudo se reduz à harmonização, isto é, a cum­prir a Lei, a vontade de Deus. De fato, hoje não se cuida dessa condição fundamental da felicidade. Julga-se que não tenha conseqüências a violação dos equilíbrios da vida e a praticam com indiferença de inconscientes Além de não se respeitar de modo algum a ordem universal, pretende-se, mesmo, criar artificialíssima ordem humana, como antítese e em lugar da ordem divina já existente. O involuído mer­gulha assim em tremenda ilusão: pensa caminhar em direção à felicidade e, no entanto, corre ao encontro da dor. Crê na vitória da técnica, no poder econômico, no bem-es­tar material, na vitória das armas ou da astúcia. Estas, porem, não passam de condições secundárias para a reali­zação da felicidade; podem até mesmo representar condições negativas e obstáculos para essa realização, se essas forças se movem desequilibradamente contra a harmonia da Lei. Quando não significam ordem, mas desordem, torna-se inú­til supor que vencemos, pois fomos vencidos; inútil crer que andamos em direção à felicidade, pois andamos foi em di­reção à dor. E hão de trair-nos todas as conquistas huma­nas por que tanto lutamos. As coisas terrestres não enganam; os traidores somos nós, que acreditamos no abuso e não sa­bemos empregá-lo. É justo a Lei da justiça tratar desse mo­do os que a violentam.

A harmonização constitui o método de construção da felicidade; a revolta, o de construção da dor. O problema, para que possamos resolvê-lo, deve ser proposto de modo oposto ao seguido até agora. Não se trata de abundância de bens, mas de sabedoria na conduta; nem de possuir mais ou menos, mas de possuir bens conforme à Justiça. Vitória injusta é inutilizável; riqueza de origens poluídas dão-nos aborrecimentos apenas. Tudo quanto dissemos em relação à propriedade vale para toda aquisição, tanto para os indi­víduos como para as classes sociais e as nações. Tudo quan­to não é eqüitativo sofre do mal da desarmonia, se consu­mirá no próprio veneno, se queimará em fogo violento e morrerá, reduzindo-se a cinzas. De fato, o problema do ver­dadeiro bem-estar não é, como se acredita, exclusivamente econômico, mas moral, de compreensão e de comportamen­to. Na terra não faltam bens. Falta é homem que saiba usá-los. A grande conquista a fazer-se não é tanto a con­quista material das forças do planeta, mas da sabedoria hu­mana. Sem a segunda, a primeira não constitui vantagem, mas dano. Toda aquisição realizada na desordem realmen­te representa perda; toda vitória injusta não passa de der­rota. A felicidade é equilíbrio. A dor aparece tão logo saímos da harmonia. O sistema de forças se distorce e o fenômeno se degrada assim que abandonamos a medida do justo. To­do pecado por falta ou por excesso significa erro a ser pago. De fato, tanto os povos como os homens mais ricos são os mais infelizes. Dadas a estrutura do sistema universal e a conduta humana hoje em voga, que felicidade podemos en­contrar na terra?

Quando violamos a ordem das coisas, perturbamos a har­monia das forças e damos nascimento a estado vibratório desarmônico e discordante, constituímos centro de irradiação arrítmica, cujas repercussões se farão sentir sob a forma de dor. Sofremos porque somos desarmônicos. As causas de nossa dor moram em nossa desordem interior. Quando ino­centes, o golpe não nos atinge, resvala, não encontra ponto vulnerável no organismo de forças de nosso destino, pois em nós mesmos nada oferece resistência. A desordem exterior não pode entrar em nós senão na medida em que, como que­remos, já se encontra dentro de nós. Os impulsos desarmô­nicos da dor podem atingir-nos apenas em proporção à nos­sa desordem interna. Único remédio: harmonia. E justamente o de que o mundo de hoje menos cuida é de evitar essa desordem, causa de todos os nossos males. Ao contrá­rio, parece procurar apenas acioná-las. Explica-se desse modo como o adiantado homem moderno jamais tenha sido, como hoje, vulnerável à dor. Não! A dor não se vence, como se crê, dominando o determinismo físico das causas exteriores. É inútil submetermo-nos às forças da natureza. É um passo; não basta, porém. Pagamos caro acreditar que baste.

Assim imaginamos civilizar-nos e progredir e, no entan­to, isso nos torna preguiçosos e degenerados. É lógico que a natureza seja forçada a abolir as defesas por nós artificialmente tornadas inoperantes. Desse modo enfraquecemo-nos, quando pensamos proteger-nos. Isso é verdadeiro tanto para o corpo como para o espírito. A multiplicação das defesas e a segurança desabituam-nos de ser assaltados e nos au­mentam a vulnerabilidade à dor. Se suprimimos o trabalho da luta, suprimimos também a resistência. A proteção de­bilita. Assim perdemos a defesa natural e nos tornamos escravos da defesa artificial. A elevação do teor de vida é faca de dois gumes, vantagem e perigo. Há maior segurança na pobreza do que na riqueza, mais força no preparo para a lu­ta do que em sua supressão. O sistema de nosso mundo contraria toda ordem natural. Eis que também deste outro lado as causas da dor se acumulam e não se eliminam. Pro­cura-se por toda parte receber adiantamentos, endividar-se nos equilíbrios da vida, ao invés de procurar reconstruí-los e não perturbá-los mais. Toda nossa alegria é novo emprés­timo de pobre, enterrado de dívidas até o pescoço. Que po­der, no entanto, se poderia conquistar, interiormente nos firmando no espírito! Assim é que as raças mais refinadas decaem e as civilizações se esgotam. Daí se vê como, para civilizar-se a sério, se torna necessário começar de novo, mas exatamente desde o princípio.

VIII

ENTENDIMENTO, RECONSTRUÇÃO, PROGRESSO

Com as indicações precedentes desenvolvemos os con­ceitos de A Grande Síntese (cap. LXXXI, A função da dor). Agora podemos compreender mais o significado de diversas afirmações, como esta: “A anulação da dor opera-se corajo­samente por meio da dor". Naquele capítulo se traçou o processo de desaparecimento da dor através da evolução, pe­la qual do mundo subumano para o humano e sobre-humano, com a transformação do eu, a íntima catarse na per­sonalidade muda também o significado, o valor e a sensa­ção da dor. E muda a tal ponto que no mundo sobre-huma­no "perde o caráter negativo e maléfico e se transforma em afirmação criadora, em poder de regeneração, em corrida em direção à vida. Canta-se então o hino à redenção: bem-aventurados os que choram". (A Grande Síntese - cap. LXXXI). Somente agora podemos, como Santa Catarina de Siena, exclamar: "Sofrer ou morrer".

Assim, enfrentamos e resolvemos o mais controvertido e importante problema da vida, sem condenar quem está em baixo, sem protestar contra a Lei, reconduzindo a dor às causas que são suas, mas estão em nós. Embora verifican­do o caráter infernal que o ambiente terrestre pode assumir para o involuído, sempre na dor reconhecemos a justiça e a infinita sabedoria de Deus e os equilíbrios da Lei que deixam cada qual no posto merecido, adequando a violência das provas à sensibilidade do indivíduo. O natural terror que o reino humano do involuído pode inspirar aos seres re­finados não tira coisa alguma à perfeição do plano divino do universo, à liberdade individual de redimir-se e progredir, ao otimismo do justo, à fé em Deus, aos auxílios por Ele con­cedidos a quem os merece. Deus continua presente e ativo mesmo em plena desordem do inferno terrestre. Tanto bas­ta ao evoluído para sofrer com alegria. Sua dor torna-se ato de reordenamento do caos, de aniquilamento do mal. O evoluído é condenado e expia, mas pode com as próprias mãos criar o outro para libertar-se e construir a própria fe­licidade. A ordem sempre está presente na desordem; Deus e Sua Lei não se separam jamais. Isso basta para o evoluí­do possuir, no mais profundo da alma aquela harmonia chamada felicidade. Desse modo a dor vai sendo cada vez mais empurrada para o exterior, para a superfície.

Assim, embora descrevendo o infernal mundo terrestre e sofrendo em meio ao seu estridor e à sua violência, pode­mos agora esquecer tudo isso ao contemplar placidamente o plano da criação, divino e de suprema beleza. Apenas o entrevimos e já ficamos atônitos em face de tamanha sabe­doria, poder, harmonia e bondade. Nossa alma estende as asas e sustenta-se nos céus. Prossigamos, vibrantes de fé, ardendo na mais nobre paixão, temerosos da nossa própria audácia. Com efeito, neste livro em verdade perscrutamos O pensamento de Deus e tentamos entrar em comunhão com ele. Por isso não basta raciocinar, única coisa que segundo parece se faz neste livro. Para estarmos em comunhão com Deus também se torna necessário arder de entusiasmo e pregar, sofrer e intuir, desprender-se e amar. Tanta força se emprega para não nos perdermos no infinito, não sermos arrastados no turbilhão, para elevarmo-nos ao mais alto dos céus. Essa contemplação, supremo repouso para as dores desta vida, tira-nos do campo fechado de nosso eu e, sinto­nizando-nos com as harmonias do universo, faz que elas nos absorvam, neutralizando-nos o separatismo. Que dilatação imensa, que suprema expansão esse dissolver-se no infinito hino da criação!

Estão no mesmo campo de trabalhos, que não se pagam, tanto quem escreve como quem lê, ambos arrastados na es­teira do mesmo pensamento que se encontra nas próprias coisas e fala por si mesmo. Desses trabalhos há muitos na vida, e são os mais importantes, apenas compensados por íntima satisfação. Quando quer atingir os seus fins, a Lei põe no instinto humano essa íntima sensação de contenta­mento. Este trabalho de reduzir o pensamento diretor do universo a forma racional é daqueles que não se pagam nem se podem pagar neste mundo, visto não existir valor terres­tre capaz de compensar semelhante esforço. Nisso estamos bem longe dos cálculos da economia humana; estamos nas raízes mesmas da vida, absortos em maravilhosos contatos com a eternidade, em vibrações intensas bem longe da terra, somos convivas do banquete das harmonias divinas, ele­vados à condição de servos de Deus, isto é, de colaboradores de Sua Lei, protegidos pelas forças de Sua justiça. Em alguns momentos o inferno terrestre parece bem longe; a dor, desfeita; a redenção, realizada e a libertação, completa Por momentos parece haver-se tornado real o sonho de feli­cidade que o mundo persegue em vão. Quem souber ler nas entrelinhas terá neste livro, por trás da lógica dos argu­mentos, a sensação de sublimidade e de êxtase, isto é, a sen­sação das divinas harmonias do universo inteiro, a que es­tamos a cada passo tentando levar o leitor. Este livro em meio à desordem terrestre pretende ser afirmação de ordem; em meio às dores humanas, foco irradiador de alegria ver­dadeira porque pura; corrente de vibrações reconstrutoras de bem-estar no sentido mais resolutivo; impulso que, em­bora mínimo, como dique protetor se contraponha aos rios de dor que o homem de sentimentos caóticos estupidamente despeja sobre si mesmo. Dá-se pressa em condenar, pensan­do que se distingue dos inferiores e os liquida, classifican­do-os como involuídos! Para que, senão para civilizar-se es­tariam na terra os mais adiantados? A fase de involução é de cegueira e sofrimento, representa estado inferior que cau­sa e merece imensa piedade. Este livro constitui convite, dirigido a quem não o tenha conseguido ainda, a passar do estado de involuído ao de evoluído; explica a dificuldade e o método dessa passagem; se por este lado resolve racionalmente tantos problemas e diz o que é a vida, doutro lado é convite à felicidade. Explicação e convite. Nada mais. A justiça da Lei exige que toda alegria seja merecida e, por isso, conseguida à custa do esforço de cada um.

Baseando-nos nos conceitos até aqui expostos, olhemos em redor do mundo de nossos tempos, observemos e apliquemos o que acontece. Essa observação não é movida por interesse algum, não deseja atingir nenhum objetivo terrestre e par­te de ponto de vista situado acima do plano humano. E, pois, imparcial. Apenas se propõe a expor o funcionamento da Lei, igual para todos, mostrar as conseqüências lógicas que dos erros decorrem para quem os pratica. Isso tudo, aliás, sem partidarismo e sem censura também. Trata-se de simples verificação dos estados de fato determinados livremente pe­lo homem e pelas conseqüências impostas pela férrea logici­dade da Lei. Seria presunção julgar. Apenas Deus conhece as capacidades, as medidas e as responsabilidades de cada consciência. Para julgar tornar-se-ia necessário ser inocen­te e superior. Quem o é na terra? Julgamento pode emanar apenas de quem está acima de todos e é isento de culpa; isso faz presumir superioridade existente apenas em Deus e na Sua Lei, sempre justa seja qual for o nível evolutivo. Todo ser está sempre no lugar certo e tem sempre o que merece, conforme o que é e faz. A qualificação de involuído não sig­nifica condenação. Ele também está no lugar certo, no am­biente apropriado, sujeito a golpes adequados e tem o que merece.

Observemos, pois. O homem com sua conduta demons­tra não conhecer os princípios que regem e regulam o fun­cionamento orgânico do universo; comporta-se como se a Lei não existisse, transgride-a, e, sem compreendê-la, sofre-lhe as reações. Nossa humanidade é jovem ou, seja, primitiva, ri­quíssima de energia e muito pobre de sabedoria. Essa hu­manidade precisa de caminhar muito ainda e de sofrer, an­tes que aprenda a conhecer a Lei e a portar-se de acordo com ela. De vez em quando algum evoluído aparece na ter­ra, como expiação ou para dar cumprimento a missão; cum­prida porém, a tarefa, apressa-se a retomar o convívio da gente de sua raça. Todos os seres se colocam no lugar certo. Geral­mente, ao homem não basta desconhecer a Lei e fugir-lhe; mas faz até o impossível para revoltar-se contra ela e muda-la, aproveitando para isso da inviolável liberdade de to­do ser. Mas o resultado da partida acaba por ser-lhe desfa­vorável, porque a Lei reage. A terra naturalmente não pas­sa de lugar de dor, não percebida apenas pela insensibili­dade dos que há pouco tempo chegaram de mundos mais baixos. Então, naturalmente também é lugar de desordem, violência, rebelião e ferocidade. Só o evoluído percebe o in­ferno que este mundo é. Mas ele também está colocado no lugar certo, pois se se encontra cá embaixo é porque mere­ce tal pena. Resta-lhe apenas isso: a expiação e a fuga. Se veio ao mundo para cumprir missão, deve fazê-lo. Os ho­mens deste mundo são de raças muito diferentes. A gran­de maioria encontra-se no ambiente adequado a seu grau de evolução; é justo e lógico encontrar-se a maioria em am­biente adequado e só a minoria achar-se em lugar que não lhe convém. A minoria, embora notável, mais evoluída, aqui se encontra em caráter de expiação; raríssimos exemplares de raças superiores vêm para cumprir missão. Os destinos, as provas, as alegrias, as dores, os gostos e os modos de apreciar as coisas são, pois, muito diferentes, de acordo com a natureza de cada qual. Todos nós exercemos função. Pro­va duríssima coloca os superiores ao lado de inferiores fero­zes como demônios; os inferiores são postos ao lado dos su­periores para que com eles aprendam a compreender a vida. Embora diferentes, todos colaboram e mutuamente se aper­feiçoam. Porque todos são desiguais, as opiniões variam tan­to; contudo, a harmonia se estabelece pela compensação dos contrários mais do que pela semelhança. A realidade da vida é completamente diferente da que aparece exteriormen­te ao homem comum; e seus verdadeiros problemas, bem di­ferentes daqueles de que habitualmente falamos.

Nesse ambiente naturalmente o que domina é a exalta­ção da força ou exaltação da involução, isto é, do tipo bio­lógico humano ainda próximo da animalidade. O que reve­la o evoluído é método de vida completamente diferente, fundado, ao invés, no equilíbrio da justiça; mas o evoluído hoje constitui minoria que, em silêncio e mergulhada na dor, espera sua oportunidade de vida ativa no mundo. O estudo dos grandes ciclos históricos nos indica como a fase da ani­malidade, depois que atingiu o apogeu, esteja agora se en­cerrando na autodestruição, seu termo final, inserida no de­senvolvimento lógico do sistema da revolta, do materialismo científico. Desse modo se esgotará o ciclo da atual pseudo­civilização do involuído e começará o ciclo da nova civilização do evoluído. Quem olhar em torno de si e tiver capa­cidade de entender, observa o desmoronamento deste mundo e admira a perfeição da Lei que, no tempo certo, executa o que é útil e necessário. A vida, feita de renovamento, neces­sita dessas destruições. A pseudo-civilizaçáo da matéria, fe­chada no ritmo do tempo que se prepara para encerrar-lhe o ciclo, apressa-se novamente a lançar seus últimos impul­sos. Seu dinamismo persegue-a, seu desequilíbrio íntimo atormenta-a; toda a estrutura do sistema de princípios que a regem, a natureza das forças que a põem em movimento, representam concatenação lógica que não pode desenvolver­-se senão à custa de aceleramento progressivo e contínuo sem terminar em total aniquilamento. O bólido foi posto em movimento e agora deve percorrer a trajetória que lhe foi determinada desde a abertura do ciclo.

Se olharmos em redor de nós vemos em todas as coisas dominar o desequilíbrio As vitórias são cada vez mais ins­táveis; as afirmações, levianas; tudo está confundido num turbilhão de loucura; a riqueza e o poder têm algo de raiva e desespero; todo bem é inseguro e dá-nos, mais do que ale­gria, o terror de vermo-nos despojados dele. Perdeu-se o senso da harmonia, da calma, da segurança e, por isso, da felicidade. A técnica, mais do que para criar e proteger, serve à morte e à destruição. As manifestações espirituais agonizam. A arte apresenta apenas expressões de bestiali­dade. Os cantares das mulheres são uivos de fêmea e estão a serviço da atração sexual. Os cânticos dos homens são gritos de revolta e servem ao roubo e à destruição. As ma­ravilhosas descobertas modernas, quando não se constituem instrumento mortífero, concorrem muitas vezes para a mul­tiplicação dessas expressões bestiais. As descobertas quími­cas reduzem-se quase sempre a, na agricultura, violentar os ciclos naturais; na medicina, a forçar as defesas orgânicas e impor-lhes efeito imediato, que, ao invés de ser salutar como se pensa, não passa de exploração mais rápida do or­ganismo. Envenenamo-nos constantemente com sucedâneos e produtos sintéticos, maravilhas da ciência moderna. O que há em toda parte é revolta e substituição da Lei pelo homem; logo, deve haver em toda parte a respectiva penitência. Imposição e violência em lugar de harmonia e obe­diência. Parece que a mais angustiosa preocupação da ter­ra é provocar o nascimento da dor. Se providencial ignorân­cia não a limitasse, a ação humana chegaria a desintegrar o sistema solar.

Esbocemos mais minuciosamente a substância do atual ciclo histórico. Podemos resumi-lo em quatro períodos trifá­sicos, nos quais se exprime o ritmo de seu desenvolvimento. Cada uma das três fases de cada período se expressa por um verbo, pois todo verbo quer dizer ação e, na vida, o pen­samento se exprime concretizado nos fatos. Cada termo de­riva de outro; assim, ligam-se ritmicamente em cadeia, por força da relação universal de causa e efeito; o efeito por sua vez se transforma em causa; e o termo final, em termo inicial. Desse modo toda fase é mãe e filha e, gravitando uma em redor da outra, cada qual amadurece a sua parte e ambas amadurecem o desenvolvimento do fenômeno. Eis os quatro períodos trifásicos do atual ciclo histórico:

"Crescer, conquistar, combater.

Roubar, matar, destruir.

Empobrecer, sofrer, refletir.

Compreender, reconstruir, progredir".

Esses períodos representam a última fase de nossa pseudo-civilizaçáo materialista e sua passagem a outra civilização. O domínio das forças do planeta por meio da ciência e a con­quista do bem-estar material, características de nossos dias, le­varam-nos à primeira fase do primeiro período. O restante não passa de desenvolvimento em série, lógico e fatal, até que se atinja o termo final. Crescer não é crime nem erro. É a subs­tância da vida e a vontade da Lei. O crime e o erro resi­dem na direção que demos a esse crescimento. Se tivesse sido sábia e consciente, dirigir-se-ia imediatamente ao termo final. Da inconsciência do involuído é que derivou o longo desvio dos quatro fatigantes e dolorosos períodos. Se se tratasse de mundo consciente, o primeiro termo, "crescer", poderia coincidir com o último, "progredir" ou, em outras palavras, constituir-se na efetiva conquista de conhecimento e felici­dade, precisamente como a Lei deseja ao homem. Esse cami­nho, todavia, pressupõe aquela sabedoria que é precisamen­te o resultado do longo percurso em que aquele se transfor­ma para conquistá-la. Em face da liberdade e da inconsciência humanas, não há outro caminho. Esse caminho é ge­rado por aqueles fatos. A lei se lhe adapta e permite a ex­perimentação humana a fim de que o homem aprenda. Mas lentamente, através do erro como dissemos, corrige o erro e reconduz as forças à posição devida e desejada, reordenan­do-as e reconquistando-lhes a concessão. Assim, a Lei através da dor repreende e corrige o homem e leva-o de novo ao caminho certo de verdadeira conquista da felicidade. Desse modo se atinge o verdadeiro objetivo da vida, o de evoluir; assim, a ação atinge sua finalidade principal: compreender e progredir. O processo evolutivo deveria saber desenrolar-se em direção reta e sem desvios. Bastaria crescer lógica, disciplinada, consciente e harmonicamente, tudo de acordo com a Lei. Mas vimos como o involuído sabe apenas crescer desordenadamente, em oposição à Lei. O que necessitaría­mos de possuir no momento da partida só conseguimos ao chegar. Mas conseguimos e isso basta. O objetivo do traje­to consiste precisamente em conquistar novas posições. O homem aí chegará cansado e ofegante, mas bom entendedor, e a Lei não terá sido fraudada. Todas as coisas estão logi­camente no lugar certo. A bondade dessa Lei há de triun­far e o homem aproveitará a experiência adquirida para não repetir o mesmo ciclo, mas, ao contrário, ir além.

Que tortuoso e cansativo caminho deve o homem per­correr antes de atingir o objetivo colocado no último pe­ríodo! Tanta dor e destruição para conseguirmos com­preender e, em conseqüência, podermos reconstruir e progre­dir. Apenas no caso de já termos compreendido é que o ob­jetivo seria logo atingido e não deveríamos percorrer tão longo e doloroso caminho. O grande problema resume-se em compreender. Compreender para em seguida aplicar a Lei, desse modo evitar a dor e, evoluindo, conquistar a feli­cidade. Ciência, filosofia, religião, literatura, arte, sociolo­gia, tudo isso deveria facilitar o entendimento e a aplicação dessa Lei e a substituição do espírito de rebelião e de­sordem pelo de obediência e ordem. A atitude de revolta constitui nosso pecado capital. Constrange-nos a viver de­baixo do açoite da reação. Quanto mais nos rebelamos mais açoites recebemos. A revolta, que nos parece o caminho da fuga, é o caminho da condenação. Seguimos a Lei às aves­sas, por isso conseguimos o avesso de sua harmonia e feli­cidade; praticamos a seleção às avessas, involutivamente ao invés de evolutivamente. Mas a inteligência humana há de substituir a lei animal de seleção do mais forte por sistema de luta mais nobre, destinada, ao contrário, à formação do mais consciente e do mais justo. Torna-se necessário mudar o tipo-modelo, não aquele oficialmente elogiado, mas o que intimamente e de fato admiramos. Necessitamos de seguir outros métodos de conquistar vitória, propor-nos outros ob­jetivos e lutar em plano mais elevado. Ao contrário, o es­forço humano parece hoje dirigido à canseira de trocar o bem pelo mal, a ordem pela desordem, a felicidade pela dor.

Bastaria compreender algumas verdades elementares co­mo estas: "Quem mais pode ou possui não tem maior por­ção de direitos, mas de obrigações". "Toda autoridade não representa vantagem, mas encargo e missão". "A dor cessa­rá apenas quando houvermos superado o ódio e a vingança, transformando-os em amor e perdão". "Seja qual for o gol­pe vindo de fora, a dor só atinge quem a merece". O ver­dadeiro bem-estar apenas poderá resultar de nova ordem in­terior, em que a fórmula "a infelicidade alheia é alegria para mim porque me é vantajosa" seja substituída pela fór­mula mais evoluída "a infelicidade alheia transforma-se em dor para mim porque é também minha própria infelicidade".

Infelizmente é muito extensa a lista dos erros humanos. Nada mais lógico que a das dores seja também muito longa. Que outro rendimento poderiam dar as forças da vida, se dispostas de modo diferente, obedientes a critérios de har­monia e não a de desordem! Que seria do mundo se, apesar de todos os erros humanos, não o dirigisse Lei justa e sábia! E deve, mesmo, ser muito sábia visto como, não obstante as tentativas de desordem, atinge inexoravelmente seus objeti­vos. Sua sabedoria substitui a ignorância humana, a que desse modo se põem limites e se guia em direção ao bem.

Ao homem traem a pressa, a psicologia do resultado imediato, conseguido a todo custo, através de quaisquer meios, inclusive da violência. A vida, no entanto, é fenôme­no extenso e equilibrado. Nela o futuro é eterno, produzem-se efeitos devidos a causas longínquas, preparam-se objeti­vos também longínquos. O homem vê o passado e o futuro próximos e nada mais. E agora? Que coisa a química intro­duz em nossa terra? A ciência médica, no protoplasma do homem? A máquina, em nossa vida individual e social? A orientação moderna, em nossas almas? Não sabemos. No entanto, a vida futura se construirá apenas do que estamos continuamente a semear para nós e nossos filhos! Pondo de lado o problema agrário, já particularmente desenvolvido em outros escritos, observemos, por exemplo, como a ciência médica trata o corpo humano. Cremos que a imunidade se possa obter artificialmente pela introdução no corpo huma­no de pus, de vírus ignorados ou de proteínas desconhecidas. No entanto, a resistência orgânica não passa de equilíbrio entre contaminação e defesa, a renovar-se continuamente, equilíbrio que se consegue apenas por meio de características intrínsecas, adquiridas através de prolongadíssimos períodos de luta. A profilaxia acertada reside nas qualidades protetoras e defensivas que o organismo por si mesmo adquiriu em prolongada e necessária luta entre o campo orgânico e o micróbio. A outra profilaxia é proteção ilusória e fugaz, vi­tória fictícia obtida à custa da resistência orgânica, pregui­çosamente, sem luta, através de meios que, ao invés de for­talecerem, enfraquecem; de fato, apenas a luta esforçada e ativa gera qualidades, isto é, atitudes protetoras. Hoje te­mos pressa e tentamos impor à Natureza o resultado por nós desejado. Desse modo apenas conseguimos vantagem imediata, perturbando os lentos equilíbrios naturais; vivemos de empréstimos e adiantamentos, hipotecando o futuro. Aplica-se, pois, ao campo orgânico o perigoso sistema cre­diário que já observamos no campo moral e econômico. Pensando em melhorar, praticamos, no entanto, seleção às avessas que tende à produção de tipo fraco, abastardado pe­las defesas artificiais. E queremos suprimir a luta, sem a qual as qualidades se perdem e a vida se atrofia. Sabemos, por acaso, que reações se produzirão amanhã em conseqüência desses métodos de violação e de violência? A medicina oficial aplica-se há muito pouco tempo para que possamos sabê-lo ainda. Voltamos sempre ao mesmo ponto: ignora­mos a Lei e somos violentadores e destruidores. E, no en­tanto, que vantagens poderíamos obter, se ao invés de nos revoltarmos nos puséssemos de acordo! A força não preva­lece contra a lei. Esta resiste e reage. E, da luta entre ela e o homem, este é que sai com os ossos quebrados. O homem não sabe que o sistema do universo é inviolável e que toda revolta resulta em golpes contra si mesmo.

Está hoje estabelecido o método humano com que tra­tamos todos os problemas, isto é, aplica-se em todos os casos a psicologia de inconsciência e violência própria de nossa época. Em nossos dias exaltamos e adoramos o sistema do sucesso rápido, a qualquer preço. Quantas ruínas, porém, não semeia ele no caminho tanto para quem perde como para quem ganha! Hoje o método da luta e da vitória do mais forte já atingiu o campo da arte e do pensamento, des­se modo transformado em ganha-pão, mercado, campo de competições. O espírito morreu. A Lei fechou-se em rigoroso silêncio e recusa beneficiar os indignos. Deus abandonou-nos à prova que desejamos, as formas superiores da vida retiram-se da terra e o homem, querendo tudo conquistar, perdeu as maiores alegrias e os maiores valores e destruiu a beleza. A psicologia do mais forte transforma a terra em infernal campo de luta onde apenas duas posições podem existir, a de opressor ou de oprimido, e onde tudo se concede ao primeiro e nada ao segundo. Os melhores aca­bam sendo eliminados, com dano geral. O espírito de revol­ta acaba na auto-destruição. Coisa alguma nasce nas ruí­nas e, se a força obriga à obediência, nada produzem os homens, oprimidos e não convencidos. O vencedor não cria no vencido senão a indiferença passiva da resignação. A vida negativa se retrai. Só a força não basta para alimentá-la. Sem dúvida, tornam-se também necessárias as tem­pestades das guerras e das revoluções para o trabalho de re­novação. Mundo tempestuoso, porém, se convulsiona e desagrega. A vida também necessita de bondade e ordem, de amor e fé; se não tivermos semeado tudo isso, quando os homens pedirem trabalho, segurança e bem-estar, a terra, saturada de ódio, de revolta e desordem, apenas poderá dar-nos o fruto resultante da semente nela atirada; o ar, por sua vez, estará saturado de ódio, revolta e desordem; e toda a construção desabará fatalmente.

Eis os grandes empreendimentos do involuído, que feliz­mente não representa toda a massa. A minoria, composta de mais adiantados, embora não se trate de dirigentes, tem a função de reequilibrar a desordem e salvar a humanida­de. Porém, nos períodos de transição como o atual, em que as civilizações entram em liquidação, o tipo involuído, en­carregado de exercer a função destrutiva correspondente às suas capacidades especificas, adquire especial violência. Representa o órgão da destruição. Adormecerá, ficando em estado de vida latente, quando o tipo evoluído, órgão da construção, estiver funcionando. Assim, cada tipo por sua vez vive e triunfa, contribuindo para a vida, e tem razão ou está errado, conforme a função que desempenha. Estamos em fase de declínio evolutivo para liquidar civilização e, em período assim de destruição renovadora, exalta-se modelo humano que amanhã será com repugnância considerado ín­fimo. Amanhã, em fase de ascensão evolutiva para cons­truir civilização, será exaltado modelo oposto, agora incom­preendido e perseguido; liquidar-se-á o tipo biológico hoje em voga e em plena atividade.

Até o involuído desempenha, pois, função social e, no que diz respeito aos equilíbrios da vida, está colocado no lu­gar que lhe compete. E deve também ter sua oportunidade. Ele naturalmente defende, como qualquer defenderia, os princípios do próprio plano, onde se sente forte e por isso está sempre com a razão. Como acontece com todos, irrita­-o a afirmação das verdades de outros planos, porque aí se sente fraco e, em conseqüência, nunca tem razão. Por ins­tinto vital e porque a compreende melhor, todos sustentam a verdade do próprio nível e do próprio tipo biológico. Afir­mamos o que somos, o que melhor compreendemos, o lugar onde melhor vivemos e vencemos. O próprio involuído quer afirmar-se e escolhe sua arma: a força. Sente-se fraco no plano da justiça, arma escolhida pelo evoluído que apenas aí se sente forte. O primeiro, portanto, naturalmente repele essa defesa que não o defende, essa arma que não lhe dá ra­zão; antepõe-lhe a força, que ele defende porque a compre­ende mais, porque é o método de seu nível evolutivo e o úni­co meio a oferecer-lhe possibilidade de estar com a razão, embora momentaneamente. Foge, por isso, dos caminho da ordem e da Lei e prefere os da revolta, mais trabalhosos e inseguros Em presença da justiça compreende muito bem que está enterrado de dívidas e não pode valer-se da lei que apenas lhe aplica sanções dolorosas. Onde o evoluído goza de crédito, o involuído está até ao pescoço de dívidas; onde o primeiro encontra ajuda, o segundo acha apenas desvantagem e condenação. Então, renega Deus e a Sua Lei E renega-os exatamente porque percebe que existem e lhe di­rigem exprobrações. Rebela-se, portanto, e como defesa lhe resta apenas a força. Este é o seu ponto de vista. O evoluí­do ama a Deus e à Sua Lei, que lhe garantem alegria e pro­teção. Sua economia não se baseia, como para o involuído, na força e no furto, mas na Divina Providência, que, se não se exerce em favor do outro, funciona plenamente em relação a ele que preenche as condições necessárias à verifi­cação do fenômeno. Todos confirmam e exaltam o que são e possuem; e negam o que não são e não têm.

A época atual representa a vitória do involuído, isto é, da força, da rebelião, da desordem. Mas ele também, embo­ra rebelde, não passa em última análise de servo da Lei. Em face de seu método negativo de revolta, seu desenvolvimento e suas vitórias acabaram em destruição, quer dizer, em so­frimento e humilhação de que nascem o entendimento e a ascensão. O destruidor é, pois, instrumento da reconstru­ção; suas negativas, esgotada sua função e aniquilado seu autor, se transformam em afirmações; a desordem do rebel­de acaba em ordem mais elevada; a dor conclui pela evolu­ção. O ciclo traz em si mesmo a sua lei, as forças canalizadas dentro de si são todas reunidas em corrente de acordo com ritmo fatal, que obriga o desenvolvimento da fase a findar na dor que ilumina, purifica e redime. De tanto ca­minhar, nossa época progrediu de modo tal que atingiu a fase útil e construtiva: a da dor. Ela fará refletir muitíssimo. É a única estrada da compreensão. E só o havê-lo compreendido nos poderá permitir a construção a sério, com soli­dez, para ascendermos cada vez mais.

IX

DAS TREVAS À LUZ

Observamos os erros do nosso velho mundo, para supe­rá-los no mundo mais adiantado que devemos construir. O ciclo não é novidade e recorda aquele com que se encerrou a vida do império romano. Aqui não dizemos coisa alguma ainda não escrita pela Lei na história e na vida. Acontece apenas que nem sempre a liam, mas nós lemos. Só isso. Pa­ra dar contribuição construtiva à civilização em nossa hora decisiva, tornava-se necessário mostrar o funcionamento da Lei. A palavra, em verdade, morreu, tanto nos habituamos a fazê-la e ouvi-la soar falso e a considerar como inúteis os ideais. Porém, a leitura do pensamento da Lei, aqui feita, não é apenas palavras. Nesta explanação se garante a ação da Lei maturadora, no íntimo, dos fenômenos que estamos descrevendo. Na realidade da vida, atrás do pensamento que estamos lendo, se situa a força operatriz e meio de coman­do. Essa palavra está, pois, carregada de fatos, adere ao di­namismo atuante por ela expresso; não é hipótese ou criação pessoal de um homem, mas derivante da realidade que vive­mos e está amadurecendo. Aqui se fala, pois, de conceitos vivos, de conceitos-força impelidos em direitura a sua reali­zação. Não se trata de exposição de luxo, de vitrina de con­ceitos com idéias em exposição, mas de cadeia de pensamen­to cósmico expressa em modo de desenvolvimento racional.

Embora muito triste, a visão dos erros e dores humanos, não pode diminuir a alegria imensa da leitura do livro da Lei que, apesar de tamanha imperfeição humana, é o livro das perfeições. Enquanto penetramos, pouco a pouco, na profunda realidade das coisas, cada vez mais clara aparece a ordem divina e a alma se extasia ao contemplar as harmonias da criação. Enquanto subimos, invade-nos o senso de libertação, confiança, repouso em Deus, adesão a Sua vontade, sintonia com o todo, fusão em organismo imenso, de poder e beleza supremos. Quanto mais a observamos, tanto mais perfeita nos aparece a Lei.

Começamos a afastar-nos lentamente do mundo do in­voluído e a subir cada vez mais em direção ao do evoluído. Na atual fase de transição defrontam-se o tipo biológico do passado e o do futuro. Classificamos desse modo os dois ex­tremos típicos do indivíduo humano, para tornar mais cla­ra a demonstração. Na realidade, porém, entre os dois ex­tremos se situam infinitas gradações intermediárias, con­forme ao desenvolvimento evolutivo de cada um. O extremo inferior exprime a quantidade; o superior, a qualidade. A evolução consiste em transformar a primeira na segunda (como na desintegração da matéria e degradação da ener­gia). Transformando-se a massa em energia, muda a forma, mas a substância permanece-lhe indestrutível. Se o compararmos com a energia elétrica, vamos entender me­lhor esse fenômeno. O involuído representa o estado elétri­co com muita amperagem e pouca voltagem; o evoluído, a posição inversa, em que, diminuída a amperagem, aumenta proporcionalmente a voltagem ou, melhor: a quantidade, embora diminuindo, se transforma em alta voltagem. Mas, apesar da transformação, nada se criou ou destruiu, pois a substância, expressa em Watt, permaneceu igual a, si mes­ma. Entre os dois estados se estabelece a mesma relação existente entre volumes d’água (em metros cúbicos), consi­derados fonte de energia, e a pressão por eles exercida (desnível). Noutras palavras: a energia se refina, sutiliza, mas ao mesmo tempo se dinamiza. Assim, a transformação se compensa.

Confrontemos os dois tipos. O involuído é forte, mas insensível e obtuso; verdadeiro rio de energias, mas de qua­lidade má, indisciplinada e grosseira. O involuído desperdi­ça-as de maneira ilógica, pois lhe falta a consciência dire­triz, que para ser conquistada requer exatamente, através da experimentação, esse dispêndio de energia. O mundo de nossos dias é assim. Ao evoluído aparece como caos infernal, estúpido e doloroso. O evoluído vive em plano físico menos forte, mas sensível, de inteligência aguda e penetrante. Re­presenta corrente dinâmica mais limitada como quantida­de, porém de qualidade imensamente superior, refinada, dis­ciplinada. Com a elevação de potencial essa forma de ener­gia tornou-se mais poderosa, mais apta a vencer resistên­cias, como acontece na eletricidade (ohm) quando aumen­tamos a voltagem. Se a corrente dinâmica é de quantidade mais limitada, suas qualidades de maior potência e a ordem e a disciplina com que a manipulam, o modo mais conscien­te como a empregam dão-lhe muito maior rendimento. A transformação da quantidade em qualidade, embora a mas­sa se torne mais sutil, traduz-se em maior poder de penetra­ção; a sabedoria de consciência diretriz já conquistada sig­nifica a poupança de imensos esperdiçamentos de energia impostos, na experimentação, pela tentativa e pela incerte­za. Por isso, não apenas a natureza mais sutil do novo di­namismo permite transpor mais facilmente os obstáculos, como também o conhecimento que o dirige elimina as dispersões inúteis, os erros e em conseqüência as dores e lhes permite maior aproveitamento em sentido evolutivo, isto é, na direção evolutiva de harmonia e felicidade e não na involutiva de erro e dor. Nesse plano atingiu-se o objetivo da luta do involuído, a conquista de consciência; os atritos e os choques de seu modo de lutar foram superados e elimi­nados, são agora inúteis; tudo se tornou orgânico, harmô­nico, lógico, consciente, sábio. Não apenas a massa se tor­nou potência, como também a utilização dessa potência é cada vez maior, quer dizer, consegue-se, em termos de feli­cidade, cada vez maior rendimento. Não só a matéria se tornou energia vibrante e o dinamismo, conquistando mais forte capacidade de penetração, significa força mais ativa e por isso mais potente, como também se firmou a arte, antes ignorada, de saber usar tudo isso com inteligência, o que dá a todos os atos, inclusive aos mínimos, valor e resultado muito maiores.

No desenvolvimento do universal fenômeno evolutivo, de uma a outra das três formas sucessivas, matéria, energia, espírito, a transformação biológica que o homem experimen­ta corresponde à transição da fase-energia à fase-espírito. Isso caracteriza o novo tipo biológico e a nova civilização. Se, coletivamente, com a organicidade caminhamos para a atuação da ordem da Lei, individualmente marchamos em direção à espiritualidade. Se a força caracteriza o involuído, a inteligência revela o evoluído. Isso os distingue e constitui a pedra-de-toque para determinar o grau evolutivo do ho­mem. Basta observar como este, individual e coletivamente, se conduz, faz a guerra e vive durante a paz, desencadeia as revoluções e supera as crises, como trabalha, pensa, coman­da, obedece, para ficarmos em condições de classificá-lo cri­teriosamente. Não interessa a posição social, mas a quali­dade íntima; nem o bom êxito, mas o método e o comportamento; nem a boa ou má fortuna, mas a raça. Muitas vezes os ciclos históricos têm ritmo fatal. Interessa, isso sim, o valor do passo com que marchamos no tempo; o modo es­pecial de cada homem ou nação escrever a própria história é que decide; impõe-se tão-somente o valor intrínseco da personalidade, através da qual esse modo especial transparece. O diferente modo de agir revela e distingue.

No evoluído a força trabalhou tanto que se transformou em inteligência, sua primeira qualidade. Trata-se de sensibilização geral de que também derivam sabedoria e bonda­de, equilíbrio e harmonia e, por isso, poder. O homem fun­ciona em universo maravilhosamente organizado e não o nota, move-se em oceano de forças inteligentes e não o per­cebe, vive em meio de belezas imensas e não as vê. O homem moderno não passa de cego e bárbaro. A sensibilização lhe rasgará horizontes insuspeitados, torná-lo-á senhor de tan­tas forças sutis que hoje lhe fogem. O imponderável, agora apenas intuído, é ao mesmo tempo mina e abismo; amanhã se tornará ponderável. São inesgotáveis os recursos da cria­ção. A força constitui a potência mais fraca da vida. Quem dela se socorre não sabe quão é o pensamento, que poder tem a disciplina na organicidade. Apenas um olhar lançado no futuro, para que o pressintamos, nos enche de estupor. Geralmente, essas espíadelas no futuro reduzem-se a previsões fantásticas à Wells, limitando-se o escritor ao desenvolvimento dos motivos já em nossos dias atuantes, à perspectiva ampliada do atual estado de coisas. Ninguém fala de novos motivos, aqueles que de acordo com a lógica da evolução se introduzirão na vida. E o futuro reside exa­tamente neles. Exagera-se, ao invés, o progresso mecânico, colocado em primeiro plano; quanto à ciência da matéria, prossegue-se até à hipertrofia, sem suspeitar-se devam os equilíbrios da Lei, ao contrário, agir em direção oposta e compensadora, provendo o mais necessário: a sabedoria diretriz, que reordene, guie e portanto valorize as conquistas já realizadas. Não compreendemos ainda que os princípios atualmente em vigor, para não acabarem no aniquilamento, são corrigidos e não persistem; e, se não lhes adicionamos princípios complementares, não representam vantagem, mas dano. Essas previsões estão, pois, no caminho errado. Caímos no erro de acreditar que a evolução seja unilateral e retilínea e não deva o futuro passar de multiplicação, de continuação ampliada do presente. Por força da lei de equilíbrio, o caminho percorrido por determinado século não pode ser exatamente o prosseguimento puro e simples do seguido pelo século precedente. Cada época tem objetivo próprio, com que, para de todos os lados equilibrar o desenvolvimen­to, tende exatamente a compensar o da época anterior. Por isso, toda atividade é levada a transformar-se, ou invertendo-se na sua complementar oposta ou completando-se em formas ainda não desenvolvidas. Continuar a conceber o progresso apenas como exterior e mecânico significa incom­preensão do progresso, pois ele seria apenas o prosseguimen­to de trabalho unilateral, a continuidade de civilização que esgotou sua tarefa, não tem mais razão de existir e deve, pois, ceder o passo a nova civilização de tipo completamente diferente. As novas ascensões, fixadas e superadas as vitó­rias da técnica, deverão apossar-se do campo das qualidades humanas. Há muitos outros germes à espera, hoje invisí­veis, que se conservam latentes, escondidos nos intervalos dos grandes ritmos da história. Nossos atuais problemas constituem fase de transição e preparação de muitos outros problemas, completamente diferentes. Superar-se-ão a luta de classe e a competição entre o capital, e o trabalho, resolver-se-ão tantas incompreensões e tanta ignorância; a organi­cidade exterior e coacta deverá transformar-se em organicidade íntima e estabelecida por livre convencimento. A evolução, que hoje plasma a forma; deverá penetrar cada vez mais na substância e renová-la cada vez mais intimamente. Há na vida muitos outros germes que esperam em silêncio, nela colocados muito a propósito, para germinarem e cres­cerem, visto ser essa a finalidade de todos eles. Após com­preender-se a lógica do processo, tudo isso se torna evidente.

A fé por nós depositada no ressurgimento espiritual do mundo se baseia em profunda visão das coisas, que estende os braços até aos confins do espaço e do tempo. É impossí­vel que o homem de hoje, dominando sempre mais as forças da Natureza, não chegue a aprender algo, embora através de hecatombes e, manipulando cientificamente a vida, não se lhe mostre a imensa realidade subjacente. A estrutura evo­lutiva do universo e o ritmo progressivo da Lei evidenciam a impossibilidade disso. Como negar a solene afirmação da vida, que apesar de todos os obstáculos, anuncia eterno triunfo? Os desenvolvimentos são fatais; viver é progredir; toda tra­jetória, lógica. As verdades das maiorias modernas não pas­sam de momentâneas correntes psíquicas e nada provam. O mundo guia-se pelo ritmo dos ciclos históricos, pelo peso dos imponderáveis. O homem não dirige a história, segue-a. A Lei a todos arrasta, confiando a cada um função especial. Na organicidade do sistema diretor existe sabedoria que de seja o progresso e nos salva malgrado nosso. Os grandes homens detentores do poder, expoentes da história, desapa­recem; mudam os nomes das coisas e as atitudes populares; e, em direção aos objetivos propostos pela vida, a sabedoria prossegue no seu caminho, independente e imperturbável, sob muitas formas diferentes. A mesma verdade continua a desenvolver-se, atuando sob as aparências mais opostas da verdade, mas superficiais e momentâneas. A visão das grandes coisas de Deus escapa a quem olha de muito perto as pequenas coisas humanas. Como se fosse cântico ansioso e aflito, nosso pensamento vagou pelo universo, percorreu-o buscando sem cessar e saciado se deteve na fé por ele depo­sitada na ascensão, em que percebe haver encontrado o ver­dadeiro sentido e o fim supremo da vida.

Qual o sistema de vida do novo tipo biológico evoluído? Que posição toma na terra, especialmente em face das neces­sidades materiais, eixo da vida dos demais? Sua regra pode resumir-se no preceito evangélico: "Buscai o reino do espí­rito e tudo o mais vos será dado por acréscimo". Conquis­tado o poder maior, consistente no domínio do espírito, tor­na-se lógica a conquista do poder menor, que é o domínio da matéria. Não estamos tratando de admirável utopia, mas de fato suscetível de verificação. Quem já aplicou essa nor­ma, sabe-a verdadeira. Encontrado o reino do espírito, o res­to nos é dado espontaneamente por acréscimo. Como quem pode o mais pode o menos, possuir o plano do espírito sig­nifica dominar os planos inferiores e as forças que o regem, significa tornar-se espontaneamente, sem necessidade do em­prego de força, senhor de tudo quanto aí exista. Quem o conseguiu naturalmente possui dentro de si mesmo o senso da medida justa e não abusa. Tudo isso mostra conseguir­mos maior vitória obedecendo à Lei do que revoltando-nos. Os atuais assim chamados donos da riqueza na realidade não passam de seus escravos. O evoluído não aprendeu a servi-la, mas a servir-se dela, a considerá-la meio e não o objetivo da vida, a construir seus tesouros com valores su­periores aos econômicos e materiais, a amar coisas muito mais belas do que as da terra. Não prostitui o espírito em presença do mundo e se mantém senhor das forças da vida. Seu domínio atinge a raiz dos acontecimentos e a essência das coisas; é mais potente porque mais profundo. O encon­tro do reino do espírito transformou-lhe a vida em esplêndi­do e imenso acontecimento, isto é, no funcionamento de for­ça indestrutível na organicidade universal. Como, por cau­sa do equilíbrio interior, é antes de mais nada dono de si mesmo, constitui-se senhor e não escravo das coisas, que para ele assumem outro valor e diferente significado por serem vistas de ponto de vista mais elevado.

Maneira tão nova de conceber a vida representa verda­deira revolução biológica no mundo moderno. Os dois tipos, involuído e evoluído, personificam a velha forma e a nova, que devem respectivamente morrer e nascer. Trava-se luta entre esses dois tipos de vida. Cada um deles tem suas pró­prias armas. O involuído usa força ou astúcia; o evoluído, bondade e perdão. O primeiro é violento, mas cego; o se­gundo, pacífico, mas de ótima visão. O primeiro suporta, o segundo domina o imponderável. Estão frente a frente, em posição de recíproca e relativa inferioridade e superioridade. Mas tudo se reequilibra porque o evoluído, se possui mais poderes, tem também mais deveres. Eis a grande guerra em que vencerá o homem desarmado e de que nascerá a nova civilização. O evoluído sabe, porém, que as recíprocas po­sições de inferioridade e superioridade não são absolutas, mas relativas, que a maior quantidade de meios correspondem maiores obrigações, que essas posições não são definitivas, mas transitórias. Todo tipo biológico, se não passa de invo­luído quando comparado a evoluído que o supera, é por sua vez tipo evoluído, se confrontado com outro mais involuído que ele; e todo evoluído, se supera o involuído, não passa, a seu turno, de involuído, se o cotejarmos com tipo mais evo­luído. Cada um, seja qual for o nível em que se encontre, sempre tem superior e inferior. Por isso, nenhuma posição nos dá direito de ensoberbecer-nos por causa de superiorida­de absoluta e nenhuma nos dá motivo de humilhação por inferioridade absoluta. Todos temos superior de quem apren­dermos e a quem prestarmos conta; e, também, inferior a quem devemos estender fraternalmente as mãos. E o evoluí­do sabe não dispor de maior conhecimento e poder senão para execução de maior trabalho. Não é só isso, porém. No decurso da evolução, todas essas posições mudam continua­mente e está em nossas mãos fazê-las mudarem. Para todos nós, o estado de involução representa o passado; para todos os homens de boa vontade, o estado de evolução significa o futuro. Desse modo, o evoluído de hoje foi ontem o inferior involuído, que amanhã poderá ser o superior evoluído. Essa é a hierarquia dos seres, que ao longo dela se movem de acor­do com o merecimento e a boa vontade.

A luta entre involuído e evoluído é fatal. Todo ser per­sonifica determinada força e representa determinado ele­mento da luta; ninguém pode, na posição de neutro, fugir da luta, pois a vida consiste na ascensão através da luta. Vida é movimento, é vir-a-ser; a estase mata-a. E esse vir-a-ser tem de significar ascensão. Esse movimento não pode deixar de dirigir-se para cima. Resolve-se na morte a vida que não progride para o alto. Construir ou morrer, avançar ou extinguir-se. Quem pára perde a vida se não evolui, mor­re; o retardatário morre na proporção do próprio retarda­mento; quem chega tarde se arruina; quem se recusa se des­trói. Progredir cansa muito; todo aquele, porém, que retro­cede caminha em direção do inferno; enquanto isso, quem progride caminha rumo ao paraíso. A Lei nos comprime de todos os lados para que nos decidamos ao trabalho fatigante de avançar em direção do paraíso e tudo retorne ao seio de Deus, de que se afastara. A vida não tem e não pode ter outro significado.

X

O PROBLEMA DO MAL

A luta entre o involuído e o evoluído não passa de mo­mento da luta universal entre o baixo e o alto, o. passado e o futuro, o mal e o bem, e ao contrario. O problema se espraia, desse modo, no problema muito mais vasto do bem e do mal, os dois termos contrários em que se divide e se funde a grande unidade do universo. O mal representa o baixo, o passado, a desordem, o inferno, a revolta contra a Lei, o nosso afastamento de Deus. O bem representa o alto, o futuro, a ordem, o paraíso, a obediência à Lei, o aproximarmo-nos de Deus. Como a evolução é apenas a ascensão do primeiro para o segundo posto, o involuído não passa de retardado e do mesmo modo o evoluído é tão-somente certo involuído que progrediu. Como os dois termos contrários, mal e bem, se digladiam, assim o fazem também o involuído e o evoluí­do, que pertencem, respectivamente, ao primeiro e ao segun­do termo. Para compreensão de qual devera ser o resultado da luta, analisemos a natureza e a estrutura dos dois sistemas de forças, confrontando o do mal e o do bem. A análi­se nos indicara também, implicitamente, o resultado fatal da luta entre o involuído e o evoluído e ao contrario.

Analisemos o fenômeno do mal. E evidente tratar-se de sistema de forças por natureza negativo, quer dizer, cuja característica fundamental reside na negação. Satanás é re­presentado como o espírito que nega, como o principio em que a revolta se funda. O Fausto de Goethe desenvolve essa psicologia a fundo. Aí, onde o bem afirma "sim", isto é, construir, harmonizar, progredir, diz o mal "não", ou seja, destruir, desarmonizar, regredir. Isso significa possuir natureza inadequada, desenvolver atividade em direção errada, constituir sistema de forças que apenas pode atingir resul­tado falso. Tudo isso esta implícito no sistema, por força de seu próprio princípio e estrutura. Desse tipo são a nature­za e a atividade do involuído, vandálico por princípio, en­quanto o evoluído é por natureza construtor e anti-destruidor. A psicologia diferente e o método de ação constituem exatamente a nota fundamental que os distingue. Essa natureza do involuído, como acontece ao mal, importa em ati­vidade em direção errada, isto é, permanecer fatalmente li­gado a estrutura mesma do próprio sistema de forças, de modo a atingir apenas resultado falso. Assim, quem por princípio destrói, acaba, como destruidor, agindo contra si mesmo; quem constrói acaba construindo para si mesmo.

Da natureza negativa das forças do mal resultam três conseqüências importantes: 1ª — Por parte do mal, absolu­ta impotência de construir para si mesmo e capacidade de desenvolver apenas atividade negativa, isto é, de embaraçar o trabalho construtivo alheio. Portanto, o mal subordina-se ao bem existe apenas como forma de negação do bem, quer dizer, é função dele, como da luz depende a sombra. O mal, desse modo, nasceu escravo e seu domínio não passa de do­mínio negativo, de desagregação. 2ª — Sua irresistível ten­dência para auto-destruição. 3ª —A subversão de todo o rendimento de sua atividade, que assim, na realidade opos­ta às mentirosas aparências, não se resolve a seu favor, mas a favor do termo oposto — o bem. A destruição levada a cabo pelo mal se transforma assim, em construção no campo de forças, inverso e contrário.

Observemos os três pontos. Trata-se de três momentos do mesmo processo, de três funções tendentes ao mesmo re­sultado: a vitória do bem. Conclusão: o mal parece e, no entanto, não é inimigo. Representa apenas a negação que condiciona a afirmação. Sua posição é de divergência, mas subordinada; o sistema destrutivo está combinado de modo tão sábio que deve acabar transformando-se em construção. Particularidades momentâneas poderão causar-nos impressão contrária, mas a ação do mal, em conjunto, representa apenas contribuição para a vitória do bem. Quem considera o mal como inimigo não compreendeu a perfeição da Lei. No capítulo anterior vimos os empreendimentos do involuí­do, considerado como órgão da destruição. Examinando mais intimamente agora, podemos compreender de que maneira, em última análise, eles não passam de colaboradores do evo­luído, de órgãos de construção. Tudo na Lei deve ser cons­trutivo, mesmo lá onde assume aspectos negativos, até mes­mo sob as aparências de oposta forma. O estudo do proble­ma do mal faz-nos compreender melhor a verdadeira função do involuído no quadro da vida; como sua atitude de re­volta se transforma em obediência; como, apesar de tudo, ele é apenas escravo da Lei. Tão sabiamente se acham com­binados a natureza e o desenvolvimento das forças que tudo termina se pondo a favor da evolução. A revolta, ofenden­do a Lei, excita-lhe a reação, que para o homem significa dor, isto é, experiência, entendimento, redenção. Os que afirmam e os que negam, todos trabalham em prol da Lei; como, através da dor, esgotando-lhe as causas, se anula a dor mesma e se cria a felicidade (já se vê); como o mal fra­cassa ao manifestar-se, tende para a autodestruição e, no entanto, trabalha pela vitória do bem; assim, aos poucos, a evolução absorve a involução; e o involuído, transformando-se desaparece.

O primeiro dos três momentos do processo de desenvol­vimento das forças do mal nos mostra o aspecto negativo da sua função. Por si mesmo, considerando-se, a sua nature­za negativa, representa força esgotada, equilíbrio instável e provisório, posição falsa e insegura, apenas capaz de triun­fos efêmeros. O tempo, de fato, constitui o grande inimigo do mal. Sempre apressado porque reconhece a instabilidade de suas posições. Sozinho, pois, nada pode concluir de du­radouro. Embora sabiamente executadas, as construções do mal parecem tender irresistivelmente ao desmoronamento. Por mais perfeitas que sejam, falta-lhes o equilíbrio comple­to, única base estável e resistente. O que é resultado de ne­gativas e destruições não pode afirmar-se e construir, mes­mo no mal. Se a função do mal é para si mesma negativa, torna-se positiva em favor dos outros, embora contra estes também se dirija em sentido negativo. Desde que o princípio da subversão esteja na base do sistema, é claro que, desen­cadeada força em si mesma negativa, esta ao chegar deve apresentar-se invertida, isto é, positiva. O trabalho maligno de embaraçar a atividade construtiva alheia transforma-se, desse modo, no exercício da útil função de resistência ne­cessária à aplicação do esforço humano, função de controle e verificação do experimento com que se conquistam exa­tamente as qualidades necessárias à evolução; e no da função de elemento secundário e indispensável para contraba­lançar as forças dos dois termos opostos do binômio, necessários para a luta de que nasce a evolução. Dessa manei­ra, a função do mal se transforma na de estimular e acele­rar a atividade das forças do bem, isto é, tornar-se, embora em sua posição negativa, necessário e útil fator de progresso. Portanto, o mal, sem querê-lo, torna-se útil ao bem. Assim, Judas, contra a própria vontade, não trabalha para a desejada destruição de Cristo, mas para seu triunfo. No pla­no da criação o mal submete-se ao bem e, como seu servo deve, sem sabê-lo, cooperar na consecução de suas finalida­des. A mentira engana a si mesma; o impulso egoísta nada pode fazer sozinho e, sem compreendê-lo, presta serviço a. seu rival.

No segundo momento do mesmo processo verificamos o agravamento do aspecto negativo da função do mal, agravamento que prejudica ao próprio mal. Não somente o mal pode construir-se por si mesmo, porque é escravo do bem, co­mo, em face de sua própria natureza negativa, arrasta-se inexoravelmente para a autodestruição. Tal é a triste posição de to­dos os destruidores, de quantos trabalham no campo de forças do mal. Por mais que a negação do mal pareça projetar-se con­tra o bem (não o atingindo, porém, senão sob forma positiva retificada), a verdade é que na sua forma negativa ela se pro­jeta contra o próprio mal, que, desse modo e paralelamente á função positiva em prol do bem, submete-se a processo de auto-eliminação. A natureza negativa das forças do sis­tema importa em que seu desenvolvimento se traduza em demorado autodesgaste e progressivo esgotamento. A negação do mal não pode desenvolver-se e agir senão em duas direções num dúplice processo: com resultado positivo pa­ra o bem e negativo para si mesma, isto é, construindo o bem e destruindo-se. Segundo parece, em relação a si mes­mo o mal não sabe fazer outra coisa senão gerar o micró­bio que o mata. As próprias bases e a lógica do sistema im­plicam em que a vida do mal possa apenas consistir num suicídio, o suicídio de Judas, sua fatal autopunição. Não obstante, Judas foi utilizado em favor das finalidades do bem.

O terceiro momento do mesmo processo mostra-nos, ao lado do aspecto negativo da função do mal, o aspecto positivo; quer dizer, mostra-nos como o mal não só é escravo, nada absolutamente pode fazer para si mesmo, estando con­denado à autodestruição, como, por inversão ocasionada pe­la natureza de seu próprio princípio animador, pode tornar-se construtor até mesmo no oposto campo do bem. Chega­do ao terceiro momento, o processo de desenvolvimento das forças do mal nos mostra, paralelamente ao aniquilamento dele (segundo momento), sua ressurreição, embora em po­sição invertida. Eis que, ao lado da função do mal, sempre exercida contra ele, aparece outra, mais verdadeira, fun­ção inversa ou seja, afirmativa e construtiva, que situa sempre em favor do bem. Tais são as conseqüências da es­trutura negativa do sistema: danos para si mesmo e vanta­gens para o inimigo. Terrível condenação. A mentira do mal não pode, logicamente, terminar senão por enganar a si mesma, dissolvendo-se em favor da vitória do bem. O pró­prio método do mal, de travestir-se em mil e uma ilusões leva-o a transformar em positivo seu próprio impulso nega­tivo. Mas, embora querendo mentir aos outros, o mal, se quiser continuar sincero para consigo mesmo, não pode ser senão autodestruidor. Como nenhuma afirmação pode exis­tir em campo negativo, como nesse campo nenhum desen­volvimento pode verificar-se senão em sentido destrutivo, en­tão o mal não pode, em última análise, afirmar-se e desen­volver-se, com o caráter de força, senão contra si mesmo e em favor de seu contrário, isto é, em campo positivo e a fa­vor do bem. Eis que o princípio anticriador, o anti-Deus, por si mesmo se destrói, se trai e se torna servo de Deus, princípio-criador. O mal não funciona apenas como obstá­culo que serve para adestramento no campo das provas, como catalisador nas reações, desse modo ajudando a evolu­ção, mas é também a principal fonte dessa dor que é exatamente causa de reequilíbrio, instrumento de redenção para o mal e de evolução a caminho do bem, isto é, a devoradora força do mal e a força construtiva do bem. Então, o escra­vo torna-se útil colaborador; o que parecia elemento destru­tivo é, na realidade, instrumento que serve para construir, é condição de progresso vertical e de realização do bem; é ami­go, ao invés de inimigo. Assim se explica a necessidade des­se agente determinador de provas, a utilidade das perseguições, a significação do atentado destrutivo por parte do in­voluído. Assim se explica como o progresso se nutre dessas resistências, ao invés de permanecer bloqueado por elas, pois se transformam, enfim, em impulsos favoráveis. Assim se compreende porque o Evangelho nos aconselha a que não façamos frente ao mal. Em universo perfeito, onde tudo possui significação própria, se o mal existe deve ter objetivo, rendimento certo, exercer função. Nos equilíbrios da Lei até o mal se torna útil. Já vimos que construção orgânica é a Criação. Qualquer coisa posta fora de lugar, ou sem razão de ser, ou sem função, constitui enorme absurdo. Quem não compreende pode clamar contra os erros e os defeitos; quem o compreende vê, por isso, como tudo está em seu lugar certo, admira a perfeição com que todas as coisas, o mal e o bem, operam em harmonia com a Lei, a favor do bem.

O bem possuí, pois, grande aliado, o mal, cujas forças trabalham contra si mesmas e a favor do bem. De modo que, em resumo, os impulsos do mal se adicionam aos do bem e, então, sob as aparências de desordem e rebelião, tudo é ordem e obediência a Deus. Quando penetramos além da superfície das coisas e observamos mais profundamente, sur­ge uma realidade diferente e maravilhosamente perfeita. Ficamos atônitos, então, em face da inesperada sabedoria da Lei. As resistências se transformam em impulsos construti­vos, as dificuldades estimulam e os ignaros impulsos do mal gentilmente se prestam, à custa do próprio dano, a traba­lhar pela vitória do princípio contrário. O mal é enquadra do a serviço do bem. Satanás goza de liberdade até o ponto que Deus quer e está prostrado e amarrado a Seus pés. Escolha o homem a posição destrutiva ou construtiva, funções da resistência ou do impulso na ascensão, tudo se resolve em aplainar a estrada da evolução e se resume em obediên­cia à Lei. O estridor infernal da desordem é indisciplinado apenas no seu campo e interiormente; mas para além dos limites estabelecidos, tudo se enquadra no concerto das har­monias divinas. Assim, nas mãos de Deus, o próprio Sata­nás destrutivo se transforma em construtor, embora sem sabê-lo e querê-lo; de tanto negar e mentir, acaba por fazer o contrário daquilo que pensa estar fazendo; de tanto en­ganar, acaba sendo enganado. Judas desejava ganhar e ma­tou-se; pensava trair e torna-se instrumento da Paixão de Cristo, colaborador da redenção, negativo, mas útil. Todos os ataques do mal, também nesse caso, permanecem subor­dinados ao bem, tudo coopera na vitória de Cristo. Isso nos mostra podermos ser derrotados mil vezes; o que decide a vitória final é estarmos do lado da verdade. Nisso se resu­me a história do mundo. Em última análise, Satanás não existe senão para involuntária e inconsciente missão bené­fica, fora da qual lhe resta apenas autodestruir-se. Cumpri­da a missão, aniquila-se. A essência da destruição do mal conserva-se latente dentro dele e é imposta inexoravelmen­te pela natureza mesma do organismo de forças de que ele se constituí. O mal carrega consigo o germe da própria des­truição, posto nele para que tal aconteça. Representa o im­pulso central do sistema, que o levara fatalmente à pulveri­zação final. No universo, tal como está construído, é absur­do que o mal finalmente vença e o bem seja derrotado. Vemos, ao invés, que tudo se move em direção evolutiva, isto é, rumo à perfeição. A única razão que mantém vivo o mal é exatamente sua função benéfica. Assim, ambos se enca­minham para o mesmo objetivo; por força da sabedoria divina os dois inimigos colaboram para obtenção do objetivo comum; ambos criam, o primeiro destruindo e o segundo, construindo. Satanás acaba sendo (suprema ironia) escravo do bem e operário de Deus. Portanto, qualquer pessoa de­molidora ou construtora, involuída ou evoluída, tem de, quei­ra ou não, dar-lhe contribuição construtiva.

Através dessas considerações apareceu-nos o verdadeiro rosto do mal. Conseguimos avaliação mais aproximada e compreensão mais harmônica do fenômeno, de modo que o mal, como muitos pensam, não constitui mistério, censura à bondade de Deus ou inexplicável imperfeição de Sua perfeição. O fenômeno se torna mais compreensível se o con­cebermos como sistema de forças em ação. Há de chegar o dia em que essas forças poderão ser percebidas e calculadas por tipo humano a isso sensível por motivo de ser mais evo­luído. Então, ao invés de demonstração racional, ele pode­rá provar experimentalmente tudo quanto havemos afirma­do. A quem vê as coisas só pelo lado de fora, tudo isso pode parecer absurdo; mas a verdade é que o mal nasce para o bem Se o mal nos faz mal é porque lhe pertencemos; faz-nos mal na medida e nos pontos em que lhe pertencemos, quer dizer, na proporção em que já se encontra dentro de nós mesmos ou, melhor, é desordem nossa, tal como livre­mente a desejamos e incorporamos em nós mesmos. Nossa qualidade e posição é que nos torna vulneráveis à sua capa­cidade destrutiva. Retornamos por outros caminhos aos princípios, já considerados, da lei da honestidade e do mere­cimento. Se formos culpados, o mal desempenhara em re­lação a nós o papel de justiceiro; mas se formos inocentes, nos transformará em mártires e promoverá nossa apoteose. Só para os malvados o mal é apenas mal. Para os bons cons­titui bem. O mal poderá semear a ruína dentro de nós ape­nas se lhe houvermos invadido o campo e descido em seu terreno. Doutro modo, nada poderá contra nós. Noutras palavras: o mal retifica posições, é mestre que só intervém pa­ra corrigir onde há erro. Lá onde a ordem já se estabeleceu, o mal fica sem ação porque não encontra ponto de apoio algum. Se em nós não existe falha alguma, o mal não sabe por onde entrar. Portanto, apenas proporcionalmente à nos­sa imperfeição é que estamos sujeitos ao mal e sofremos; se a imperfeição abre as portas para a dor e permite que o mal ataque, acaba sendo corrigida e saneada automatica­mente pela dor e pelo mal; e isso de tal modo que, façam o que fizerem, sua ação tende sempre a preencher automati­camente a falha através da qual entraram e a transformar-se em bem. O universo, portanto, contém em si mesmo o princípio de ressaneamento de todo erro.

Esses conceitos podem, enfim, mostrar-nos racionalmente o significado lógico desse tão raramente aplicado mé­todo evangélico de não-reação: "Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu vos digo, porém, que não resistais ao mal (ao maligno); mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra", (Mateus, 5:38-39). Assim falou Cristo no Sermão da Montanha. Não se trata apenas de ato de amor, mas de método de vida logicamente colocado no sistema universal, em que a defesa do justo é fato automático. Para quem não conhece a lei isso é absur­do. Não obstante, nossa miopia nos torna vítima de ilusão, quando nos faz acreditar que reação significa defesa. Ago­ra estamos em condições de compreender que reação não quer dizer isso; não fecha, mas abre as portas ao mal, que acaba sendo bloqueado por outros meios; no seu próprio campo de forças introduz o mal, quando recebe e devolve a violência. O sistema da Lei já é de si mesmo justo; não precisa de intervenções humanas para tornar-se tal. Só a Deus compete julgar e distribuir justiça. O justo é auto­maticamente protegido pela Lei. Quando somos injustos e merecemos ser prejudicados, a defesa que promovermos de nada nos valerá sem a de Deus. O evoluído, que compre­endeu a Lei, segue o método de não-reação preconizado por Cristo. O involuído segue o do mundo animal: olho por olho e dente por dente. O primeiro, confiando-se à justiça de Deus, defende-se com o merecimento. O segundo tem a seu favor apenas a força. Por isso, é mais débil e inseguro. O método do evoluído, contudo, lhe parece forma de debilidade e vileza, quando o evoluído é, isso sim, indivíduo consciente. Mas na atuação dos dois métodos há esta grande diferença o primeiro importa na necessidade de sermos honestos.

XI

A ECONOMIA DO EVOLUÍDO

Continuemos a subir, devagar, do mundo do involuído para o do evoluído. O próprio Sermão da Montanha, há pou­co citado, continua a mostrar ao evoluído o caminho, seu método, até mesmo no campo econômico: e, ao que te houver tirado a capa, nem a túnica recuses; e dá a qualquer que te pedir; e, ao que tomar o que é teu, não lho tornes a pedir". (Lucas, 6:29-30). Economia vã e aparentemente de­sastrosa. O mundo moderno toma o cuidado de não levar a sério semelhantes preceitos, profundamente convencido do sublime absurdo que eles constituem. E, no entanto, como, para quem compreendeu a Lei, são lógicos e naturais! Trata-se do princípio mesmo de não-reação aplicado não mais à de­fesa da própria pessoa, mas a de seus haveres. Aí reencon­traremos, por isso, igual método de defesa: a justiça con­fiada a Deus, a honestidade, o merecimento. E a conclusão é a mesma, tanto na defesa dos bens de fortuna como na da pessoa: o justo é automaticamente protegido pela Lei. Se não somos justos e merecemos ser prejudicados, de nada nos vale, sem a de Deus, a defesa que promovemos. Voltamos desse modo ao conceito já explicado isto é o de que a pro­priedade, só se for honesta, resiste aos ataques. E também nesse caso observamos como a honestidade, à semelhança da não-reação, é considerada pelo mundo como forma de debilidade ou imbecilidade, quando a honestidade, isso sim, é ser consciente. Tal o método do evoluído no campo econô­mico. O estudo dos princípios e das forças da Lei permite-nos, ao contrário do mundo, levar muito a sério esse méto­do, que aliás é o mesmo indicado por Cristo. Os raciocínios por nós desenvolvidos provam cada vez mais que esse méto­do não é o dos débeis e imbecis, mas o dos sábios. Por isso quisemos ver para além das aparências enganosas em que, todavia, tanta gente acredita.

Não é agora que desejamos insistir no estudo do sistema de forças que rege o fenômeno. Devemos, ao invés, observá­-lo sob outro aspecto, correspondente a esta espontânea per­gunta de ordem prática: como é que pode viver neste mun­do quem se entregue a regime econômico tão desastroso? Em­bora teoricamente se justifique, se é essa a economia do evo­luído, como pode ele resolver o problema, tão angustioso pa­ra todos nós, das necessidades materiais? Se é mesmo ver­dade que levamos a sério o Evangelho e Cristo não pode ser considerado louco, devemos então dar resposta completa a essas perguntas. Havemo-nos proposto a mesma pergunta nas páginas anteriores, mas em termos mais gerais, isto é: em que consiste o código de vida do evoluído? E responde­mos que sua regra está na norma evangélica: "Mas buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas". Observemos, agora, caso mais particular desse código de vida, isto é, em que consiste a econo­mia do evoluído ou, melhor, seu modo de agir em face aos bens da terra. Essa conduta não passa de aplicação da nor­ma acima citada. Assim, o evoluído ocupa-se primeiro das coisas espirituais; o necessário para prover-lhe as necessida­des materiais ele o recebe por acréscimo. Eis o problema que nos propomos: como procede ele para receber de graça o necessário, como se se tratasse de benefício concedido pa­ra mais da mercê devida? Do ponto de vista humano sua posição é bem precária, dir-se-ia mesmo desesperada. Tra­ta-se de indivíduo que, segundo o Sermão da Montanha, dá a quem pede e, se acaso é roubado, não só se abstém de pro­testar como até mesmo não impede que o roubem ainda mais. Pois bem. O indivíduo que, ao invés de cuidar de si, cuida das remotas coisas do espírito e não se preocupa com os problemas imediatos e angustiosos da vida real, implici­tamente os resolve, saibamos lá por que meios ignorados dos demais. E não é só; parece destinado a cair e, não só não cai, como recebe por acréscimo, espontaneamente, coisas que os outros, muitas vezes inutilmente, gastam a vida para con­seguir. Como poderia o evoluído fugir à dura lei, conhecida tão bem por todos nós, segundo a qual nada se obtém sem esforço?

Essa posição privilegiada é apenas momento da libertação a que a evolução nos conduzirá. Eis uma das principais vantagens da ascensão. O evoluído superou nossas lutas e fadigas; as suas se destinam à execução de tarefas mais no­bres. Por sua mesma natureza, ele não trabalha mais em nosso plano material, mas trabalha no plano espiritual, mais elevado. Os problemas materiais estão para ele, isto é, no sistema de forças de sua personalidade e seu destino, automática e definitivamente resolvidos, embora não o estejam para nós. O centro de seu ser coloca-se mais no alto; sua experiência, diferente e dirigida a outras conquistas, está completa em nosso plano material, atingiu seu objetivo; as qualidades, em cuja conquista nos cansamos tanto, foram conseguidas por ele; no plano, em que para nós ainda há trabalho em prol de reequilíbrio e reordenamento, para ele há equilíbrio e ordem agindo espontaneamente. De acordo com o principio do merecimento, a Lei dá gratuitamente ao evoluído o que ele merece e obriga o involuído a conquistar com muito esforço o que ele ainda não merece. Tudo isso é lógico justo e corresponde aos equilíbrios da Lei. A inteli­gência e a atividade primam entre as qualidades que o evo­luído procura conquistar à custa dos esforços já despendidos (merecimento) e chega por isso a possuir na forma espon­tânea de necessidade e instinto; é naturalmente dinâmico, irresistivelmente inteligente e laborioso. Portanto, a lumi­nosidade e o dinamismo próprios do espírito se projetam, como conseqüência, até mesmo no plano da vida material. Sua inteligência lhe permite dar ainda maior rendimento à sua necessidade espontânea de atividade e torná-la, por isso, ainda mais produtiva, em qualquer direção, seja moral ou até mesmo, implicitamente, econômica. Já dissemos que quem pode o mais pode o menos: o espírito, embora o invo­luído não veja nem compreenda tal coisa, é dominador de tudo, para além da matéria. O trabalho, tão ingrato e can­sativo para o involuído, que a ele se decide com relutância, na esperança de compensação (economia moderna do do ut des[8]) e com os olhos postos em aproveitá-lo o mais possível, até o ponto de transformá-lo em mentira apenas para jus­tificar o furto (sua forma ideal de aquisição), o trabalho, dizíamos, para o evoluído é, no entanto, necessidade vital como a exuberância física da juventude, é instinto que, diri­gido pela inteligência, dá resultados dobrados.

Não basta, porém. Para o evoluído o trabalho não sig­nifica condenação; muito pelo contrário, caracteriza-se como função que se entrosa no grande concerto das atividades de todos os seres do universo, como missão valorizadora da vi­da. E valoriza porque, até mesmo nos casos mais dolorosos, transforma-a em precioso dom, em campo de luta para aquisição de novas qualidades que, adquiridas, enriquecerão pa­ra sempre a própria personalidade, constituindo-lhe o poder e a sabedoria . Assim iluminado por significação tão pro­funda e valorizado por finalidades tão elevadas, ligado não a rendimento momentâneo, mas a resultados indestrutíveis, o trabalho não é suportado nem como desgraça de deserda­dos, segundo nos ensinou o materialismo moderno, nem com inveja dos que dele estão isentos. Ao contrário; é abraçado com interesse e amor, como dom de Deus que assim nos per­mite fazer experiências, aprender e progredir não é consi­derado posição de inferioridade, mas grande honra, a de tornar-nos colaboradores no funcionamento orgânico do uni­verso, isto é, operários de Deus. É natural que a concepção do evoluído renove completamente, em cada caso, e tam­bém neste, o sentido da vida. Assim o trabalho se nobilita, é animado por alegre impulso, enriquece-se com resultados e finalidades inesperados, e de posição de revolta e escravi­dão se transforma em posição de domínio e amor. Trata-se de trabalho bem diferente do trabalho arrogante, rixento, que hoje se faz e que luta contra o capital apenas por inve­ja. Quanto a psicologia moderna se afasta da verdadeira concepção do trabalho! Ora, é natural que quem conseguiu alcançar essa concepção, e segue o método de vida conseqüente, veja também como os frutos desse método lhe afluem às mãos, com a mesma espontaneidade do trabalho realiza­do. E isso tudo por acréscimo, porque o objetivo e o prêmio desse trabalho são bem outros, de valor eterno, imensamen­te mais importantes. E tudo isso se obtém abençoando a vi­da, e não amaldiçoando-a! Assim se explica de que maneira o homem, antes de mais nada preocupado com as coisas es­pirituais longínquas, resolva implicitamente até mesmo os problemas imediatos e angustiosos da vida real, e de que modo esse homem não falha, embora não se interesse por eles. Recebe como conseqüência secundária, e não mais co­mo resultado único e como prêmio, tudo quanto para os ou­tros constitui o único objetivo que, quando não atingido, é como se tudo tivesse fracassado. Assim é que se pode apli­car o Sermão da Montanha, dando a quem pede, sem re­clamar o que nos é tirado, entregando a túnica a quem nos tira o manto. O universo é exuberante de poder e de rique­za! Nossa involução é que nos empobrece, porque, por causa dela e proporcionalmente a ela, nos exclui do grande ban­quete! Quanto mais progredimos tanto mais participamos dele e, por isso, enriquecemos. Nossa involução constitui verdadeira prisão. Progredindo, o evoluído se libertou e, por lei da natureza, é muito mais rico.

A honestidade é uma das formas com que a inteligência dá maior rendimento ao trabalho do evoluído. A honestidade, aliás, não passa de conseqüência da inteligência. Somen­te o sistema da justiça se mostra equilibrado e produz re­sultados consistentes. Esse sistema consegue economizar os naturalíssimos atritos da luta, que absorvem tão grande par­te da atividade humana, sobrecarregando-a de fadiga inútil. Desse modo poupam-se as numerosas e naturais desilusões de todos os sistemas desequilibrados. Quanta fadiga inútil se poupa e como o próprio trabalho rende mais! Quanto as atividades interiormente pacificas e ordenadas não produzem mais que as litigiosas e desordenadas! O evoluído, posto, como poderia parecer, na posição de maior desvantagem por­que até mesmo no campo econômico aceitou o princípio de não-reação, acaba por não possuir inimigos e desse modo fica aliviado do trabalho do ataque e da defesa que tanto acabru­nha o mundo. Além disso, é natural que o evoluído, tendo conquistado a sabedoria, evite as falhas a que a ignorância leva e não trabalhe para a conquista de resultados efêmeros, mas apenas das posições que, por serem justas, isto é, equilibradas, são as únicas verdadeiramente resistentes e sedi­mentadas. Tudo isso mostra a grande influência do espírito até mesmo na vida prática; mostra não ser o fator moral, no cam­po da economia; precisamente o elemento insignificante que parece ser; mostra, finalmente, de que maneira muito dos defeitos e insucessos de nossa economia são devidos exata­mente ao fato de desprezarmos esse fator imponderável.

Mas tudo isso não esgota o assunto. O dinamismo es­pontâneo ou o instinto de operosidade e o maior rendimen­to, forçados pela inteligência e a honestidade, não bas­tam para assegurar, em cada caso, estarmos providos quan­to às necessidades materiais. Quem, para servir o espírito, é constrangido a menosprezar as coisas terrenas, sente não apenas a necessidade de consegui-las mais facilmente, com menor fadiga e por acréscimo, mas também a de sempre consegui-las com absoluta segurança. No cap. III deste li­vro classificamos os tipos humanos, desde o involuído até o evoluído, em selvagem, administrador, espiritual, de acordo com o método de aquisição por eles seguido: furto, trabalho, justiça. Se o mundo fosse de evoluídos, já se teria alcançado a justiça social e, em conseqüência, a garantia de provi­sões materiais. A solução, que agora devemos propor-nos, não deve ser essa de realização que depende do futuro. O caso agora é bem diferente. O evoluído constitui exceção, o homem evangélico vive, desarmado, em meio a indivíduos armados até os dentes, e deve desinteressar-se da própria pessoa, embora, em meio da mais feroz avidez. Então, que forças vitais o defendem e impedem a destruição de seu pro­duto mais perfeito? Respondemos: a Divina Providência. Trata-se, na verdade, de imponderável que, por isso, escapa à sensibilidade grosseira do involuído. Por esse motivo é muito raro o mundo notá-la, mesmo porque se trata de for­ça real, inteligente, que funciona segundo lei própria, de fe­nômeno sempre pronto a verificar-se, desde que se apresen­tem reunidos os elementos determinantes. E também isso é lógico.

Observemos, então, o funcionamento desse estranho fe­nômeno que resolve o problema aparentemente insolúvel, dando ao homem desarmado a palma da vitória, dando ao homem, na aparência mais falto de segurança, aquela segu­rança de que todas as coisas humanas carecem. Tudo isso pode parecer excepcional e milagroso; no entanto, para a Lei é lógico e espontâneo. Constitui, sem dúvida, total sub­versão dos métodos humanos em voga, inconcebível para a psicologia dominante. Mas essa psicologia está encerrada num círculo de ilusões, que exatamente a sabedoria do evo­luído tem a incumbência de desfazer e a evolução, de trans­formar. Este argumento já foi aflorado muito de leve em A Grande Síntese, cap. LXXXVII: "A Divina Providên­cia". Mais tarde o desenvolvi no cap. XIII, sob o mesmo título, de História de um Homem. Para lembrá-lo ao leitor, vamos resumi-lo agora.

O fenômeno, sem dúvida alguma, existe, é susceptível de experimentação e influi até mesmo no campo dos efeitos utilitários, se o mecanismo das forças resultantes é posto em ação no momento exato. Torna-se necessário, pois, an­tes de mais nada, compreender a lei do fenômeno e expor as condições necessárias para que ele se verifique. É lógico que tal não pode suceder com o método humano desordena­do e rebelde ou, seja, se não se verificarem os requisitos in­dispensáveis. O universo é organismo de forças que obede­cem apenas a mãos habilidosas e sábias, e, cobrindo-se de trevas, se recusam a obedecer a mãos inábeis e rebeldes. Ne­cessário se torna, pois, haver compreendido a Lei e ter-se conformado com sua vontade; quer dizer, é preciso haver neste caso compreendido a lei do fenômeno para estar segu­ro de que, se for aplicada, fatalmente se verifica.

Quais são essas condições? Ei-las:

1) Merecer a ajuda;

2) Haver, antes de mais nada, esgotado as possibilida­des das suas próprias forças;

3) Estar, de acordo com suas condições, em estado de necessidade absoluta;

4) Pedir o necessário e nada mais;

5) Pedir humildemente, com submissão e fé.

Quando essas condições se realizam, a Divina Providên­cia está em condições de funcionar a favor de todos. Do contrário, o fenômeno não pode verificar-se. Desse modo, não se pode falar em providência com relação aos malva­dos, preguiçosos, ricos, cobiçosos, incrédulos, soberbos Ma­nifesta-se ela e trabalha em favor dos bons, trabalhadores, necessitados, morigerados, crentes humildes e de boa fé. Esta é, pois, a primeira condição: merecer. Em alguns mo­mentos da vida é necessário sermos deixados sozinhos dian­te do obstáculo, para que aprendamos a superar as dificul­dades com o emprego apenas de nossos meios. Quando não merecemos ajuda ou ela nos seria prejudicial, a providência que nos furtasse à prova necessária a nosso próprio bem não seria ajuda, mas apenas traição. Nesse caso a ajuda, que não falha, consiste em dosar a prova e diluir o esforço ne­cessário, na proporção de nossas possibilidades. Na prática, o que se pretende é transformar a Providência em instru­mento de nossas comodidades e desejos, ajuda desnecessária que nos poupasse à fadiga de progredir.

Vamos ao segundo ponto. Quando quisermos pôr a Pro­vidência a serviço de nossa preguiça, é justo que a Lei nesse caso se recuse a atender-nos ao apelo. Deus, sem dúvida al­guma pai amoroso, não é, porém, nosso escravo. Sua Provi­dência jamais nos ajudará, se antes não houvermos feito tudo quanto estava em nossas forças para aprendermos a lição. A Lei jamais sacrificará nossa felicidade final em fa­vor da efêmera vantagem do momento.

A necessidade absoluta constitui a terceira condição. Não se pode avaliá-la de modo absoluto, igual para todos, porque depende do caso, do momento, da pessoa, porque as necessidades individuais são diferentes e relativas, exata­mente como as fontes de que dispomos para satisfazê-las. Se, porém, a avaliação e a natureza da ajuda são relativas, é certo que a Providência não nos provê do supérfluo, mas do necessário, e isso para fazer-nos viver e não para cairmos na pândega. A lei do mínimo esforço, a parcimônia, a pro­porção entre o esforço e o rendimento, tudo participa de sá­bia economia da natureza, toda feita de equilíbrio e justiça. E ela, nem avarenta nem pródiga, mas apenas parcimonio­sa, concede criteriosa e moderadamente quanto seja neces­sário para proteção e garantia da vida, da continuação necessária à evolução, que é o seu objetivo. Se a Providência prodigalizasse o supérfluo, ao invés de encorajar a vida, le­vá-la-ia ao ócio, que conduz ao aniquilamento.

É preciso, pois, pedir com moderação e esperar apenas o que for justo. Nisso consiste a quarta condição. Pedir o ne­cessário para viver com simplicidade, a fim de que o instru­mento do corpo possa fazer o trabalho pedido pelo espírito e indispensável para as finalidades da vida. Se, subverten­do a Lei, as colocarmos na matéria e nos prazeres baixos, é natural que a Lei se afaste de nós e não nos ajude. Para obtermos a ajuda, torna-se necessário não pretendermos mais do que temos direito de pedir e havermos, antes de mais nada, aprendido a regra da temperança. Não nos esqueçamos de que a Providência não passa de manifestação da justiça e da bondade da Lei e de que nesse fenômeno tem plena vi­gência o princípio da justiça e da bondade e não o da força, que nesse caso é inútil, nada consegue senão sufocar o fe­nômeno.

É preciso, finalmente, pedir com submissão e fé. Esta­mos tocando no quinto ponto. Devemos adquirir consciên­cia da ordem divina e, ao invés de procurar torcê-la confor­me nossas conveniências do momento, devemos procurar pormo-nos de acordo com ela. Em lugar de pretender mos­trar a Deus o de que necessitamos e como podemos ser pro­vidos, devemos colocar-nos, face às Suas diretrizes, na posição de dependentes, de cegos ignorantes que esperam orien­tação, de filhos obedientes e quem mais pode e mais ama. Devemos, pois, também crer e confiar, isto é, ter através da prece a sensação dessa realidade estupenda ou, seja, a de que não estamos abandonados e sós, mas existe nos céus o Pai, velando por nós e provendo-nos do necessário.

Podemos perguntar-nos, agora: Quando é que, na prá­tica, se perfazem essas cinco condições? E por que maravi­lharmo-nos de que o fenômeno não se verifique? Natural é que todo fenômeno possua regras especiais e absurda é a pre­tensão de jogar sem conhecer as regras do jogo. Explica-se desse modo como em muitos casos a Providência falha e não se manifesta. Não obstante, funcionava muito bem nas mãos dos santos, que nela confiavam cegamente. Muitas vezes queremos colocar-nos no lugar da Lei. Então, se não logra­mos êxito, retorcemos o erro, que é nosso apenas, e atri­buímo-lo ao sistema, pondo em Deus a culpa da injustiça. Primeiro, fechamos as portas para a Providência, impedindo-lhe a ação, e em seguida lhe negamos a existência. Mas on­de existe maior perfeição e bondade do que no método que nos garante o necessário, garante porque nos é destinado e nega apenas o que nos pode ser prejudicial? Somos aca­lentados por ordem justa que nos quer bem e protege a vi­da. Dessa ordem benéfica e protetora participa a Divina Providência. Trata-se de forças inteligentes e amorosas, prontas a socorrer-nos, sempre à nossa disposição; basta ape­nas que saibamos manejar-lhe o mecanismo. É lógico que esse antecedente se torna necessário em sistema orgânico. Trata-se de forças exatas, enquadradas, automáticas como as leis físicas, onipresentes, incorporadas nas leis da vida e, por isso, sempre prontas, necessária e automaticamente, a funcionar, tão logo se verifiquem as condições de seu fun­cionamento. Propiciar essas condições é espontânea ação nossa, independente da conduta dos nossos semelhantes, das condições sociais dos tempos, dos sistemas de justiça distri­butiva em voga. A Lei de Deus não esperou, para proteger a vida, o advento da justiça social nem as modernas formas de previdência individual e coletiva, mas, apesar disso tudo, deu ao homem liberdade de escolher a forma de garantir-se contra a necessidade, forma que é independente de toda au­toridade humana, é justa e absolutamente segura.

Poder-se-á objetar que muitas e difíceis condições devem concorrer para tão magro resultado. Respondemos: a Divi­na Providência não é seguro compulsório; qualquer pessoa pode recusá-la sempre. Mas, então, é necessário colocar-se no plano da incerteza, para sonhar mil e uma coisas, arris­car-se a nada conseguir e a sofrer as desilusões normais da vida Não vivemos para gozar, mas para lutar e progredir. Os desequilíbrios custam caro. Mas, dir-se-á, queremos rique­za. Pois bem. Torna-se necessário, então, sentir o terror de vir a perdê-la, que é o tormento dos ricos, e sofrer as res­pectivas ânsias e preocupações. Isso faz parte do sistema. É natural que, quanto mais se sobe, os equilíbrios se tornem mais instáveis e as posições menos seguras, isto é, que a se­gurança seja inversamente proporcional à riqueza. Mas o involuído sente necessidade de experiências e por isso tenta a sorte até mesmo no campo econômico; não precisa, pois, de segurança, mas de miragens que o induzam a lutar e a sofrer nesse campo. No entanto, a Divina Providência se fun­ciona como método quase exclusivo do evoluído, método com que a Lei provê apenas o necessário, e com absolu­ta segurança, ao homem espiritual que não pode mais preo­cupar-se dos problemas materiais, já esgotados e superados por ele.

Eis a economia do evoluído, o modo com que resolve o problema das necessidades materiais, eis como lhe é possível aplicar o método evangélico de não-reação e aquela econo­mia em pura perda, aparentemente desastrosa. Eis como aqueles que se ocupam das coisas espirituais podem re­ceber tudo o mais por acréscimo. Estamos naturalmente num mundo diferente do mundo humano, em face doutra psicologia, doutros métodos e princípios. Há outra objeção, porem. Do ponto de vista humano, o evoluído, que se preo­cupa com as coisas espirituais, parece indivíduo inútil, im­produtivo, parasita que vive à custa dos outros, que traba­lham para ele. Onde está a justiça? A esmola é injusta ape­nas quando extorquida por ociosos. Temos visto, porém, co­mo o dinamismo e a operosidade são as qualidades mais no­táveis do evoluído. Em geral, ele trabalha demais, pois soma as fadigas do espírito às necessárias para satisfação das ne­cessidades materiais, ao invés de substituir uma por outra. Logo, o próprio funcionamento da Divina Providência nos mostra como as necessidades do evoluído são limitadas e modestos os pedidos que faz. Que é que seus gestos signifi­cam, se os compararmos com os desperdícios imensos impos­tos pela justiça, pelas guerras, pela cobiça e pelo espírito de destruição do involuído? Finalmente, mesmo se o evoluído permanecesse ocioso, no que diz respeito à matéria, e se ocupasse apenas de trabalhos espirituais, não dá, só por is­so, contribuição à vida? Para progredir, a vida não requer apenas atividades economicamente lucrativas. O evoluído, desse modo, não é parasita; exerce função e cumpre missão; assim, muitas vezes dá muito mais do que recebe. Não seria preferível falar em desfrutamento do gênio e do santo por parte da sociedade? A Lei não pode praticar injustiça, uti­lizando para isso da Providência. Serve-se, então, dos domi­nadores da terra como de instrumentos seus e obriga-os a fornecer ao evoluído o mínimo indispensável, de que ele se vale apenas para cumprir sua função social, sem dúvida ne­cessária. Mas quando se exerce determinada função, adquire-se, perante a justiça divina, direito aos meios para poder con­tinuar a cumpri-la. Assim, todos são chamados a contribuir e a trabalhar para os objetivos da vida. Nos dias de hoje, o evoluído constitui exceção e não há de, por certo, pesar na economia social. Quando, porém, tornar-se maioria, então o advento da justiça social será fato consumado, o homem terá adquirido consciência da Lei, e nova concepção da or­dem dará a todo ser humano, naturalmente, a garantia do necessário.

XII

POBREZA E RIQUEZA

A economia do evoluído deriva diretamente da sua pró­pria psicologia. Assim como o Evangelho revoluciona o mundo, a forma mental do evoluído transforma a do invo­luído, porque se trata precisamente de passagem da incons­ciência para a consciência, da ignorância à sabedoria As duas formas mentais representam os dois extremos da fase humana de evolução, que lutam. Baseiam-se nelas duas es­calas de valores opostas. Acima de todos eles, o involuído co­loca os bens materiais e o evoluído, os espirituais. Segue-se daí que o primeiro não faz caso destes e o segundo, daque­les, ligando-lhes bem pouca importância. Um sacrifica tu­do à riqueza, até o próprio espírito; outro sacrifica tudo ao espírito, até mesmo a riqueza. Este adora a matéria e por causa dela prostitui o espírito; aquele adora o espírito e a ele submete a matéria. O evoluído, que conquistou o conhe­cimento, sacrifica o valor menor ao maior; o involuído, que ainda não adquiriu compreensão e vive de ilusões, sacrifi­ca o valor maior ao menor. Dessa psicologia se infere que o primeiro da- toda a importância aos valores morais, geralmente menoscabados, e muito pouca aos valores econômicos, em geral elevados às nuvens. A economia do evoluído, que referimos acima, é conseqüência também dessa psicologia, em razão da qual ele, espontaneamente, dá à riqueza valor relativo e subordinado, em lugar de valor principal; se deve administrá-la, administra-a porque é seu dever e não por apegar-se-lhe avidamente e, quando e se pode, livra-se delas, antepondo-lhes o estado de pobreza protegido apenas pelas forças da Divina Providência. É lógico que, no mesmo cam­po em que o involuído, diametralmente oposto, representa a máxima afirmação, o evoluído deva representar a negação máxima, e ao contrário. Por causa do natural antagonismo das duas posições, uma exclui a outra e tende a tudo ab­sorver. Ninguém pode servir a dois senhores ao mesmo tem­po. Há uma lei que diz: naturalmente, quem cuida das coi­sas espirituais não pode mais ocupar-se das coisas materiais, porque não as quer mais e até mesmo lhes tem repug­nância; e quem trata das coisas da matéria se absorve de tal modo nelas que fica surdo às do espírito. Daí se deduz que, como o homem do mundo tende a desinteressar-se das coisas do espírito, isto é, tende à amoralidade, o homem do espírito tende a desinteressar-se das coisas da matéria ou, seja, tende para a pobreza. Porque os dois extremos são in­versos e rivais, parece impossível, sem a correspondente pobreza espiritual, atingir-se à riqueza material e, sem a cor­respondente pobreza material, atingir-se à riqueza espiritual.

Trata-se de dois mundos diferentes, cujas leis já anali­samos, de dois métodos de vida, de dois sistemas, que uma vez escolhidos nos arrastam fatalmente, na lógica de sua es­trutura, até às suas últimas conseqüências O sistema em vigor da riqueza obtida pelo método da força tem como conseqüência imediata a incerteza dos resultados. De fato, no mundo econômico as crises são contínuas e, segundo parece, irremediáveis. A conclusão daquele sistema é absolutamente negativa, de modo a podermos dizer que a pobreza é, neste mundo, a única forma de riqueza segura. A instabili­dade e o risco participam do sistema e não podem ser eli­minados senão destruindo o próprio sistema. Outra conseqüência é a conexão entre a riqueza e o emprego da força. A instabilidade requer defesa contínua, isto é, luta, guerra. Mesmo sob este outro aspecto a conclusão do sistema é ne­gativa, quer dizer, não pode existir paz na riqueza, mas apenas na pobreza. Todo desenvolvimento econômico impor­ta aumento de bem-estar, em exuberância vital, que desem­boca nos expansionismos imperialistas; em outras palavras, toda aquisição de riqueza apenas serve para alimentar novas cobiças, para despertar a insaciabilidade humana. O siste­ma de forças termina sempre em guerra e destruição, que reequilibra o processo desequilibrado. Essa é a nêmese1 das conquistas terrenas: crescer para devorar-se. É a mesma nêmese que vimos no mal, de que elas se mancham: a auto-destruição. Ai de quem constrói sem equilíbrio e com injus­tiça. Cava diante de si mesmo o abismo em que se precipi­tará. Tal é a fase, cheia de erros e de dores, de quem na terra ainda deve aprender.

Se essa fase, porém, se torna necessária para os primitivos de hoje em dia, o evoluído não pode adotar esse siste­ma. Ele, que superou essa espécie de prova e, tendo-lhe as­similado os resultados, desfez a ilusão, não pode acreditar mais em riqueza que se pode perder, que é pretexto de lutas contínuas e, para terminar em traição, envilece e sacrifica só para si, roubando as melhores energias vitais ao mundo espiritual. Toda a atenção da alma do evoluído prende-se a coisas bem diferentes; sua luta e sua atividade criadora se desenvolvem em plano mais elevado, acima do campo das competições humanas. Não pode cansar-se em competição para ele já improfícua; não pode gastar-se mais para pro­teger riqueza que já não lhe interessa; seu instinto leva-o, pois, a abandoná-la. Não é só, porém. O evoluído é impelido a detestar essa forma de atividade humana por que se podem sacrificar, e se sacrificam, os mais altos valores espiri­tuais. Nasce-lhe, desse modo, não só o senso de indiferença, mas também o de repugnância pela causa de tantos males. Nas mãos do homem moderno o poder da riqueza logo se torna guerra e, por isso, destruição; se torna ódio e delito e se funde com as forças do mal. Então, o evoluído se rebe­la e, ao invés de participar na luta contra o homem para conquista da riqueza, faz guerra à riqueza a fim de conquis­tar mais altos valores humanos. Os bens da terra são, no entanto, dádivas de Deus. A riqueza é grande força, mas o homem conspurca-a e isso a inutiliza. O mau uso que mui­tas vezes dela se faz, o modo com que a empregam, os fins para que se dirige, o mal, o ódio e, portanto, as dores que se lhe ligam, tornam-na um dano que o evoluído deve evitar e não uma vantagem de que possa utilizar-se. Ele toca, por isso, o menos que pode nos bens da terra. Retira-se, pois, com repugnância dessa afirmação de ferocidade para con­quista da riqueza e refugia-se na pobreza. Isso não signifi­ca desprezo dos bens de Deus nem desconhecimento do va­lor dos meios materiais e do rendimento que poderiam dar, se fossem manipulados com maior sabedoria. É, isso sim, terror do involuído, da baixa psicologia com que ele dirige a própria atividade e contamina tudo aquilo em que põe as mãos. A riqueza pertence ao involuído, diz-lhe respeito, é sua. Isso basta para torná-la inaceitável. O homem a re­laciona com as forças mais baixas da vida e, assim, ela sa­tura-se de mal. Tanto basta para torná-la detestável. Trata-se de sensibilidade espiritual, isto é, depende do Deus que adoramos no degrau mais alto da própria escala de valores. Quem venera as coisas do espírito não pode suportar mais nada que por qualquer motivo as ofenda.

Por esses motivos o evoluído prefere a sua economia à do involuído, mais em voga. Levamos em consideração nes­te livro os dois casos extremos, entre os quais se coloca o caso intermediário do administrador e organizador honesto, que da riqueza usa e não abusa, e não a transforma em mal, mas em bem. Esse tipo, porém, ainda não é tão numeroso que possa ditar lei e tomar as rédeas da economia humana que, no conjunto, é aquela acima descrita. Essa é a revolta pacífica do evoluído, de acordo com o método evangélico da não-reação. Despreza quanto pode a riqueza, embora com­preenda e admire aqueles que, imbuídos do espírito de po­breza e de honestidade, a empregam para o bem e não a possuem para vantagem e desfrutamento egoísticos, mas para cumprimento de função social ou missão. O evoluído muitas vezes até mesmo se mistura com eles, mas toca na riqueza apenas por sentimento de dever, como peso que se carrega por amor de objetivos mais altos e com absoluto desprendi­mento e desinteresse. Essa atitude é tudo quanto precisa­mente o distingue dos demais. Enquanto estes, geralmente, procuram avidamente a riqueza como fim em si mesma, o evoluído não a busca e, se acontece possuí-la, a transforma em meio e a emprega em finalidades mais altas. A terra e seus bens não se lhe apresentam sob a forma positiva de atração, mas sob a forma negativa de repulsão; para si, o mundo não é mais lugar de conquista e de alegria, mas de dor e trabalho missionário. Tudo quanto não se refere ao espírito não lhe interessa, porque vive em função do espíri­to e não em função da matéria. E para o evoluído represen­ta vitória aquela mesma pobreza que causa medo ao involuí­do e se lhe apresenta como derrota. A seus olhos essa pobre­za assume significado afirmativo e criador, sensação triun­fal de alforria e poder, torna-se escola de dominação, cam­po de exercícios heróicos. O espírito nutre-se dessas anulações na matéria; isso é lógico quando se trata de processo de aniquilamento. Por isso podemos assim balizar a suces­são desses momentos: "empobrecer, sofrer, refletir; compre­ender, reconstruir, progredir". Assim os equilíbrios da Lei corrigem os excessos humanos na vitória da matéria, inver­tendo as posições com a derrota material, de que nasce a vi­tória no espírito. Este, na pobreza dos meios terrenos, enri­quece. O evoluído percebe esse fenômeno, adquire esse senso de enriquecimento e não liga mais à imagem da pobreza a sensação de derrota, mas de conquista, nem a de mal-estar, mas a de bem-estar. O Evangelho baseia-se na lógica dessas inversões, que parece desapiedada e terrível, mas que é, na verdade, simples e natural. Se, considerando-se o que o ho­mem tem sido até hoje, toda posse mais ou menos impõe a necessidade da guerra, torna-se evidente não poder possuir coisa alguma quem, de acordo com o Evangelho, proclama o amor ao próximo. Essa é a lógica do sistema, que de modo algum podemos negar. E o próprio Evangelho nos mos­tra, na pobreza, as conclusões derivadas dessas suas premis­sas. Entre Cristo e o mundo não há possibilidade de acor­dos. Os dois sistemas são opostos e reciprocamente incom­patíveis. Ou um ou outro. O espírito (o evoluído) está co­locado num extremo da vida humana; o mundo (involuído), no outro. O primeiro quer vencer o segundo. Recusa qual­quer coisa em comum, nada aceita em comum, quer e deve ser pobre. Mas essa pobreza não é miséria, mas rebelião dos ricos de espírito contra a miséria moral dos outros, pelo me­nos enquanto e até onde a riqueza não for guiada pela sabedoria. O verdadeiro amor evangélico não pode permane­cer egoisticamente rico enquanto houver miséria. Quem não compreendeu e escolheu essa pobreza não pode ser verda­deiro sacerdote do espírito.

Disso tudo se pode concluir também que o problema da riqueza não é apenas, como hoje se crê, distributivo, nem se o entendermos desse modo, deixa intactas todas as cobiças humanas, que são as verdadeiras raízes do dano; nem se re­solve no plano econômico, em que hoje se coloca, e sim no plano psicológico e moral. Não basta o advento da justiça social pela qual tanto lutamos em nossos dias. Torna-se ne­cessário construir também o homem. Á solução consiste em conquistar a consciência que nos leve a fazer bom uso da riqueza, transformando-a de mal, a que se reduziu, em bem. Enquanto não chegar esse dia, o evoluído poderá dizer: não aceito, não me interessa, recuso o bem que vocês envenena­ram. Repilo a forma de luta que vocês adotaram e nos degrada. Para o evoluído a pobreza franciscana, ao invés de utópica, representa dura conseqüência da conduta humana não é atitude negativa, mas atitude de vigilante espera; não é definitiva, mas transitória e será superada quando, como todas as fases, sua função estiver esgotada e a evolução torná-la desnecessária. Então, a riqueza, restituída à sua pureza, se tornará aceitável exatamente como aquilo que exatamente é, quer dizer, como dádiva de Deus.

Tudo isso pode causar espanto ao homem do nosso mun­do, que não percebe o valor das coisas do espírito com, a mesma intensidade com que a sente o evoluído. Para este último, porém, a vida assume significado bem diferente. Sen­te, sem sombra de dúvida, o perfume da pobreza a impreg­nar todas as coisas em que toca. Percebe a beleza moral des­sa pobreza, simples, honesta, laboriosa, confiante e tranqüila, não dessa pobreza colérica e envenenada do mau, mas dessa agradecida pobreza do justo. Em suas mãos ela espi­ritualiza-se e aureola-se de bondade e fé, que a transformam em instrumento de ascensão. Desse modo a pobreza quase se santifica e chama para junto de si a presença de Deus. Então, quem perdeu tudo percebe que, de fato, ganhou tu­do e o paraíso desce até si. E como quanto mais se dá mais se recebe, a pobreza torna-se, então, meio de enriquecimen­to; do mesmo modo, nas mãos do involuído a riqueza pode tornar-se meio de empobrecimento. E agora, aquela que pa­ra o mundo significa miséria, podo tornar-se beatitude, co­mo o era para São Francisco. Não nos podemos doutro mo­do explicar-lhe a psicologia. Poder-se-ia objetar que é cen­surável deixar de lado a administração da riqueza, que no entanto, como produtora de bens, tanto poderia frutificar. Não. Cada um em seu lugar A esse trabalho já se destinam os honestos administradores da terra (o homem do 2º tipo) e esse trabalho lhes toca. Têm a função de reordenar o am­biente terrestre e exatamente por isso é que são organizado­res de coisas humanas. O paraíso na terra constitui-lhes a meta e procuram laboriosamente prepará-lo. Mas o evoluí­do (o homem do 3º tipo) deve desempenhar função mais alta: dar a esse trabalho a orientação necessária. É precur­sor que intui, dá as grandes diretrizes do espírito e indica-lhe objetivos sobre-humanos. Os olhos dos primeiros são analíticos e míopes, aptos a verem as coisas próximas da terra; os dos últimos são sintéticos, enxergam longe e podem ver as longínquas coisas celestes O objetivo final dos primeiros está na terra e aqui o alcançarão, transforman­do-a de inferno em paraíso. O objetivo final dos últimos está co1ocado no céu e o conquistarão, afastando-se da ter­ra para caminhar em direção a humanidades mais evoluídas, a pessoas de sua raça.

Tudo isso pode causar estranheza ao homem de nosso mundo. Mas este último é o termo derradeiro, o caso má­ximo. Trata-se de homem que compreendeu e vê o funcionamento da economia da natureza, sabe que a vida é protegida e a Lei de Deus o segue passo a passo para salvá-lo; sabe que a defesa não é confiada a ele, mas àquela Lei todo-poderosa. Sabe que ela é boa e perfeita. Adquirida a consciência de es­tado de fato tão maravilhoso, de sua vida desaparece toda sensação de temor, que envenena as efêmeras vitórias huma­nas da força Ele sabe que será provido, pois a Divina Pro­vidência é apenas um momento de todo o sistema de economia do universo, em que toda vida, em razão do que ela custa, não pode ser desperdiçada, mas deve ser utilizada em favor de finalidade adequada. Sabe que lhe basta enquadrar-se no grande organismo, obedecer à Lei, desempenhar dentro dele a própria função, fazer sua a vontade de Deus, para viver em paz e em segurança. Quem o observa só por fora, julga-o po­bre e se engana, porque se o visse por dentro, haveria de com­preender que é imensamente rico; rico porque não possui mais os bens na periferia tempestuosa, sob forma caduca, mal protegidos pelas garantias humanas, mas os possui no centro, em substância, seguros, lá onde eles com justiça ema­nam do poder de Deus.

Quando chegamos a esse plano, divina beleza ilumina e aquece interiormente até o ato mais humilde da vida. Tu­do se torna, então, meio para comunicação com Deus; tudo quanto obtemos nos vem de Suas mãos, até a esmola mais insignificante assume as proporções de presente principes­co feito pelo Senhor, presente que nos fala d'Ele; qualquer ação nossa não se motiva em nossa vontade, e sim na de Deus O homem desse modo se sente circundado de luz e ouve o universo responder aos próprios anseios. Grandíssi­ma experiência. Tudo quanto lhe chega às mãos vem por meio de caminhos tão elevados que se transforma comple­tamente, assume o valor de presente divino. Então, até um pedacinho de pão assume o aspecto de prodígio, adquire o sabor das grandes coisas da eternidade e do espírito, se tor­na excelente porque o amor de Deus o tempera com a paz de espírito paradisíaca. Todas as coisas parecem desmate­rializar-se em significados profundos e o mundo transfor­mar-se em paraíso. Poder-se-á sorrir amargamente, levando tudo isso à conta de poesia e sonho. Não. Esse é o espírito do Evangelho; não poderemos compreender esse espírito, se não houvermos também entendido tudo isso. É milagrosa essa transformação a que ninguém poderá chegar sem que primeiro a si mesmo se transforme; e, no entanto, trata-se de felicidade que muitos seres superiores conseguiram.

Tudo isso, porém, não é apenas supremamente belo, vitória da estética moral, mas também afirmação de poder es­piritual. Atrás de toda aquisição, conseguida pelo sistema em voga, está a força ou a astúcia, muitas vezes a própria avidez e o dano do que foi vencido, e por isso a destruição e o ódio. Assim também, por trás de toda aquisição consegui­da por esse outro sistema está a honestidade, a bondade, a justiça e, por isso, paz e amor. Atrás de qualquer aquisição aparece a figura de Deus e palpita a Lei protetora que amo­rosamente aumenta as dádivas da vida. Das alturas celes­tes Deus desce até nós e torna-se nosso companheiro e aju­da-nos em nossas necessidades. Manifesta-se, então, presen­te e ativo em tudo quanto está dentro e fora de nós. Sua Lei nos fala e trabalha por nós. O infinito desce à nossa re­latividade, que desse modo adquire sentido de eternidade e de absoluto. Toda a nossa vida, como conseqüência, se ele­va e aumenta de poder. Torna-se ação humilde em que res­soa o pensamento de Deus e se cumpre a Sua vontade. Essa vida humilde, transformando-se de rebeldia em função, se harmoniza no funcionamento orgânico do universo; nele essa vida não é mais a ação isolada de rebelde, mas fato re­lacionado com dinamismo esgotado, com o qual se comuni­ca, dando e recebendo. Nossa vida pode atingir, então, as imensas fontes de energia e de sabedoria que outra coisa não querem senão entregar-se. Apenas nos tornemos dignos delas, Deus nos aumenta de súbito o poder, de cuja conquis­ta o verdadeiro caminho é o merecimento. Isso de acordo com a lei de justiça e como parte da economia da natureza que quer a todo valor renda, quando tiver sido verdadeiramen­te conquistado. Não há poder humano que iguale esse po­der. Eis a grande defesa do evoluído que se reduz à pobreza e abandona as armas de ataque e defesa: ter Deus consigo. Então se torna imenso. Nossa respiração reproduz a do uni­verso, com a qual se confunde. Que importa, pois, que por fora sejamos pobres, se por dentro somos ricos? Quanto mais pobres são esses que, ricos por fora, por dentro nada possuem! Quando somos vazios, permanecemos insatisfei­tos em meio a seja qual for a riqueza; quando, porém, esta­mos plenos da graça divina, em meio à miséria mais com­pleta nos sentimos abastados e satisfeitos. Eis a perfeita alegria franciscana, concedida apenas aos ricos de espírito.

Esse conceito e essa posição da vida finalmente nos apa­rece sob o aspecto utilitário. Desse modo, a vida adquire al­cance imenso, que toca as fronteiras da eternidade, torna-se interminável sucessão de conquistas, de felicidade crescen­te, de contínua ascensão em resposta ao chamamento divi­no. Mas, querendo limitar a vantagem às necessidades ma­teriais, eis a Divina Providência pronta a ajudar, desde que haja merecimento e necessidade. São essas as duas condi­ções fundamentais de seu funcionamento. O evoluído, que compreendeu a lei do fenômeno, não lhe deposita confiança inutilmente, porque tudo obtém com segurança. Sabe que, em face do merecimento e da necessidade, o homem faz jus ao auxílio, ato da justiça divina com que o justo pode e deve contar. Por isso, obtém por direito e por justiça e não a título de esmola imerecida. Por isso não é a pobreza, mas apenas a baixeza, que arranca do homem a dignidade de fi­lho do Pai. A generosidade da Providência, mesmo assumin­do a forma de esmola, sempre constitui comunhão da alma com Deus e, por meio dela, o benfeitor humano eleva-se ao papel honroso de instrumento de Deus.

Em nossos dias torna-se muito difícil fazer com que com­preendam o sentido sutil dessas vantagens imateriais. No en­tanto, até mesmo em relação aos efeitos da estabilidade e duração, da segurança e gozo pacífico, não é indiferente que as nossas aquisições sejam ou não dádiva de Deus e os nossos bens se elevem na força ou na injustiça, estejam sa­turados de ódio ou de amor. Se impregnarmos a riqueza com as forças do mal, estará como vimos relativamente ao mal, fatalmente condenada. A grande revolução consiste em substituir a revolta pela obediência à Lei, a desordem pela ordem, o desequilíbrio pelo equilíbrio, os choques estúpidos e dolorosos pela harmonia e pela lógica. Essas afirmações espirituais são comuns à vida prática, em que repercutem. A solução dos males que atormentam nosso mundo não va­mos, é lógico, encontrá-la no retorno aos esquemas do pas­sado, impotentes para solucioná-los, conforme bastantes ve­zes verificamos experimentalmente. Torna-se necessário ba­searmo-nos em princípios diferentes, que se encontram nos antípodas dos precedentes e fazê-los aterrar com métodos totalmente diferentes dos atuais. Nisso consiste a nova ci­vilização do espírito. Trata-se de adquirir consciência da Lei, para em seguida enquadrar-se nela e agir de acordo com ela. Trata-se de incorporar em nós mesmos o senso da Lei. Não basta explicá-la; é necessário que nos coloquemos em condições de senti-la. A razão é formação primária, ex­terior, de superfície e não satisfaz. A consciência é forma­ção mais profunda, interior, que não faz cálculos, mas intui e sente. Essa consciência adquire-se com a dor. De outro modo não se pode construir, em sistema de liberdade e ex­perimentação, isto é, de possibilidade de erro e, por isso, de dor. Não basta explicar e compreender racionalmente. A custa de muito trabalho é que conseguimos nossa própria maturação, porque nada se obtém senão através do sofri­mento. Só assim o homem pode passar da fase de involuído à de evoluído, da posição de inconsciente à de consciente. Então, compreende que a vida tem elevadíssimos objetivos e ele, exatamente pelo fato de que existe para atingi-los, tem direito à vida. Compreende, agora, aquilo que hoje, confiando em si mesmo, demonstra nem sequer imaginar, isto é, que, por força da própria estrutura teleológica de todo o sistema do universo, sua vida deve ser necessariamente pro­tegida.

XIII

PROBLEMAS ÚLTIMOS

Temos verificado quanto a economia do evoluído é mais lógica, segura e perfeita que a do involuído. A sabedoria do Evangelho confirma-nos plenamente a tese. Diz-nos ele: "Não acumuleis tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem e os ladrões os desenterram e roubam; acumulai, ao invés, tesouros no Céu, onde nem a ferrugem nem a tra­ça os consomem e os ladrões não os desenterram nem rou­bam. Porque onde está teu tesouro, ai está também teu coração". (Mateus, 6: 19-21). Os dois mundos, o material do involuído e o espiritual do evoluído, ficam nitidamente contrapostos; e a oposição se estabelece colocando-os exatamen­te no plano utilitário, que mostra a incerteza das coisas hu­manas e a segurança existente nas do espírito. E tudo isso para mostrar, com finalidades educativas, as conseqüências da escolha humana, por força das quais cada um de nós tem exatamente a mesma sorte do mundo a que se ligou, ao acumular o seu tesouro. Quem se baseia em coisas que ca­ducam cairá com elas; e apenas quem construiu em cima da rocha resistirá. O trabalho da evolução consiste na substi­tuição do pior pelo melhor, na conquista de valores mais seguros e preciosos. Assim, quando São Francisco combate a riqueza com a pobreza e em seu testamento aconselha, quando o pagamento do próprio trabalho for negado, a re­correr à mesa do Senhor, pedindo esmola de porta em por­ta, São Francisco não vê o lado negativo do esmolar, mas o lado positivo e criador, isto é, não vê o aspecto miséria, mas apenas o aspecto riqueza. Trata-se de abandonar valo­res menores para conseguir valores maiores, de mudança to­tal de princípios, de substituição de mundos. Trata-se, aí onde todos exigem compensação, de pedir como pagamento apenas um ato de bondade. Se de um lado se transforma riqueza em pobreza, também ao mesmo tempo o ódio se trans­forma em amor, a guerra em paz e, na procura dos bens, o método humano da força se transforma no método da bon­dade e da fraternidade, isto é, manifestações de avidez e fas­tio acabam em atos de humildade de quem recebe e bon­dade a quem dá. Assim, a esmola filha da generosida­de substitui a riqueza filha do furto. Como será possível, doutro modo, implantar o senso o amor fraterno no campo econômico, que é o das competições mais ferozes? De que maneira, senão essa, se há de corrigir todo o mal que se faz para conseguir riqueza e reabsorver o veneno com que o ho­mem a satura? De que modo contrabalançar tão desenfrea­do egoísmo senão com altruísmo igualmente desenfreado? Se esse caráter da esmola pode ser desfigurado e, ela mesma, reduzida a preguiça e a desfrutamento, isso nos ensina que neste mundo tudo se pode falsificar e transformar em abuso. O princípio franciscano quer, ao invés, introduzir o amor evangélico até mesmo nos atos da vida econômica, aparente­mente os mais afastados de nós, até mesmo aí onde parece menos aplicável. Trata-se de violência feita contra as leis econômicas, de refreamento do instinto de ataque em favor da conquista de riquezas espirituais. Por essas razões, a fa­tigante e ansiosa fórmula moderna: "tempo é dinheiro", princípio que prende e se escraviza à matéria, essa fórmula ó substituída pelo princípio que libera o espírito com a fór­mula: "Si vis perfectus esse, vade vende universa[9]".

Quando chega a esse ponto, o homem finalmente desco­bre o segredo da felicidade. E todo o segredo consiste em, como fazia São Francisco, substituir a imperfeita economia humana pela perfeita economia da natureza ou, seja, em sa­ber manejar as forças vitais de acordo com a vontade de Deus e não conforme a do homem, isto é, em não agir contra a Lei, mas em conformidade com ela. Isso significa trabalhar do lado do bem, afirmativo e construtivo, e não do lado do mal, negativo e destruidor. Viver em harmonia com Deus significa construir a si mesmo e à própria felicidade. Viver em desarmonia com Deus e revoltado contra Ele: significa autodestruir-se e criar a própria dor. De acordo com a Lei de dualidade, cujo estudo aprofundaremos no fim deste vo­lume, o universo é bipolar, cortado e reunido nessas duas partes opostas, inversas e complementares. As correntes de força que o constituem são de dois tipos de natureza con­trária. Trata-se de dois dinamismos opostos, que, se apa­rentemente se excluem, na verdade se somam, e, se parecem entrechocar-se, na realidade colaboram. O homem pode es­colher a corrente positiva, ascensional, que progride em di­reção ao bem e à alegria, ou a corrente negativa, descenden­te, que retrocede para o mal e a dor. Por mais que o ho­mem se projete para fora de si mesmo, de fato sempre tra­balha em proveito próprio. Se ele desencadear as forças do mal, embora crendo fazê-lo contra outros, desencadeá-las-á em sua própria direção, contra si mesmo Então, com as próprias mãos construirá triste destino para si, maculará o próprio ser, envenenará cada vez mais a própria vida; e, per­seguido por seu passado, lhe será cada vez mais difícil parar e finalmente se precipitará no abismo da autodestruição. Assim, o malvado, que preferiu regredir, por si mesmo se li­quida no tormento do inferno. Agora não estamos mais fa­lando, como fizemos, do involuído como primitivo ainda não desenvolvido, inferior apenas no que diz respeito à sua na­tural posição na escala evolutiva e não porque a maldade o tivesse degradado; estamos falando é de quem se tornou in­voluído porque espontaneamente regrediu e por isso é muito mais culpado; estamos falando do homem que não é mais besta, mas deseja continuar sendo besta. Quer dizer, tra­ta-se do caso, muito mais raro, do malvado típico. Este se separou e cada vez mais se afasta das fontes da vida, de Deus e, como não pode sobreviver sem Deus, definha e mor­re. Morte verdadeira, morte desesperada. Contudo, isso é lógico. Se o homem é livre o suficiente para construir o pró­prio destino, todavia não pode nem é livre ao ponto de tor­nar-se capaz de destruir a Lei, de tornar-se árbitro da von­tade de Deus. Se pode escolher, e até mesmo escolhe, o ca­minho do mal, isso é assunto particular seu e não pode impedir a atuação da Lei que ele não pode dominar. As conseqüências de seu modo de agir somente recairão sobre si mesmo, enquanto ele, no fundo, continuará sempre a obe­decer aos princípios vitais e a servir o bem. Apenas para si mesmo pode semear desordem, alimentar o mal; apenas pa­ra a Lei pode ele trabalhar em sentido destrutivo. O mal não possui o poder de destruir o bem, mas apenas o de des­truir a si mesmo. É absurdo que a negação se afirme, ven­cendo; portanto, também é absurdo que se conceda ao mal­vado o afirmar-se vencendo o bem, e não apenas o demolir­-se a si mesmo. Quando no harmônico dinamismo univer­sal se forma esse turbilhão de impulsos desordenados, então as forças vitais, disciplinadas e compactas, cercam e isolam o campo de forças que lhes é contrário e não descansam enquanto não o eliminam, enquanto o campo rebelde não é por elas pacificado ou aniquilado. Ao passo que, para quem está em seu interior, o sistema é protetor, assume caráter ofensivo para quem dele foi expulso. Como acontece no organismo físico, antes de mais nada as forças defensivas ten­dem a eliminar a falha por meio da reação e a curar o mal com o remédio da dor. Se isso não for possível, não ajudam mais, ausentam-se dessa forma de vida e, indiferentes ou inimigas, abandonam o ser ao aniquilamento. No que diz respeito ao rebelde, a reação da Lei é negativa e consiste em afastá-lo das fontes da vida. A transgressão produz a con­tração automática das forças do sistema e dele expulsa o rebelde. Assim, repudiado pela vida, torna-se ele abandona­do fora-da-lei, a quem nada mais resta senão desagregar-se e morrer. Deus nega-se aos malvados que o negam e, cren­do negar a Deus, se negam a si mesmos.

Pelo contrário, quem se lançou e fundiu na corrente oposta será temporariamente atormentado pelo mal, mas o caminho por ele escolhido o leva natural e fatalmente em di­reção à felicidade; enquanto isso, o malvado poderá ser feliz por algum tempo, mas seu caminho desemboca natural e fatalmente na dor. As duas posições são inversas. Para o bom, a dor constitui a exceção transitória, a alegria é a me­ta e a regra geral. Para o malvado, a alegria significa ex­ceção transitória e a dor representa a meta e a regra geral. O justo, embora à custa de fadigas, constrói para si feliz destino; embora sofrendo, eleva-se rumo ao bem, constrói no seio de Deus. Está preso às fontes da vida e, quanto mais progride, mais se lhes avizinha, nelas se nutre e assim vive de modo cada vez mais intenso. Como as forças do sistema fecham as portas e expulsam o rebelde, assim também as abrem para quem colabora com elas; admitem-no em seu seio, confiam-lhe funções e poderes, põem-lhe à disposição os seus próprios tesouros e cumulam-no de bens. O primei­ro é abandonado; o segundo, nutrido; o primeiro é expulso; o segundo, admitido naquela comunhão, chamada Divina Providência, em que se encontram as fontes da vida e a eco­nomia da natureza. Tudo isso até que ele vença o mal, a dor, a morte. Assim, enquanto o malvado se precipita na autodestruição, o bom ascende para a imortalidade. Então, o homem se anula, mas em outro abismo; o anulamento se verifica da mesma forma, porém em sentido inverso, isto é, não mais como morte, mas como vida, não por autodestruição, mas por fusão na divindade. Os dois anulamentos se verificam nos dois extremos opostos do ser, nos antípodas do binômio do universo. Assim, todas as forças do mal serão autodestruídas e todas as forças do bem haverão retornado a Deus. Todos terão atingido a meta que desejaram e. os impulsos, livremente desencadeados pelos seres, terão con­cluído a sua trajetória. E, uma vez que os princípios esta­belecidos por Deus produziram efeito, o imenso oceano do dinamismo universal repousará tranqüilo, até que, com novo desequilíbrio gerador (como a luta entre o bem e o mal), depois da fase de repouso e paz, isto é, de dinamismo em repouso ou latente (o mal absorvido pelo bem), até que o motor-não-movido inicie nova fase de atividade e luta, quer dizer, de dinamismo atual.

Todo o universo gravita em redor de Deus e aos poucos acabamos por nos fundir n'Ele, se escolhemos o caminho da ascensão. Por outro lado, se escolhemos o caminho que des­ce, apenas podemos acabar na destruição, porque nos afas­tamos de Deus, única fonte de vida. O homem que involui despedaça os vínculos vitais que o ligam ao divino; o homem que evolui os estreita e reforça. Este caminha em direção da luz, aquele se precipita nas trevas; o primeiro aproxima-se do centro do sistema de forças, que é também o centro do poder e da vida; o segundo afasta-se do centro para a periferia, onde há exaustão e morte. Um se dirige para o conhecimento; o outro, para a ignorância. A ascensão sig­nifica construção de consciência; a queda destruição de consciência. A consciência conduz à ordem, à adesão à Lei; a inconsciência conduz à desordem, isto é, à rebelião. O li­vre arbítrio representa a fase da formação da consciência e, portanto, fase de transição, que existe para ser superada apenas se atinja o objetivo. Ou o mal se transforma em bem ou se destrói. Assim, a liberdade ou finalmente adere e obedece à Lei ou o rebelde acaba sendo eliminado por au­todestruição, tão logo termina a experiência que lhe motivou a concessão, porque necessária à livre formação de consci­ência. Em suma: há unicamente um senhor, Deus - o bem; e, não obstante a liberdade, só se torna possível seguir este caminho, o que vai a Ele, caminho que é também o da fe­licidade. A liberdade humana, relativa e limitada, não po­de, pois, ultrapassar os limites impostos ao homem para seu próprio bem; instrumento formador de consciência, a liber­dade deve agir nesse sentido ao invés de desmandar-se em atitudes de inconscientes e desordenar a ordem das coisas. Essa liberdade enquadra-se e canaliza-se de tal modo que ou caminha em direção a seu objetivo ou se destrói. Quem regride para a inconsciência perde a faculdade de compre­ender e perde, ao mesmo tempo, a liberdade Quem progri­de em direção à consciência também a perde, porém como fusão na vontade da Lei.

Verificamos repetir-se aqui, em relação à liberdade, o mesmo processo de anulamento que com respeito ao indiví­duo vimos anteriormente. No primeiro caso, o isolacionismo egoísta dó ser isola-o das forças da vida; estas, percebendo esse princípio que lhes é contrário, insurgem-se contra ele e, a fim de se livrarem dele e expulsá-lo do sistema, rodeiam­-no e cercam-no, envolvendo-o em envoltórios cada vez mais densos e apertados, em que o comprimem até esmagá-lo; quer dizer: o ser caminha rumo ao próprio aniquilamento por compressão; assim, a liberdade se restringe cada vez mais até perder-se no determinismo da matéria. No segundo caso, como o ser se liga altruisticamente com todas as coisas, funde-se também com as forças da vida; estas, per­cebendo a manifestação do princípio que lhes é próprio, deixam-se atrair por ele, amontoam-se-lhe em torno e circun­dam-no, procurando livrá-lo dos invólucros da forma a fim de permitir-lhe expansão cada vez maior; em resumo: o ser caminha para o próprio aniquilamento, mas por expansão; assim, a liberdade se dilata cada vez mais em razão da consciência, até perder-se na vontade da Lei. Para os conscien­tes, verdadeiramente existe só uma liberdade, a de aderir consciente e espontaneamente à perfeição da Lei. Quem com­preender isso, naturalmente nada pode pedir de melhor do que querer em uníssono com a vontade de Deus, nela fundindo e perdendo a própria vontade. A vontade de Deus, aliás, será a sua porque a Lei representa o melhor, a maior felicidade. A irresistível tendência dos seres à perfeição par­ticipa da estrutura do sistema; o ser fatalmente segue essa tendência e a Lei irresistivelmente o atrai porque ela repre­senta a perfeição. Ao conceito dessa perfeição não pode re­lacionar-se o de incerteza na escolha, mas apenas o de ab­soluto determinismo. Percebe-se que a oscilação da vontade entre soluções diversas só se torna possível em fase, de formação e não em estado final, de perfeição. Ao mesmo tem­po que o ser ascende para a plenitude da Lei, é natural tam­bém ir-lhe a liberdade perdendo-se livremente, reabsorvida no determinismo da perfeição. É lógico que quem compre­endeu e encontrou o melhor apenas procure fazê-lo atuar; é lógico que prefira a solução retilínea, a. resultante imedia­ta do máximo rendimento obtido com o mínimo emprego de meios; e a prefira à oscilação de vontade incerta, porque não sabe, e que é capaz de perder-se na ignorância e na imper­feição que a tornam descrente de si mesma, fazendo-a entrever múltiplas soluções possíveis, quando sabemos que na perfeição não pode nem deve existir senão uma: a melhor Percebe-se ser o livre arbítrio algo que procura encontrar a perfeição; e faltar algo ao sistema da incerteza, que só no sistema da certeza encontrará a sua perfeição. O livre ar­bítrio não passa de vacilante filho da cisão entre o homem e Deus, cisão que a evolução faz desaparecer. A experimen­tação, de que nasce o erro, por sua vez origem da dor, de­riva necessariamente dessa cisão e constitui o caminho da cura. A cisão tornou-nos cegos. Precisamos de, submeten­do-nos às provas e sofrendo, refazer a consciência perdida. Trevas, punição tremenda. Mas a dor, situação natural de quem evolui e se redime, nos recoloca na consciência e na luz. Na vida existem apenas dois caminhos: o involutivo e o evolutivo. A unidade do universo é bipolar, sem exceção. Quem evolui na dor cria a si mesmo; quem involui no pra­zer a si mesmo destrói. O caminho da redenção é áspero, estreito e semeado de espinhos; o da perdição, suave, largo e parece juncado de flores. A dor constrói a consciência, for­ma conquistada pelo ser quando palmilha o caminho de retorno a Deus. O prazer destrói a consciência e determina a inconsciência, forma assumida pelo ser no caminho que se afasta de Deus.

Assim, sob duas formas opostas, a liberdade se extingue num e noutro extremo da vida. O universo constitui sistema perfeito e na perfeição não pode existir arbítrio; e muito menos o sistema pode ser abandonado ao arbítrio do homem, fenômeno representativo de função transitória, dirigida a objetivo certo, limitado e relativo a ele. O homem que tanta liberdade proclama, muitas vezes se atira pelo caminho fácil da queda na desordem; no entanto o áspero caminho da ascensão se situa na disciplina, na ordem. No dinamismo universal verificamos hoje a dissensão de duas vontades diretivas rivais, que disputam o terreno: a vontade de Deus, situada no íntimo e desejosa de instaurar o reino da justiça e do espírito, e a vontade do homem, posta na superfície e tendente a estabelecer o reino da força e da matéria. Deus e Satanás, Cristo e Anticristo se defrontam. Trata-se de dois sistemas de forças, de antagonismo continuo e presente em todo ponto e em todo momento, em todo ato e em .todo: fenômeno, antagonismo de que tudo está impregnado. Já vi­mos o diferente poder dos dois sistemas e a conclusão a que os levará a estrutura particular de cada um deles. O ser que ascende deve eliminar a dissensão entre as duas vonta­des e desfazer a diferença nascida da rebelião; deve, à cus­ta de muita obediência, reequilibrar tanta desobediência; deve agora executar, por sua conta, o trabalho da reabsor­ção da desordem pela ordem, da liberdade pela disciplina; há de executar o trabalho de renunciar à sua vontade egoísta a fim de perdê-la, fundindo-a na vontade da Lei. A prin­cípio, isso constitui esforço, mas depois é poder; parecerá li­mitação e derrota, porém mais tarde significará expansão e vitória; a princípio não passará de fatigante aceitação, mas finalmente há de ser espontânea fusão na vontade de Deus. Então, o ser saboreará a alegria suprema da harmo­nização, nessa vontade perceberá a perfeição suprema e, com alegria, nessa perfeição submergirá a liberdade pessoal; nes­sa vontade viverá satisfeito e feliz, como quem atingiu seu objetivo supremo; aí há de viver por adesão espontânea por­que, conquistada a consciência, terá compreendido ser ela seu bem; e se sentirá cada vez mais livre nessa obediência para ele vantajosa. Além da incerteza dos que, embora não o conheçam bem, procuram o que lhes é verdadeiramente útil, que significado tem a oscilação do livre arbítrio? E, quando o ser houver adquirido consciência desse útil, como pode continuar escolhendo, oscilando, quer dizer, vivendo na incerteza? O melhor pode ser apenas uma coisa só e, quando o tivermos encontrado, nos impede a escolha. Aí, a grande cisão entre o homem e Deus desaparece e a luta, filha da ignorância, se acalma. Então, o ser sabe querer apenas o que Deus quer e isso lhe constitui a maior alegria. Já agora, todo ser, tornado consciente, se torna instrumento voluntá­rio da Lei e se funde no seio de Deus, em harmonia e feli­cidade.

XIV

CONSEQÜÊNCIAS E APLICAÇÕES

No capítulo precedente destacamos o fenômeno das as­censões humanas do fundo da dinâmica universal. Enqua­drar os fenômenos, reordenar o pensamento, disciplinar a ação constituem-nos a tarefa; quer dizer: nossa tarefa é cons­truir. Caminhemos, pois, em direção da ordem, rumo a Deus; das duas estradas da vida, a involutiva e a evolutiva, sigamos a que sobe. O sistema de forças do universo é, pois, bipolar, quer dizer, resultado do contraste entre dois sistemas inversos: o sistema do espírito e o da matéria. Ambos são deterministas, ou seja, o universo, sendo inteiramente perfeito, apresenta completo determinismo nos seus dois ter­mos componentes. Se no sistema de Deus apenas perfeição pode existir, necessariamente não pode haver senão determinismo. A liberdade existente no homem consiste somente na possibilidade de escolha entre os dois sistemas. Estes, po­rém, se constituem de tal modo que, escolhidos, envolvem o ser em suas espirais, o incluem em seu sistema de forças, o prendem à sua lógica e tudo isso de modo a arrastá-lo até às últimas conseqüências, até à plena realização do sistema, isto é, à plenitude de vida em Deus, de um lado, e, de outro, à autodestruição. Quem ascende tende sempre mais a subs­tituir sua vontade isolacionista pela divina vontade univer­sal; quem regride é levado cada vez mais a substituir a di­vina vontade universal por sua vontade isolacionista. O pri­meiro cresce sempre mais e se agiganta; o segundo se com­prime em si mesmo, diminui e se asfixia. Mas em ambos os casos o estado de livre arbítrio tende a anular-se, ou no de­terminismo do sistema do espírito, pela fusão consciente na vontade de Deus, ou no determinismo do sistema da maté­ria, pela obediência inconsciente do cego à vontade da Lei.

Antes de passar a outros argumentos, vejamos alguns corolários do capítulo precedente. A civilização materialis­ta atual entra de novo no sistema de forças da matéria. Seu termo final, implícito no sistema, é a autodestruição. Ta­manho progresso econômico e material deverá, pois, acabar fatalmente na autodestruição, como aliás está acabando. As verdades que a ciência descobre são certas, pois não pas­sam de verdades da lei. Errada é, isto sim, a direção seguida pela ciência nas pesquisas; errado, o método utilitário com que a ciência as aplica. O pecado capital dessa ciência consiste em dirigir-se à matéria ao invés de ao espírito, em querer substituir Deus pelo eu, em pôr-se na posição de pre­sumida independência da Lei e de revolta contra ela. Tra­ta-se, pois, de progresso às avessas, progresso que nega e, por isso, negativo. Depois de tudo quanto dissemos, as conseqüências tornam-se evidentes. Esses sistemas de forças nos tolhem completamente. O homem acredita realizar grandes conquistas porque desvenda segredos da natureza e em se­guida sabe desfrutá-los. A posição da ordem fica nesse caso subvertida. O homem acredita que desse modo acumula po­deres e se torna senhor da vida. Não. Trata-se de poderes de rebelde; apenas podem levar à autodestruição. O homem, hoje tão orgulhoso de si mesmo, com essa ciência sem sabe­doria não passa realmente de elemento expulso do sistema de forças da Lei, de isolado, de abandonado por Deus, de in­divíduo posto fora das fontes vitais. Seu grande edifício lhe cairá em cima, não porque deixe de ser grande e belo, mas apenas por causa da direção errada em que o construíram. A lei, destruirá a ciência rebelde que a negou e a civilização criada por essa ciência. Esse é o termo fatal do mundo de hoje. Por isso, nova e verdadeira civilização somente das ruínas dele poderá nascer, depois dele ser destruído, não podendo ter por fundamento senão princípios completamen­te diferentes. Assim, a nova civilização do 3º milênio pode­rá apenas ser a civilização do espírito.

Ainda podemos compreender algo mais. A Lei reage contra quem a transgride, expulsando-o de seu sistema de forças (aliás grandemente protegido para quem nele se re­fugia) e o transforma em abandonado por Deus. Assim, o homem permanece fora, isolado, à mercê das forças opostas ou, seja, do mal. Eis por que o erro e a culpa, significativos de desordem contra Lei e, por isso, de expulsão e abandono, causam dor, significativa de regressão. Nas páginas prece­dentes pudemos observar como e por que a Lei reage, isto é, a forma e o motivo dessa reação de que antes não se podia explicar a relação com a dor. A Lei, quando alguém a transgride, expulsa da sua ordem e da sua ajuda o transgressor; nega-lhe tudo, o conhecimento e o poder, a proteção e o alimento. Essa a razão por que todo golpe contra a Lei constitui golpe que o rebelde inflige a si mesmo, autopunição, dor por ele sofrida. Eis por que encontramos a dor no caminho da involução, caminho de rebeldes. Eis por que desordem, rebelião, inconsciência, erro, culpa, dor e queda se relacionam. O universo é criação contínua e se mantém apenas em virtude dessa criação. Ela deriva de dinamismo central, inserto na intimidade das coisas, profundamente ligado ao universo e a Deus, em que se situam as fontes da vida. Tudo isso dá nascimento a sistema de forças tenden­tes a reconstruir continuamente. Quem é posto fora desse sistema porque se rebelou contra ele, ou não é mais alimen­tado por essas forças criadoras ou ainda recebe pequena quantidade de alimento, isso quando não se rebelou comple­tamente e proporcionalmente à sua obediência residual. A verdade, porém, é que por esse caminho o rebelde caminha para a morte. Eis por que o rebelde está automaticamente condenado à autodestruição e com suas próprias mãos se co­locou fora da vida. Deus, a Lei, a Ordem significam vida; Satanás, a rebelião, a desordem significam morte. Desse modo esgotamos a análise do problema do bem e do mal, levando-o até à sua conclusão. Assim, observamos racionalmente, de um lado as terríveis e automáticas conseqüências a cujo encontro vai quem escolhe o caminho que se afasta de Deus e, doutro lado, como a verdadeira felicidade se tor­na possível e nossa herança natural e de que modo essa fe­licidade apenas pode residir na consciente e ativa obediên­cia à Lei. Tudo se reduz a adquirir a consciência dessa Lei e a superar a ignorância, tudo se reduz a compreen­der coisa tão simples e lógica, no entanto, ou, seja, que Deus apenas pode querer, e quer mesmo, nosso bem. Se o homem não fizer tão simples descoberta, todas as mara­vilhosas descobertas científicas hão de submergir na destruição. O grande mal, que nos engana e trai, consiste nessa ignorância, a iludir-nos com miragens, mostrando-nos a fe­licidade na revolta, exatamente onde não está nem pode estar. Em que se cifra o maior desejo do homem, senão na sua felicidade? Qual o maior desejo de Deus, senão a felicidade do homem? Só a ignorância humana a respeito do pensamento de Deus pode tornar divergentes duas vontades que tendem ao mesmo objetivo. Se lutam, é exatamente porque desejam ansiosamente abraçar-se e unir-se. Por isso vivemos na experimentação e na dor. De fato, através de provas e mais provas, se adquire essa consciência em que consiste a única solução do problema.

Apliquemos ao atual momento histórico tudo quanto dis­semos. Nossa civilização materialista, se considerarmos os princípios que lhe deram origem e lhe dirigem o desenvol­vimento, sofre agora o inexorável processo final de autodes­truição. Significa tentativa de instaurar o reinado humano da matéria, sem e contra o reinado do espírito; de substituir Deus pelo eu; de estabelecer ordem humana, em que só o ho­mem dá ordens, em lugar da ordem divina, em que, não o homem, mas apenas a Lei dirige. Foi ato de revolta e agora vão-lhe sendo eliminados os resultados. Nessa fase a nota dominante é a destruição causada pela guerra, com que a técnica, primeira conquista da civilização, destrói a pró­pria civilização. Isso é lógico e fatal. Hoje Deus abandonou o homem ao destino que ele quis preparar para si mesmo. Deus lhe diz: "Você pensou que sabia agir e quis agir sozi­nho. Agora você vai fazer isso até o fim. Você é livre, mas responsável. Faça experiência. Você há de compreender à sua custa". Hoje o homem está perdido e abandonado no meio de cataclismos mundiais, em pleno oceano de forças incompreensíveis para ele e sem a capacidade de conduzir­-se deste ou daquele modo. O poder que possui serve-lhe ape­nas para feri-lo. Parte da negação e da dúvida e chega à inconsciência e à destruição. A dor constitui a primeira conseqüência do sistema que se move em sentido involutivo, afastando-se das fontes vitais. Essa dor, que acreditávamos saber dominar, acabou sendo o verdadeiro resultado atingi­do; e a felicidade (tão seguros estávamos de consegui-la!) transformou-se em miragem. A subversão do sistema produz resultados contrários. Hoje as forças da Lei devolvem ao homem os golpes que dele receberam. A dor, porém, não sig­nifica vingança de Deus, mas apenas reação salvadora, di­rigida pelo intento de reconduzir o homem à estrada que há de levá-lo à felicidade. Como não compreendeu e não seguiu espontaneamente o caminho certo e gozou da liberdade de experimentar o caminho errado, agora o prendem e o obri­gam a palmilhá-lo à viva força. A dor constitui espécie de violência indireta contra sua liberdade; o determinismo da Lei, absolutamente desejoso do bem, é que pelo bem do ho­mem executa essa violência. E tentativa honesta de salva­mento com que, estamos vendo, antes de ausentar-se. Completamente, abandonando o rebelde à autodestruição, as forças do sistema continuam presentes, mas sob forma nega­tiva, e procuram, exatamente como dissemos, com a reação sanar a falha e curar o mal pelo emprego do remédio da dor. Assim, aquilo que à luz da psicologia corrente parece derrota e falimento constitui o mais útil trabalho realizado nes­te ciclo histórico, pois representa a obra de arrependimento, de retificação, de nascimento de consciência e sabedoria, obra saneadora dos erros cometidos. Dor acabrunhadora, mas salutar, que nos tira do caminho da autodestruição e nos impele ao caminho da construção. Estamos, pois, viven­do um momento decisivo das teorias supra expostas. Pode­ríamos dizer que hoje estamos vivendo o período corretivo, de retificação das posições subvertidas pelo homem. Não po­demos fazê-lo atuar senão através da subversão total dos atuais valores dominantes. Tivemos hipertrofia de meios materiais e, no bem-estar, atrofia do espírito; eis-nos, pois, nas posições inversas, quer dizer, com pobreza de meios ma­teriais e a dor que nutre e enriquece. Assim, através da pri­vação de tudo quanto anteriormente abundou, com poucos frutos no sentido evolutivo, chegamos ao desenvolvimento de tudo quanto anteriormente faltou, e isso com frutos pa­ra o progresso espiritual. Se quiséssemos definir o tipo da nova civilização e o comparássemos com o atual, podería­mos chamá-la civilização retificada. Tanto bastaria para que a imaginássemos. Essa retificação descreve-a continua­mente tudo quanto vimos dizendo nestas páginas.

Daí se vê não ser o homem, mas a Lei, quem dirige a história e a vida. O homem agiu loucamente, transportan­do desordem, mas a Lei sabiamente o reconduz à ordem. Hoje a realidade da vida grita aos ouvidos do indivíduo, como aos dos povos, esta necessidade inelutável e suprema: mace­ração na dor. A distinção humana entre vencedores e ven­cidos não tem, quanto a isso, importância alguma. A ciência encarou o problema do mundo material, mas ignora o do mundo espiritual; escapa-lhe o cálculo dessas poderosas for­ças do imponderável que hoje golpeiam o homem. A erudi­ção contemporânea não basta para compreender o que está acontecendo ao mundo de nossos dias. Descobrimos leis da natureza e dominamos algumas de suas forças, mas fizemo-lo egoisticamente, estupidamente, contra a Lei, isto é, contra nós mesmos. Quanto bem obteríamos, se houvésse­mos sabido dirigi-las com inteligência! Acima da loucura humana se coloca a sabedoria divina e agora nos impõe a reconstrução do equilíbrio perturbado, imergindo-nos em ganho de penitência. Na passagem se encontra a dor amiga para salvar-nos. Mas o homem não lhe compreende a fun­ção e ainda se revolta, cada vez mais. Com essa ilusória forma mental, sem preparo algum para a vida áspera das horas apocalípticas, o homem está absolutamente fora do caminho. Colocou-se fora das fontes espirituais do ser e falta-lhe o poder que sustenta os que sabem atingi-las Em última análise, estamos no ponto mais baixo da onda histó­rica e precisamos de percorrê-lo antes de podermos ascender novamente. Para o homem, a verdade e a sabedoria estão além desse trajeto. É duro, mas devemos percorrê-lo; chorando e sangrando, necessitamos chegar. O mundo acredi­tava que, com seus métodos conceituais e materiais, podia organizar a felicidade em série, em máquinas, e estava a ponto de atingi-la; no entanto, encontra-se em face de rea­lidade cruel e bem diferente: o poder de criar que a dor tem. Alguns, todavia, compreendem, aceitam e ascendem. Cons­tituem minoria sábia e silenciosa, abafada pelas vozes domi­nantes. Muitos, porém, não compreendem, continuam a re­belar-se, maldizem, reagem à dor por meio de novo mal e assim, ao invés de se afastarem do redemoinho da regressão, cada vez mais afundam e lhe aumentam o poder. Assim, os bons tornam-se melhores e os maus, piores; a distância entre os dois aumenta, até se separarem completamente. Forma­rão dois turbilhões de forças, um voltado para cima e outro para baixo. Este último agarra o outro, procura prender-se-lhe para arrastá-lo ao fundo consigo, busca despedaçá-lo a fim de aniquilá-lo; mas todo sistema contém em sua própria natureza o termo final de sua trajetória. O princípio da as­censão, a amizade com a Lei levarão os justos cada vez mais para cima, até à salvação, mesmo através de obstáculos e provações; e farão os rebeldes se precipitarem cada vez mais para baixo, até à autodestruição. O atual espírito de des­truição parece universal e poderá atingir a todos nós; mas, finalmente, terminará prejudicando apenas quem o pôs em ação, acredita nele e o merece. Hoje Os homens podem esco­lher: sobrevivência ou destruição. A dor impõe a solução da crise e o superamento da fase. Os sábios transformam-na em instrumento de vida para si mesmos, os estultos rebeldes transformam-na em instrumento de morte.

Este livro foi escrito em meio dessa tempestade, nessa atmosfera apocalíptica, nessa hora trágica em que o mundo desmorona e se recompõe. Não poderia nascer senão nesse terreno e nesse momento. Enquanto o pensamento se infla­ma, a alma geme; os próximos bombardeios põem vibrações no ar, as cidades se reduzem a escombros, a civilização va­cila, a propriedade torna-se insegura vivem somente na sau­dade a segurança do lar e a vida civilizada. A morte passa e torna a passar por perto, sem deter-se ainda. Deus desce até perto de nós e nos fala É o momento sublime e terrível das grandes maturações. Cada vez mais o mal se encarniça e se torna cego em orgia de ferocidade; e cada vez menos sabe o que faz; e o bem, tranqüilo e tenaz, enquadra a de­sordem e, como sabe o que faz, espera e modifica os resul­tados. As destruições da guerra são a força que o mal mo­mentaneamente aplica a serviço do bem. A Lei conclama os inferiores a funcionarem como instrumento de dor. Mas a dor tem capacidade criadora e a sua atual presença entre nós, e em proporção assim tão grande, prova a iminência e a amplitude da transformação do mundo e constitui o pre­cedente necessário para gerar nova civilização. Nas mãos da Lei tudo isso se reduz a severa verificação e, em seguida, a extraordinária progressão da vida rumo a futuro melhor. Contra todos os negadores, o espírito, para explodir, faz pres­são de dentro para fora. O mal pode suicidar-se; não pode, porém, destruir o eterno e divino impulso criador. Nossa hora exige renúncia, liberação e desenvolvimento. Ascensão, através da dor.

Deus tira os bens das mãos de quem os conquistou e não sabe usá-los, tanto assim que de seu emprego só lhe resul­tam danos e nenhuma vantagem. E concede-os novamente apenas quando houver aprendido a utilizá-los. O homem, então, deve reconquistá-los com ânimo novo, de modo a transformar o dano em vantagem. Assim, a pobreza sucede à riqueza. É lógico, e até mesmo constitui benefício quem faz mau uso de determinado meio adorando-o como se fosse um fim, perdê-lo e ser reconduzido à ascensão, único e verda­deiro objetivo da posse. É também lógico e justo que ape­nas os dignos possam dispor dos bens e só os amadurecidos possam mandar e dirigir. Quem a Deus antepõe os ídolos acaba sendo expulso da vida. Todavia, quem está com a Lei está com a vida. Pois bem. Aproxima-se a hora da trans­formação do mundo. O super-homem pode nascer apenas de lutas e dores assim titânicas. Será a transformação do herói da matéria, do super-homem nietzscheano. Mostrar-se-á valoroso na prática do bem, na capacidade de dar, de amar, ao invés de mostrar-se endurecido no mal, na agres­são, no ódio. A bestial virilidade do homem, no plano físico asfixiante da guerra, se refinará e aumentará de poder na virilidade mais apurada do homem no plano espiritual. A luta não se travará mais por causa da seleção animal do mais forte, seleção em que ainda alguém crê, mas em favor da seleção do mais justo e consciente; as guerras e as vitó­rias serão diferentes, baseadas em princípios diferentes e conduzidas também com métodos diferentes. As batalhas do homem futuro serão bem diversas. Esse homem será o soldado da paz que substituirá a guerra do ódio pela guerra do amor, muito mais difícil e profícua. Que consciência, organicidade e poder espiritual deverá ele possuir para saber vencer sem ódio, e sem armas, perdoando e dando! Espiri­tualmente falando, nossa sociedade assemelha-se a campo inculto, a bosque intrincado e selvagem. Torna-se necessá­rio transformá-lo em plantação racional e de rendimento intensivo. Precisamos de em todo o campo em que existe o caos introduzir a ordem e fazê-la substituir a desordem; isso, porém, com métodos diferentes dos de domínio, nos quais todas as diversificada tendências humanas se igualam. É preciso fazer que os outros compreendam e sintam, por livre convencimento e paixão. Para todos nós a dor atual cons­titui grande escola de maturidade. Manifestam-se sistemas substanciais, e não sistemas formais; agimos mais por vias internas e espontâneas do que por vias coativas e externa­mente enquadradas. Não adianta mudar nomes e progra­mas. Importa, isso sim, o senso da vida e a motivação di­retora; importa operar na substância e fazer o homem. A consciência coletiva não passa de frase sonora, mas sob ela se esconde quase sempre apenas a inconsciência coletiva. O tufão limpou o terreno. Vamos, agora, ará-lo, semear, tra­tar, fazê-lo produzir. O ódio destrói. O amor deve reconstruir. Essa é a linha de desenvolvimento de nossa época Primeiro, a paixão; depois, a ressurreição. O involuído esgotou sua missão. Agora chegou a vez do evoluído. Os ama­durecidos são chamados para o trabalho e, mais do que nun­ca, agora sua vida se transforma em missão. Esgotaram-se as vãs tentativas dos experimentos materiais e verificou-se que os expedientes atuais não resolvem o problema. Nada mais lógico; pois, que agora, a título de reação e compensação, e por meio de expedientes de tipo oposto se inicie outra qualidade de experimento, o do espírito.

Apenas começamos a caminhar rumo ao bem e à sua realização na terra, assalta-nos o pensamento de que talvez se trate de utopia. Isso naturalmente acontece porque nos afastamos da dura realidade da terra e sabemos consistir o objetivo da evolução justamente nesse afastamento. Vimos que o mal pode constituir grande obstáculo, terrível resis­tência e, no entanto, o bem é o verdadeiro e definitivo se­nhor. A realidade quotidiana do mal desmente a aparente utopia do bem; esconde, como véu, a verdade mais profun­da, esconde-a dos violentos e até mesmo dos astutos; não a esconde, porém, dos justos. A estrada é longa; mas a ascen­são, fatal; e o mal não prevalecerá. Nem a insipiência, nem a traição, nem o erro, nem o abuso, nada pode deter a ma­ré montante do progresso. No sistema se prevê que toda queda e todo mal tem remédio. As multidões são certamente ig­norantes e cegas e sujeitas àquilo a que pode reduzir-se qualquer governo inepto, isto é, a serem esmagadas pela força e exploradas pela astúcia. Mas os povos se iludem quando crêem que a orientação necessária possa ser-lhes dada pela liberdade dos chefes, ao invés de provir de consciência coletiva; e esta os povos podem conquistar apenas à custa do próprio esforço e através de duras provações. Os povos, como os indivíduos, devem aprender por si mesmos, por meio de seus erros e dores. Toda nova experiência política apenas serve para passarmos cada vez mais de estado de inconsciência a estado de consciência coletiva Todavia, no fundo da atual inconsciência se percebe o sentido da vi­da e obscuro instinto que, embora confusamente, indica às massas o caminho certo e lhes confere a capacidade de res­ponder às vozes da verdade; mas isto, se forem verdadeira­mente sinceras; e o evoluído, que vive cumprindo missão na terra, mesmo à custa do próprio sacrifício souber gritar bem alto essa verdade. A iniciativa da ascensão pode ser sua ape­nas. Todos os valores humanos vão sendo continuamente explorados e subvertidos em favor de vantagens pessoais. A custa do próprio sacrifício deve o evoluído repô-los no lugar certo, restituir ao homem tudo quanto lhe roubaram, opor-se, com o poder do vidente, à força bruta e, com a honesti­dade, lutar contra a exploração.

Mas o futuro não depende apenas dos homens de boa vontade. Preparam-no as leis da vida. A História é escrita por elas e não pelos líderes que aparecem em cena, e que constituem meros instrumentos de quem mais sabe e muitas vezes mais obedecem do que comandam; apenas desobedecem ou se tornam inúteis, a Lei liquida-os, retirando-lhes a função a eles confiada. Os homens tão-somente exprimem forças da vida, que se dirigem a objetivos muitas vezes incompreensíveis para eles. Quando soar a hora da plenitude dos tempos, os amadurecidos ouvirão dentro de si os apelos da vida, se sentirão galvanizados e fortalecidos e hão de ver que o imponderável os impele à ação. Assim, a Lei, apelando para o íntimo de cada um deles, chama um por um os instrumentos da ascensão, os desperta e os põe em função. Chega a vez dos involuídos destruidores, convocados nas horas negras da violência, e chega também a vez dos evoluídos construtores, chamados nas horas luminosas do sacrifício. Estes e aqueles imperceptivelmente se atraem e, quando sopra o vento que os maneja, se confundem, cada qual com seus iguais, para somar esforços. Vimos e conti­nuamos a ver a hora dos primeiros, que deverá contudo es­gotar-se. Para refazer o equilíbrio da vida, vai chegar a oportunidade dos evoluídos. Também estes vão atrair-se e juntar-se. Ao primeiro olhar, hão de reconhecer-se como co­laboradores do mesmo ideal, se sentirão homens da mesma estirpe e se compreenderão mais. A revolução desta vez não é formal, mas substancial. Não se trata da costumeira luta para, com os mesmos métodos, substituir os velhos ocupantes das posições privilegiadas. A luta do evoluído não se destina ao predomínio deste ou daquele interesse, mas é luta de deveres em favor da evolução.

Para refazer o mundo, tudo deve fazer-se contra a vontade do mundo. Por isso, antes de mais nada, método de vida despretensioso, sincero, honesto, novo estilo, acima de tudo, interior e constituído de fatos e não de palavras. Os fatos não são necessariamente como aqueles hoje em dia ob­servados, quer dizer, grande número de aderentes e muito barulho. O número e o barulho estão naturalmente na razão inversa da profundidade; e neste caso a ação se processa em profundidade. O primeiro trabalho se desenvolve no íntimo das pessoas, onde penetramos persuasivamente e não no ex­terior delas, onde dominamos à custa de coação. Por isso, não necessitamos da costumeira força dos dominadores, mas de convicção e de exemplo. Os novos homens não exibirão sinais exteriores, que o vestuário possa mudar, mas sinais interiores impressos no coração e na mente. Nem as fun­ções, nem as condições sociais, nem a hierarquia, nem qualquer outro motivo capaz de atrair o espírito humano, ávido de poder e repleto de ambição, servirá mais do que uma vida bem vivida, para estabelecer distinções entre os homens. O posto mais alto pertencerá a quem mais dá, embora menos possua, a quem se sobrecarrega com mais trabalhos e obri­gações. Principalmente, saibamos viver o mais possível desprovidos de riqueza, para tornarmo-nos invulneráveis aos ataques do involuído, que a deseja sobre todas as coisas, e para o mantermos afastado de nós, pois não sabe viver em atmosfera de pobreza e sacrifício. As potências espirituais devem estar em condições de substituir qualquer bem da terra. Não é verdade que a riqueza e o poder se tornem absolutamente indispensáveis para a execução de qualquer ta­refa. Os grandes meios utilizados pelo mundo são quase sempre meios fornecidos pelo mal e de que o bem pode pres­cindir. Mas em compensação necessita de entusiasmar-se, de primeiro fazer para depois mandar que façam, de sentir e viver integralmente a paixão do bem. O que se leva em conta é o ânimo, o valor intrínseco do indivíduo; não se lhe leva em consideração o poder econômico, a posição social, a condição externa. Grandes meios podem reduzir-se a ba­gatelas e títulos pomposos camuflar nulidades. Não muda­mos nada do que está do lado de fora e carece de impor­tância. O evoluído, em extremo sensível, reconhece e classifica os homens, mas observando-lhes o íntimo. Por isso, nada de agressividade contra formas indignas de nos cau­sarem a fadiga de combatê-las, mas apenas respeito e paz relativamente àquilo que para os demais assume tanto va­lor e, no entanto, para nada presta. Então, aviva-se mais o contraste; não destruímos as coisas, valorizando-as pelo combate que lhes movemos, mas negando-lhes importância e incentivo. Jamais o evoluído é negativo e destruidor, mas sempre positivo e construtor. Assim, tudo quanto se torna inútil por si mesmo se destrói. Toda a energia do evoluído se aplica em favor do bem. Tanto basta para em todas as formas infundir calor, espírito e valor novo.

Essa nova classe de homens se distinguirá por meio de características biológicas e poderemos chamá-la classe dos sacerdotes do espírito. O fato de nos desmaterializarmos na função espiritual aumenta-nos a capacidade de penetração e a potência. Quanto mais a forma é imaterial tanto mais invulnerável e resistente aos esmagadores ataques exterio­res e às fraudulentas explorações interiores, ambos ver­dadeiras traças que roem o ideal. Aqui o sistema de forças protetoras se apoia no imponderável e o princípio fundamental difere do comum. Não se trata de falar e parecer, mas de ser e dar o exemplo, de não pretender pregar moral antes de poder dizer: eu também faço assim. Não se trata de proselitismo superficial, que começa nos outros, mas de conquista profunda, começando em si mes­mo. Mais do que de certa espécie de ordenamento religioso, trata-se de certa espécie de ordenamento biológico, onde automaticamente se enquadra o indivíduo amadurecido, que ai permanece enquanto, por causa dessa maturidade, conse­gue resistir; desse ordenamento está automaticamente ex­cluído quem mente, explora ou furta. A regra pertence à Lei; aceita-a e segue-a apenas quem lhe apreende o sentido e compreende a vida. Do mesmo modo que a gratidão, os prêmios e o progresso, as sanções e as exclusões são, auto­máticas. A polícia de controle está confiada às forças da Lei, que usam peso justo; quem vale mais e mais possui de­ve dar mais e ter mais responsabilidade. Trata-se de leis biológicas a que não podemos fugir; não falham e inexora­velmente atingem o indivíduo, onde quer que esteja. A polícia de Deus se compõe de imponderáveis contra os quais não adianta rebelarmo-nos, pois são invisíveis e poderosos; funciona com exatidão e segurança, não esquece e a todos com suprema justiça castiga ou premia.

XV

O TIPO BIOLÓGICO DO FUTURO

O fenômeno de renovação já mencionado neste livro não deve ser entendido isoladamente sob um só de seus numerosos aspectos, seja social, político, religioso, econômico intelectual, moral, artístico etc. Devemos entendê-lo isso sim, no vastíssimo sentido de fenômeno biológico. Quer dizer, trata-se de maturação evolutiva do tipo humano, a qual lhe permitirá a exata apreciação do imponderável, que agora lhe escapa e produz a falência do espírito no trato das coisas humanas. Não se torna necessário criar mais coisíssima alguma. Os elementos já existem entre nós. Trata-se apenas de orientá-los, de saber dirigi-los com a lógica hoje inexistente, isto é, de reordenar a desordem. Sabe-se que o método e a organicidade permitem muito maior rendimento a qualquer trabalho, poupando-o a tantas dispersões e a atritos. Atualmente estes custam dinheiro, fadigas, dores imensas. A compreensão mútua, quer dizer, o desarmamento mental que nos permita olharmo-nos sinceramente nos olhos, não nos enganarmo-nos, mas para compreendermo-nos, essa compreensão significaria a maior liberação jamais conhecida pela humanidade. Quando o ser superou determinada fase evolutiva, a lei relativa a essa fase torna-se-lhe como prisão de que necessita liberar-se, fugindo-lhe. Nessa pri­são vai-se transformando cada vez mais a moderna concep­ção social do homem, que está fazendo esforços titânico para escapar. A lei de seleção do mais forte não lhe foi inútil no passado e, de fato, permitiu à raça humana o domínio ma­terial do planeta, através do método bestial da subjugação violenta. A lei permitiu que o homem adotasse esse método. Esse fato demonstra como em certo período tal método se tor­nou útil e necessário. Hoje, porém, a posição do homem mu­dou. Tornou-se senhor do planeta e agora luta mais contra os semelhantes do que contra os elementos e as feras. Atingi­ram-se os objetivos da seleção animal; por isso, esse método não corresponde mais às finalidades da vida, agora diferen­tes e mais nobres. A evolução elevou-os bem mais alto, diz respeito a outros objetivos, empreende outras construções e não pode retardar-se no caminho já superado. Hoje cami­nhamos para a organicidade; este, o fim que a Lei pretende fazer-nos atingir. Ora, o método de luta para seleção do mais forte é anti-orgânico por excelência e realmente não corresponde mais ao objetivo: representa regime de desordem justamente aí onde deve com toda a urgência impor ordem. Trata-se de fenômeno natural de retificação e ordenamento que, conforme verificamos, se processou até mesmo no mundo astronômico e geológico, depois do período caótico da formação. O mesmo fenômeno deverá processar-se também no mundo social. A lei da luta para seleção do mais forte ser­viu até agora para o animal e para o homem-animal; não servirá para o novo tipo biológico em preparo. No novo pla­no em que está entrando esse novo tipo, tal seleção, ao in­vés de beneficiar, prejudica, visto como não representa progresso, mas regressão a tipo superado ou em vias de supe­ramento e que hoje não significa ascensão, mas queda. Torna-se, pois, necessário novo princípio e novo método seleti­vo, adequado aos novos objetivos a atingir, isto é, diferente forma de luta para novo modo de seleção, não dos melhores, unicamente sob o ponto de vista da força, mas dos melho­res em inteligência, sensibilidade, consciência, bondade e sabe­doria. Se esses elementos não se faziam necessários para o tipo vencedor-destrutivo, imperador de escravos, são indis­pensáveis ao novo tipo biológico, o do homem orgânico e, por isso, consciente. Os princípios que orientam a luta e a seleção pertencem à lei de evolução e não podemos destrui-los. Mas, se o homem quiser libertar-se da animalidade, deve assumir agora conteúdo diferente, quer dizer, formas e objetivos diferentes.

Observemos mais de perto esse fenômeno de transforma­ção biológica evolutiva. A vida é criação contínua, obra de forças invisíveis que trabalham internamente, dentro de for­mas exteriormente caducas e sujeitas a incessante metabo­lismo renovador. Todas as coisas se movem e se mantêm permanentemente vivas por causa dessa inexaurível fonte interior, que se chama Deus, centro dinâmico e conceitual do universo. Tudo se alimenta, se mantém e se origina do espírito imortal alheio às vicissitudes da forma. Através da evolução, a forma se sutiliza, se torna transparente, de mo­do a que a divina essência das coisas possa tornar-se cada vez mais evidente. Assim, essa criação continua constitui renovação evolutiva, que, agindo através da maceração da. forma, vai elaborando-a incessantemente e, assim, tornan­do-a cada vez mais adequada a exprimir a íntima substância animadora e dando sempre maior sensibilidade e atuali­dade à manifestação da Lei. Desse modo, evolução fica sig­nificando espiritualização e palmilha a estrada que sobe até Deus. De semelhante progresso nascerá o novo tipo biológico, base das humanidades futuras. A mesma natureza do fenômeno nos indica quais as suas características, aliás redutíveis a uma só palavra: espiritualização. Isso significa tornar-se mais dinâmico, percuciente, sensível ou, seja, menos rude e obtuso. O novo tipo representará forma cada vez mais nervosamente selecionada e eleita, na progressiva exaltação das características elétricas da vida, em detrimento das características puramente físicas. A pesada musculatu­ra animal, sempre mais inútil nas novas condições de vida, há de ser substituída por poderosa estrutura psíquica, cada dia mais necessária no novo mundo futuro. O novo tipo biológico, se socialmente será o homem orgânico, individual­mente será o homem do espírito. A vida e o progresso que a intensifica residem no espírito. Na intimidade imponderável do ser, aí onde ele atinge as divinas origens da vida, existem inexauríveis capacidades de desenvolvimento. O universo é semente desejosa de desenvolver-se em direção a Deus e incapaz de resistir ou ceder nem à pressão interna do espírito, que tem pressa de manifestar-se, nem à divindade interior, desejosa de exprimir-se sob formas de perfeição cres­cente. Há novos continentes a desvendar, novas minas a explorar, novas fontes de energia a descobrir e empregar. Nossa involução é que traça limite a nosso domínio. O universo, junto de nós, inexaurivelmente rico, dispõe-se a ce­der-nos as suas riquezas, mas, como é lógico, nega-as ao primitivos, incapazes de fazer bom uso do poder. O univer­so não responde aos inconscientes, que não sabem tocar-lhe nas cordas mais sensíveis. Não o compreendemos, não lhe conhecemos as leis; rebelando-nos, ferimo-lhe a ordem, mo­vidos pela pretensão de substítuirmo-la por nós; e não res­ponde com amizade e doçura, mas com rebeldia e hostilidade. Pomos de lado e maltratamos as forças espirituais, exatamente as mais importantes. Nada poderemos ignorar em organismo onde tudo se relaciona. O poder e o futuro re­sidem na sensibilização e na desmaterialização ou, melhor, no domínio de forças cada vez mais sutis, aliás as mais poderosas. O poder se sedia na profundeza, na imaterialidade, e conquistamo-lo caminhando rumo às raízes do ser e às origens da vida, isto é, caminhando em direção de Deus.

Observemos, para compreender melhor, este caso de su­tilização da forma por meio de elaboração evolutiva, quer dizer, este caso de sensibilização e espiritualização. A prin­cípio, e do ponto de vista biológico, a mão do homem foi um dos membros que o tronco produziu para facilitar a mar­cha, e isso já era a primeira manifestação de vontade inte­rior dirigida para objetivo elementar. Depois, esse membro se destacou da terra e se transformou em órgão apreensor e instrumento de ação e de trabalho, como manifestação de vontade mais complexa e mais inteligente, embora presa ain­da à forma material da estrutura ósseo-muscular, de que estava em estreita dependência. Hoje a mão se vai sempre transformando de instrumento físico em instrumento psíquico, vai tornando-se tentáculo nervoso cada dia mais ágil e sen­sível e passando de agente físico a órgão dirigente de outras energias, inclusive da muscular. Assistimos a um processo de desmaterialização, sensibilização e espiritualização, a que corresponde progressivo aumento de poder em extensão e profundidade. Continuando no mesmo caminho, a mão, gradativamente transformada de instrumento de marcha em órgão apreensor e, depois, em órgão diretor de forças, a mão se transformará em meio de recepção e transmissão de vibrações dinâmicas e psíquicas, antena para comunicar e rece­ber energia e pensamento. Então, o poder interior do espí­rito terá podido aflorar de tal maneira da profundidade do ser que há de permitir ao homem comunicar-se e viver em comunhão com as infinitas energias do espaço.

O mesmo processo se repete relativamente à visão, à audição, a todas as vias sensoriais, ao sistema nervoso que as dirige, ao cérebro que as centraliza, enfim a todas vias através das quais o espírito comunica, recebe, se manifesta. O espírito exerce pressão de dentro para fora com o fito de tornar menos densa e romper a casca material da forma humana e, desse modo, ampliar as vias sensórias já conhe­cidas e descobrir outras a fim de em melhores condições, mais abundante e profundamente, servir à circulação das idéias. Assim, os sentidos, que o espírito produziu, cada vez mais por força dele se ampliam e se abrem às infinitas vibrações do universo; assim também pouco a pouco o ser se espiritualiza, isto é, evolui do estado físico ao estado vibra­tório, sai da forma material definida e assume forma etérea radiante. A evolução consiste realmente na maceração da forma material, que, a princípio vestimenta e veículo, se transforma depois em obstáculo e prisão; por isso a evolu­ção é continuamente superada e renovada. Este princípio, válido no passado humano, deve continuar com o mesmo valor no futuro. O desgaste da forma não constitui debilidade do sistema, e sim dura necessidade evolutiva apenas, simples pro­cesso de libertação que ao espírito aí preso permite manifes­tar-se. Por isso, a maceração física e moral é criadora, em­bora em nossa vida nos pareça tão destrutiva; e a caducida­de das coisas humanas, que tantas lágrimas nos causa, manifesta apenas na forma e constitui a condição necessária para que a vida perene surja de dentro da forma. Por isso, os golpes dolorosos conduzem-nos à vida, ao invés de, como parece, levar-nos à morte.

O espírito quer fugir da prisão; o progresso apenas pode consistir em contrariá-lo. Isso significa contrariar o impul­so fundamental do universo: liberação da forma e manifes­tação de Deus. Quando a centelha interior ainda não está preparada para desenvolver-se, a evolução se manifesta atra­vés da única via utilizável, a via dos sentidos; eis como sur­gem os gozadores, epicuristas e sensuais. Todo ser possui as vias que merecidamente ganhou. Nesse caso são escassas e o espírito, insatisfeito, reclama. Mas o involuído não dispõe de outras saídas e agarra-se desesperadamente às disponíveis; quando chega a morte, desespera-se de, perdendo-as, perder tudo, pois, desprovido de órgãos físicos, é incapaz de receber e transmitir, acostumado como está a vibrar apenas sob as formas mais grosseiras da matéria. Sua vida prende-se estreitamente ao corpo e o involuído, para sem ele não permanecer morto, busca-o de novo por ocasião de novo nascimento físico, como única forma de vida. Ao contrário, o espírito, esclarecido pela evolução, superou os meios sensoriais e lhes despreza a pobreza; tornaram-se-lhe mais os meios de seu aprisionamento que de sua manifestação; são agora insuficientes para saciá-lo; quando morre, perde-os sem amargura e não os procura de novo por ocasião de novo nas­cimento físico em nosso mundo. Quem se tornou mais sen­sível, espiritualmente falando, dá naturalmente muito menor valor ao mundo sensorial. Também como estrutura bio­lógica o evoluído difere do involuído, e não apenas do pon­to de vista moral e social. O involuído representa centelha espiritual ainda mal acesa, envolta por densos véus, encer­rada em envoltórios de trevas e, por isso, centelha ainda fra­ca e rudimentar perdida na enorme casa do corpo. O evo­luído, ao contrário, representa centelha de incêndio, que queima os véus e funde os envoltórios da forma; por isso, é poderosa e complexa unidade espiritual angustiada na casa do corpo. Da vida físico-sensorial o primeiro receberá, assim, alegre senso de expansão e o segundo, senso de dolorosa compressão; e onde este há de sentir-se vivo e flamante, o outro olhará emudecido e sem capacidade de compreender. A vida é totalmente diversa, embora a forma externamen­te visível seja a mesma e nela muitas vezes se baseiem os juízos humanos e as leis sociais. A vida pode ser para quem vale menos muito mais cômoda e bela do que para quem vale mais. Hipertrofia espiritual e excessivo desenvolvimen­to interior podem significar incompatibilidade com o am­biente e impossibilidade de adaptar-se-lhe. Então, o criador ultradinâmico parece maluco aos olhos dos estúpidos dor­minhocos; é claro: quem fica dormindo se mostra muito mais equilibrado do que quem caminha ou voa. Assim, para os que jazem tranqüilos na inércia, o evoluído talvez pare­ça explosivo e perigoso; quem enxerga longe perturba os pe­queninos cálculos aproximados e seguros, é aventureiro e revolucionário, incomoda e ameaça. O involuído condena-o e combate-o, mas sem ele, sem essa centelha animadora, permaneceria pobre e débil; sua segurança, se de um lado é tranqüila, de outro lado é anti-criadora, é o sono dos mor­tos. A evolução, que espiritualiza, também dinamiza; assim como caminha em direção à vida e a conquista cada vez mais, assim também caminha rumo à potência.

A inquieta agitação de nosso tempo, embora desordena­da e confusa, apresenta-se sempre como manifestação de di­namismo, que pode derivar tão-somente da pressão interna do espírito. Individual e coletivamente, o divino principio quer plasmar-se em novo homem e novo mundo, numa for­ma que mais se adapte a outra manifestação sua, mais ele­vada. Estamos ainda na fase caótica da tentativa, dos resul­tados provisórios e incompletos, da experimentação engano­sa; mas o dinamismo provém sempre de impulso interior, é sintoma revelador. Na desordem das organizações apressa­das sente-se hoje o orgasmo precursor. O involuído começa a acordar estremunhado. E ação inicial descomposta, mas de massas, pouco profunda, porém muito extensa. Por isso, damos hoje tanta importância a quantidade expressa pelo número. O certo é que o mundo hoje não está dormindo e na vida nenhuma agitação é vã. Quando está saciada, vemo­-la em repouso; e quando tudo está calmo, nada se cria. Quando, de acordo com seu grau evolutivo, o ser se aproxi­mou o mais possível da divindade, não se agita mais e seu dinamismo fica em suspenso, pois seu funcionamento não tem mais razão de ser. Mas, em conformidade com o ritmo da Lei, apenas se retome o ciclo ascensional e nova matura­ção o acompanhe, isto é, o espírito mais desenvolvido exerça pressão de dentro para fora, então, para superá-los ele co­meça a chocar-se contra os antiquados limites. Assim, a evolução embora contínua, se manifesta por transformações periódicas em que se concentra a expressão de longas e lentas maturações subterrâneas. A vida deve e quer obedecer e, se não pode ou falha, chora na dor de não poder ou na desilusão de não ter sabido ascender; chora a traição que praticou contra a Lei e paga com a própria ruína. A mú­sica de Mozart, exprime a harmonia e o equilíbrio que seu plano por isso de paz tranqüila e saciada. A música de Beethoven nos fala das tempes­tades e dos titânicos esforços criadores daqueles tempos. A música de nossos dias desarmônica e desequilibrada, exprime o desmoronamento deste mundo e um dinamismo levado à máxima exasperação, em busca de novo mundo que estamos esperando e ainda não sabemos encontrar. Todo estado de plenitude é calmo e todo estado de vácuo, insatis­feito e agitado. O evoluído tem estases em que as forças se equilibram e repousam. Trata-se de fase de maturidade da combinação dessas forças em sistema. Mas, apenas a alcan­ça, o impulso interior da vida continua a movimentar essas forças, tentando combinações mais elevadas e complexas. Daí resulta novo desequilíbrio a ser reequilibrado, nova la­cuna a preencher e assim por diante. Os períodos de sacie­dade satisfeita representam objetivo atingido e os de dese­quilíbrio insatisfeito significam objetivo a ser atingido. Os primeiros já chegaram e agora repousam, os demais acabam de partir e estão correndo ainda. Os primeiros se consti­tuem de espíritos demolidores, críticos, inovadores. Repre­sentam a felicidade em que se resume e beatifica ignorância de sermos felizes. Porém, tão logo começam o desequilíbrio e o desacordo, a luta e a dor aparecem; então, analisa-se a felicidade, que, analisada, desaparece. Ela, porém, torna-se consciência e base construtiva de felicidade mais completa. Como esta nasce da dor, como a ciência se originou do sofrimento, assim a grandeza e a força nascem da fragilidade e da fraqueza. Nossa época mostra-se inquieta, analista, dolorosa; possui, sob forma destrutiva e em sentido negati­vo, tudo quanto, sob forma construtiva e em sentido posi­tivo, deverá conquistar mais tarde.

Com esses poucos traços esboçamos vários aspectos do futuro tipo biológico e enquadramos, no fenômeno evolutivo universal, nossa época e sua criação biológica. Desse modo desenvolvemos alguns conceitos de A Grande Síntese. A ti­tulo de referência, reportamo-nos aos principais. Cap. XLIII: "A maturação dessa super-humanidade constituirá a maior criação biológica de vossa evolução, pois representa passa­gem para lei de vida superior..." — Cap. LII: "Tudo que nasce deve renascer cada vez mais profundamente". — Cap. LXXV: "Eu lhes disse que vocês estão em grande curva da vida do mundo; a Lei, que a maturou durante dois mi­lênios, hoje nos impõe essa revolução biológica. Os fatos, que sabem fazer-se ouvir por todos, hão de obrigar vocês tam­bém. Trata-se de movimentos mundiais de massas e de es­píritos, de povos e de conceitos, movimentos profundos a que ninguém escapará. Mas, antes de os fatos falarem e de se desencadearem as forças mais baixas da vida, deveria fa­lar o pensamento, dever-se-ia avisar a fim de que quem pu­desse entender entendesse". — Cap. LXVI: "A lei do progres­so impõe a continua dilatação do espírito. A evolução se dirige irresistivelmente ao superconsciente, ao supersensí­vel". Idem: "Desde que cresce cada vez mais o campo que dominamos no âmbito do consciente, desloca-se progressi­vamente o limite sensorial, o sobre-humano torna-se humano; o superconsciente, consciente; e concebível o inconcebível... o meio material se aperfeiçoa e se torna tão sutil que atin­ge as raias da desmaterialização... “ — Idem: "O homem desse modo cada vez mais se afasta da forma animal, atra­vés de contínua desmaterialização de funções que leva a progressiva desmaterialização de órgãos. A vida humana se concentra cada vez mais na função psíquica diretora..." — Cap. LXII: "Evolução biológica para nós significa evolução psíquica...". "...absurdo conceber as formas como fim de si mesmas, evoluindo sem objetivo, sem continuidade, justamente onde as precede eterno transformismo...". — Cap. LI: "Observem como nossa entrada no mundo biológico se processa justamente por via das formas dinâmicas. Com a eletricidade, situada no vértice dessas forças, não chegamos apenas à forma, mas ao princípio mesmo da vida, ao motor genético das formas... Tocamos... não a evolução dos órgãos, mas a própria evolução do Eu, que as adiciona e plasma para si, como instrumento da própria ascensão". — Cap. LXIII: "Vejam como tudo quanto existe se origina de princípio que não age sempre de fora para dentro, mas de dentro para fora, princípio encerrado no íntimo misterioso do ser... — Idem"... Esse o princípio que se desenvolve internamen­te, exteriorizando-se a partir desse centro profundo em que vocês devem verificar a existência da essência das coisas e o porquê dos fenômenos. Deus é a grande força, o conceito que opera na intimidade das coisas e daí se expande..."

Concluindo com este argumento, poderíamos dizer que o homem atual está para o futuro tipo biológico assim como o pré-histórico pitecantropo está para o homem atual. Do mesmo modo que o pitecantropo, porém, o homem atual se encontra no ambiente adequado. A diferença nasce quando, dentro da própria fase, nos retardamos. A marcha da evo­lução é harmonia, desenvolvimento sinfônico de infinitas forças, maturação orgânica. Já observamos o evoluído, co­mo antecipação hoje ainda excepcional. Mas a evolução ca­minha para a generalização desse tipo mais adiantado. Quem se atrasar, quem abandonar sua fase, retardado na maturação de todo o concerto de forças, em verdade será inferior a todo o resto. O futuro tipo biológico é, pois, o evo­luído. O estudo que a cada passo, sob tantos aspectos, dele fazemos neste volume, serve para dar-nos dele o retrato de corpo inteiro; neste capítulo apenas o descrevemos suma­riamente. O atual involuído poderá negar, rir, rebelar-se; tem essa liberdade. Apenas verificamos, objetivamente, co­mo funcionam as leis da vida. Contudo, hoje com certeza o mais pisado pela dor é ele, e não o evoluído, que já se des­prendeu da terra; os mais golpeados e destruídos são os tesouros terrenos do primeiro e não os espirituais do segun­do; àquele competirá, pois, encontrar solução e saída que lhe convenham, porque este já as encontrou. O evoluído nada mais tem a perder ou temer na terra, pois suas rique­zas são invulneráveis. Por meio da sabedoria e da comu­nhão com Deus já conseguiu o único paraíso possível na ter­ra; não perde mais tempo e trabalho correndo atrás de pa­raísos, irrealizáveis como o sabem os que compreendem a Lei.

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