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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A Nova Civilização do Terceiro Milênio-Parte 2-Pietro Ubaldi

 

Índice do BlogParte 1- Parte 2

 

Neste capítulo, ao delinear o perfil do futuro tipo bio­lógico, falamos principalmente a respeito de sensibilização nervosa, exatamente porque em especial sob o aspecto bioló­gico foi que estudamos esse fenômeno evolutivo. Sabemos, porém, que essa via biológica de ascensão se relaciona com a via moral, é até mesmo condição desta e meio de atingi-la. Trata-se, na evolução biológica, de elaboração orgânica que caminha rumo ao imponderável. A sutilização e a desmate­rialização do invólucro físico torna-o cada vez mais trans­parente e, por isso, evidencia mais a manifestação do espí­rito. E é no plano espiritual que o dinamismo da vida con­segue esse refinamento, capaz de permitir-lhe o aparecimen­to em sua forma moral. Tudo isso que é evolução e sensibilização pode apenas conduzir, por isso, a evolução e sensi­bilização moral. A bondade e a sabedoria do futuro tipo bio­lógico, por isso, podem também ser atingidas através do me­tabolismo orgânico, capaz de permitir transformação lenta da estrutura celular. Todos os aspectos da vida se relacio­nam reciprocamente e todas as suas maturações caminham lado a lado. A transformação evolutiva é orgânica, nervosa, psicológica, conceitual e ao mesmo tempo moral, refinamento de estrutura celular, sensibilização, bondade, compreensão. Es­sa passagem da fase involuída para a evoluída constitui, assim, profundo processo que se apossa de todas as qualidades humanas, da extremidade física à extremidade espiritual da vida, elabora completamente o ser e, por expansão interna, plasma de novo a forma, tornando-a cada vez mais apta a exprimir o espírito. Nisso se revela a organicidade da natu­reza e o princípio unitário, monístico, do universo. Parece que durante essa passagem todas as fibras da vida vibram e, em todos os graus evolutivos, ela responde ao novo apelo dos tempos e se move sintonizando seu ritmo com a harmonia do universo. Assim, a ordem biológica ascende ainda até Deus, que aí se revela ainda mais; assim, a vida exulta ao aproximar-se novamente do objetivo e as consciências ouvem o canto perene da fonte, cada vez mais claro. Nova revela­ção de Deus o atinge profundamente e o desperta, para criar, criar mais, formas cada vez mais próximas da perfeição. Ascender é ser feliz. Treme o grande ritmo do tempo, sus­penso em solene espera. O homem novo vai nascer. A vida quer falar-nos de Deus cada dia mais claramente, pois ela é Sua glorificação.

XVI

VISÃO (1º TEMPO)

Todo capítulo deste livro, como todo capitulo da vida, é quadro diante do qual paramos contemplativos. Esses qua­dros, que estamos desenvolvendo, se poderiam também cha­mar contemplações. No último deles o universo apareceu-nos como floração de vidas. Seu transformismo evolutivo é de­senvolvimento contínuo em que parece reproduzir-se em di­mensões gigantescas a técnica expansionista da semente, a lei de desenvolvimento do indivíduo, o mecanismo da matu­ração da vida, como se no ciclo vital de toda criatura se re­petisse em ponto pequeno o mesmo esquema do ciclo vital do universo, máximo organismo coletivo. De fato, até mes­mo os universos nascem, crescem, envelhecem e morrem, para como todo ser vivo renascer e morrer de novo. Tam­bém eles passam por alegre juventude e cansada velhice, nascem de um germe e, ao morrer, deixam seus despojos mortos. Todos os fenômenos parecem desenvolver-se de acor­do com um só esquema, cuja aplicação gasta todas as coisas, consome toda força, encerra todo ciclo, exaure e extingue toda vida.

Mas agora voltemos as vistas para outra contemplação, de índole diferente. Para que, depois da tensão conceitual prolon­gada até agora, o leitor descanse alguns momentos; para satisfazer outras exigências espirituais, diferentes das inte­lectivas e racionais, e também outras da fantasia e da pai­xão; para, finalmente, expor os mesmos problemas, não mais sob forma racional e abstrata como até agora, mas dramatizados em cena bem sintética, relatemos a visão que, em meio de emoções turbilhonantes e na profundidade de ensurdecedor silêncio, tivemos em luminosa manhã de maio. Aqui a reproduzimos com objetividade cinematográfica, tal qual, emergindo das profundidades da consciência, se nos revelou, na roupagem teatral com que o pensamento abs­trato se concretizou no sonho, se ao menos em substância não lhe podemos chamar intuição ou pressentimento profé­tico. Os fenômenos de visão interior examinamo-los no cap. XXVI, deste volume, a respeito da vida dupla. Vamos por algum tempo mudar a forma mental, a fim de podermos falar à inteligência e ao coração e alimentar também essa outra qualidade da alma humana. Todo tipo de leitor encontrará neste livro a linguagem que se lhe adapte. O tipo racional, mais capaz de pensar do que de chorar e amar, poderá escolher os capítulos racionais. No vasto complexo humano, além das ressonâncias do intelecto há outras, todavia, pelas quais pode­mos comunicar-nos. E todo leitor reage, segundo personalíssima capacidade de vibração, quando sente, tocarem na sua corda sensível, e isso mais por mera sintonia do que por ati­vidade do raciocínio. Do contrário, mostra-se surdo não sen­do tangido, permanece imóvel, não sabe responder e toda de­monstração se mostra inútil. Que coisa é a convicção, além de espontânea e uníssona vibração? Essa vibração pode nascer mais facilmente de persuasão e da paixão pessoal do que do frio raciocínio. A convicção não é processo lógico, mas estado vibratório; não nasce, por isso, do raciocínio, mas da ra­diação psíquica; não resulta de argumentação cerrada, mas de acordo vibratório por sintonia do pensamento. O processo não deve ser coagido, mas espontâneo. Pelo contrário, nada, como a presença da vontade que tenda a impô-las, afasta tanto assim a compreensão e a convicção; e nada nos persuade e arrasta com tanta força como a existência, naquele que fala, de sentida e sincera convicção. Daí se de­preende quanto o velho sistema da coação lógica se revela absurdo e ilusório, se com ele pretendermos resolver o pro­blema da convicção das consciências. Esse método coativo mais ou menos se origina da luta, constitui a transferência, para o plano psicológico, do sistema do involuído, diante de quem a força significa vitória. Mas o pensamento está bem mais acima e seu valor escapa-lhe. Assim, o desejo de proselitismo, ao invés de atrair, costuma repelir, pois provoca desconfiança; o desejo de conquista excita resistência. Por isso, quando argumentarmos, convém limitarmo-nos sem­pre a expor, sem jamais pretender forçar a persuasão, sim­ples ato de adesão espontânea sendo assim, toda atitude que lembre a força e a imposição tende a resultados absoluta­mente negativos. Não é a astúcia raciocinadora, nem a chi­cana sutil, nem o desejo de fazer prosélitos, que me fornece substância ao pensamento e me anima a palavra, mas a fla­ma da fé e a profundeza, a evidência, a intensidade da própria visão. A guisa de disco fonográfico, as palavras registram-lhe escrupulosamente a radiação e assim a reproduzem ao leitor. A palavra falada ou escrita não passa de vibração fonética ou graficamente expressa, vibração dirigida à for­mação de outras vibrações. Se ela, embora brilhantemente vestida, é substancialmente falsa, apenas poderá gerar vi­brações falsas. Por isso, o silogismo e a retórica constituem elementos negativos para o pensamento e traição contra o espírito.

Relatemos a visão, mas antes aqui ficam duas observações: 1) Este volume, como está mais bem especificado no cap. XXII "Tempestade", foi iniciado e continuado até este ponto na primavera de 1944. Essa visão eu a tive na ma­nhã de 12 de maio de 1944. Sexta-feira, isto é, 33 dias após a manhã de Páscoa, coincidência percebida só mais tarde. Essa visão registrei-a imediatamente por escrito e vou repro­duzi-la agora sem modificação alguma. É a pura verdade. 2) A visão pode assumir vários significados, superficiais ou profundos, conforme a capacidade de compreensão do lei­tor. Nela existe, afora o sentido superficial, de mera narra­ção, o sentido espiritual, mais potente, simbólico, que à ín­dole mais ou menos madura do leitor cabe saber discernir. Ou, mais claramente, o relato da visão podemos lê-lo con­forme três níveis, três planos, correspondentes aos três pla­nos evolutivos de nosso universo, quer dizer: matéria, ener­gia e espirito. Em outras palavras: podemos "vê-la" como forma, na aparência exterior com que surge em cena, na pe­riferia, como fato material, enfim; ou, então, "senti-la" co­mo dinamismo motor dessa forma e dessa sucessão de cenas, mais internamente, como vibração animadora do fato ma­terial; e, finalmente, "intui-la" como princípio espiritual que do centro dirige os movimentos desse dinamismo e, reu­nindo-os na mesma trajetória, os guia de acordo com pen­samento e finalidade bem determinados. Essa penetração progressiva, encaminhada da superfície à parte mais pro­funda e da periferia ao centro, exemplifica o modo por que, de conformidade com sua estrutura, podemos compreender o universo. Eis a visão que eu tive.

Na basílica de São Pedro em Roma, templo máximo da Cristandade, imensa multidão se reunira junto ao túmulo de seu fundador, o primeiro entre os apóstolos. Ninguém saberia dizer que pressentimento levara tanta gente a assistir a ritual por si mesmo tão comum. O instinto das mas­sas, reconheçamo-lo, percebe a aproximação das horas apo­calípticas da vida; fazia alguns dias que havia qualquer coisa no ar, angustiando as almas. Seria, talvez, a sensação confusa da extraordinária gravidade da hora; ou, quem sabe, a espera de novos acontecimentos, de algo decisivo na­quela conjuntura histórica; ou, então, maus pressentimen­tos, que nenhum fato concreto poderia justificar racionalmente. Disso tudo nascera em tantas pessoas a necessidade de se aproximarem, de se encontrarem de novo, de se reu­nirem e de novo travarem conhecimento; e isso precisamen­te naquele templo, cujo poder de atração parecia dever-se à sua ligação com o estado apocalíptico das coisas. Naquele momento a basílica assumia particular significado, talvez mesmo único quanto ao sentido finalístico, significação sobre-humana capaz de permitir o restabelecimento dos contatos, há tanto tempo perdidos, entre o homem e Deus. Assim, em plena noite espiritual dos séculos o tempo surgia como luminosíssimo farol. Por isso, se era ordinária a forma ritual, aquele momento se revelava extraordinário para a vi­da do mundo. A guerra acabara, deixando-nos, após longos anos de tormento, comprida esteira de dores maiores ainda. Tantos sofrimentos haviam amadurecido os espíritos para novas atitudes, tornando-os dispostos a novos superamen­tos. E instintivamente a alma do mundo esperava, para re­novar-se, que de Deus viesse a primeira centelha, como pro­va, exemplo e estimulo; esperava o sinal que indicasse e abrisse o novo caminho.

O templo estava repleto. Jamais se vira tanta afluên­cia de povo. Irresistível impulso levara tanta gente a acor­rer de todas as partes do mundo e, no entanto, poderíamos seguramente dizer que o templo máximo da Cristandade naquele momento abrigava os maiores e melhores expoentes de toda humanidade. Segundo parecia, a Cristandade, mais do que ao apelo formal, obedecera ao apelo apocalíptico da hora, à irresistível necessidade de naquele momento dar solene testemunho de fé, reunindo-se unanimemente em tor­no do Pontífice, aos pés de Cristo. A dor cavara tão fundos sulcos nos espíritos, a alma do mundo martirizado descera a desespero tão negro ao ponto de perceber-se em todos os espíritos a reação contra o absurdo, o insuportável, o impos­sível que era ter de empregar ainda o antiquado binômio, ao ponto de sentir-se a necessidade, a fatalidade e a iminência de total modificação do mundo atual. Mas, como? Aque­la massa humana ignorava. Havia na multidão a confusa vontade de continuar a viver, mas de modo melhor, com mais elevação e mais lógica, mais bondade e mais rendimento, de reconstruir-se, de sair do abismo em que o mundo caíra, de reformar-se inteiramente, remontando às origens. Havia em toda aquela gente o instinto vital que cerca todo campo e, juntando-se em última análise ao erro e aos desas­tres do erro, retorna às grandes idéias-mães, com que du­rante séculos e séculos se alimentam, para nelas haurir nova força e nova luz e encontrar salvação. O espírito adormen­tado pelo bem-estar e pela ilusória filosofia do bem-estar agora despertara; o imponderável, antes repelido e negado, voltava de novo ao mundo, atendendo ao apelo do homem provado pela dor. Essa própria multidão já constituía ma­nifestação desse imponderável. A voz de Cristo ecoara de novo nos corações e muitos, tendo-a ouvido, acudiram: os capazes de salvar-se, para salvar-se e salvar os capazes de salvar-se. O povo reunido no templo representava e simbo­lizava o homem cansado da vaidade de suas construções, conquistas e experiências filosóficas, sociais, políticas, eco­nômicas e científicas, o homem que, depois de tantas ten­tativas, finalmente se afogara na imensa dor de guerra de extermínio total, traído pela força e pela riqueza em que acreditara. (Cf. A Grande Síntese, Cap. LXXV: "... vocês confiam apenas na riqueza e na força elas, porém, acaba­rão traindo-os.") As ilusões fáceis, a simplicidade pueril, as loucas esperanças, tudo se desvanecera diante da realidade. Agora, a humanidade se encontrava em posição diversa da­quela antes da guerra: posição de quem, percorrida a fase de prova, percebe haver cometido erro e amargamente se vol­ta para dentro de si mesmo, a fim de refletir e, em seguida, compreender, reconstruir, ascender. Aquela multidão, mes­mo sem o saber, exprimia tudo isso e tinha vindo testemu­nhá-lo. Nova e desconhecida ânsia a constrangia a reaproximar-se das eternas fontes da vida, a retomar o perdido contato com o divino centro de todas as coisas, que, eternamente criando, nutre. A nota dominante na psicologia da­quela massa de povo se constituía da invocação apaixonada e retumbante dirigida ao céu. Sob esse impulso maior e mais significativo, ondeavam na massa variegados impulsos menores, vórtices de terror, chamas de esperança, de fé e amor, zonas crepusculares de dúvida e desencorajamento, manchas lívidas de ódio ou de treva. Mas o dinamismo dominador se representava por abrasadora sede de bem e de justiça e se elevava como purpurino cálice de ofertório, pro­jetado para o alto como resplendente cone, para dar e receber, arremessado contra as fechadas portas do céu, à procura da potência que as reabrisse dando para o inferno terrestre, e prometesse luz salvadora em meio das trevas acumuladas pelo mal. O grande número, a violência do de­sejo, a intensidade da aparição, a substituição do indivíduo pela massa, em que todo impulso individual se reforçava, combinando-se e somando-se com outros, tudo isso formava irresistível corrente de pensamento, de alta tensão, retilínea e ascensional, vibração sonora e penetrante, imensa e poderosa oração, que crescia e transbordava como se fosse maré montante, avançava tempestuosamente e em meio de relâm­pagos subia, turbilhonando, em direção ao céu.

Nossa narração começa quando, nesse dinamismo cen­tral e dominante, inesperadamente se enxerta outro e am­bos se combinam, excitando reações e encaminhando solu­ções. Esse novo dinamismo é o dinamismo particular do drama que agora começa. O momento, já de si grave, tor­nava-se cada vez mais grave. O Pontífice já devia ter des­cido há duas horas a fim de celebrar o rito na basílica. A multidão dava mostras de cansaço, depois de espera tão pro­longada, e de apreensão por motivo do inexplicável aconte­cimento. A tensão crescia sempre mais; a preocupação con­tinuamente se agravava. No seio daquela massa enorme se propagava ligeiro murmúrio, que, apesar do respeito devido ao local, se ia tornando mais extenso e profundo. Na psico­logia coletiva começava a caracterizar-se e a fixar-se o pres­sentimento confuso, mas crescente, de perigo desconhecido (quem sabe que perigo!), mas grave e pendente sobre a ca­beça de todos. A intuição popular percebia o imponderável, indicando a aproximação de Imenso perigo, de terrível amea­ça que, embora invisível, advertia de sua presença.

Aonde vão as massas buscar intuições? Talvez à inter­pretação lógica de algum sintoma, embora exagerado pela imaginação, como, por exemplo, um atraso, um gesto, um passo nervoso, um diz-que-diz. O senso do perigo e do medo é o mais antigo e profundo do organismo humano, e corresponde a instinto dos mais ativos e arraigados por dura experiência. A maior atenção das defesas físicas dirige-se pa­ra a conservação. Nas multidões, talvez algum sensitivo fun­cione como antena receptora em relação à massa, que desempenha o papel de caixa de ressonância, de amplificador, aumentando desse modo o volume do dinamismo e reforçan­do, com a quantidade de energia representada por ela, a qua­lidade fornecida pelo sensitivo-antena. De fato, em dado mo­mento da maturação do fenômeno, isto é, quando se atinge determinado potencial, a faísca incendiária explode e alguém, desempenhando o papel de faísca, e mais intérprete do que criador, encaminha os movimentos da massa; assim se desencadeiam correntes incontroláveis. Alguém percebe antecipadamente aquilo que mais tarde todos perceberão, demons­tra-o sob forma sensível e então os demais o reconhecem. Se o pioneiro do movimento de fato não ouviu e compreendeu a voz do imponderável, a multidão por sua vez nada ouve e por isso ninguém o acompanha, se o pioneiro não revela o que todos já sabem existir, se a dele não é voz coletiva, mas individual, a multidão não o entende e abandona-o. Trata-se de registro e ampliação, de fenômeno de ressonância. Primei­ro alguém vibra e em seguida sensibiliza a íntima e vaga intuição geral, revela-a e comunica-a; os demais recolhem essa voz; controlam-na, caso corresponda à sua íntima intui­ção; e só nesse caso a aceitam e perfilham, aderindo a ela e dando-lhe contribuição de forças. Numa cadeia de intuições, os indivíduos, inconsciente e instintivamente, se aus­cultam e controlam mutuamente; desse íntimo contacto in­tuitivo nasce o consenso coletivo. "Espontaneamente", di­zem. Produzido por todos em geral, e não por alguém em particular, esse consenso resulta da lei do fenômeno que nesse momento revivemos e da vontade das forças que o di­rigem. Na multidão como no povo, em todo fenômeno de psicologia coletiva toda célula componente contribui com sua ressonância, recebe e transmite, alimenta-se da vibra­ção coletiva e nutre-a por sua vez, restituindo-a multiplica­da por si mesma e reforçada pela própria energia. Desse mo­do serpenteiam, se formam, oscilam, se definem, se acen­tuam, se impõem correntes de pensamento e isso obedecen­do inconscientemente à lei do fenômeno, nascendo de bagate­la aparentemente sem importância, quando no íntimo todas as coisas estão maduras e saturadas e, finalmente, crescen­do como avalancha que tudo altera e destrói com terrível potência.

Nisso se passou mais uma hora sem que o Pontífice apa­recesse. A ansiedade e o desentendimento iam-se tornando cada vez mais profundos e começavam a manifestar-se por intenso murmúrio, por agitação confusa, pelo crescimento daquele bramido de oceano com que se parece a voz das massas, pelo crescimento daquelas ondas encapeladas que são os movimentos populares. Viam-se na superfície assim como que rodamoinhos e, em seguida, vácuos, correntes, ângulos remansosos e, nas passagens estreitas, corredeiras. Aquela multidão palpitante interrogava a si mesma. Queria sair, li­bertar-se, dilatar-se no espaço. Queria dispersar-se, visto como vinha a faltar-lhe o objetivo representativo da força de coesão que a mantinha unida. Assim, criara nojo de si mesma, de ser multidão, de ser unidade que não tinha mais razão de existir como tal; e, como acontece em organismo desfeito, todo elemento componente queria separar-se dos demais. Diminuía o impulso unificador e a multidão tendia a dispersar-se. Algo, porém, a impedia: algum obstáculo con­tra o qual o dinamismo dominante se erguia cada vez mais ameaçador. Ninguém abria as portas. Não se abriam nem podiam ser abertas. O tardio da hora tornava lógica e de­sejável a volta para casa. Por que as portas não se abriam? O desentendimento aumentava; a agitação das ondas fa­zia-se ameaçadora; o pânico alastrava-se; o ímpeto incons­ciente da alma irracional da multidão convergia irrefreavelmente em direção das portas, erguia-se terrível contra aquela inexplicável clausura, aumentava, subia, chocava-se contra os muros, embolava-se, agigantava-se, concentrava-se na clausura e potenciava-se, preparada para o que desse e viesse, para subverter fosse lá o que fosse, desencadeando-se como furacão.

Em meio dessa tempestade, sozinho no meio de tanta gente, um homem.

Guiado até aquele lugar pelas sábias combinações de forças da Divina Providência, aparentemente fortuitas e a que nossa ignorância dá o nome de acaso, esse homem, indi­ferente e com a aparência de quem estava muito longe dali, mas de fato presente e ativo em plena tempestade, esse homem escutava. Ressoava nele o rugido psicológico da multidão; mais de perto, porém, o impressionava a voz interior que, acima do turbilhão e vencendo-o, lhe falava. Parecia-lhe estar no centro do turbilhão, que era superado pela voz. Debatia-se arrastado pelo poder dessa voz, a que sua razão, lu­tando desesperadamente, debalde tentava resistir. Eis ó coló­quio íntimo em meio da tempestade:

A voz: "Vamos. Chegou a hora. Está na hora de cum­prires tua missão. Vamos. Agora ou nunca".

O homem: "Senhor, não vão compreender. Já to disse várias vezes. Não me seguirão. É tolice tentar de novo. Seria o mesmo que semear nova desordem é imprudente exci­tar multidão agitada, não quero ser o causador de males. Além disso, sinto-me cansado, incapaz, ignorado e só. Não posso dominar forças tão gigantescas".

A voz: "Está na hora de cumprires tua missão. Agora ou nunca. Deixa-me ir na tua frente. Segue-me ou então vou sozinho ao encontro do inimigo".

Na multidão preocupada consigo mesma ninguém pres­tava atenção aquele homem; ninguém o notara ainda, nin­guém o conhecia. O furor da luta íntima causava-lhe ansie­dade. O deslocamento das pessoas tinha-o levado até quase ao centro do templo, perto do altar-mor. De repente, achou-se ele diante de espaço livre, voltado para o centro da balaus­trada. Impulso proveniente da multidão o atirou aturdido na­quele espaço e como que um relâmpago o cegou. A luz do relâmpago lhe apareceu a figura de Cristo. Estava à sua di­reita e na sua frente. O homem então exclamou: "Domine, quo vadis[10]?" E, dirigindo-se ao povo, gritou ainda: "Cristo, Cristo! Eu vi o Senhor!"

A multidão voltou-se estupefata, ouvindo o grito inespe­rado, e ficou suspensa. Então, em pé, diante do cancelo da balaustrada, com a mão direita bem levantada, o homem fa­lou. A multidão voltou-se para ele, ouviu, entendeu, escutou. Pouco a pouco a calma se transmitiu até aos mais distantes. E ele disse-lhes com voz retumbante:

"Irmãos! O caráter excepcional da hora exige métodos excepcionais e nos impõe segui-los. Nos tempos normais a forma domina a substância nos momentos supremos a substância domina a forma. De fato, este momento é excepcional. Falo-vos em nome do Cristo. Ele me trouxe até aqui e vive em mim, mais forte que eu. Não consigo resistir-lhe. No instante em que eu saía do meio da turba, os meus olhos vi­ram o Senhor e Lhe perguntaram, como Pedro quando fugia de Roma: "Domine, quo vadis?" E o Senhor me disse: "Se­gue-me ou eu então irei sozinho ao encontro do inimigo. Hoje é o dia de minha batalha e hei de vencê-la desarmado. Em verdade, só desarmados é que vencemos os inimigos, sejam quais forem". Cristo, aqui presente, é nosso guia. Esta hora não é a da forma, mas a da substância; é a hora de distinguir entre a fé criadora dos mártires e a fé cansada e apa­rente dos adormecidos. O momento exige essa distinção. Quem está do lado do Cristo, não importa qual seja a forma humana, desde que verdadeiramente cristão, quer dizer, pa­ra a vida e para a morte, esse dê agora testemunho. Saia da multidão, entre em fila no corredor central, que está livre, e prepare-se para seguir Cristo, nosso guia".

O homem respirou fundo; depois, continuou:

"Não sabeis. Mas em duas palavras vos direi o que está acontecendo. Estamos presos neste templo. Suas portas es­tão fechadas por fora. Não podemos sair. Os que nos sitiam nos crêem ignorantes do sitio e colhidos de surpresa. No entanto, percebo as forças que nos cercam. Executando há­bil e rápido plano, queriam apanhar hoje aqui reunidos o Pontífice e os maiores representantes da Cristandade, den­tro de seu maior templo, para de um só golpe destruírem o primeiro, o segundo e o terceiro. Destruição física, símbolo da destruição moral da Igreja, lábaro da revolta a ser entre­gue ao mundo, primeira fagulha da nova barbárie do III Milênio. As forças do mal uivam às portas do templo, que­rendo entrar e destruir o germe, aqui presente, da nova ci­vilização do III Milênio. Lá fora a praça está cercada de carros-blindados, de canhões e de metralhadoras; os pri­meiros, prontos a avançar e adentrar pelas portas, esmagando-vos e ceifando-vos no interior mesmo da basílica; os segundos, em condições de derrubar a cúpula e os muros; as últimas, prontas para metralhar na praça qualquer so­brevivente".

Gritos de terror explodiram na turba. Calmo, o homem continuou:

"Não temais. Cristo aqui está para defender Sua Igre­ja. Percebo o ânimo dos agressores entranhado nas máquinas de guerra, sua única força. Percebo em vosso ânimo o turbilhão do terror e o incêndio que minhas palavras provocam em vós. Percebo o ânimo do Pontífice, que conhece esse pe­rigo e gostaria de descer à Praça e afrontá-lo antes de mais ninguém, gostaria de vir para junto de nós a fim de morrer conosco; mas foi impedido pelo seu séquito que, por natural e acertada medida de prudência, deseja pôr-lhe a salvo a augusta pessoa. Percebo, enfim, o vórtice de potência que desce do céu e exerce pressão sobre mim e sobre vós. É verdadeiro exército de forças inteligentes chamadas anjos. Pre­cedem-vos, circundam-vos, defendem-vos. Eis que o impon­derável se manifesta. Percebo o milagre iminente de nos­sa vitória nesta nova guerra travada sem armas. É o resul­tado lógico, natural e fatal da natureza e poder dos elemen­tos em choque. Venceremos".

"O Espírito está agora conosco no templo e a matéria esta às suas portas, para destruí-lo. A dor despertou o espírito. Nós, que sofremos, sabemos disso muito bem. A batalha vai começar. A matéria assalta o espírito por meio da força e da morte. O espírito afronta a matéria, através da justiça e do amor. Este é o momento da suprema decisão. Aqui dentro está o Cristo; lá fora, o Anticristo. Estão frente a frente, cada qual com suas armas. Vencer ou morrer. Civilização ou barbárie, durante milênios. Estamos em cima da hora e este momento vai decidir. Chegamos ao momento supremo em que a História vai iniciar nova época e a vida, nova fase evolutiva estamos no instante exato da passagem de uma civilização a outra. Nossa adesão, o impulso de nossa von­tade livre constituirão a gota que fará transbordar o cálice e estabelecerá novo equilíbrio no mundo. Podemos escolher. Podemos aderir-lhe ou repeli-lo. Mas o nosso destino grita-nos: agora ou nunca. Se negarmo-nos a decidir, durante milhares e milhares de anos choraremos sobre nossas vidas fracassadas. O momento, supremo, nos exige essa oferta; o mundo espera esse impulso a fim de passar dos caminhos da matéria aos novos caminhos do espírito. Ai daqueles que agora desertarem, ai de nós e de nossos filhos, se recuarmos covardemente".

"Avante! Sigamos Cristo. Demos o primeiro passo no caminho da ascensão, demos o primeiro lance rumo à nova civilização. Este primeiro passo, porém, pode começar ape­nas aqui, no túmulo de Pedro, em Roma, na Idéia de Cris­to, da universalidade e unicidade dessa idéia central no mundo. A primeira centelha não é civil, mas religiosa, nas­ce da maturidade e não do enquadramento; não se origina do homem, cujos caminhos são exteriores e coativos, mas de Deus, cujos caminhos são interiores e espontâneos. O pri­meiro momento, o do impulso inicial, só pode ser místico: é contato direto com o Alto. Assim, recebido o impulso, a idéia universal, que emanou do Cristo, irá depois materializando-se pelos caminhos do mundo, diferenciando-se segundo for­mas particulares adaptadas aos diversos povos, será confia­da aos cuidados de administradores cuja tarefa consiste em, segundo o espírito, acompanhar, organizar, plasmar a ma­téria. Mas sem esse elevado princípio regulador e sem essa força moral, os Estados serão organismos sem alma; os po­vos, arcabouços de ossos e músculos, mas desprovido de cé­rebro; e a organicidade moderna não permanecerá íntima e vital, mas exterior e opressora".

"O velho mundo da força bruta encontra-se lá fora, com poderosas armas homicidas. Aqui dentro, o novo mundo com a dinamite do pensamento, o poder do exemplo, a su­perioridade do espírito. O bem e o mal, o espírito e a matéria, hoje vão travar batalha decisiva. Deus é o bem. Sata­nás, o mal; porém, não prevalecerá. Não passa de instru­mento de Deus e, esgotada sua função, se destruirá nas mãos d'Ele. Eu grito: Venceremos. Deus está conosco. Eis que o espírito sai dos recintos fechados das igrejas do mundo, im­pregna todas as coisas, invade e conquista todas as expres­sões da vida. Finalmente, o ciclo da matéria encerrou-se. A matéria cansou-se de tanta destruição. De acordo com sua própria lógica, percebe que os desastrosos resultados obtidos a colocam do lado do erro. Já percebe, embora con­fusamente, a própria debilidade e sente a reação iminente. Percebe o desejo que a vida manifesta de reequilibrar-se, atin­gindo de novo as fontes do espírito, e agarra-se às suas má­quinas de guerra, ao ouro, aos mais baixos sentimentos hu­manos. Tudo isso, porém, completa e impiedosamente trai­rá aqueles que impiedosamente não crêem senão no direito do mais forte. Quem semeou loucura colherá loucura. Esta é a hora apocalíptica de sua destruição. A alma do mundo está despertando. A lei de Deus hoje diz: Basta! E prende de novo a besta em seu inferno. Vamos. Com o espírito venceremos".

Assim falou o homem. A multidão, que escutara, suces­sivamente atônita, comovida, conturbada e extática, a mul­tidão calava. Por fora, calma absoluta, mas o fragor do tu­multo das almas ensurdecia. A multidão hesitou um instan­te só; em seguida, com muita ordem, calma e segurança, co­meçou a entrar em fila ao longo do corredor central. Os voluntários do sacrifício eram homens, mulheres, jovens e ve­lhos, de todas as classes, de cultura, educação, posição social, nacionalidade e, até mesmo, de religião diferentes, O apelo fora feito a todos, sem outra exigência senão a de ser sim­plesmente discípulo de Cristo, e muitos o atenderam: dou­tos e ignorantes, homens de ciência e homens de fé, patrões e operários, humildes e poderosos. Muitos. Até mesmo reli­giosos e religiosas, de várias Ordens, militares de todos os postos hierárquicos, campeões de todas as modalidades. Mesmo das fileiras do clero oficial, agrupado na abside do templo, alguns haviam entusiasticamente acorrido. Enquan­to o multiforme cortejo se ia formando, o homem que havia falado olhava-o, rezando.

Antes de mover-se do lugar, ajoelhou-se diante do altar, em seguida pediu uma cruz ao clero do templo, não metáli­ca, mas de madeira como a de Cristo e, assim, o mais pobre possível. Não encontraram; por isso, com duas tábuas improvisaram uma. Abraçou-a, beijou-a e começou a andar. Enquanto ia atravessando as fileiras dos que haviam respon­dido ao apelo, estes se iam colocando atrás dele, em silêncio e em ordem. Assim se formou o cortejo dos voluntários, dis­postos a enfrentar o perigo desarmados, em nome de Cristo e em defesa do espírito, com o ânimo heróico e pacífico dos primeiros mártires cristãos. Não se tratava de enquadra mento sob coação, mas de adesão livre e espontânea de homens convictos. Todos iam acompanhando o homem que carregava a cruz e, caminhando lentamente, já chegara ao fundo da igreja, de modo a ficar em frente da porta princi­pal, fechada por fora. No momento as forças do bem eram prisioneiras das forças do mal. Aí o homem parou, voltou-se para o mais próximo dele e disse-lhe: "Ajuda-me, irmão, a carregar a cruz, pois me faltam forças físicas e vou acabar caindo ao longo do caminho. Vou na frente. Minha cruz não é de matéria, é a cruz invisível do espírito”. O irmão compreendeu e apertou a cruz de madeira. Então o homem caminhou até encostar a mão na grande porta principal, virou-se e encostou-se nela, abriu os braços e ficou como se crucificado. Fitou a multidão, fitou o templo, elevou os olhos até à cúpula, orando e invocando, à espera. Nada. A multidão esperava a ordem de abrir a porta, do lado de den­tro. Nada. Suspensos, todos esperavam um sinal, uma ajuda, a realização do impossível. Nada. Inopinadamente, porém, dos olhos do homem saiu um relâmpago que se transmitiu à mul­tidão como se fosse descarga elétrica. Seus olhos fixaram-se em determinado ponto, em frente e à sua direita; pare­ciam estar vendo alguém; e começou a falar-lhe lenta e sub­missamente. Disse, chorando, três frases, mas nem mesmo os mais próximos o escutaram. Em seguida, afastou-se da porta, ajoelhou-se, beijou o chão, levantou-se e com voz re­tumbante gritou, dirigindo-se à multidão: "Cristo está co­nosco. Guia-nos. Sigamo-lo". Em seguida, voltou-se de fren­te para a porta, abriu de novo os braços, levantando-os bem e olhou para cima. E a multidão, em resposta, vibrava, acen­tuava e, como caixa de ressonância, ampliava tudo quanto sentia, multiplicando-o e difundindo-o pelo imenso templo. Assim, a invocação, que o homem dirigira ao céu, se tornou potente e se agigantou até ao ponto de transformar-se em irresistível turbilhão de forças. A terra parecia tremer. Não mais, porém, por causa de impulso destrutivo, mas pelo ímpeto do mundo a caminho da ressurreição.

XVII

VISÃO (2º TEMPO)

A espera não se prolongou muito. As altas tensões ou se transformam ou se rompem. Golpeada violentamente pe­lo lado de fora, a porta abriu-se. Escancarou-se. Fortíssima ventania entrou pela basílica adentro, raivando, como se a mão do ódio percorresse aquele oceano de cabeças à procura de vítimas; algo explodiu do lado de fora e foi quebrar-se contra o arco de círculo que circunda a praça. Depois, opres­sivo silêncio.

O homem, de braços abertos em cruz, avançou lentamente e transpôs a porta. Os demais seguiram-no. Coloca­do à esquerda da cruz carregada pelo irmão, ele abria o cor­tejo. Exatamente as forças do mal, escravas das do bem, ti­nham escancarado as portas para o cortejo sair a céu aber­to. Assim, o cortejo atravessou o átrio e desembocou na pra­ça. Enquanto isso, vários homens de armas em pé de guer­ra recuavam, às tontas, para os lados do átrio. As portas tinham sido abertas por eles a fim de que se começasse a matança; para isso, fizeram avançar vários carros blindados, com a intenção de fazê-los penetrar no interior da basílica; pensavam que a multidão ignorasse o cerco da basílica e, assim, essa inesperada surtida de gente ordeira e desarma­da os colhera de surpresa. Não compreendiam essa nova e estranha coragem de homens desarmados, que afrontavam calmamente indiscutível perigo. O medo de alguma oculta insídia os mantinha suspensos. O inimigo não esperava essa mudança tão imprevista de situação. Na grosseira máquina psicológica, que estava dirigindo os homens da matéria, tar­dou muito a acender-se o relâmpago do pensamento, que, ao contrário, profunda e velozmente, iluminava a mente do ho­mem que estava perto da cruz. Houve um momento de he­sitação. Bastou esse pequeno atraso da ação, essa momen­tânea incerteza de diretrizes para reforçar e firmar a cor­rente de pensamento oposta e representada pelos homens do cortejo; na praça espalhou-se no meio dos inimigos sensação de místico terror. Algo, a que obedeciam, embora desconhe­cessem, os imobilizou; e os petrechos de guerra, potentes, tecnicamente perfeitos e prontos para a ação, ficaram pa­ralisados a partir da primeira mola: o espírito.

Avolumando-se à medida que saía do templo, o cortejo, progredindo pela direita de quem sai, ia-se escoando ao lon­go do pórtico. Na frente caminhava o homem, ao lado da cruz e de braços bem levantados. Da multidão muitos lhe imitavam o gesto, como invocação suprema. Ele havia en­toado em voz alta um ritmo grave e solene, repetindo a pa­lavra-síntese daquela cena e daquele momento, da espera e da defesa: "Cristo". Esse brado ecoava na multidão, que, repetindo-o em todos os tons e através de milhares e milhares de vozes o transformava em poderoso clamor, que investia con­tra as colunas da praça e os muros da basílica, se derrama­va pela cidade eterna a fora e, finalmente, parecia explodir bem lá em cima. Milhares de mãos se erguiam, suplicando. Algo, como risonha bênção de Deus, parecia relampejar nos céus, brotada do hino de intermináveis legiões de anjos. E as armas calavam.

Nesse meio tempo, os homens de armas, em sua lógica psicologia simplista, já haviam decidido sustar momenta­neamente a ação, para melhor divertir-se à custa de inimi­go inerme, sem necessidade de pressa porque a presa estava garantida ou, numa palavra, por grosseira curiosidade de saber qual seria o fim de tudo aquilo; o homem perto da cruz percebia tudo e mantinha completo controle sobre si mesmo, pois conhecia muito bem, e dirigia, o fenômeno es­piritual de que era o centro. De cabeça alta, cabelos ao vento, braços abertos e levantados para cima, como antenas receptoras, auscultava as correntes de pensamento. Primei­ro, registrava as ondas longas, extensas e lentas, das radia­ções diurnas da luz solar, da terra, dos tijolos dos edifícios, da exuberância puramente animal dos homens de armas, da vida vegetativa da multidão, tudo isso nas entonações. mais variadas. Não era, porém, essa a voz que ele procura­va cuidadosamente sintonizar; de fato, concentrava toda a sua atenção nas ondas curtas e rápidas do pensamento, com elas sintonizando-se em alta freqüência. Abria-se-lhes, com grande receptividade, e elas lhe chegavam com voz sutil e clara, que se elevava, como luz nas trevas, acima dos tons baixos e profundos, escuros e densos das outras vibrações mais materiais. Podia, desse modo, ouvir a voz, não perce­bida pelos outros, da alma dos homens de guerra; e, como não era ouvido por ela, podia controlar o perigo, logo à sua primeira manifestação, — o pensamento, sem o qual nada se põe em movimento. Assim, percebera também a decisão do Pontífice, que impusera a seu séquito a sua firme vonta­de de descer para junto do povo. E percebera, além disso, que outro cortejo, o do papa, se pusera em movimento, con­vergindo em direção da porta do templo, onde os dois cor­tejos se encontrariam. Por isso, o homem se sentia profun­damente comovido por aquele brado da multidão, que repe­tia em coro a sua invocação: "Cristo, Cristo, Cristo", só uma palavra, nada mais, uma palavra clara e abrasadora, repe­tida em ritmo forte e tenaz, uma palavra em que a vida pa­recia gritar sua vontade de progredir para o alto. Em plena na tempestade, acima dos séculos, ele perscrutava através do Tempo para, finalmente, exultar com a futura vitória de Cristo, aquela vitória pela qual, dando-se a si mesmo tam­bém lutava. Haviam afrontado a morte e agora Deus os salvava. Esse exemplo constituía apenas o primeiro passo da grande e pacífica revolução espiritual. Esse exemplo mais tarde se multiplicaria e a fé sairia do interior dos templos, da prisão dos claustros, do cárcere das formas. A conquista de cada nova fase evolutiva significa expansão de Deus nos corações, é primaveril desabrochar de flores. Diante do exemplo de Roma, outras igrejas abririam as portas e dei­xariam sair outras multidões. O homem compreendia as conseqüências e o imenso alcance de sua atitude. Julgava-se tudo e, ao mesmo tempo, nada; bem no centro do turbilhão e do drama e, no entanto, só; sentia-se perdido, mas vi­torioso; exausto e, apesar de tudo, fortíssimo. A debilidade residia em sua pobre condição humana; e a força, na visão de Cristo, que, invisível, o guiava.

Assim, o cortejo chegou ao fim da praça e desfilou di­ante do grosso dos carros blindados e dos canhões. Então, o homem que lhe estava à frente escutou mais atentamen­te e pôs em jogo sua receptividade no sentido de melhor compreender a psicologia do inimigo. Percebia que até mes­mo os homens da guarnição dos carros blindados e dos canhões pertenciam à vida, eram vida e sofriam o império de suas leis. Advertiu que a natureza desses homens de tal mo­do se saturara de vibrações maléficas que eles mesmos lhe sentiam a perturbação, como peso contra o qual, por força da lei de equilíbrio, a vida reagisse, como negação contra que instintivamente se rebelava o ser desejoso do próprio progresso e não de autodestruição. Percebia, no subconscien­te daqueles homens, ferverem vibrações antagônicas, de onde subiam para a consciência idéias contraditórias. Naqueles ânimos duas correntes de pensamento se digladiavam. Queriam vencer, mas odiavam aquela vida de bestas-feras. Não agüentavam mais. Nem a insensibilidade nem o hábito os defendia mais. As forças maléficas empregadas por eles sa­turavam-nos ao ponto de envenená-los; e a vida até mesmo neles queria viver. Tantos males e tantas dores haviam eles semeado, lançando-os contra tanta gente, que agora se vol­tavam contra eles mesmos, agredindo-os e sufocando-os Por isso, naqueles ânimos a reação se estava elaborando. Ao mesmo tempo, o imponderável exercia pressão no sentido dessa mudança. O homem do cortejo ouvia esse tempestuoso choque de forças, essa trágica maturação de almas. Ti­nha a impressão nítida de que o fenômeno estava quase atin­gindo seu ponto crítico e, dentro de uma fração de segundo, esse sistema de forças estaria decomposto; percebia que para lá desse ponto crítico, o fenômeno assumiria nova forma, isto é, o dinamismo se inverteria e as forças componentes se aplicariam em direção oposta. Essa precipitação de equilí­brios era iminente. Num átimo se desencadeariam as conseqüências exteriores e materiais.

O fenômeno já estava maturado. E eis que de repente o imponderável pareceu explodir e a luz se fez nas almas dos inimigos. A corrente construtiva da vida e do bem re­conquistara a superioridade sobre a corrente destrutiva da morte e do mal. Aqueles homens não puderam resistir por mais tempo e renderam-se ao cansaço de seu mau modo de agir, sentiram nojo de si mesmos, compreenderam a inutili­dade do homicídio, a estupidez em que o ódio se transfor­ma, se considerarmos os objetivos da vida e a alegria de exis­tir e amar. Compreenderam, então, havê-los iludido e traído o mal em que haviam acreditado; terem sido vítimas de miragem; e que o mal muito mais depressa envenena quem o pratica do que a pessoa que o recebe; aí, perceberam como a vida por eles escolhida era a vida de demônios e só seria muito mais bela na proporção em que a paz substituísse a. guerra, o ódio se transformasse em amor e o mal em bem. Aquele singular cortejo, a desfilar-lhes diante dos olhos, lhes falava desse outro mundo mais belo, em que agora até eles mesmos se esforçavam por entrar, e, também, do tipo de conduta, mais civilizado, de que se sentiam expulsos. Comparavam-se com os fiéis, que, desarmados, mas possuídos de coragem inaudita, afrontavam a morte, em paz, rezando; comparavam sua férrea disciplina militar com a disciplina livre e consciente daqueles homens convictos; e procuravam saber qual a força capaz de, sem armas, mantê-los assim, unidos. Teriam podido exterminá-los. Então, por que não faziam funcionar as máquinas de guerra? Por que a inusi­tada estratégia daqueles homens inermes triunfava e a for­ça armada se tornava inoperante? Alguma coisa os paralisava. Que era? Onde estava e em que consistia esse imponderável a bloqueá-los assim? Sentiam-se enojados de si mes­mos e das máquinas; indefinível descontentamento os impe­lia a odiá-las e a odiar, não os homens inermes e pacíficos que confessavam aquele Deus de todos, tanto de vítimas co­mo de agressores, mas os petrechos de guerra e os invento­res dessa maldita técnica de destruição e da morte. Não mais se sentiam convencidos da força que não vence pelo livre convencimento, mas oprimindo e sujeitando, ao obser­varem o espetáculo de seres livres, mantidos espontaneamen­te em estreita união por força totalmente diferente. Os ho­mens de armas e os homens do espírito representavam duas experiências humanas opostas; e os primeiros percebiam, fa­ce a face com os últimos, que iriam precipitar-se no mais trágico e absurdo fracasso. No entanto, mesmo sem armas, que coisas grandiosas não se poderiam fazer apenas com o poder da fé e do amor! Aquela mesma praça, onde se en­contravam, servia de exemplo. Os dois sistemas opostos de conduta humana ali estavam em plena ação e se defronta­vam, desafiadoramente. Esse não passava de simples episódio da grande luta entre o bem e o mal. Este sentia, em presença do bem, a intima contradição que o inferiorizava.

"Por que atirar contra homens inermes? Com que fim?" Os homens de armas diziam de si para consigo: "Não são mais corajosos do que nós? Não seríamos covardes, se os matássemos? Não temos a mesma coragem que eles nem so­mos capazes de fazer o que fazem. são, pois, mais fortes. Contudo, que força é, pois, essa sua que lhes permite não dar atenção à nossa, ao ponto de enfrentar-nos, completamente desarmados? Procuremos, pois, contato com eles e, se for possível, conquistemos essa nova força cujo segredo não sabemos. Esses homens não nos odeiam, não querem ser e nem mesmo são nossos inimigos. Mas, então, por que esse absurdo de odiar quem não nos odeia e agredir quem, sem arma alguma, se expõe a nossos golpes? Não! Basta. De agora em diante, não matemos mais, não odiemos mais. Como eles, também nós temos alma. Daqui por diante, não seremos mais apenas número, instrumento, máquina, escra­vos do terror!" Assaltou-os, então, irresistível necessidade de encontrar algo mais inteligente, mais vital e consciente, mais elevado, mais livre e adequado, irresistível necessidade de autonomia, de ouvir novamente a voz das grandes idéias que constituem a base da vida e o apelo de Deus. Novo de­sejo galvanizou-os, as forças do mal, que se derramavam na hora histórica, naquela multidão, no mundo, derramavam-se também sobre eles. O imponderável, que tudo movia, também a eles envolveu e arrastou. O instinto vital movi­mentou-os, impeliu-os. Saíram dos carros, abandonaram canhões e metralhadoras, aproximaram-se, incorporaram­-se ao cortejo, acompanhando a cruz sob a universal invoca­ção de Cristo.

Agora o fenômeno tendia lógica e espontaneamente pa­ra a conclusão. Engrossado cada vez mais por novos adep­tos e depois de haver feito a volta completa do pórtico, o cor­tejo já se aproximava do átrio e da porta principal, a fim de reentrar na basílica. O homem, que estava à testa do cor­tejo, chegou primeiro. O Pontífice, tendo descido ao tem­plo, esperava-o de pé, sozinho, destacado de seu séquito, na porta da basílica. Quando o homem, acompanhando a cruz, chegou bem perto, o Pontífice disse-lhe, estendendo-lhe os braços:

"Meu filho, você salvou a Igreja".

Pai, respondeu: "Cristo fundou hoje a nova e universal civilização do espírito. Trago-vos a legião dos que primeiro o afirmam, os voluntários do sacrifício, a fim de a condu­zirdes ao túmulo de Pedro, ao altar de Cristo".

Disse e ajoelhou-se diante da soleira da porta e beijou-a perto dos pés do Pontífice, que o abençoou. Depois, pondo­-se de lado, perto do estípite direito, assim falou:

"Irmãos! Antes de separar-me de vós, quero deixar-vos estas três idéias:

1º) Minha missão está cumprida. Deixai-me desapa­recer na sombra. Da sombra saí e para a sombra retorno. Não penseis em mim, que não passei de miserável instru­mento. O importante é apenas que a semente atirada ao solo germine e frutifique.

2º) Respeitai a autoridade, como superior principio or­gânico e, por isso, elemento de vida e de evolução; dai exem­plo dessa ordem em. que consiste o futuro do mundo. Res­peitai, também, por isso, a autoridade da Igreja. Não jul­gueis. Deixai a Deus o encargo de julgar os homens. Não penseis neles, meros instrumentos, mas em Deus que tudo dirige, nem naquilo que dizem ou fazem, mas naquilo que Deus diz ou faz, por meio deles como por meio de toda a humanidade.

“3º) Ide pelo mundo, ó voluntários do sacrifício, ho­mens da primeira hora, fundadores da nova civilização do III Milênio. Fostes escolhidos porque enfrentastes a prova e a vencestes. Sede sacerdotes do espírito. Não busqueis a força. O poder da justiça é poder que a supera; não há fra­queza maior do que a injustiça. Se fordes justos a. força irá ao vosso encontro; caso contrário, trair-vos-á. Vossas ar­mas de conquista devem ser: retidão, bondade, sacrifício, amor. Os imponderáveis do espírito tornar-se-ão verdadeira potência dentro de vós, se, ao invés de pregá-las apenas com palavras, viverem em vosso exemplo, se seguirdes Cristo, vi­brando apaixonadamente na vida ativa. Semeai com entu­siasmo e não com incerteza e desânimo. Antes de dar tor­na-se necessário possuir e para possuir é preciso já ter conquistado vitórias dentro de si mesmo e através de esforço pessoal. Vivei no mundo, mas seguindo a Cristo. Falai como Ele, isto é, pelo exemplo. Hoje vencestes a matéria, pois de­sarmados enfrentastes a morte. Começastes pelo exemplo; continuai dando o exemplo. Não adianta parecer; é preciso ser. Se a consciência nos condena, de nada nos vale haver conquistado os aplausos do mundo. Não sejais ricos por fo­ra e pobres por dentro; sede, isso sim, ricos por dentro e po­bres por fora. O objetivo da vida é ascender. Conquistai qualidades, que constituem tesouros inalienáveis, e não bens materiais, que se perdem. Ascendei e ajudai a ascensão alheia. Sede sempre construtores, afirmando, e jamais destruidores, negando. Não é com máquinas de guerra nem com as armas da lógica e da polêmica que vencemos o inimi­go, mas compreendendo-o e abraçando-o. Antes de exigi-los. dos demais, exigi de vós mesmos a fadiga, o dever e a prá­tica das virtudes. Primeiro, reformai-vos; depois, isso, sim, podeis pensar na reforma de vossos semelhantes. Seja esse o segredo de vosso poder. Mantende-vos ágeis, ligeiros, vivos no espírito, bem próximos das fontes; temei as incrustações,. as cristalizações, as deformações, os acomodamentos, o fa­risaísmo que é moléstia psicológica de todos os tempos, a fossilização senil de todas as religiões. A forma não deixa de ser necessária, mas acomoda e adormece. Primeiro, bus­cai a substância, que é a alma de todas as coisas. Do con­trário, sereis apenas cadáver, foco de infecção que propagará a morte. Só o espírito é vida. Lembrai-vos disto: jamais mentir manter-se vigilante; jamais pactuar com o mal; ja­mais acomodar-se. Quem mais possui mais sabe e mais au­toridade tem e, em conseqüência, não tem mais direitos do que os outros, e sim mais deveres. O mundo tem fome de verdade: deveis nutri-lo, vivendo a verdade. Sede instru­mentos da criação, operários de Deus, seus colaboradores na construção e no progresso. Semeai e a semente germinará, produzirá novas sementes e através delas nascerá de novo. Ide pelo mundo e semeai no tempo a nova civilização do espírito".

O homem calou-se e mostrou o Pontífice aos fiéis, a fim de que estes o seguissem. Em seguida, afastou-se e desapareceu no meio da multidão. O Pontífice recusou-se a sentar de novo na sede gestatória, em que chegara até à porta do templo, fê-la afastar-se juntamente com o seu séquito e a pé, mais triunfante ao lado da cruz de madeira, colocou-se à frente do cortejo, que voltou vitorioso à nave central. E. assim até ao altar-mor. Aí, o Pontífice mandou tirar a cruz de ouro e prata que brilhava no centro do altar e pôs no seu lugar a pobre cruz de madeira, vencedora da grande bata­lha. Depois, devagar, porém, com entusiasmo, executou até o fim o ritual sagrado, como estava previsto.

O cortejo dos voluntários vitoriosos havia-se enfileirado ao redor. Todos os que compunham tinham entrado no templo: homens, mulheres, jovens e velhos, de todas as classes, de educação, cultura e posição social diferentes: doutores e ignorantes, homens de ciência e de fé, patrões e emprega­dos, humildes e poderosos. Havia também religiosos e reli­giosas de todas as Ordens, militares de todos os postos, expoentes de todas as castas. Aí estavam os voluntários do clero oficial, saídos das fileiras grupadas na abside da basí­lica. Estavam representadas as nacionalidades e as religiões mais diferentes. Havia também os adesistas da última ho­ra, que aumentaram as fileiras e, finalmente, os homens de armas, saídos das máquinas de guerra e pelo exemplo con­vertidos ao amor de Cristo. O apelo fora universal e, assim, todos reentraram no templo, seguindo a Cristo e agora uni­dos sob a Sua cruz.

Essa concórdia do mundo, que após dois mil anos de luta, e quase no limiar do terceiro, mais uma vez reencon­tra a Cristo; o espetáculo dessa multidão, a princípio mas­sa confusa, agora reconstituída de acordo com nova ordem e unidade mais vasta; esse triunfo final do anjo sobre a bes­ta e do espírito sobre as armas embotadas da matéria; tudo isso constitui o último lampejo da luz em que, em gloriosa apoteose, esplende esta visão. No esplendor desse último lampejo, a visão deteve-se, imóvel, pequena fração de segundo. Depois, como cometa que riscou o firmamento, a luz se apa­gou lentamente e desapareceu, deixando atrás de si lumi­nosa esteira.

XVIII

COMENTÁRIOS E PREVISÕES

Essa visão também podemos entendê-la como expressão do drama do imponderável. Mais do que pessoas, falam-vos forças ativas, mais sábias e capazes que as pessoas. Essas forças, de acordo com o pensamento da Lei, enquadram-se e movem-se disciplinadamente como soldados; influindo e por sua vez recebendo influência, como binômio de ações e reações, funcionam organicamente e dirigem-se ao objetivo determinado. Conforme a sua natureza e poder, coordenam-se como se fossem sinfonia orquestrada para numeroso con­junto musical. Também na luta guardam proporção; seus desequilíbrios desaparecem em novos equilíbrios, sua dissensão se resolve em harmonia. Essa circunstância dá sensação de musicalidade ao desenvolvimento do sistema. Toda for­ça tem personalidade inconfundível; é fenômeno distinto, embora combinado com outros; entrelaça-se, sem misturar-se; reage de acordo com trajetória e lei de desenvolvimen­to próprias e obedientes à lógica fornecida por sua natureza, potência e objetivo. Aí estão a matéria e o espírito, a Igre­ja e o homem, Cristo e a multidão, o bem e o mal, as forças biológicas e o destino do mundo. E esse drama emerge do fundo da evolução humana e dos destinos da vida em hora histórica apocalíptica.

Dai se vê como o imponderável pode oferecer-nos novos motivos a explorar, desde que a arte queira apossar-se do imaterial, onde o espírito pode em qualquer terreno forne­cer modelos de primeira plana, segundo o conceito de ele­vada estética. Poder-se-iam assim expressar os dramas do abstrato, em que as forças imponderáveis agiriam como se­res vivos e funcionariam como realidade objetiva. Todo pro­gresso, inclusive o artístico, apenas pode consistir em apro­ximarmo-nos cada vez mais das fontes da vida e, como o objetivo da arte consiste na expressão, em exprimir cada vez mais claramente o pensamento divino existente na intimi­dade das coisas. Nova arte, a do imponderável, poderia des­se modo penetrar cada vez mais profundamente na realida­de e revelar-lhe cada vez mais os íntimos mistérios. Expri­mir, revelar, tornar perceptível tudo o que, na imaterialida­de do espírito, escapa aos sentidos sempre constituiu função da arte. Portanto, tudo isso para ela não passa de conseqüência natural de seu desenvolvimento lógico. Compete-lhe dar expressão ao inexprimível, tangibilidade ao impon­derável, tornar perceptível o evanescente mundo das forças e das idéias. A arte será tanto mais legítima quanto mais fielmente cumprir essa função de transportar o céu para a terra, de criar contatos com o divino. A isso se reduz todo o seu valor educativo no sentido mais elevado do termo isto é, evolutivo, instrumento de espiritualização Depois do atual período de iconoclastia artística, a nova arte do im­ponderável será a arte da nova civilização do espírito. O ho­mem sensível poderá assim roubar aos céus novas belezas e trazê-las para o mundo, tornando mais compreensíveis as sutilezas das coisas espirituais. A gênese de tudo está na parte interna, no espírito, em Deus; as coisas excelentes e poderosas brotam das profundas nascentes da vida. A téc­nica está na periferia, na superfície, na forma. A inspira­ção vem do centro, da profundidade, da substância. A análise destrói, a síntese constrói, a forma causa a morte, o es­pírito vivifica.

Mas essa visão podemos entendê-la ainda sob outro as­pecto, quer dizer, como plano de combate. O espírito não vence por acaso. O milagre de sua vitória aqui fica logica­mente explicado, estudadas as forças em que essa vitória se baseia, a estrutura de seu sistema e a lei de seu desenvolvi­mento. Esse drama representa apenas um momento do imen­so drama humano da luta entre o bem e o mal. Vemos o passado e o futuro, o involuído e o evoluído se defrontarem em batalha decisiva, que o evoluído ganha por força dos próprios princípios da Lei e da vida, tais como os expusemos nos capítulos precedentes. Isso constitui a nota dominante deste trabalho, de que essa visão pode considerar-se o ponto culminante. Também aqui se vê o mal posto a serviço do bem, isto é, funcionando como resistência excitadora de rea­ções, que faz o triunfo nascer no campo oposto. Assim, a Lei, sem constranger-nos, nos induz a conquistar o nosso próprio bem à custa de nosso próprio esforço; assim, o mal, reabsorvido e anulado, se transforma finalmente em bem. Notemos por último, que a nova civilização do espírito não nasce sem defesa, mas armada com novas armas, pois a lu­ta, elemento vital, subsiste, embora se tenha transformado ao transferir-se para plano mais elevado. Todos necessitam de armas e defesas; porém, como a nova técnica difere da atual! A que vimos vencer no momento crítico da primeira manifestação da nova civilização será a mesma a defendê­-la, mais tarde, no decurso de seu desenvolvimento e exe­cução. Trata-se de novo princípio defensivo, de método e es­tratégia diferentes dos que hoje seguimos; trata-se de novo modo de conceber a vida e guiar-lhe as energias. Assim centuplicamo-lhes o rendimento. A conversão dos homens de armas não significa apenas reação destrutiva por parte das forças protetoras da vida nem apenas a exaustão de uma fase a que se deve retornar depois de percorrido o período oposto; representa, isso sim, revolução biológica, degrau mais alto da conquista evolutiva; não é conversão momentânea de alguns homens, mas a conversão da força à justiça, da matéria ao espírito.

Observemos agora a posição e o significado dessa visão no desenvolvimento conceitual deste volume e em relação aos demais com que se relaciona. Aliás, já no prefácio foram todos reunidos em duas séries ou trilogias. A primeira com­preende: 1) Grandes Mensagens e A Grande Síntese; 2) As Noúres; 3) Ascese Mística. A segunda: 1) História de um Homem; 2) Fragmentos de Pensamento e de Paixão; 3) A Nova Civilização do Terceiro Milênio. A primeira trilogia encerra-se nas últimas páginas de Ascese Mística com a previsão da guerra atual. Esse ciclo é, pois, de preparação e representa o prenúncio do cataclisma e o esquema da nova civilização. O segundo podemos chamá-lo executivo e recons­trutivo e aprofunda esse esquema no que diz respeito ao seu aspecto humano. Trata-se de dois pensamentos diversos, de duas perspectivas diferentes, a do "antes" e a do "depois", a de quem se prepara para a prova e a de quem já vai sain­do dela. A guerra mundial de nossos dias se situa no meio das duas trilogias. Desse modo, para nós essa guerra tem valor mais profundo que o de simples acontecimento políti­co, pois, vista em sua substância biológica, nos mostra seu verdadeiro significado e objetivo. É mais fácil intuir o atual conflito, em suas causas íntimas, do que compreendê-lo ra­cionalmente, em seus aspectos exteriores; isto é, concebemo-lo no seu sentido moral e evolutivo, bem mais elevado do que os demais dizem e sabem. A guerra nos aparece, assim, como um assalto do mal a serviço do bem, desejada pela ignorância humana e permitida por Deus como útil prova; deve, assim, entender-se como destruição reconstrutiva, con­dição de renascimento e preparação da nova civilização do 3º milênio. O conflito permanece, pois, ambientado no de­senvolvimento histórico da época de que forma o aconteci­mento culminante e decisivo. O próprio conceito de "vitó­ria" assume aqui significação muito mais vasta do que a co­mum, devendo ser compreendida como vitória no espírito. Eis o significado da visão: a vitória final não dos homens, mas de Deus. Nos equilíbrios da vida apenas o resultado po­lítico não basta para justificar tantas dores dos povos, tan­tas perdas de bens para todos e tão violento esforço da hu­manidade. A vida nada faz sem finalidade e o objetivo que deve atingir deve ser proporcional ao trabalho por ela desenvolvido. Isso é conseqüência evidente na lógica da Lei. Esta nos diz que a vida não fracassa, não perde tempo e, de acordo com sua economia, proporciona os resultados o esforço necessário pa­ra atingi-los. O homem é ignaro e se guia pela eterna sa­bedoria de Deus. Já o demonstramos à saciedade. Todas as dissensões e lutas do homem são apenas fadigas evolutivas; suas dores, provas; suas vitórias e derrotas, provações para conquista de consciência; vencedores e vencidos não passam de colaboradores do progresso humano e lutam entre si ape­nas para criar na luta a atividade formadora, do mesmo mo­do que, bem ou mal, todos são, para felicidade geral, servos de Deus. Para o bem geral porque, no caso-limite do mal­vado incorrigível e por isso condenado à dor eterna, a Lei, movida por piedade suprema, inseriu a autodestruição na estrutura mesma do sistema; assim, o rebelde empedernido acaba como tal sendo reabsorvido por aniquilamento.

Dois conceitos predominam na primeira trilogia; ei-los: 1) a iminência de tremendo cataclisma mundial e de perío­do de grande dor e destruição; 2) a preparação de nova ci­vilização do espírito, à qual tanta ruína material dará nas­cimento. O primeiro acontecimento (anunciado quando ameaça alguma pendia sobre o mundo e as comodidades da vida serviam de fundamento à concepção materialista) ve­rificou-se plenamente, com todas as tintas carregadas com que foi descrito. O segundo acontecimento, que parecia anacrônico quando anunciado como problema de vida e de mor­te e colocado como fundamento de A Grande Síntese, está hoje tornando-se atual, pois, convulsionadas as velhas dire­trizes, o mundo procura outras. Hoje que o ciclo da espera foi superado por experiência viva, convém, porque estamos no limiar de nova civilização, reler o pensamento dos volumes da primeira trilogia, extraindo os trechos mais convin­centes desse argumento. Ei-los. Foram extraídos de publi­cações impressas, com data conhecida e são documentados por elas.

Grandes Mensagens. Mensagem do Natal, 1931 "Gran­de revolução se aproxima na história do mundo... Vosso progresso científico... acumula energias, riqueza, meios pa­ra nova e terrível explosão..." — idem: "Observo lento, mas constante, aumento de tensão, como prelúdio da inevitável queda do raio... Já se foi o tempo em que, como os povos viviam isolados uns dos outros, os cataclismas da história podiam ficar circunscritos; hoje não." - Mensagem da Páscoa da Ressurreição, 1932: "A psicologia coletiva pres­sente confusamente grande mudança de diretrizes... — idem: "... Ousai, abandonando velhos atalhos, porém não ouseis às doidas e exatamente nos pontos em que não ten­des motivo para ousar; ousai em direção dos céus e nunca tereis ousado demais. De vossa crise, crise dolorosa e pro­funda, nascerá o novo homem do 3º milênio... Neste resto de século se decide o 3º milênio. Ou vencer ou morrer . — Mensagem aos Cristãos, por ocasião do XIX centenário da morte de Cristo, ... Vossa união forme barreira contra o mal que está na iminência de desfechar tremendo assalto. Grandes lutas exigem grandes unidades..." — idem: "A hu­manidade caminha inexoravelmente para as grandes unida­des políticas e espirituais".

Reportemo-nos agora A Grande Síntese, primeiramen­te publicada, em capítulos, na coleção de revistas de janeiro de 1933 a setembro de 1937. Cap. V: "A mente humana procura um conceito que a impressione vivamente, conceito elevado e mais profundamente sentido, capaz de orientá-la rumo à iminente nova civilização do 3º milênio..." — Cap. X: "Conseguireis produzir a energia necessária para a desinte­gração atômica, isto é, a transformar a matéria em energia. Vossa vontade conseguirá penetrar na individualidade atômi­ca, alterando-lhe o sistema". — Cap. XLII: "A nova civilização do 3º milênio está iminente; urge, por isso, lançar-lhe as bases conceituais..." — idem: "Há um superamento imposto pela evolução da humanidade neste momento histórico de que está para nascer a nova civilização do 3º milênio..." — Cap. XCVII: "As leis da vida, adormecida em ritmo igual durante milênios, receberam repentino choque e estão hoje despertas para lançar-vos rumo à nova civilização do 3º mi­lênio..."- Cap. "Despedida": “Este é desesperado apelo à sabedoria do mundo”... A civilização moderna lança a semente com vertiginosa velocidade e espera a fabricação intensiva de sua futura dor. Será a dor de todos. Poderá tornar-se maré' montante que destruirá a civilização. Os meios estão pron­tos para que hoje um incêndio se torne mundial... Se um princípio coordenador não organizar a sociedade humana esta se desagregará no choque de egoísmos. Falei em mo­mento crítico, numa curva da história, na aurora de nova civilização... Enquanto na terra existir um só bárbaro, ten­tará rebaixar a civilização até ao seu próprio nível, invadir e destruir para aprender. As raças inferiores logo não se impressionarão mais com a superioridade técnica européia e. se apossarão dela para, em seguida, agarrar o velho patrão pelo pescoço... Que os justos não temam...

Estes conceitos se desenvolvem e afirmam no volume As Noúres, Cap. IV: “... O momento histórico é grave, solene, rico de valores em putrefação e de germes em febril desenvolvimento, como nos tempos messiânicos... percebo as correntes espirituais do mundo e tenho a nítida sensação de próximas e novas diretrizes do pensamento humano, que le­varão de vencida as resistências de todos os misoneísmos...” — idem: “... Toda a Europa se arma e, todavia, treme di­ante do espectro de uma guerra que poderia, percebe-se, marcar-lhe o fim da civilização... Uma fronteira dividirá de ponta a ponta a Europa em duas partes, a da ordem e a da desordem, em cuja defesa lutarão de maneira concreta as forças cósmicas do bem e do mal. Se as forças desagre­gadoras do mal vencerem as forças construtivas do bem então as portas da Europa desorganizada ficarão escancaradas diante da ameaça imensa da Ásia, dragão gigantesco e terrível que já levanta a cabeça, espreitando a presa suculenta. ;Cega-o, porém, a. luz que vem de Roma, centro espiri­tual do mundo." — idem: "Percebo a iminência de grandes e tremendos acontecimentos mundiais, ouço longínquo fragor de tempestade, imensos vagalhões que ameaçam a grande civilização, embora pouquíssimas pessoas o vejam e saibam. Implorei que soubessem e vissem. Nesse ar pesado de ameaças em que o mundo se debate às tontas; meu espírito acabrunhado não encontra repouso..." — Cap. VI: “... O momento histórico é grave. Tempo algum jamais viu preparativos de maturações tão solenes como os dos dias atuais. Estamos numa curva da história do mundo. A humanidade está lançando as bases do novo milênio, está pondo na mesa a carta de sua salvação ou de sua ruína... É necessário dar de novo à Europa a consciência da unidade de civilização e de destino...".

No volume Ascese Mística, Cap. XIV (Primeira Parte): “... vejo as ameaças que pendem sobre esta hora; eles, po­rém, as ignoram..." — idem: “... Porque nova civilização deverá nascer e é necessário sacrifício para prepará-la; será novo ciclo histórico que formará nova raça..." — Cap. XIII (Segunda Parte): "Antigamente, em épocas de calma, de inércia espiritual, podíamos silenciar e viver de acomodamen­tos; mas, hoje não, com o inimigo às portas. Estamos em armas. A História prepara tremenda descarga de dor. Não é destruição, mas renovação. Não temamos..." — idem: "Es­piritualmente o mundo já está em chamas. Nestes momen­tos não é licito cruzar os braços e permanecer como espec­tador, pois a tempestade atinge a todos. Os neutros acaba­ra-o sendo envolvidos e terminarão como escravos..." — Cap. XVII (Segunda Parte): "Ouço a perseguição da hora, o iminente precipitar dos equilíbrios, a tempestade raivando as portas, ouço a voz de Deus que anuncia a maturidade do tempo. Gritam os sinais interiores... No céu da história aparecem as procelárias prenunciadoras, as sentinelas da vida acordam e dão o brado de alarma." — idem: "Ouço profundo rufar, cadenciado, incessante; ouço o passo do tem­po que marcha com cadência fatal... Estamos atravessan­do momentos muito graves... Já passou o tempo de expli­car e demonstrar. Esse trabalho já acabou. Chegou a hora do embate físico e tangível, que a todos atinge e a todos envolve... Torna-se necessário que o mundo aprenda novamente a pregar; se confraternize na humilhação e na des­ventura e reencontre seu Deus já esquecido... Aqueles que têm Cristo no coração não devem temer. A tempestade pu­rificará." — idem: "É indispensável, pois, o infortúnio pa­ra que o espírito tire até o último véu e apareça nu diante de Deus?... Então, o destino bate às portas da história... Desfeita, a ordem ética levará à ruína..." — idem: "... não posso ficar quieto porque minha alma ouviu as notas do cla­rim, o grito de guerra!... Nas grandes curvas da história a terra deve ser dolorosa e profundamente revolvida, a fim de ficar preparada para nova sementeira..." idem: "... Hoje já esvoaça nos espíritos vago pressentimento da nova civilização do 3º milênio, em que a Igreja se tornará de fa­to poderosa e invencível, pois nessa ocasião será formada apenas de espírito".

A parte final daquele volume, Cap. XXVI (Segunda Parte), citado no prefácio do volume seguinte — História de um Homem, nos afirma cada vez com mais certeza: "Esta hora é de intensa atividade para todos. Não pode parar. Preparada há tempos, precipita-se agora. Tenho medo de olhar... Agora se desenrola diante de mim a visão da terra e do céu... a terra treme convulsa no pressentimento de indescritível tufão... Vejo um turbilhão de forças que se projeta em direção da terra e vejo, também, a terra dilace­rada, descomposta, submersa em mar de sangue. E escura a hora da paixão do mundo... As forças estão prontas para desencadear-se no choque fatal. Aproxima-se a hora das trevas do mal triunfante, da provação suprema... O drama. aproxima-se, percebo-o... Nesse momento senti a terra tremer. Dentro de mim está a visão do real. Senti, mesmo, a. terra tremer".

Essa sucessão de visões e previsões cada vez mais angustiosas, inclusive esta última, escrita em fins de 1938, conclui com o testamento espiritual do protagonista de História de um Homem, concluída em começos de 1942. E a primeira parte da segunda trilogia, isto é, do ciclo da reconstrução. Naquele momento, tendo-se já desencadeado a tempestade prevista, a visão do autor sobe acima dela para, ao invés, contemplar a nova aurora, explicando seus primeiros sinais e dando-nos do drama a solução que hoje se prepara. Esse testamento espiritual diz (Cap. XXX): "Estudai no grande livro da dor; sabei sofrer se quiserdes progredir... É bom que o mundo sofra; assim, poderá aprender e avançar... fora da dor não há salvação. Ninguém escapa desta lei fun­damental. Mas, depois, da paixão e da cruz vêm a ressurreição e a vitória do espírito. Deixo-vos o aviso de que a aurora da nova civilização do espírito está na indispensável paixão do mundo." - E assim conclui o prefácio acima referido: "Este volume (História de um Homem), escrito... em meio à tempestade prevista, se encerra, pois, com o prenún­cio da aurora de novo dia. Depois da destruição, a reconstrução; depois da dor, a alegria de vida mais sublime; de­pois da indispensável paixão da guerra desponta a nova era do espírito. Este livro é, pois, o da ressurreição. Se é o livro da provação e do sofrimento, é também o da esperan­ça, da vitória do espírito e do bem. O fatigante labor da ascensão neste livro toma grande impulso; transforma-se, para o indivíduo, na história do protagonista e, para o mun­do, na consciência da atual situação apocalíptica. Ao contrário, na cena de terror e de paixão que encerra o livro Ascese Mística, este volume conclui invocando e chamando, das entranhas das maturações biológicas, o homem novo, de espírito consciente, e anunciando e saudando a aurora da nova civilização do 3º milênio. (Natal de 1941)". "Porque é fatal", conclui o volume, "que a ascensão se realize, não obstante toda a inconsciência e resistência do mundo; é da Lei de Deus que o espírito vença a matéria, a luz vença as trevas, a alegria vença a dor, o bem vença o mal, Deus tri­unfe de Satanás".

Aqui terminam as citações. Agora poderíamos obser­var: os acontecimentos históricos, desenvolvendo-se, se transformam de tal maneira que seus próprios artífices devem aos poucos afastar-se da orientação primitiva e acabam muitas vezes por chegar onde não imaginavam. Cada ato do dra­ma suscita novos e inesperados fatos e aspectos, que desfa­zem os planos humanos, revelando-nos novos misteriosos fios da História, impossíveis de total entendimento senão quando o ciclo se completa. Podemos, então, perguntar-nos: o homem dirige a História? Muito bem. Como pode fazê-lo, porém, se ignora os futuros desenvolvimentos e seus planos muitas vezes não têm valor algum? Não. O homem não di­rige, apenas tenta dirigir a História. Outras forças inteli­gentes dirigem-na; são os seus planos que atuam. Existem, naturalmente, diretriz e planos próprios; tanto assim que os vemos tão logo um acontecimento se processa. Acredita­mos caminhar rumo a determinado objetivo e, no entanto, vamos em direção de outro, de cuja existência nem suspei­tamos. Mas outros hão de sabê-los por nós. Em conseqüência: a História se desenrola e tem lógica, não pertence aos homens que acreditam elaborá-la. Então, se ignoram quais os objetivos que de fato buscam, não passam de simples instrumentos. Acontecimentos aparentemente contraditórios não têm esse caráter no plano divino tão cheio de finalidades que nos escapam à percepção. Ao lado da História aparen­te há outra, mais profunda, História substancial, que só muito tarde conseguimos ver, quando não acontece não a vermos jamais. No caso de nossos dias certo é haver a guer­ra, através da dor, provocando um processo de sofrimento espiritual condicionador de grandes renovações. Não é nesse sentido, porém, que estamos falando. É licito perguntar-se: Na complexidade de maturações que derivam de fenômeno tão profundo como o atual conflito, os homens, através do que acreditam estar fazendo, sabem o que de fato estão fa­zendo e aonde vão acabar chegando? Além do plano huma­no por eles dirigido, conhecem o plano divino que os dirige?

XIX

O SERMÃO DA MONTANHA

Antes de enfrentar novos argumentos e novas ampliações, ainda algumas observações a respeito de questões já tratadas. A precedente Visão parece comentário e reforço das palavras de A Grande Síntese, no cap. XLII ("Nosso Objetivo - A Nova Lei"): "Aí onde o mundo, com perspec­tivas cada vez mais desastrosas, se arma contra si mesmo, com instrumentos tão terríveis, em face dos modernos pro­gressos científicos, que nova conflagração extinguirá na ter­ra o homem e a civilização; aí onde o homem age desse mo­do, existe apenas esta possibilidade de defesa: o abandono de todas as armas. Mais tarde veremos como".

Neste livro vimos como. Não só neste, mas em qualquer campo de atividade humana, raciocinando objetivamente e, principalmente, observando os acontecimentos e descrevendo-os no que têm de essencial, sem apriorismo e sem outra referência senão a realidade intima das coisas, acabamos por chegar ao Evangelho. Quando atingimos a intimidade das coisas, a voz dos fenômenos coincide com a voz de Deus e surge a ordem universal que, num só sistema, os reúne a todos, desde a matéria até ao espírito. Vamos agora focar nossa atenção especialmente nesse sublime pensamento do Evangelho, de sabor sobre-humano e que, provindo embora de fontes completamente diferentes e sendo produto resultante de outras elaborações, todavia coincide de maneira tão surpreendente com a ciência e a sociologia sadias atin­gidas por quem saiba ler no grande livro da vida. Essa co­incidência constitui confirmação e prova. Essa ressonância mostra como o pensamento aqui desenvolvido se sintoniza com ritmo espiritual dos mais profundos da vida, para o qual converge o consenso da maior e mais adiantada parte da humanidade. Assim, a ciência e a fé coincidem, signifi­cando em substância a mesma coisa; a ciência interpreta a fé e a fé interpreta a ciência: assim se mostra, mesmo ao homem prático, o valor utilitário do Evangelho.

Nos capítulos anteriores, ao analisarmos o fenômeno econômico, vimos como pequena riqueza, sadia e robusta porque honesta e justa, pode, por força da duração e do ren­dimento, valer muito mais do que enorme riqueza, doente e fraca porque desonesta e injusta. Assim, a análise das for­ças motoras do fenômeno nos permitiu introduzir na econo­mia esse fator moral, que normalmente é expulso dela, isto é, estender a economia política até à economia moral do Evangelho. Trata-se de economia muito mais vasta, de que passam a participar numerosos elementos vitais, a que dou­tro modo não se daria importância. Só assim podemos atin­gir a essência do fenômeno econômico, que é também psi­cológico, biológico e moral; analisando-lhe o dinamismo pode­mos atingir o novo conceito de higiene econômica, de patologia e profilaxia econômicas. Estudando o sistema de forças do fe­nômeno, podemos determinar-lhe a anatomia e, reduzindo-a à substância de seu íntimo dinamismo, podemos desco­brir-lhe defeitos estruturais, de modo a mostrar-se, na rea­lidade, péssimo o que nos parecia ótimo, porque nos revela a devastação interior que o sistema clássico de economia não sabe revelar-nos. Assim também neste campo chegamos ao Evangelho e descobrimos novo utilitarismo, mais sólido e menos ilusório, mais evoluído, socialmente mais harmônico e profícuo. Então, o homem se torna verdadeiramente se­nhor do dinamismo do fenômeno, pois adquire consciência de seu funcionamento. Chegamos desse modo a muito mais completa e substancial disciplina das relações em que reside a ciência do futuro, disciplina necessária porquanto a con­vivência constitui fato insubstituível e cada vez mais ponde­rável e necessário. Assim, a ordem social se fortifica, pene­trando até mesmo nos motivos, transformando-se de edifício exterior formal em edifício interior substancial. Chegará o dia em que o furto, a desonestidade, o arrivismo serão tidos na conta de ingenuidade de involuídos obtusos, que não com­preenderam ainda a impossibilidade de algo verdadeiramen­te honesto nascer de fontes assim turvadas pelo mal, força destruidora por excelência.

O dia em que se compreender o Evangelho, se compre­enderá também que o amor do próximo não constitui uto­pia ou sentimentalismo, mas é sólida e prática lei de vida, o modo mais lógico e utilitário relações humanas. É na­tural que, semeando desordem, apenas se possa colher desordem e para obtermos justiça tenhamos necessidade de ser justos.

São estas as descobertas que mais nos interessam fazer, porquanto são as mais certas, e, disciplinando organicamente a atividade humana, nos permite extrair-lhes rendimen­to imensamente maior. Representam a conquista de novos valores, mais preciosos para o homem que novas descobertas científicas, que nas mãos de inconscientes podem significar destruição, enquanto as descobertas morais significam cons­trução de consciência. O espírito é o verdadeiro sal das coi­sas e representa princípio diretivo capaz de centuplicar o rendimento dos atuais meios humanos. Antes de por meio da ciência conquistar novos meios, importa é conquistar a sabedoria que nos ensine a empregar os já existentes. A ci­ência pode transformar a terra em inferno. Só a sabedoria pode transformá-la em paraíso. Quando o homem houver compreendido a economia da natureza e conquistado o sen­so da Divina Providência, então substituirá o terror da ne­cessidade, a violência da conquista, a incerteza do dia de amanhã, e o aniquilamento de nosso próximo por um sistema de fé, paz, segurança e ajuda fraterna. A ciência não é capaz de consegui-lo. Quando o homem chegar a compreender que sofrimento significa conquista e a morte, ressurreição, en­tão se tornará invulnerável. São estas as descobertas mais úteis, aí está o verdadeiro utilitarismo. A compreensão des­tas verdades, embora parceladamente, permite ao indivíduo evoluído refugiar-se, mesmo nos dias de hoje, na inviolável autarquia do espírito.

Em nosso século mecânico crêem que número signifique verdade e a maioria possa e saiba elaborar a lei. Cremos hoje que na vida se torne possível o agnosticismo, isto é, uma espécie de neutralidade espiritual, absenteísmo nas diretri­zes. Assim, creram resolver o que não sabiam, acreditaram na possibilidade de fugirmos dos grandes problemas do ser. Desse modo, a imparcialidade se tornou ambigüidade e a amoralidade se transformou em imoralidade. Mas o agnosti­cismo significa não entender e não resolver nada, significa mentir a si mesmo. Não podemos viver sem ação e não po­demos agir sem determinada orientação pessoal. Apenas em teoria agnosticismo pode significar imparcialidade. Na prática significa obediência aos próprios instintos. A vida está toda inteira em suas posições. É impossível permanecer neu­tro na luta entre o bem e o mal, não podemos deixar de atin­gir determinado grau de evolução, de existir sob forma de­finida. Em todo ato, em todo campo o espírito penetra e torna-se impossível não assumir uma posição moral qualquer.

A transformação biológica que conduz à nova civiliza­ção encontra sua lei no Evangelho; o evoluído é apenas o sábio que o aplica. Procuremos observar, ainda, de novos pontos de vista e sob diversos aspectos, essa revolução bio­lógica que leva do atual mundo humano a futuro mundo super-humano. A este podemos chamar nova civilização, nova ordem ou, então, reino de Deus, aquele de que há dois mil anos o Evangelho nos fez a profecia e nos assinalou o inicio. O fenômeno enxertou-se na História e foi percebido pelo pensamento das sumidades. É nuclear em nossa vida. Assim, A Grande Síntese não é somente, como dissemos, o plano regulador de nova civilização, mas também comentá­rio ao Evangelho, que há muito tempo lhe lançou as bases. De resto, a verdade é uma só. Compreende-se, por isso, que quanto mais profundas são as verdades humanas tanto mais se afastam da periferia do relativo, mais se aproximam do centro do absoluto e mais tendem a coincidir. Compreende-se que quanto mais nos avizinhamos de Deus tanto menos poderemos, logicamente, esperar novidades. A Grande Sín­tese, exatamente porque exprime a substância das coisas, não podia oferecer a novidade própria do mutável do relati­vo e da forma, mas apenas podia repetir a verdade eterna, que jamais muda. Esse livro, portanto, poderia apenas cons­tituir o desenvolvimento e a demonstração de tudo quanto já se disse e revelou, de tudo quanto já pertence às religiões, à moral, à vida. As verdades eternas voltam e tornam a voltar perante nossos olhos, vestidas de acordo com as formas men­tais do tempo; descendo, assim, até à psicologia do momen­to e acomodando-se com ele, tornam-se-nos cada vez mais acessíveis. Só as pessoas superficiais podem esperar continua novidade, uma das características de seu mundo relativo e efêmero. Ora, para nós o primeiro iniciador da grande revo­lução foi Cristo, que por sua vez, era, também Ele, continuador. Seja o que for que se descubra ou se invente, Cristo não muda. Suas palavras não passarão e nada podemos fazer se não segui-Lo. Ou o homem o compreende e segue ou deverá renunciar a seu progresso. Cristo é um centro. Só nos resta gravitar em torno d’Ele. Por mais que, através dos milênios, pensadores e líderes procurem lei que resolva e regule os problemas da vida humana, ninguém a encontrou nem jamais encontrará outra igual à lei selada com sangue na cruz. Por isso devemos examinar de perto o pensamento social de Cris­to, porque esse pensamento constitui o fundamento da "Construção".

Certo dia Cristo sentiu a necessidade de expor com exa­tidão seu pensamento aos apóstolos e às turbas, mostrando-lhes completamente a sua doutrina, que até àquele mo­mento apenas vagamente poderia penetrar-lhes na mente. Então, Cristo expôs a síntese de seu programa no Sermão da Montanha. Não podemos fazer outra coisa senão citar aqui, a propósito, a bela página da "Vida de Jesus Cristo" de Ricciotti (seguimento 318):

“Empregando terminologia musical, o Sermão da Mon­tanha pode comparar-se a majestosa sinfonia que, desde o primeiro compasso e com o ataque simultâneo de todos os instrumentos, exponha com rigorosa clareza os temas fun­damentais: e são os temas mais inesperados, mais inauditos deste mundo, totalmente diferentes de qualquer outro tema jamais executado por outras orquestras; no entanto, apresentam-se como se fossem os temas mais espontâneos e mais naturais para ouvido bem educado. E, realmente, até à épo­ca do Sermão da Montanha, todas as orquestras dos filhos do homem, embora com variações de outro gênero, haviam anunciado em uníssono que para o homem a beatitude con­siste na felicidade, a saciedade depende da saturação, o pra­zer é efeito da satisfação, a honra é produto da estima; pelo contrário, e desde o primeiro compasso, o Sermão demons­tra que para o homem a beatitude consiste na infelicidade; a saciedade, na fome; o prazer, na insatisfação; a honra, na desestima, mas tudo isso tendo em vista o prêmio futuro. Quem houve a sinfonia fica sem cor à exposição desses te­mas: mas a orquestra, prosseguindo imperturbável, volta aos temas fundamentais, separa-os, decompõe-nos, tece varia­ções em torno deles: em seguida repete no clangor dos ins­trumentos metálicos outros temas timidamente expostos pelos instrumentos de corda, corrige-os, modifica-os, torna­-os sublimes, levando-os a alturas vertiginosas: ao contrá­rio; faz desaparecerem num fragor de sons algumas velhas ressonâncias, ecos de longínquas orquestras, excluindo-as da sinfonia; depois, funde tudo numa onda de sons, que, subin­do muito acima da humanidade real, atinge uma humani­dade não-humana e se derrama sobre ela e sobre um mundo imaterial e divino”.

"Os antigos estóicos chamavam paradoxo o enunciado contrário à opinião corrente: nesse sentido o Sermão da Montanha é o mais amplo e mais radical paradoxo jamais dito. Nenhum discurso proferido na terra foi mais pertur­bador ou, melhor, mais revolucionário do que este: o que antes todos chamavam branco já nem recebe o nome de pardo ou escuro, mas exatamente o de preto, enquanto o preto agora se chama alvo; o antigo bem passa para a cate­goria de mal e o antigo mal para a de bem; onde antiga­mente o vértice se erguia altaneiro agora está colocada a base; onde a base se alicerçava coloca-se agora o vértice. Em face da revolução implícita no Sermão da Montanha, as maiores revoluções operadas pelo homem na terra parecem infantis guerras de brinquedo..."

Como o mesmo autor diz mais adiante, "o Sermão da Montanha não quer apresentar-se como contraposição des­trutiva, mas aperfeiçoadora, da lei mosaica". Efetivamente, Cristo não viera "abolir, mas cumprir". Essa continuação do passado, prossigamos, confirma tudo quanto dissemos antes, isto é, que a verdade é una e por isso não podemos renová-la, mas apenas aperfeiçoar e completar-lhe a expressão. Mas acrescentávamos ter sido Cristo o primeiro inicia­dor da grande revolução, no sentido de que quem aperfeiçoa e executa, se é um continuador em relação ao passado em que se apoia e se eleva, é sempre um iniciador, quanto ao novo trajeto evolutivo que nele se inicia. Cristo é marco miliário do eterno progresso da vida, pedra-de-toque do pen­samento humano, é, na história da civilização, o "pomo de discórdia" em torno do qual, sob a forma de ódio ou de amor, para exaltar ou destruir, se concentram os esforços antagôni­cos do gênero humano. Para explicar esses fenômenos não bas­ta a distinção simplista em "tipos" que a ciência estabelece se­gundo as três psicopatias dominantes: sadismo, masoquis­mo e fetichismo. Os dois primeiros, isto é, os sádicos e os masoquistas, são os violentos e as vítimas, os heróis da prepotência ou do sacrifício, em redor de quem se reagrupam os fetichistas, quer dizer, os neutros que, em face do dina­mismo, funcionam como massa, vivem de motivos alheios e representações ideológicas, adorando ora uns ora outros. Não podemos compreender Cristo, se não houvermos enten­dido todo o mecanismo fenomênico, toda a trama do fun­cionamento universal, todo o plano evolutivo, através de que na realidade o pensamento de Deus se exprime progressivamente. O progresso do mundo liga-se ao progresso da idéia cristã e todos contribuem para ele, como estimulo ativo os que o afirmam e como desencorajamento negativo os que o negam; de fato, a evolução, já o dissemos, se processa por força desse contraste e avança, apoiando-se nas ações e reações produzidas entre esses dois extremos, e acaba sendo o resultado da íntima colaboração nascida dessa luta. A fase materialista não passou de simples impulso negativo, aspi­rante ao invés de premente, dirigida para a fase espiritualis­ta. A negação constitui apenas o contrário da afirmação; li­ga-se-lhe, não pode viver sem ela, dela se nutre. E, gasto seu impulso e exaurida sua função de resistência estimulante de reação criadora, por força da lei de equilíbrio, se transforma em afirmação.

Cristo não é apenas fenômeno religioso, moral ou so­cial. É fenômeno biológico. Entrosa-se com a vida, sua ação penetra-a profundamente. Inclui-se em seu dinamismo co­mo força central, funde-se na expressão fundamental da Lei, quer dizer, do pensamento de Deus que nos manda evoluir e civilizar-nos. Quanto o Sermão da Montanha através dos sé­culos caminhou ao lado do homem! Embora ainda não se te­nha transformado em realidade, todas as suas frases se tor­naram proverbiais, todas as suas palavras constituem pedras angulares. Na Idade Média encontrou eco no sermão de S. Francisco a respeito da verdadeira alegria. Agora, a huma­nidade, ao findar-se o segundo milênio, atingiu um ponto em que o motivo de Cristo se apresenta de novo para novamente ser meditado. Estamos vivendo novo episódio da grande ba­talha do espírito para conquista do progresso. O atual mo­mento histórico, apocalíptico e doloroso, não tem outro sig­nificado. Guardadas as proporções, o problema é substanci­almente o mesmo, quer no tempo de Cristo, como hoje em dia: civilizar-se. Trata-se de dar ainda mais um passo no sen­tido do superamento da ferocidade e no abrandamento dos costumes. O progresso caminha em direção a Deus, cujas manifestações mais elevadas são a bondade e a justiça. Esse é o caminho do Cristianismo e o de toda a civilização. A lei dos homens deve aderir cada vez mais à lei de Deus, deve deixar transparecer sempre mais essa intima substância Ao mesmo tempo que, evoluindo, se torna mais fino e sen­sível e desse modo passa para fase mais adiantada, o homem percebe quão bárbara e feroz era a fase anterior, na qual no começo vivia satisfeito, nota dissonâncias irritantes e im­perfeições inaceitáveis justamente onde tudo lhe parecia per­feito e aceitável. Quando nova compreensão desponta no homem, por força do processo evolutivo, nele também nasce nova insatisfação, que o constrange a procurar formas mais civilizadas e harmônicas da vida. Dizer quais são essas formas constituiu a tarefa do Evangelho. E é exatamente a isso que também A Grande Síntese se propõe. O quadro da velha estrutura biológica está tornando-se muito estreito para os espíritos renovadores, nele o homem se sente angus­tiado e se agita em meio de numerosas indagações, ao mes­mo tempo que o passado transborda de seus velhos limites. Começaremos a compreender a utilidade e a alegria que podem advir-nos de maior liberdade, impossível de obter senão à custa de maior sinceridade, resultante por sua vez de consciência mais profunda. O impulso dos acontecimentos de nossa época consiste exatamente em conduzir o homem à compreensão da conveniência de executar esse esforço de bondade, sem o qual não se concebe o melhoramento da convivência social. Trata-se de tornar mais completa e espontânea a inclusão da lei de Deus na luta pela vida, Isto é, da bondade na bestialidade, do livre conhecimento na coação. Na prática, inclusive a lei do bem tinha de, no pas­sado, revestir-se de sanções e utilizar a vingança (o Deus dos exércitos e das vinganças), pois o hábito da violência lhe era necessário para impor-se e ter eficácia. O progresso obriga essas duras necessidades a se civilizarem e a isso che­gamos apenas a maturidade, uma vez atingida, possa per­miti-lo sem prejuízo para o homem, isto é, quando este se civilizou ao ponto de a força não precisar mais obrigá-lo ao cumprimento da própria Lei. Só então pode a Lei abrir-nos os braços e o Deus da vingança tornar-se o Deus do amor. Isso aconteceu primeiro com Cristo e se repete ago­ra. A Lei, achando-se praticamente na necessidade de en­frentar a luta, teve de tomar necessariamente formas adap­tadas a esse grau de desenvolvimento, formas que, todavia, depois se foram tornando cada vez menos adequadas a graus mais elevados e atingidos pela consciência humana. Em fa­ce desse desenvolvimento, essas formas da Lei, para seres psiquicamente mais adiantados, acabava transformando-se em escola de astúcia para evitar-lhes as insídias, em velado en­sino da arte de fugir-lhes. A Lei então, deixava pois de constituir auxilio para a vida e se tornava uma prisão a evitar, mais um inimigo contra quem devíamos aprender a lutar. Essa Lei, quando posta em prática, se absorvia na lu­ta humana, reduzida a instrumento desta; assim, acabava sendo modificada. Isso significava inverter-se-lhe a função lógica, reduzindo-a a recrudescimento da luta pela vida, já de si dura. Porém, apenas em determinada fase de matu­ração se compreende que nos tornamos cruéis em nome de Deus, muitos males se cometeram por causa do bem e mui­tos crimes se praticaram em nome da verdade. Compreen­de-se, então, que no passado, sob o pretexto de aplicação da justiça, o povo assistia a exemplos de vingança e, assim, ilu­dido pelo exemplo, se familiarizava com o espetáculo do ato sanguinário e educava-se. Compreende-se como a lei de se­leção do mais forte diz respeito a um plano biológico infe­rior de que nos é lícito sair e como não constitui a única nem a última expressão das leis da vida. E, além disso: quando estas apenas sabem manifestar-se sob a forma do primitivo equilíbrio-justiça da lei de Talião e da força, en­tão no indivíduo débil fazem desabrochar o astuto, o trai­dor, o cínico, isto é, o maligno em que a força se sub-roga. Está soando a hora de a Lei vir ao nosso encontro, dotada de maior bondade; de fato, a vida pertence a todos e o prin­cípio da seleção do mais forte refere-se a fases evolutivas inferiores e está destinado a ser superado. Cada um de nós representa uma força e, em ordenamento social mais cons­ciente, até mesmo uma utilidade. Ninguém, pois, deve ser esmagado, suprimido, eliminado, mas compreendido e va­lorizado. Eis-nos em pleno conceito cristão. Eis o conteúdo da Boa-Nova de Cristo. Porém, essa nova distribuição de bondade, liberdade e felicidade só será feita na Terra, se o permitir consciência mais desenvolvida, porque justamente essa consciência é que lhes traça o limite e estabelece a proporção.

Quando Cristo viveu e morreu há dois mil anos, o mun­do, preso a problemas imediatos e presa de espetáculos de grandeza, de vício e de sangue, o mundo nem de leve ima­ginou a revolução apocalíptica que, em longínqua e obscura província romana, se iniciava em silêncio. Ninguém imaginou que, na ocasião, de fato na terra nascia novo reino e novo princípio começava a firmar-se. Isso mostra como os caminhos de Deus gostam de esconder-se nas formas de desenvolvimento normal (nas parábolas, a palavra de Deus cai e se desenvolve de modo natural como uma semente); como esses caminhos evitam a todo custo o caráter maravilhoso e excepcional que, em tais casos, desejado por nossa fantasia, constituiriam a violação mais gritante dos equilí­brios e harmonias de que se compõe a Lei. Os contempo­râneos, deixando-se como sempre estar à superfície, naturalmente nada perceberam do movimento profundo, perce­bido apenas pelos videntes. Parece existir aí conexão, habi­tual na História, entre poder humano e embotamento espi­ritual. Os expoentes intelectuais daquela época manifestam a incompreensão mais completa. Coisa, de resto muito natural, pois viviam ao lado oposto da vida, no pólo-matéria, enquanto o fenômeno se processava no pólo-espírito. Para o mundo daquela época, a vida e os atos de Cristo se desen­volvem nas trevas e na indiferença e, quando acontece se­rem vistos, são mal compreendidos. Até mesmo o povo de Israel, destinado a receber o Messias, espera a vinda de rei poderoso e conquistador e se considera logrado quando, ao contrário, se encontra em face de um reino nascido na hu­mildade e no silêncio, em meio de mil obstáculos, com a. morte ignominiosa de seu fundador. O povo ansiava por um líder de reivindicações nacionais e de expansão material e não conseguia acostumar-se à idéia de que, ao contrário se tratava de renovamento mundial e de expansão espiritual. Nem um pouco dessa exterioridade clamorosa que golpeia os sentidos. Nada. Na parábola se fala, isso sim, do grão de mostarda, exatamente como exemplo de pequenez material Aqui também parece haver intima ligação entre pequenez material e grandeza espiritual e ao contrário! A incompre­ensão judaica atinge o máximo no dia da entrada triunfal de Cristo em Jerusalém. Nesse dia o povo, que clamava "Hosana! Hosana!", pensava estar aclamando o fundador de um reino messiânico, mas terreno, e não o de um reino espiritual. Cristo permitiu e aceitou essa exaltação que o subestimava, como testemunho de quão diversa era sua missão; naquele momento os dois diferentes messianismos, o do Cristo e o da plebe como se por acaso se sobrepuseram e co­incidiram. Cristo aceitou o mal-entendido como único tes­temunho possível de sua verdadeira realeza messiânica, de que Ele tão pouco falava por saber que ela não poderia ser compreendida e admitida por parte de pessoas desejosas de não fazê-lo. E, exatamente no ponto em que o povo acreditava começar o caminho do triunfo, aí Cristo já o havia percorrido e começava a palmilhar o da Paixão. Que exem­plo de pobreza aquela exaltação de Cristo montado em po­bre jumentinho, quando a comparamos com as esplêndidas entradas triunfais dos líderes vitoriosos através de todas as épocas! Ainda aqui se nota a ligação entre riqueza formal e material e pobreza substancial e espiritual e ao contrário! Instrutivos e invioláveis equilíbrios da vida, conseqüência da harmonia e justiça da Lei.

No meio de tanta incompreensão ninguém poderia ima­ginar que, sob aparências tão singelas, se estivesse inician­do tão catastrófica reviravolta no mundo daquela época, se desencadeasse ataque tão inesperado e sob a forma de pa­cifismo que, dirigindo-se contra aquele mundo de maneira imprevista e em "fronts" novos, e por isso indefesos, o teria encontrado desprevenido e, assim, facilmente vencido. As­sim, por falta de compreensão, cai a sociedade israelita que, prisioneira da forma, acreditou assegurar, com a condena­ção de Cristo, sua mais enérgica defesa e decisiva vitória. E pensar que, para chegar a esse ponto, sua própria classe di­rigente, os sumos-sacerdotes, embora sabedores de que Jeová tanto permanecia o único e inconteste rei de Israel que a contragosto toleravam em Saul o primeiro rei humano, fo­ram os primeiros a declarar não existir outro rei senão Cé­sar, isto é, um estrangeiro pagão. Assim, enquanto caiam no chão as despenadas águias romanas, o princípio da cruz conquistava o próprio coração do império. Hoje, depois de dois mil anos de luta, compreendemos a impossibilidade de enfrentar o problema social sem levar em consideração o hu­milde e simples Evangelho. Sempre vivo e atual, torna-se fundamental para quem, como nós, se proponha o proble­ma de construir. Embora não contenha em particular tudo quanto em A Grande Síntese se expôs através de análise ci­entífica e demonstração racional, o Evangelho nos dá sem­pre os resultados finais dessa operação lógica, naquele livro decompostos em seus elementos. A concordância entre prin­cípios e demonstração é prova que confirma e revalida.

O Evangelho pode chamar-se o livro das harmonias e dos equilíbrios. A novidade e a originalidade de seus prin­cípios reside exatamente na justiça e no amor, em oposição ao princípio do mundo que é, como ainda hoje, força e egoísmo. A pouco empregada, mas poderosa arma do Evange­lho, que é também a destes escritos, é a verdade simples e espontânea, que se impõe por si mesma porque persuade, e persuade porque satisfaz. Trata-se, em relação ao mundo, de substancial modificação de seus caminhos, da conquista de novas posições biológicas, da introdução de novo princi­pio na vida. A verdadeira força não consiste, de fato, em saber subjugar para vencer, mas consiste em espontânea po­sição de equilíbrio. O Evangelho, colocando-nos em face dos dois princípios, ensina-nos a vencer com as armas deste úl­timo. Hoje, como naquela época, estamos diante do mesmo problema: a força não convence, a força não resolve, a força não vence. Dada a estrutura de nosso universo, fato objeti­vo que somos obrigados a admitir e não podemos alterar, o emprego da força significa o inicio de uma série de violên­cias, impossível de controlar senão por meio de violências maiores e de acalmar senão destruindo o inimigo. A premis­sa desse sistema é o egoísmo, o método é a expansão desor­denada e semeadora de desequilíbrios no ambiente, a conclusão é o estado de ruína. Ora, na realidade, a expansão ilimitada de egoísmo prejudicial aos demais não passa de ilusão, pois a vida tende, imparcialmente, a equilibrar to­dos os egoísmos. A realidade é, pois, intimamente regida por uma Lei, isto é, feita de ordem e, por isso, reage confor­me a intensidade do estímulo, isto é, à desordem responde com a desordem, ao choque violento com a dor, ao egoísmo com o aniquilamento. Enfim, a destruição do inimigo, com a qual se esperava concluir, constitui um absurdo; em pri­meiro lugar, porque em um mundo de coexistência de to­dos os seres, mundo em que tudo é comunicante, nenhum estado de ruína pode isolar-se sem repercutir em tudo em torno; em segundo lugar, porque quem acredita residir na vitória a solução, ignora que o inimigo não é apenas destru­tível forma exterior, mas vida, impulso, dinamismo e, desse modo, indestrutível como todas as coisas em substância. Apenas o obtuso involuído pode acreditar em que a destrui­ção aparente, a da forma, também represente a destruição dessas forças imponderáveis. Elas não morrem de modo nenhum e são invencíveis; acontece, porém, que, por força da reação, acabam sendo impelidas, para reequilibrar-se, a se moverem em sentido contrário, isto é, contra o próprio ofensor, restituindo-lhe o equivalente de sua ação, mas em posição inversa. O impulso, que parece caminhar em dire­ção da vitória, constitui, no entanto, verdadeira fábrica de inimigos, é o mesmo que cavar um abismo diante de si mes­mo; e as adesões recebidas pelo dominador não significam convicções espontâneas e duradouras, mas mentira sob que se escondem o cálculo e o interesse. A traição, logo ao pri­meiro sinal de fraqueza, faz, pois, naturalmente parte do sistema. O homem pode escolher, mas, escolhido este ou aquele caminho, a lógica de seu percurso domina-o intei­ramente.

Assim se compreende como, na prática, todas as vitó­rias humanas da força são instáveis e transitórias, terminam em ilusão, enquanto na realidade, por força da lei de equilíbrio, para descer é antes necessário subir e quem ven­ce prepara a própria derrota. O Sermão da Montanha expõe esses equilíbrios. Por isso Cristo aconselhou a não resistir ao maligno, mas oferecer-lhe a outra face, contrapondo a bon­dade à ofensa. Semelhante concepção pareceu modificação e total reviravolta; no entanto, não passa de reordenamen­to e retificação de idéias, fazendo-as finalmente coincidir não com a ilusão, mas com a realidade. Os vencedores, pois, não passam de causas de desequilíbrio naturalmente desti­nados a sucumbir, mais cedo ou mais tarde, sob os escom­bros do edifício por eles construído. Á moral a que chega­mos está, desse modo, nos antípodas da moral do mundo. Não é, pois, com a força que podemos construir. Esse é o princípio novo. O sistema humano, se atinge outros obje­tivos não vistos pelo homem, em relação ao objetivo que a si mesmo propõe é falso e a História o demonstra. Constru­ção estável só se torna possível com o sistema evangélico e equilibrado da justiça. Assim, com lógica mais simples e realista, no Evangelho se resolveu o problema da guerra, do desequilíbrio econômico, da luta de classe, da justiça social. Não pode, pois, manter-se nada do que se constitui de inti­mo desequilíbrio, exatamente por ser desequilíbrio de forças e lhe faltarem elementos de estabilidade. Tudo quanto nasceu de abuso representa desequilíbrio, isto é, sistema de forças desequilibrado e incapaz de manter-se senão à custa de dese­quilíbrio progressivamente maior; representa, pois, sistema que no seu próprio princípio carrega o germe de sua ruína. Por isso, o homem é tão ávido de energias, único meio capaz de sustentá-lo; mas, por mais esforços que faça, a lei de equilíbrio o assedia e se lhe contrapõe para reconduzi-lo à posição exata, em correspondência com sua real função bio­lógica. Já falamos disso tudo à propósito da lei do mereci­mento, a que retornaremos mais tarde, examinando-a de ângulo individualista relacionado com o próprio destino. Essas considerações escaparam a muitos líderes e fundadores de impérios. Na realidade, desempenharam eles função bem diferentes da imaginada grandeza. Muitas vezes a História atinge objetivos bem diferentes dos objetivos aparen­tes, que o homem se propõe e constituem simples meio de induzi-lo à ação. Esgotada a função e atingido o objetivo, grandes e pequenos atores são rapidamente liquidados.

Nesses simples princípios evangélicos reside a única so­lução honesta dos problemas sociais. A vida humana em sociedade é campo de forças em ebulição, em contínua riva­lidade e luta. A insolubilidade de tantas posições nos induz a observar atentamente essas diretrizes tão disparatadas. Nas relações sociais as forças individuais mutuamente se re­conhecem, se odeiam, se amam, ligadas pela interdependên­cia dos vasos comunicantes, pela relação entre o "dar" e o "haver". Assim se formam equilíbrios provisórios em con­tínua evolução. Eles se desenvolvem de acordo com determinada medida (passo), que permite se alojem, nos inters­tícios do tempo, os aproveitadores, os parasitas do equilíbrio, os ladrões de felicidade usurpada, pois não foi nem mereci­da nem ganha. Os míopes egoístas apressam-se a gozar e morrem. Mas as forças, por eles postas em jogo, não morrem. E as gerações que morrem deixam às gerações que nas­cem e estas devem aceitar, com o nascimento, uma série de desequilíbrios ao longo dos séculos e dos milênios. No desti­no coletivo acontece com os povos o mesmo que, no destino individual, sucede aos indivíduos, isto é, nossas obras nos acompanham a toda parte. São desequilíbrios econômicos, sociais, morais, políticos, psíquicos, orgânicos. As novas ge­rações ou se reequilibram pagando, ou somente os mantém, suportando-os, ou aumentam-nos, arruinando ou deixando ruína. São ódios, desajustamentos, dores; por toda parte vácuos a preencher, equilíbrios a recompor. Nossos amados. filhos pagarão por aquilo que desnecessariamente gozamos, ou gozarão das forças por nós acumuladas. Quem aceita determinada posição deve suportar-lhe a responsabilidade. Os recém-nascidos são continuadores. Ai de nós, se já fomos impelidos no caminho da regressão. Então, o caminho, fácil por natureza, para a volta nos exige esforço tanto maior quanto mais nele já tivermos avançado; e quanto mais o de­clive aumenta e se torna perigoso, mais difícil é sabermos voltar atrás e recompormo-nos. Não há, então, solução possível e o homem, na realidade, não soube resolver essas po­sições senão à custa de sua ruína final.

Tal é, de fato, o sistema funcional da vida e não pode­mos mudá-lo. Nenhuma força ou astúcia humana pode im­pedir que apenas determinada força se forme, lhe nasça ao lado uma força contrária e inversamente proporcional. Ape­nas determinada autoridade se cria, ao mesmo tempo surge seu inimigo, do mesmo modo que, apenas se forma um or­ganismo, lhe nasce o parasita, seu micróbio patogênico específico. Do mesmo modo, o oprimido, por força de natural lei de compensação, de geração em geração, espera através dos séculos o momento de debilidade do opressor. Todo indivíduo é mais ou menos uma mola comprimida e à espera de soltar-se, é um ódio em potencial ou uma vítima já destinada ao sacrifício. A força atrai a revolta; o império, a revolução. Os vencidos tanto esperarão que o destino do próprio vencedor lhes trará con­solo. É sua a culpa de haver pretendido vencer. Na Histó­ria não se dá o mesmo? Todo poder atrai resistências que lhe constituem não só verificação e prova, mas também ameaça e o próprio fim. Só o amor desarmado atrai e cria amigos. Di-lo o Evangelho. Isto é, somos senhores de constituir uma força e agir de acordo com ela; não pode­mos, porém, impedir o nascimento simultâneo de uma força contrária que a contrabalance e nos agrida. Por isso, se qui­sermos resolver o problema da guerra, o único caminho é o do perdão, e para resolver o do ódio só há este caminho: o do amor. Eis o significado das palavras de A Grande Síntese (Cap. XLLI): "Existe apenas esta defesa extrema: o desar­mamento geral". Afirmações simplíssimas, de lógica ele­mentar; no entanto, difíceis de entender! E com que desas­trosas conseqüências!

O que não se pode perdoar ao nosso mundo racional e a irracionalidade de sua conduta, é esse erro basilar em seu cálculo utilitário, que todavia, lhe constitui o núcleo de to­dos os pensamentos. Contudo, verifica-se que, realmente, a construção levantada por Cristo, usando como força a simples verdade desarmada, supera em tamanho e duração muitas construções. Como assim? Sabedoria do engenheiro que traçou o plano bem equilibrado da construção. Sozinha, a força não pode fazer o mesmo, pois não possui essas qua­lidades. Apenas o que se edifica sobre a verdade consegue crescer em extensão e profundidade, pois está solidamente plantado no campo de forças da vida. Mas observemos o fenômeno mais um pouco. Apenas no dinamismo universal se caracteriza uma corrente, isto é, uma força, isolando-se e Individuando-se, se manifesta, logo se determina no próprio dinamismo universal, por força da lei de equilíbrio, uma corrente contrária; esta, embora isolando-se e individuando-se, torna-se evidente como força oposta a contrabalançar a pri­meira. (Eis o atrativo especial das coisas proibidas, exatamente porque proibidas). De acordo com esse princípio, nenhum fenômeno foge aos limites preestabelecidos e, em­bora sendo contínuo movimento de evolução, não se desen­volve senão de acordo com plano traçado pela Lei. Proíbe-se desse modo todo desenvolvimento hipertrófico e unilate­ral, todo excesso de desarmonia e desproporção no conjun­to. Assim, toda manifestação pode processar-se apenas se enquadrada nos limites assinalados pelos princípios direto­res. O desenvolvimento é, pois, dirigido harmonicamente, protegido contra a catástrofe de desproporção insuportável e permitido apenas na forma e na medida úteis às finalidades evolutivas da vida e do bem. A lei do dualismo, explica em A Grande Síntese e por nós mais adiante esmiuçada (cf. cap. XXV: "O dualismo fenomênico universal"), se em todas as coisas vê binômios, unidades compostas de duas metades inversas e complementares, mostra-nos também como todas as coisas têm o seu contrário. Como o contraste condiciona a percepção, assim a contradição temida pelos lógicos constituí, pelo contrário, a base da vida e até mesmo do pensamento. O termo oposto representa o controle neces­sário, o freio inibitório, o contra-impulso probante. A reação reforça a resistência, a oposição garante a verdade. Quem conquista autoridade cria inimigos, é certo, mas apenas no campo em que a exerce e na medida em que a possui. Tra­ta-se de compensações automáticas verificáveis em qualquer campo, apenas uma força se manifesta, exatamente porque toda unidade se constitui de uma dupla de contrários. O forte é forte; mas, quanto mais forte mais inimigo atrai. O fraco é fraco; porém não cria inimigos, o inerme é benquisto O homem desarmado atrai, o homem armado causa repulsa.

Muitas vezes esses contra-impulsos se conservam em esta­do potencial, latente, à espera de condições adequadas à sua manifestação. A vida social está repleta dessas forças, às vezes comprimidas e concentradas como explosivo E é nos momentos de mudança de fase, de novas combinações, du­rante os quais transitoriamente a estabilidade dos equilíbrios precedentes se desloca à procura de novos, é nesses momentos que as forças latentes e comprimidas explodem. A evolução subentende e impõe esses deslocamentos. Então, esses impul­sos, que em épocas normais (porque equilibradas) repousa­vam em equilíbrio, ao primeiro sinal de enfraquecimento de uma parte, despertam e se enfurecem; de fato, com o deslo­camento daquela parte e tendo-se presente, como em toda balança, que essas forças têm posição relativa, elas conquis­tam nesse momento proporcionado aumento e valor. A calma, a paz é apenas o equilíbrio de forças opostas que se guerreiam. Em face dessa mecânica da vida, não podemos, se não o levarmos em consideração, conquistar nenhuma posição es­tável. Se apenas como fenômeno biológico podemos com­preender o fenômeno social, o fenômeno biológico, por sua vez, só pode ser entendido como fenômeno dinâmico, isto é, como relação de forças. Para ter verdadeiro direito, torna-se necessário não haver pecado e abusado nesse campo duran­te séculos. Só então a bandeira, a roupagem, a classe que o representa poderá dizer: esse direito me pertence. Do con­trário, assistiremos a intérmina sucessão de bandeiras, de classes dominantes e dominadas, pois todos pecaram por excesso. O segredo da estabilidade de uma posição é não ali­mentar, ao seu lado, o contra-impulso compensador e destrutivo; é cercarmo-nos não de força, nem de ódio, mas de be­nevolência e fé. Não há, pois, outro caminho: ou, de acordo com o sistema evangélico, abandonar a força ou saber man­tê-la sempre em condições de defender-nos. Como, porém, não representa o equilíbrio espontâneo da Lei e deve lutar para manter-se, essa força com o tempo se gasta e esgota e não pode resistir por muito tempo Não nos resta senão pre­pararmo-nos para passar da parte dos vencedores para a dos vencidos. Defrontamos, pois, este dilema: perdoar ou, se queremos dominar, irmo-nos acostumando à idéia de que mais tarde pagaremos por isso. Eis o dinamismo íntimo que explica, com todo o rigor da lógica, as afirmações do Sermão da Montanha.

A vida tudo registra e conserva, para mais tarde reagir. Cuidado com a semente que plantamos. Em qualquer ato, educamos os outros e os outros nos educam. Uma posição social importante não pode manter-se pela força, mas ape­nas pelo exercício da função; a autoridade permanecerá de pé enquanto missão; a riqueza será tanto mais segura quan­to mais amplas forem suas bases, isto é, quanto mais esten­der-se dos estreitos limites da utilidade individual para o campo da utilidade pública. Qualquer posição, para resistir mais do que na força deve fundar-se no merecimento, no valor intrínseco, na superioridade intrínseca de tipo, nas qualidades inscritas nos instintos, apenas lentamente for­mados por automatismo, por meio do método de educação das raças animais. Tão-somente o que resiste, por haver se fixado na personalidade, constitui força verdadeira, coisa própria e, por isso, direito pessoal. Ai dos que querem vitó­ria esmagadora; cavam a própria sepultura. Ai dos improvisados distribuidores de justiça que vão além do necessário e invadem o lado oposto da linha mediana do equilíbrio. Pagarão por isso. A reação que preparam os atingirá também. A História mostra-nos quanto é fácil e humano passar, com prejuízo embora, da parte dos revolucionários da justiça para a parte dos revolucionários da injustiça. Todo excesso semeia ódio, que é contra-impulso reprimido, conta a ser paga. Em relação a quem não pratica excessos, permane­cem espontaneamente indiferentes. Assim, a vingança nada resolve, mas agrava o mal e, obtida a satisfação, o credor passa à condição de devedor. A única solução verdadeira consiste na anulação do contraste, na neutralização da for­ça, isto é, consiste no perdão.

O dinamismo da vida é corrente que capta todas as in­fluências, em todas as coisas vai buscar elementos formado­res, assimilando tudo quanto lhe age no ambiente em torno. Cada ato nosso dá e recebe, influencia e deixa-se influen­ciar e tudo volta às origens. Assim se explicam certos ódios instintivos, como o votado pelo homem à cobra, ao escorpião e outros animais venenosos, o do empregado pelo empregador e ao contrário; se explicam também certos ódios de clas­se e de raça, certos tipos biológicos feitos de traição e de mentira. Em verdade, para dominar não basta vencer. Tor­na-se necessário, outrossim, verificar que tipo biológico a ação do dominador cria. Para nós todos a vida constitui ex­periência, formação de qualidade. Quem acredita poder tri­unfar impunemente ou que o domínio pela força represente ilimitado poder não sabe que, ao contrário, aquece no próprio peito uma raça de víboras prontas para picá-lo e envenená-lo. Em última análise, nos ódios sociais há sempre razão determinada, erro a ser reparado, equilíbrio a recompor. Inútil disfarçar. A forma nada significa... Qualquer ato nosso é semente e, por isso, substancialmente se repete. Convivência significa reação e educação recíprocas. O mundo hoje é certamente, um turbilhão de forças descontroladas, uma tempestade que a todos nos arrasta. Porém, se o re­equilíbrio é difícil, fatigante e remoto, isso não pode impe­dir que ele continue lógico e necessário, como única via de salvação.

XX

O PENSAMENTO SOCIAL DE CRISTO

O exame critico do fenômeno social, a observação de seus impulsos e efeitos conseqüentes, explica-nos e demons­tra-nos logicamente as afirmações do Evangelho e alguns limites que novas concepções modernas, aplicando-o sem querer, impõem ao direito, antigamente ilimitado e sem disciplina, de uso e abuso, das pessoas e das coisas. A evolu­ção social consiste exatamente nesse continuo e progressivo enquadramento das forças da vida, para na ordem coletiva transformá-las cada vez mais em concerto de harmonias e não em desencadeamento de vitórias e violências. Nesse campo, o pensamento social de Cristo antecipou de dois mil anos as tendências atuais e indicou tudo quanto, socialmen­te falando, apenas hoje começamos a compreender. Tais concordâncias corroboram estas nossas explicações, concor­dâncias, aliás, bem naturais porque o princípio da vida é um só e na verdade não pode mudar, embora expresso, ontem, hoje e amanhã, sob forma científica, religiosa ou social.

Nas páginas precedentes desenvolvemos o cap. XCI de A Grande Síntese ("A lei social do Evangelho"). Acrescen­temos agora algumas observações aos dois capítulos seguin­tes (XCII - "O problema econômico" e XCIII "A distri­buição da riqueza"). Este último lá o comentamos em par­te, no que diz respeito a' propriedade, no cap. II deste vo­lume: "O homem involuído e a propriedade". Vejamos como o Evangelho está de acordo com tantas aspirações modernas e antecipa os novos ordenamentos de nossos tempos. O advento da justiça social, grande realização a que o século XX aspira, o Evangelho anunciou-o e preparou-o do modo mais substancial. Comecemos pela distribuição da riqueza, o mais atual e angustioso problema, o problema prático e básico da vida coletiva de todos os tempos. Como Cristo reequilibra os desajustamentos econômicos tão debatidos? A solução do problema da distribuição equitativa Cristo no-la dá sob for­ma substancial, completa e definitiva, porque equilibrada, e não sob a moderna forma de luta de classe, que não resolve pois é desequilibrada. O método da luta não representa na­da de novo e de resolutivo; não passa de comum e velho mé­todo de enriquecimento por substituição. Esse método não chega a solução alguma como sistema, pois se limita a subs­tituir pessoas e classes sociais nas mesmas posições anti­gas. Por isso, desperta profundamente o interesse de pes­soas a quem aproveita, dando-lhes vantagens pessoais; não interessa, porém, ao progresso social, a que importa a es­trutura orgânica da sociedade e não a utilidade pessoal; re­novar o ordenamento das posições e não as pessoas que as ocupam; eliminar os velhos erros e explorações ao invés de continuar repetindo-os em proveito alheio. A moderna luta de classe não passa da velhíssima luta biológica que, legitimando-se e assumindo funções de distribuidora de justiça, procura adquirir prestígio. Velho mimetismo que não subsiste em face das verdadeiras forças da vida. Isso não é equidade. A equidade nesse caso é apenas um pretexto. O método empregado pela violência e pela prepotência no fun­do revela o mesmo abuso, fonte das costumeiras e intérmi­nas reações. E o homem fascinado pela miragem do bem­-estar, continua acreditando na possibilidade do absurdo, isto é, que a usurpação possa produzir frutos estáveis e bas­te disfarçar a força com as vestes da justiça para obter aqueles resultados definitivos que ela por natureza não pode dar. Assim, os homens mudam, más os erros continuam.

Apenas a equidade pode oferecer solução estável e con­clusiva, com a adoção de um sistema de equilíbrios e não por meio de novas usurpações com que, em nosso proveito, acreditamos corrigir as anteriores. Isso não é justiça, mas egoísmo. E quando a verdadeira justiça não se faz presente, as mesmas razões que hoje nos autorizam a, no domínio e bem-estar, substituir os seus detentores, vão amanhã auto­rizar que outros nos substituam e assim por diante. Forma-se então a muito conhecida e resistente cadeia de ações e reações intermináveis. Se queremos chegar a alguma con­clusão, essa equidade não deve ser apenas aparente, mas substancial, nem estar somente nas formas, mas também nas almas. Noutras palavras: torna-se necessário introdu­zir também no mundo econômico o conceito do equilíbrio, da ordem e da harmonia, fundamental em qualquer campo de forças e, por isso, inclusive no da riqueza, que não passa de caso particular. De acordo com ele, do mesmo modo que o ódio só termina se lhe contrapusermos o amor, e a ofensa se lhe opusermos o perdão, e a violência, se lhe antepuser­mos a paciência, assim também o desajustamento e a luta não findam senão contrapondo-lhes a verdadeira equidade e justiça.

Cristo não diz aos pobres: rebelai-vos. O sistema é radi­calmente diferente do sistema do mundo. Todavia, a este, que não compreende coisa alguma senão à luz crepuscular da vitória-derrota, ele dá a entender que não vê no pobre um derrotado. Se não diz: "rebelai-vos", muito menos: "sofrei passivamente". Diz, pelo contrário: "Vós, vítimas da injustiça, tolerai, tende paciência". Por que isso?O que nos perguntamos. Como sempre, a filosofia de Cristo se com­pleta num mundo ultra-terreno, na íntima realidade das coisas em que se completa e justifica toda aparência perce­bida por nós. A razão, diz-nos Ele, reside em que a injustiça que vos oprime é apenas humana e, por isso, temporária presa tão-somente a esta vida na Terra, não passa de pequena injustiça secundária, incapaz de violar, como de fato não viola, a bem maior justiça divina, a que transforma o opri­mido em credor. Ficai, pois, tranqüilos, se ainda hoje sofreis, injustamente como pode parecer-vos. Deus é justo e a injustiça do momento será compensada, reequilibrada; vosso direito é verdadeiramente justo, vossa consciência não se en­gana e será ouvida. O sistema do universo é perfeito, lógico, equilibrado, absolutamente estável. Mas o tipo normal, isto é, o involuído não sabe enxergar tão longe e leva essas pro­messas em brincadeira. Culpa de sua miopia.

A nova afirmação irrompe gritante no início do Sermão da Montanha, enunciando-lhe de um só golpe os temas fun­damentais. Em suas antíteses se percebe a inversão das po­sições, o jogo das forças opostas, o dualismo do binômio de que esses argumentos constituem os extremos e servem ao equilíbrio das forças. Eis o texto (Lucas, Cap. 6):

“... Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus.

“... Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis fartos. Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir.

“....Mas ai de vós, ricos! Porque já tendes a vossa consolação.

"... Ai de vós, que estais fartos! porque tereis fome. Ai de vós que agora rides, porque lamentareis e chorareis".

O problema resolve-se através das beatitudes. Quer di­zer: os pobres, os famintos, os atribulados, além de fraternal­mente lastimados e reconfortados como o reconhecer-se-lhes o direito a serem compensados, são considerados incontestavel­mente bem-aventurados, isto é, vencedores, afortunados; por outro lado os que o mundo inveja como vencedores são tidos na conta de vencidos, de desgraçados. Esse é o juízo de Deus, que se coloca no lugar do juízo humano. É assim que Deus julga. Por isso, ó pobres, não vos arrogueis o direito, que só a Ele pertence, de fazer justiça. E justiça já vos foi feita. Querendo alcançá-la por vós mesmos, violentamente, per­turbais o equilíbrio já existente. Tendes razão e ides colo­car-vos ao lado do erro, das culminâncias dos vencedores vos precipitais na miséria dos vencidos, da harmonia dos planos divinos ides mergulhar no marasmo das baixas com­petições humanas. Perante Deus já tendes razão. Bem-aventurados sois. Que mais podeis desejar? Se não espe­rardes que a justiça venha de Deus, mas de vossa violência e de vossa revolta, então passareis da parte dos credores para o lado dos devedores. Não tenteis legitimar vosso roubo, di­zendo que a propriedade é um roubo. De acordo com esses argumentos, que coisa seria vossa propriedade atual? Não vedes, porém, que exatamente o vosso furto presente legiti­ma o furto passado e estais no mesmo plano e imitais exatamente aqueles a quem acusais? Por que razão apenas o vosso furto se justificaria e o dos outros não? E vós, impro­visados distribuidores da justiça, é essa a justiça que distribuís? Não. A filosofia do interesse falta lógica; quando pre­tendeis passar por justos, mentis. Não. Jamais é lícito rou­bar, nem mesmo dos ladrões, como facilmente acreditamos. Então, ao invés de justiceiros, também sois ladrões e paga­reis por isso. A culpa é mal infinitamente maior do que a, pobreza. Antes de mais nada, merecei, pois, sem merecerdes, nada podereis possuir com segurança e, por isso, gozar (cf. cap. VI deste volume: "A lei da honestidade e do mereci­mento").

Assim esclarecidos e confortados os pobres, depois de, colocando-os num pedestal de grandeza, havê-los protegido contra os juízos humanos, depois de exortá-los a conservar a vantagem dessa preciosa posição, Cristo dirige-se aos ricos, aos afortunados e, com relação a eles mudando completamente o tom do Sermão, mostra-lhes sua própria miséria não lhes concede nem salvação nem trégua, indicando-lhes as graves obrigações inerentes à sua posição e ameaçando-os os com as conseqüências de seu inadiplemento Desse modo, lógica e naturalmente, sem novos excessos e novas desordens, o mundo econômico se reequilibra comp1etamente confiando a solução do problema não a sistemas sociais ex­teriores e coativos, mas ao simples, real e espontâneo fun­cionamento das forças intimas da vida. E logicamente o reordenamento começa no indivíduo e em sua íntima convicção, ao invés de na coletividade e na coação; começa no ato generoso de dar e não no de tomar, que é furto e violência. Só o "dar" livre e convicto reequilibra e saneia; o “tirar” não; só mudando, antes de nada mais, as diretrizes psicológicas do caso particular conseguimos estável transformação coletiva. Os sistemas do mundo de hoje são muito variados e, se correspondem a forte necessidade de justiça e expri­mem a tendência da evolução social na fase presente, estão muito longe de possuir os requisitos necessários para pode instaurar a sério a justiça social. Partindo da injustiça da violência, não podemos chegar à justiça, mas apenas a no­va injustiça. Existe, pois, outra economia política, não ba­seada no "do ut des" das trocas do "homo oeconomicus" ou no princípio hedonístico, mas assentada nos equilíbrios das forças em ação no funcionamento da vida. Essa é a economia do Evangelho. Se sua base passar de simples relação de egoísmos humanos a relação muito mais vasta, de impulsos biológicos, conseguem-se resultados imensamente maiores, quer quanto à profundidade, como à excelência, e à es­tabilidade.

Observemos agora o pensamento de Cristo em relação à. propriedade. Ele não enfrenta e resolve os problemas social isoladamente, como muitas vezes fazemos, mas enquadrando-os em soluções mais vastas e profundas e, por isso mes­mo, mais completas. O preceito "ama o teu próximo como a. ti mesmo" implicitamente contém e resolve todos os problemas sociais. Esse enquadramento, se copia a amplitude dos direitos da jurisprudência romana, coordena-os no plano social, freia o individualismo, em beneficio do coletivismo, tra­çando tendência precisamente à dos tempos modernos. Já existe, estabelecido no Evangelho, um princípio que se manifestará mais tarde com um lento movimento na forma de cerco do arbítrio, da liberdade incontrolada, do abuso, movimento que, iniciando-se com o Cristo, continuou e continuará até a sua completa realização". Assim, o absolutismo do poder pú­blico e o da propriedade privada se substituem por formas mais suaves e equilibradas. O "jus utendi et abutendi[11]" dos pagãos, egoisticamente ilimitado, racionalmente sofre cada dia maiores restrições em homenagem ao reconhecimento da utilidade pública, conceito que é conquista moderna na concepção orgânica do Estado. Mas o Evangelho, com dois mil anos de adiantamento, avançara muitíssimo, fazendo, por motivos de utilidade pública e como limitação, pesar so­bre a propriedade até mesmo a pobreza do próximo, de que não é lícito desinteressarmo-nos. O conceito de utilidade pú­blica estende-se assim até abranger, além dos interesses do Estado e da coletividade, também os interesses do indivíduo infeliz; chega, assim, a conquistar conteúdo biológico protetor, assume o caráter de função conservadora da vida, tor­na-se expressão de leis e forças universais. Que sentido e al­cance diferentes agora tem o programa de igualdade econômica, isto é, o que visa à defesa do direito fundamental de todos à vida!

Desse modo, o interesse coletivo não se detém e, com uti­lidade geral, se avantaja sobre o interesse egoístico do indivíduo. A propriedade privada subsiste, cada vez menos como império arbitrário e cada vez mais como função social disciplinada, como serviço público. Mas é exatamente o fato de as bases da propriedade privada se espraiarem na cole­tividade e a sua completamente nova garantia de solidez, que antes, com a alternância de abusos e reações, ela não podia possuir. Quem jamais pensaria em atacar riqueza e propriedade de que todos tiram vantagem? O peso dessas limitações se compensa, em face dos equilíbrios da vida, com a estabilidade e o sossego; o não esquecer o próximo, para o rico, se transforma em força protetora; o sacrifício apa­rente fica bem pago com nova garantia de gozo. Assim, essa cessão à utilidade coletiva reduz-se à vantagem que recai também sobre o particular. O pensamento evangélico cami­nha muito à frente das incompletas reformas modernas, fa­zendo do rico, não mais simples proprietário, que trabalha em proveito próprio, mas administrador em proveito alheio. E o Evangelho não chega a soluções tão radicais através de sistemas distributivos artificiais e coativos, mas através do individualismo mais completo e livre. Cristo não apela para as coações estatais, mas se dirige, tão-somente, à pessoal íntima e convicta maturação e ao irresistível funcionamen­to das leis vitais. No Evangelho a palavra "verdade" suprime e substitui a palavra "sanção". O grande abismo entre os dois sistemas, o evangélico e o coletivista moderno, é o mesmo que vai de substância a forma. O primeiro emprega a paz, é equilibrado e resiste; o segundo utiliza a guerra, é desequilibrado e não resiste. Em todo o sistema de Cristo não se fala em guerra e, por isso, sendo equilibrado, é soli­díssimo. O princípio dissolvente, o que prega a desordem e a luta, foi dele completamente evoluído, como terrível for­ça desagregadora que, antes de tudo, deve ser a qualquer custo mantida bem longe, se quisermos construir com soli­dez. Por essa razão toda agressão, toda violência, todo ódio e todo choque, seja qual for a finalidade, deve sempre ser considerado como absolutamente negativo, destruidor e, por isso, anti-social. O verdadeiro inimigo, o que impede a solu­ção de todo problema coletivo, está dentro de nós mesmos, em nossos sistemas nascidos de nossos instintos, em nossa posição de desequilibrados, no caminho que seguimos para resolvê-lo. As leis da vida são o que são. Não há outro ca­minho: ou cumprimo-las e gozamo-lhes das vantagens ou descuramo-nos delas e sofremo-lhe as conseqüências.

Daí se vê como a luta de classe constitui o meio menos adequado a esse objetivo. Menos danoso é o sistema de coa­ção estatal. O único sistema perfeito é o socialismo con­victo e espontâneo de Cristo, que não agrava a situação, pon­do em choque os interesses egoístas, mas começa pela afir­mação e tomada de consciência da unidade espiritual que não parte, como o socialismo humano, dos direitos e da luta, mas dos deveres e da paz. Não se nega, por isso, a dura ne­cessidade dos sistemas humanos, pois parece que sem coa­ção nada se possa conseguir de involuídos; verifica-se tão-somente constituírem eles péssimo sucedâneo, de que nada de bom e conclusivo se pode esperar senão na percentagem do produto genuíno contida no referido sucedâneo. O obje­tivo é sempre a justiça social; os métodos para consegui-lo é que diferem. Porém, aí onde predomina a intervenção do Estado, e ninguém pode desconhecer-lhe a necessidade e a utilidade, torna-se necessário não esquecer o individualismo cristão, de raízes profundamente mergulhadas nas leis da vida e apto a suavizar, contrabalançar e completar o tra­balho do outro sistema De fato, individualismo e coletivis­mo são apenas os dois extremos do mesmo problema social e dois modos de resolvê-lo que não se podem reciprocamen­te ignorar; são, como homem e mulher, dois termos inversos e complementares e a sociedade pode desenvolver-se apenas à custa do concurso e da colaboração harmônica de ambos. De fato, ninguém é mais coletivista que o individualista cristão; em nenhum programa há tanto coletivismo como no programa social de Cristo. Por isso, é mais fácil chegar ao coletivismo verdadeiro através do individualismo que do próprio coletivismo. Ninguém discute a importância cons­trutiva do senso orgânico representado pelo Estado moder­no; porém, neste livro também se afirma que, sem a conco­mitante maturação intima do indivíduo, esses sistemas ex­teriores e coativos, e, por isso, desequilibrados, podem, aban­donados a si mesmo, reduzir-se a asfixia, mentira, reação, ins­tabilidade. Nada consegue durar, se não conseguirmos tam­bém persuadir e educar. O indivíduo, se não for persuadido, embora sofra e obedeça, poderá refugiar-se na inviolável li­berdade do espírito. Ao contrário, todos os sistemas huma­nos fundados na coação, naturalmente produzem as reações já descritas. Torna-se necessário, quando nos dispomos a construir, levar em conta, não só no campo moral, como também no social e utilitário, aqueles equilíbrios de forças que o Evangelho demonstra conhecer profundamente. Se não for assim, o método humano ficará na situação de re­tardatário relativamente ao de Cristo e quem praticar este último, representativo de superamento da força, se tornará independente de tudo quanto dela se origina. A estratégia cristã, baseada na verdade e na justiça, pertence a um pla­no superior ao plano humano da força e do império e, por isso, é mais poderosa e vence o combate travado entre os dois planos, como acontece, na luta entre involuído e evoluí­do. Assim, os exércitos mostraram-se impotentes para de­fender Roma, enquanto a Cristandade, desarmada, se colo­cou a postos e venceu.

XXI

CRISTO PERANTE ROMA

Não podemos compreender bem a revolução social ini­ciada por Cristo e em seguida continuada lentamente através dos séculos, até ao decisivo e atual momento histó­rico, senão comparando rigorosamente a psicologia da romanidade imperial com a do programa evangélico. O problema continua atual porque o choque das forças contrá­rias é idêntico hoje em dia e o mundo se encontra nas mes­mas condições: as duas concepções estão nitidamente em luta. Observemos a estrutura da concepção social romana, para em seguida verificar como o Cristianismo, desarmado desfecharia o assalto às bases mesmas dos princípios que regiam toda a estrutura do império e, justamente por ser, fase biológica mais evoluída, o poderia pacificamente superar e vencer. O choque se dá, essencialmente, entre força e justiça, entre duas diferentes estratégias, que não combatem no mesmo plano e com as mesmas armas e falam línguas mutuamente incompreensíveis. Cristo e Roma estão face a face. Simbolizam dois sistemas, vivos ainda hoje, ainda hoje face a face o problema continua atual. O estudo do dinamis­mo íntimo, já explicado, dos dois mundos representados res­pectivamente por Cristo e Roma, nos demonstrará sob forma racional o significado íntimo desse choque.

O império romano representava a máxima realização da força, plenamente triunfante. O direito romano é, sem dú­vida, poderosa criação de gênio coordenador, admirável monumento de disciplina e organização; porém, permanece sempre ao nível da força. Na violência mergulham as raí­zes do direito que, ao invés de quebrá-la, condenando-a, in­tervém para discipliná-la. É sem dúvida um passo à frente, indispensável primeira tentativa no sentido de domesticá­-las e reabsorvê-las; mas o princípio, tão distante do evan­gélico, é baixo, biologicamente adequado ao tipo involuído cuja inferioridade já examinamos. O direito romano não se rebela contra esse princípio, mas o aceita e, contentando-se com dignificá-lo, intervém para aprovar, tornar válido e le­galizar o fato consumado. Da maturação evolutiva daque­les tempos não se poderia exigir mais. O Império nada mais era senão o método mais aguerrido, orgânico e legítimo de dominação. Mas se fez tudo quanto a evolução biológica do tipo majoritário permitia. Por isso, permanece de pé, embora em sentido relativo ao momento histórico, a indiscutível grandeza do Império e a função social de suas criações ju­rídicas. Os romanos, sem dúvida, introduziram ordem na força, que, assim, de impulso desagregador, se viu constran­gida a tornar-se instrumento de construção social. Compa­rado com a indisciplinada violência do selvagem, esse fato constituiu sem dúvida grande progresso. As províncias anexadas foram, decerto, exploradas, esmagadas, submetidas a servidão e a pagamento de tributos com que se alimentava o tesouro de Roma; mas foram, também, incorporadas ao grande organismo, governadas e, por isso, impregnadas do conceito, para elas superior, de organicidade central que Roma lhes transmitia. A grandeza imperial desabou, fora de dúvida, como mão de ferro sobre o mundo daqueles dias; não havia, porém, outro modo de civilizá-lo. Por isso, tudo estava biologicamente proporcionado, correspondendo às ne­cessidades da época.

Contudo, o vício originário de que resultava toda a es­trutura do sistema, embora justificado e até mesmo enobre­cido, constituía permanente acusação movida à Romanida­de, comparado com os métodos mais evoluídos enunciados pelo Evangelho. O fato de Roma, máxima potência jurídica, ter sido a mãe do Direito, jamais pôde impedir que suas raízes se embebessem no espírito de dominação e nas violentas conquistas da guerra. A mancha era mais tarde conside­rar-se plena e legítima a propriedade filha do furto, obtida apenas com o emprego da força. Esse reconhecimento ofi­cial do direito do mais forte, essa adesão incondicional a esse principio moralmente inferior revelam o baixo nível es­piritual daquele povo e constituem acusação contra ele. Acusação de egoísmo que, num mundo de civilização mais adiantada, não lhe daria o direito de tornar-se nação senho­ra das gentes. A força transformada em justiça, eis as ba­ses do Império Romano. O estudo que fizemos do valor da força do dinamismo dos fenômenos sociais nos mostra as razões da queda daquele Império e de sua substituição pelo Cristianismo. Isto é, mostra-nos que a violência gera contra seu autor reações inimigas e destrutivas e, como o Cristia­nismo representava princípio mais elevado, tinha o direito de viver no lugar do antigo princípio, sepultado nas próprias ruínas por ele buscadas e cujas funções já se encontravam esgotadas. Conceitos esses incompreensíveis para os romanos. O Evangelho estava acima de sua compreensão.

A Antiga Roma é grande, mas apenas no plano huma­no. Seu gênio conquistador é grande. Para criar e aumen­tar sua riqueza, Roma guerreou contra o mundo durante sete séculos. Acumula, depois se entrega aos prazeres e cai vítima de seu poder, é traída pela mesma riqueza em que acreditou. Erros no sistema, destruídos com poucas palavras de Cristo no Sermão da Montanha. Mas os positivistas da antigüidade não o entenderam e foram vítimas disso­. Sua filosofia era superestrutura refinada, vã e fictícia, sem ligação com a vida; não passava de discussões acadê­micas, não interessadas em modificar-lhe as bases, que per­maneciam firmes e significavam: dominar. Meio a empre­gar: a conquista guerreira. Resultado: o solo provincial, propriedade de Roma, os tributos pagos por aquelas terras ao proprietário. Os povos dominados são constituídos prin­cipalmente de vencidos, sujeitos a contribuição, escorcha­dos pelo fisco, ajoelhados aos pés da "Urbs" administrado­ra da justiça. O resto, o menos importante, não interessa e, por isso, é magnanimamente dado como presente; mas o poder judiciário supremo permanece em mãos do magistra­do vindo de Roma.

Essa a situação com a qual Cristo se defrontou, esse o sistema enfrentado por Ele, sistema de função histórica já esgotada e próximo do aniquilamento. Ele compreendeu Roma; Roma, porém, não O entendeu. Ninguém, ou qua­se, notou Sua presença, que no entanto representava o fu­turo, o único futuro possível. Cristo se ergue diante de Roma e inaugura diferente sistema fundamental, que ata­ca o outro nas próprias origens e o vence e é de outra na­tureza e pertencente a nova fase biológica. Cristo coloca-se em plano mais elevado e dele é que olha todas as coisas Ele, embora impregnado de dignificante respeito pela autoridade, não desce jamais ao nível de Roma, não compete com o poder, não o trata de igual para igual; obedece-lhe por dever, mais como homenagem ao próprio dever, isto é, ao valor dessa figura moral, do que ao poder considerado em si mesmo, quer dizer, à superioridade do domínio alheio. O seu é respeito mais ao princípio do que ao homem, que vale o que vale. Dá, pois, ao poder tudo quanto lhe diz res­peito, como se se tratasse de criança a quem não se tiram os brinquedos, tão pequeno valor se atribui ao que ele de fato é e reclama. Em substância, a atitude de Cristo perante a autoridade do mundo é a de respeitoso e dignificante des­prezo porque, em relação ao céu, são desprezíveis o mundo e tudo quanto lhe pertence. Realmente, Ele despreza a rea­leza terrena oferecida pelas turbas, sentindo-se rei, mas de reino bem diferente. Sua atitude em relação às autoridades constituídas não poderia consistir na costumeira atitude humana que, filha da força, não passa de servilismo, ou, então, de rebelde tentativa de subverter as posições para, em seguida, ocupá-las; sua atitude, muito ao contrário, por­que deriva de princípio mais elevado, é naturalmente supe­rior e quase de indiferença. Os grandes valores não residem lá onde o homem pensa e os valores humanos não merecem tanta atenção. Considerados em si mesmos, causam-nos mais piedade que inveja, se não contiverem mais elevado conteúdo moral de função e emissão. Assim, a posição de Cristo em relação a tudo quanto é tido no maior apreço como afirmação do homem da força, é negativa, de respeito­sa abstenção, tão longe deste mundo estão os maiores tesou­ros da vida, tão diferente da posição em que se crê é a realidade íntima das coisas, tão repleto de poder e riqueza está o ou­tro reino, o do céu. Eis como o espiritual e o temporal se tocam, sem que, porém, um invada o campo do outro. Tudo quanto Cristo tem em grande apreço é desprezado pelo mun­do; Cristo despreza tudo quanto pelo mundo é tido em grande consideração. Que pôde o império de Roma contra ele? A lei, filha da força, não possuí outra arma senão a força; poderá constrangê-lo; Ele, porém continua livre no espírito. E, ameaçado por Pilatos, autoridade humana, res­ponde-lhe que o poder vem do alto e não somente de baixo, quer dizer, é bem diferente do simples resultado de uma con­quista, do exercício do império pelo vencedor, do arbítrio, de simples vantagem; muito ao contrário: é função social en­quadrada em uma hierarquia de forças e funções em dire­ção a Deus; é comando em favor da obediência; consiste em dominar para servir, em impor-se, mas sob a orientação de princípio e apenas enquanto em relação com ele; consti­tui, pois, missão, dever, cumprimento da lei de Deus, a quem todos nós devemos prestar contas. Todo o sistema da força sobre que Roma se ergue acaba sendo tragado e naufragando aos pés desse sistema derivado de princípios tão diferentes. Ao afastar a pedra do sepulcro, o Ressurrecto abalou até os alicerces do mundo que o circundava.

A força constituía a base do império. Cristo substituiu-a pela justiça. O egoísmo e o interesse dominavam em Roma; Cristo substituiu-os pelo amor fraterno. Há vinte séculos já' se anunciou e teve início a atuação desses novos ordenamen­tos sociais, de que hoje o mundo tenta aproximar-se de novo. E, enquanto Roma fazia funcionar o plano da organi­cidade social, Cristo iniciava o da justiça social, que ainda hoje provoca tanta luta. Perante exército fundado na for­ça, Ele vence com exército de pacíficos mártires. O sistema desarmado, porém mais elevado, vence ao sistema armado, porém menos evoluído. A estupefaciente e incrível subver­são dos valores torna-se realidade. A Lei de Deus substitui a dos homens e os vencedores deixam de ser os mais fortes, juridicamente organizados, para serem os justos, os oprimidos, os vencidos, isto é, os credores, segundo o entendimento da Lei. Cristo proclama outras vitórias e exalta outro tipo de vencedor. O cidadão romano não podia entender nada disso. A solidariedade social não é garantida mais nem pelo direito, pela disciplina da força, nem pelos institutos jurídicos coordenadores, e sim pela reciprocidade do dever e do amor, a que livremente aderimos. Para o cidadão romano, essa nova e convicta liberdade era anarquia; o superamento, absenteísmo; a paciência, vileza; a obediência, debilidade; o sofri­mento, derrota. Tão grande diferença impossibilitava a com­preensão. A conceituação do direito é atingida em cheio e abalada em seus próprios fundamentos. O direito não é mais filho da força, o resultado de conquista, concessão ou pacto. O novo direito prescinde da força e, por constituir-se essen­cialmente de justiça, é até mesmo contrário à própria for­ça. Baseia-se em princípio completamente diverso do jurídi­co romano, participa de outro sistema e de outro mundo. Não se trata mais do direito humano da força, mas do superdireito do merecimento. Não é mais o homem quem, como nos mercados, toma da balança e pesa o "deve" e o "haver" dos direitos e obrigações; as forças íntimas da vida é que, de acordo com o critério da Lei de Deus, distri­buem ou não os bens, premiam ou castigam. Perante esse superdireito substancial, o velho conceito romano torna-se valor formal, relativo, de referência, coisa miserável e mais digna de piedade que de ser combatido. Os líderes e os imperadores são derrubados do trono e, se nele permanecem, isso acontece apenas enquanto são instrumentos de Deus.

Desse modo, toda a diretriz humana varia, o mundo não mais se conserva fechado em si mesmo nem apenas em si mesmo vê os seus objetivos, mas se abre para o céu e nele se completa. Entre a idéia romana e a de Cristo vai um abismo, o mesmo que vai do homem ao super-homem. Para o homem que atingiu o segundo, o primeiro perde naturalmente todo valor. O reino da força, habituado a enfrentar o inimigo tangível e concreto, não estava preparado para re­sistir a esse assalto negativo e foi vencido. Tudo isso cons­titui novo modo de conceber o mundo, nova corrente de pen­samento, e, ao mesmo tempo, a indiferença, grau mais baixo da desvalorização, e a roedora traça, intima e invisível, que decompõe o velho mundo. As coisas humanas, a vida do im­pério, tornam-se conseqüências secundárias; as bases da ação não se acham mais na terra, o centro de gravidade do uni­verso deslocou-se, tudo gira em torno de outro eixo e, mesmo quando é necessário ocupar-se das coisas terrenas, tudo as­sume significado e função diversos. O mundo transforma-se por dentro e não por fora. A grande revolução se pro­cessa em silêncio na intimidade das almas. Tudo quanto era principal e preponderante acabou subordinando-se a algo novo, recém-nato, que, há pouco desconhecido, se tor­nou agora o mais importante. O velho mundo não mais en­contra rebeldes a serem submetidos, e sim mártires que, per­doando, se deixam matar. E desnorteou-se. Como combater esse inimigo? A força, desprovida de inteligência, apressa-se a fazer a única coisa que sabe: destruir. Mas engana-se, porque na realidade não destrói. Pelo contrário, reforça o inimigo, pois sem dúvida as perseguições exaltam. Mata, po­rém cria heróis, causa morticínios, mas torna-se instrumen­to de propagação. Então, a força revela-se o desencadea­mento cego que verdadeiramente é, ignorante do jogo deli­cado de reações por ele começado, sem de modo algum com­preendê-lo e, por isso, incapaz de furtar-se às suas conseqüências. O pensamento romano é apanhado por novo me­canismo, sob a forma de pensamento inexplorado, cuja dire­ção não pode assumir, por incompetência e falta de prepa­ração. O povo, principalmente, sem responsabilidade nos crimes do poder e bem próximo das fontes da vida, é o pri­meiro a receber a semente e a intuir, em sua simplicidade nativa, despida dos preconceitos e artifícios do saber. O povo, por instinto vital, percebe a verdade nova; o povo que sofre tem, por isso mesmo, os olhos abertos e os ouvidos aten­tos, pois não dorme nas comodidades. Verdadeira campanha de reabsorção do ódio pelo amor, da violência pelo perdão. Não mais uma das costumeiras revoltas à base de desequilíbrios, revoluções aparentes e fora de época, o habitual vai­vém da substituição de pessoas, porém nas mesmas posições; mas revolução à base de equilíbrios, de substância, de sanea­mento, lenta, mas de posição estável, colocada organicamente no dinamismo da Lei e da evolução, feita para durar, como vem durando através dos séculos. E, assim, o império que vencera as batalhas da força perde a batalha sem armas.

Observemos ainda mais de perto o encontro entre os dois princípios, na pessoa de seus representantes: Cristo e Pila­tos. Este, homem interesseiro, vil e insignificante, passou à História apenas porque se encontrou com Cristo, de quem não entendeu coisa alguma. O representante oficial do império de Roma, o intérprete da Lei, a autoridade que deve dar o exemplo, embora tente assumir atitude formal, é vazio por dentro e por isso tem comportamento hesitante e equí­voco, que deixa transparecer esse vazio interior e a insufi­ciência do sistema da força e da forma, isoladamente considerado. É inútil querermos, na vida, esconder-nos dessa maneira e justificar-nos, como se as aparências tivessem força de realidade e a forma valesse como substância. A ver­dade interior acaba, cedo ou tarde, revelando-se também no exterior, pois as reações dependem das convicções, que ao mesmo tempo lhes dão nascimento e lhes servem de guia. Esse homem típico de sua época e do seu mundo não possui nenhum senso interior que o guie e a letra da lei não basta para socorrê-lo no encontro supremo. Cristo fala-lhe de ver­dades eternas e ele pensa no imperador Tibério e na própria carreira; é um verme que rasteja no pó, algemado aos inte­resses pessoais e nem de leve suspeita do significado das pa­lavras que ouve; sua alma é surda e Cristo, percebendo-o, não lhe responde. Apenas este argumento a comove: ser ou não ser amigo de César. "Se soltas este, não és amigo de César..." (João, 19:12). Confunde Cristo e seus acusadores na mesma raça inferior, pois um só direito e uma só gran­deza podiam existir na sua mente: os do vencedor. Com a cabeça quadrada de romano e modelo de todos os homens práticos e positivos, Pilatos não entende nada. Do alto de sua grandeza moral, armado de poder mais elevado e de au­toridade bem diferente da autoridade moral do representan­te da lei, Cristo perscruta-o intima e demoradamente; e cala. A grave, mas desprezível e distraída pergunta, atirada sem o desejo de receber resposta: "Que é a Verdade?" (João, 18:38), quando proposta, como o foi, por indigno cé­tico, Cristo responde com o silêncio, Cristo despreza até mes­mo a própria defesa, pois prefere abandonar-se à Lei e à von­tade do Pai a render-se às razões humanas, que constituem a arma inaceitável do sistema humano de Pilatos. Cristo não desce até esse plano. Pilatos pergunta-lhe: "Nada res­pondes? Vê quantas coisas testificam contra ti. Mas Jesus nada mais respondeu, de maneira que Pilatos se maravilha­va". (Marcos 15: 4-5). Não podia conceber o método de Cristo e seus objetivos sobre-humanos. Para ele, era absur­da a psicologia do martírio. Cristo respondeu-lhe apenas para dizer-lhe que em verdade era rei e para colocar no de­vido lugar a autoridade deste mundo, traçando-lhe os limi­tes exatos. Pilatos diz-lhe: "Não me falas a mim? Não sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar? Respondeu Jesus: Nenhum poder terias contra mim, se de cima te não fosse dado". (João, 19:10-11). Assim, outro poder se manifesta por detrás e acima do poder hu­mano, transformando o árbitro vencedor em simples instru­mento nas mãos de Deus.

Poderão objetar que Pilatos não era, certamente, tipo exemplar de magistrado romano e, por isso, não represen­tava a romanidade toda. Porém, não se trata aqui apenas do caso de um homem que por baixeza traia um sistema perfeito; trata-se, isso sim, de sistema que põe a os seus pontos fracos, pois não corresponde aos objetivos da vida e do progresso, quando o confiam a um homem qualquer e o fazem defrontar problemas mais elevados e, no entanto, fun­damentais para a sociedade humana. Quantas vezes, quem sabe, Pilatos não teria ouvido em Roma as vazias e tediosas discussões de gregos filosofantes, estabelecidas com propósito exclusivamente pecuniário, habituando-se desse modo à idéia de que não se chegava à conclusão alguma, discutin­do-se a respeito da verdade, conceito que em seu espírito de­veria ter adquirido o sentido negativo de vacuidade e de mentira. Mas esse ceticismo, incapaz de levar a sério qual­quer filosofia ou teoria, não era a forma mental de Pilatos apenas. Em sua psicologia aflora a do século, de que ele não era senão um expoente. Pela boca de Pilatos falam os tem­pos já incapazes de acreditar seja lá no que for, fala o ma­terialismo de Roma, que os alimentava e representava. E como a Roma imperial não dispunha dos elementos necessá­rios para saber compreender e levar Cristo a sério, assim também Pilatos não o compreendeu nem o levou a sério isto é, não se mostrou capaz de fazer nem mais nem me nos do que seu mundo sabia fazer; de um lado, Cristo; de outro, um mundo repleto de incompetentes. Em Pilatos encontravam eco Roma e o seu tempo. Ele era filho e produ­to de ambos, como o efeito que, ligado à causa, não pode deixar de exprimi-lo e representá-lo. Não apenas substan­cial, mas até mesmo oficialmente, Pilatos era, como magis­trado, o representante do povo e do pensamento de Roma, da autoridade imperial que, de fato, não o desaprovou e, assim, lhe subscreveu o ato. Concordou com ele; logo, tor­nou-se co-autora. A desonra do Gólgota não constituiu, pois, apenas erro e culpa do homem, mas também erro e culpa do sistema que fizera o homem assim, e o obrigava a compor­tar-se desse modo. O erro continuou, de fato, por séculos e séculos e sempre com novos mártires, exatamente porque esse sistema não era capaz de entender senão a autodefesa; encerrado no próprio egoísmo, não sabia elevar-se a visões de conjunto tão vastas ao ponto de abrangerem a evolução do mundo.

Para lutar é necessário ter afinidade e compreensão, ter algo em comum que una e divida. Cristo e Pilatos represen­tam dois mundos diferentes. Estranhos um ao outro, se­nhores de dois campos diversos, encontram-se por acaso, sem se haverem procurado; cada qual raciocina com todo rigor lógico, mas o raciocínio de um e de outro são reciprocamente absurdos. Cristo compreende perfeitamente ao outro e por isso cala. Mas, ao contrário, a forma não compreende a subs­tância, a força não compreende a justiça, mostra-se cega, apenas capaz de golpear e, assim mesmo, de golpear às cegas, sem compreensão, dando-se a espetáculo tão escandaloso que demolirá sutilmente, durante séculos e séculos, o principio de autoridade baseado na força. O poder humano condena e assim, em virtude de poder mais alto, atrai sobre si a conde­nação do mundo. A força, quando não guiada pelo espírito, comete enganos e fracassa; e a justiça mais perfeita do espí­rito triunfará apesar da injustiça humana. A batalha, sintetizada naquele primeiro encontro de Cristo e Pilatos, conti­nuará a travar-se durante milênios, seguindo o desenvolvi­mento dos impulsos que ela representa. Se no drama Cristo e o Sinédrio estão frontalmente opostos, como verdadeiros an­tagonistas, no campo moral do bem e do mal, que lutam, porém, não se entendem; ao poder civil nem mesmo essa honra se concede. Judas e o Sinédrio vão direito aos seus ob­jetivos. Pilatos é uma série de contradições, incertezas, mal-entendidos. A própria inscrição indicativa do titulo da con­denação "Jesus Nazareno, rei dos judeus" não passa de mal-entendido. A mente de Pilatos girava em redor de centro totalmente diverso. Assim, para se esquivarem, procuram ri­dicularizar. Para livrar-se de Cristo, manda-o a Herodes. De­clara duas vezes: “.... não acho nele crime algum). (João, 19:4) e: "nenhum crime acho nele". (João, 19:6). E pergun­ta: "Pois que mal fez este?" (Lucas, 23:22). Portanto, ne­nhuma culpa acha no acusado, reconhece-lhe a inocência e deixa executar-se uma condenação que podia e devia anu­lar. Torna-se, desse modo, cúmplice do Sinédrio que, ao in­vés de promover um julgamento, tramava a morte já pre­concebida e preordenada com propósito deliberado. "Então", diz Mateus (27:24-25): "Pilatos, (....), lavou as mãos dian­te da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo: considerai-o vós. E, respondendo todo o povo, disse: O seu sangue seja sobre nós e sobre nossos filhos". Eis a figura "daquele que por vileza foi o autor da grande recusa". A recusa foi grande e vil. Pilatos se convencera da inocência de Cristo, pois o chama justo. Pergunta: "Pois que mal fez?" porque percebeu a falsidade da acusação, movida apenas pelo ódio. "Porque ele bem sabia que por inveja os principais dos sa­cerdotes o tinham entregado". (Marcos, 15: 10, 14). Repe­te: "Não acho culpa alguma neste homem" (Lucas, 23: 4, 22) e procura libertá-lo; no entanto, deixa-o caminhar para a morte. Poderia e, mesmo, deveria ser juiz e administrar jus­tiça; porém, não soube nem mesmo resistir à injustiça e transformou-se-lhe em instrumento e em escravo. Todavia, percebeu a injustiça e tentou evitá-la, mas só enquanto pôde fazê-lo sem muito trabalho e sem dano.

No vão esforço de fugir à responsabilidade, Pilatos ex­perimentou quatro expedientes. O primeiro foi mandá-lo de novo à presença de Herodes. O segundo, a flagelação, como simples castigo para, em seguida, pô-lo em liberdade. O ter­ceiro, permitir ao povo escolher a libertação de Cristo ou a de Barrabás, ladrão e assassino. O quarto expediente, a ten­tativa de mover a multidão, à piedade, apresentando-lhe Cristo: "Ecce homo[12]! Miseráveis contemporizações, subter­fúgios vãos, imperdoável incerteza! O destino impunha a Pilatos que, em tão grande momento, tomasse posição cla­ra; não soube, porém, e calou-se para todo o sempre entre os vis e os irresolutos, "desagradável a Deus e a seus ini­migos".

Na realidade, Pilatos tem medo da multidão, cede a suas intimações; a sentença que proferiu não resulta de julga­mento regular, é uma farsa. Entre tantos julgamentos, não houve um só verdadeiro; no entanto, Cristo foi reconhecido réu de morte. Nesse momento, a justiça competente por direito humano, não funciona e cala. Pilatos abdica do po­der, pactua com a turba, procura voltar as costas a essa responsabilidade que não tem a coragem de assumir; no entan­to, sua obrigação era afirmar a inocência de que já se con­vencera, ao invés de deixar-se arrastar à condenação de Cristo. Serve de joguete para os Juizes que, conhecendo-lhe o lado fraco, o fazem decidir-se, ameaçando-o da maneira mais eficaz: "Se soltas este, não és amigo de César" (João, 19:12).

Assim a História julga os juizes e processa a autoridade processante. Esse foi o exemplo do representante do poder civil, do procurador Pilatos, modelo da justiça humana ba­seada no sistema da força, símbolo do involuído amoral, expressão do espírito daqueles tempos, do homem que cede às pressões humanas e permanece indiferente às superiores rea­lidades do espírito. Permaneceu ainda por vários anos no seu ofício e não pagou por seu crime. Mas a justiça huma­na ficou manchada e há vinte séculos não sai da berlinda. Sua posição em fato histórico de tamanha importância será como um ferrete que ainda a seguirá através dos tempos. A justiça humana desonrou-se. A injustiça do Gólgota constituiu injustiça da justiça e descrédito permanente do resul­tado dos julgamentos humanos. Esse caso tornou-se o símbo­lo de todas as condenações do justo, tornou-se exemplo clás­sico que começou a tradição, o hábito quase, de erros judi­ciários providencialmente destinados à glória das vítimas e a transformar-se em instrumento de seu triunfo. Propa­gou-se desse modo o conceito de uma justiça superior, se­guida por mártires e heróis, que devem pagar tributo à formal justiça humana, simples e honesta aplicação da lei do tempo. E, assim, começou a notar-se na História a presen­ça desse fenômeno necessário de contínuo superamento das idéias e das leis, e compreender a função e a dar o devido valor aos revoltados contra o antigo estado de coisas, revolta manifestada na luta em prol de novo e mais elevado ordenamento. Em face dessa inexorável necessidade de evoluir, o respeito pela ordem existente caía do plano dos valores absolu­tos no dos relativos. E os habituais rebelados contra qual­quer ordem, os habituais e interesseiros homens de partido; tomaram da nobre auréola dos mártires inovadores para com ela fingirem-se mártires também e, assim protegidos, satisfazerem-se com mais facilidade. Na terra tudo se utiliza. Porém, no coração humano permanece sempre inapagável o vestígio da iniquidade sofrida pelo grande afirmador da verdade e do fundador de novo reino na terra, que é promessa ainda viva e vital, mesmo depois de vinte séculos, e que cons­titui a única esperança no futuro.

Falamos de erro judiciário. O caso de Pilatos, porém, é muito mais grave do que quaisquer dos erros habituais im­putáveis à imperfeição humana. Compreendeu exatamente a inocência de Cristo e, por isso, o defende, mas apenas en­quanto pode fazê-lo sem prejudicar-se. Quando não pode, o interesse julga mais conveniente mudar de rumo, Então, Pilatos, homem da lei, aparentemente o homem talhado pa­ra o cargo, mas no intimo reles aproveitador, revelando o espírito egoísta de seu tempo, entrega à morte a vítima ino­cente. Todavia, mesmo a limitada e apenas esboçada defe­sa que Pilatos faz da inocência de Cristo funda-se em razões bem diferentes das capazes de conduzi-la valorosamente até ao fim. Se Pilatos compreendeu a inocência de Cristo, con­sidera-o simples inocente por ele defendido em vista de re­lações jurídicas e por motivo de direito e não por causa de razão situada acima do direito. Comporta-se, desse modo, como qualquer materialista míope que, através da forma, não enxerga a profunda realidade das coisas. Da superio­ridade de Cristo em relação a todo o seu mundo, da transformação social, da Sua missão e do Seu pensamento, Pila­tos não entende coisa alguma.

Não podemos, sem dúvida, dizer que Pilatos seja Roma, isto é, toda a Romanidade. Mas podemos afirmar que na­quele momento e por causa de sua conduta, outro tribunal se ergueu diante do tribunal humano e lhe aplicou a inde­lével marca da infâmia; tudo isso se passou por obra e com os recursos da paz e da mansidão. Por isso, este é também um encontro de sistemas, em que o da força leva a pior e permanece condenado através dos séculos. A força, embora juridicamente organizada, demonstrou ser instrumento capaz, abandonado a si mesmo, sem o concurso e a orientação do espírito de constituir não auxílio, mas obstáculo ao pro­gresso, não um meio para estabelecimento de ordem, mas de desordem. Naquele dia se fez ao mundo esta advertên­cia: Cuidado, essa concepção é insuficiente, falta-lhe algo de essencial. Completai-a. Ela tem sua razão de ser, mas deve progredir ainda. A legalidade não basta, se represen­ta traição, se em alguns casos, ao invés de função que im­pulsiona para a frente a evolução, pode transformar-se no freio que a detém. Ao homem não satisfaz mais justiça que torna possível, embora nem sempre aconteça, condenar ino­cente e benfeitor e libertar malfeitor. Algo protesta no fundo da alma humana, aí onde a Lei clama por justiça. A consciência sabe distinguir; por isso, condena o poder e a autoridade capazes de trabalhar pelo que não deveriam e de causar dano ao bem e à vida, ao invés de defendê-los. Pilatos não é Roma toda, mas sem dúvida significa um sis­tema jurídico que lhe revela as insuficiências, um estado humano involuído que lhe demonstra a cegueira. Quando o ponto de partida é a força, então a dura necessidade de defesa individual e social pesa sempre sobre a função judicante, que pode até tornar-se seu instrumento, transformando-se em injustiça. Apenas Cristo atingiu a essência do pro­blema, dizendo: "Não julgueis". Quem, como o homem, está empenhado na luta, não pode conservar-se imparcial e, por isso, não pode julgar. Onde pode encontrar-se um juiz sem mácula? Só em Deus e é em Deus que o homem, insatisfei­to com todos os demais, procura o verdadeiro juiz. Nas mãos da justiça humana, baseada na força, a espada é mais po­derosa do que a balança e prevalece contra ela. A espa­da pesa e faz a balança pender do lado de quem a maneja, conquistou para si e a conserva para si. Não há outra solu­ção; evoluir, evoluir, evoluir, para tornar cada vez mais leve o peso da espada, que sobre nossos ombros a involução atual coloca. Evoluir ao longo do caminho traçado por Cristo. A espada é a desordem pertencente ao passado, a balança constitui a ordem pertencente ao futuro. Trata-se de re­equilibrar as forças desequilibradas durante a luta. A evo­lução caminha da espada para a balança. Do dilema não saímos: ou melhoramos nesse sentido e, por meio da bonda­de e da lógica, alcançamos a verdadeira justiça, superando a força e pacificando-­nos com a não-reação ou, então, con­tinuamos a sofrer, quem sabe quanto, as conseqüências do sistema em vigor. No primeiro momento, sem dúvida, todos se aproveitaram do justo e pacífico seguidor do Evangelho. Se, porém, a força dá vantagem imediata, a lei de justiça está inscrita no coração do homem que, por instinto, condena a força e se sente obrigado a eliminá-la. Inaugurar o novo método no mundo feroz de nossos dias é, por certo, trabalho de mártires; mas a verdade é que, sem martírio, não se ini­cia civilização nova.

Esse o significado daquele primeiro encontro da Roma­nidade com o Cristianismo, primeiro impulso de renovação biológica. Problema relativo ao passado, ao presente e ao futuro. Hoje, dois mil anos depois, a humanidade aí retor­na, um pouco mais madura apenas, com ânimo e estilo di­versos, sem a intuição e a paixão dos mártires, mas com ati­tude racional, armada de ciência e técnica, de planos orgânicos sociais, de vastos recursos de enquadramento, secun­dada por grandes massas, mais ágeis e unificadas. O esfor­ço é tremendo; a tentativa, enérgica; o momento, decisivo. De duas uma: ou sobre essas bases criar nova civilização e melhorar a vida ou, então, suportar durante séculos as tris­tes conseqüências do bárbaro e atual sistema da força. Sem dúvida, o pensamento social de Cristo é elevado, mas muito elevado mesmo. Mas, exatamente por isso, pertence ao fu­turo. A vida impõe o progresso e necessita de ascender. O Evangelho é o cume, o objetivo máximo. Quem quer que suba, porém, tende a atingir o ponto mais alto. De tempes­tade em tempestade, de revolução em revolução, a humani­dade não pode ir a outro lugar. De guerra em guerra não pode encontrar senão a paz. O pensamento de Cristo representa o ciclo biológico da humanidade. Ninguém lhe esca­pa. É o objetivo da vida e aguarda-nos. Isso constitui ver­dade sempre nova; o tempo passa e ela se torna cada vez mais verdadeira e atual, porque se aproxima cada vez mais da realização. O Evangelho é um programa. A humanidade futura será fruto de sua execução.

XXII

TEMPESTADE

Essa rápida sucessão de conceitos, até agora expostos; por alto, aconteceu em hora trágica para o mundo e move-se sobre o fundo apocalíptico da maior tempestade jamais conhecida pela História. Este livro, que é sofrimento, não poderia nascer senão em meio à grande dor de que suporta o peso e sintetiza o esforço. Iniciei o escrito em fins de março de 1944 e continuei-o ininterruptamente até o capi­tulo precedente, terminado nos começos de junho, quando a guerra, progredindo na Itália em direção ao norte, atingiu e ultrapassou Roma. Logo depois aconteceu na França o desembarque do Atlântico. A primeira parte do volume es­crevi-a, pois, nos fins daquele inverno pleno de expectativa em que o "front" italiano permaneceu estacionário em Cas­sino, e, não tendo o desembarque das Nações Unidas em Anzio atingido proporções decisivas, em toda parte se esperava algum grande acontecimento resolutivo. No início deste capítulo o grande incêndio europeu reacende-se furioso e o terrível rolo compressor da guerra põe-se em movimento também na Itália, para avançar em direção ao Norte através das províncias do Centro, semeando também nestas o extermínio. Este manuscrito, bem assim a sua continuação, nele implícita, foram salvos graças apenas a milagre insis­tente e prolongado, isto é, por uma combinação de impulsos e movimentos de tal modo inteligentes e dotados de previsão, tão decididamente guiados e com tal tenacidade mantidos na mesma direção que justificava a presunção de por detrás delas estarem presentes um conceito e uma vonta­de diretivos e excluía a hipótese do acaso. A continuação do pensamento deste volume, neste ponto, é retomada nos fins de 1944, na devastada região umbro-toscana, depois de pas­sado o ciclone da guerra, isto é, depois de período de esfor­ço físico e tensão nervosa verdadeiramente excepcionais. Mas o espirito, sempre vigilante, tudo observara, julgara registrara.

Narremos agora alguns episódios da guerra, não por mo­tivo de sua gravidade e importância exterior, que muitos terão experimentado de modo bem diferente, mas por cau­sa do sentido interior com que foram vividos e pelo signifi­cado universal que podem assumir, vistos assim em profun­didade. Analisando, assim, esses casos humildes, até no seu sentido mais oculto, colocamo-nos diante dos grandes pro­blemas da vida; aprofundando o olhar até às raízes mesmas da realidade, damo-nos conta da gênese dos acontecimen­tos. O pequeno fato individual, de superfície, adquire assim ressonâncias universais. Veremos, então, aflorar no fato ex­terior aquela misteriosa realidade do imponderável que se esconde profundamente; esse fato, mais do que em sua apa­rência concreta, mostrar-se-nos-á no funcionamento dos princípios que o regem, das forças que o movimentam, isto é, na sua mais verdadeira realidade interior, aquela que, em todo acontecimento, quase sempre nos escapa à observação. Assim, observando profundamente, o longínquo e fugitivo imponderável é trazido aos primeiros planos como figura central e, arrebatado às suas misteriosas profundidades, obrigado a revelar-se, mostrando o mecanismo da orientação interior impressa nos fatos exteriores. Veremos, desse modo, o Deus recôndito, que se esconde de nós no superconcebível, aproximar-se em plena luz, vivo, presente na ação. Os epi­sódios reduzem-se aqui à sua essência de desenvolvimento de forças cósmicas dominadas pela vontade da Lei e pela inteligência de seus princípios. Deus resplandece no fundo desses contrastes violentos. O bem e o mal se defrontam, eterna substância das coisas.

Era de madrugada, esplêndida madrugada de junho. Por um atalho que subia ao longo de uma torrente aperta­da entre os montes, um homem fugia: do homem, da cida­de, da civilização destruidora. Já no limite do esforço que suas forças de pobre sexagenário lhe permitiam, carregava o indispensável, apanhado às pressas ao deixar a casa. Seguia-o a mulher, também carregada de coisas, e a filha com a criança no colo. No encanto da pura madrugada estival, a fuga era triste, plena de terror. Tinham sido violentamen­te arrancados do ninho. Sobre as casas vizinhas, na cida­de, aviões haviam lançado bombas, semeando a morte e a ruína. Ribombos terríveis e abalo de terremoto, estilhaçar de vidraças e chuva de pedras; depois, por toda parte fu­maça escura e densa. A morte por esmagamento e, vizinho, seu hálito ardente; o terror. Desse modo fugiam, sem sa­ber para onde, por instinto de animal perseguido, da­queles golpes terríveis que poderiam cair-lhes sobre a cabe­ça. Não havia abrigos antiaéreos. Fugiam desesperadamente, no paroxismo de esforço nervoso. Tudo em redor, no campo, em todas as criaturas, na erva, na água, no ar, o eterno sorriso de Deus esplendia imutável.

Esgotada a reação ao primeiro choque, conjurado por momentos o perigo iminente, o fugitivo sentiu despertar den­tro de si, ainda mais potente, o eu interior e voltou a obser­var e a pensar. Como a beleza da ordem divina era suave e permanecia intacta nas coisas! Apenas o homem, rebelde, tentava impor a destruição. Por que a guerra? Por que esses momentos trágicos? Que pretendia, assim de surpresa, a ló­gica do destino? Fora, talvez, colhido de surpresa, sem pre­paração alguma? Pode o caminho da vida apresentar curvas tão imprevistas e imprevisíveis que a razão fique inibida e se inutilize toda a nossa orientação? Não. O sábio deve conhecer todos os ataques possíveis, deve ter atingido filosofia completa que encare todas as possibilidades da vida, deve ter achado uma verdade universal e satisfatória, que lhe dê a razão de todo fato e o encaminhe à solução de todo pro­blema. Queria e devia entender, possuir respostas que bem sabia não podiam ser obtidas senão por si mesmo. Há res­ponsáveis? Quem são e onde encontrá-los nesse oceano de forças e de homens que é a sociedade? Podem os dirigentes impor sofrimento a povos inteiros ou os dirigentes não man­dam senão na aparência e, realmente, obedecem, e todos os seus súditos também, a leis e forças de que são apenas os expoentes? As causas, agora, são diferentes das visíveis; outra é a hierarquia dos responsáveis; todos são golpeados por outras razões internas, totalmente diversas das que se mostram externamente; os poderosos constituem o instru­mento de outra inteligência e executores de planos diferen­tes dos seus; e os verdadeiros responsáveis (quem os conhe­ce!) apenas podem ser atingidos pela justiça de Deus. Só Ele sabe avaliar, nós não sabemos; só Ele conhece a trama: secreta da vida de cada um, por nós desconhecida; só Ele tem o poder de alcançar e golpear que não temos. A lógica do espírito faz-nos procurar justiça perfeita, que não existe na terra; onde encontrá-la? Até que ponto, caso por caso, o homem é livre e até que ponto chegam o poder e a extensão da fatalidade no destino? Qual o limite entre as duas zonas e o equilíbrio entre as duas forças? São as grandes massas responsáveis como massas, independentemente dos lideres, que são responsáveis perante a Lei? São inexoravelmente arrastadas pelo determinismo histórico?

O homem pensava. Os problemas, tão remotos para os demais, estavam-lhe muito próximos Encontrava-se em ple­no turbilhão, a seu redor girava o "maelstrom" do mundo e o vórtice tentava agarrá-lo também a fim de arrastá-lo até ao fundo, em suas espirais. Tinha de defender-se. Mas, pa­ra defender-se, necessitava compreender. Um tipo nor­mal não teria feito esforço maior que o necessário à defesa superficial, contentando-se com tentativa de defesa. Ele, porém, exigia de si mesmo uma defesa profunda, seguríssi­ma, colocada muito além da ilusão costumeira. Esta sua re­flexão mesmo nesse momento não era inútil. Sob a tensão nervosa e o esforço, em pleno desenvolvimento da reação ao choque recebido, seu espírito ferido expedia centelhas e seu cérebro clarões de relâmpagos. Como sua vida, assim toda a sua reação era preponderantemente psíquica, isto é, se dava no campo em que aquele homem mais se desenvolve­ra. Restringindo o problema aos elementos mais pessoais e urgentes, procurava saber que teria acontecido consigo. Para sabê-lo, interrogava a própria consciência, perguntava a si mesmo se era ou não culpado e se por isso devia ou não ser responsabilizado. A ele, conhecedor do funcionamento das forças da vida, parecia-lhe mais útil perscrutar a lógica interior dos fatos de preferência à sua aparência exterior. Apreender os acontecimentos nas fontes, nas causas, tal era o seu método. Que queriam as forças do destino nesse mo­mento crucial? Esse era o problema e não podia ser outro em universo não sujeito ao acaso, mas dirigido por Lei jus­ta, lógica e inteligente. No passado, dera por acaso nascimento a algum impulso e, por isso, a reação da Lei o ameaçava agora? A verdadeira ameaça residia nisso e não na materialidade da guerra. Será que essas forças, por ele mesmo colocadas em seu destino, o culpavam agora, se erguiam ameaçadoras no seu caminho e iam pedir-lhe conta do que fizera até então? Ou, quem sabe, era inocente e tudo quan­to lhe acontecia em torno não passava de mero incidente de superfície e não lhe dizia respeito? Se não pendia sobre sua cabeça nenhuma sanção da parte de Deus, que coisa podia temer por parte dos homens? Rebuscando na sua consciência, procurava saber qual dentre as forças do pas­sado estava tentando reaparecer e que natureza e potência possuía; queria descobrir que impulso queria agora mani­festar-se exteriormente, dando vazão a seu dinamismo, com­pletando sua oscilação desde a causa até o efeito. Não ha­via, porém, tempo para detidas análises. Nos momentos decisivos e terríveis desaba o edifício das realizações humanas, a razão se embaralha, uma síntese da verdade aparece com­pletamente nua perante a consciência e a voz de Deus logo soa clara. Dali a pouco parou, com a rapidez do relâmpago seu espírito intuiu e, nisso, ouviu uma voz interior que lhe dizia: "Fuja; mas, vá para onde for, você não correrá peri­go algum".

A pobre família, já bastante afastada da cidade e do pe­rigo, diminuiu o passo, em silêncio. O homem, que ia na frente, sem voltar-se para trás percebia a dor e o medo dos dois seres queridos que o acompanhavam. Pareceu-lhe, en­tão, estar suportando nos ombros o peso de imensa cruz, o peso da dor do mundo, que quase o esmagava. Irresistível impulso levava-lhe o espírito a gritar ao universo: "Sou ino­cente". Depois se surpreendeu a pensar: "Estranho, esse co­lóquio com Deus, logo nesse momento e nessas condições! Depois, percebeu como estava cansado e as forças o aban­donavam. Então, pensou: "Quem defende a vida? Quem me defende? Quem está ao meu lado agora, no momento do pe­rigo? O Estado, talvez?" Recordou as belas teorias que lhe foram ensinadas na escola, seguidas e acreditadas, e sorriu amargamente. Onde estava agora o Estado, esse ente gi­gantesco dos tempos presentes, todo-poderoso, que tudo exi­ge, tudo recebe e, por outro lado, tudo deveria dar? Ausente. Agora o Estado tinha de pensar em si mesmo e abandonava os indivíduos a seu próprio destino. As construções sociais do homem estavam em ruínas; não ruíam apenas as cons­truções divinas da vida. Esta, por suas reservas inesgotáveis, capacidade de adaptação e milenares experiências da raça, soube estar sempre preparada para tudo, especialmente nos povos que muito viveram e sofreram, pois nin­guém vive sem aprender e pessoa alguma sofre inutilmen­te. A vida sabe muito bem passar sem a interferência do Estado. Então, as aquisições recentes evaporam-se e apenas permanecem as aquisições profundas e seculares. O homem pode fracassar, a vida não. Quando o homem se engana, a Lei, através de providencial lição de dor, o reconduz ao ca­minho reto da ordem e, assim, a vida se refaz e continua. Por ela continuamente vela e a protege a Divina Providên­cia, que constitui efetiva proteção biológica, defesa automá­tica e poder saneador, intima providência manifestada pela sabedoria do sistema. Se naquele momento o Estado, pro­vidência humana, desabava, a providência de Deus perma­neceu firme.

A riqueza, potência do mundo, teria talvez defendido esse homem? Embora oferecesse milhões, na hora do perigo ninguém o ajudaria. Exatamente em momento de necessi­dade o dinheiro se tornava inútil. Se esse homem fosse um potentado, cercado de servos e dependentes, seriam eles agora seus inimigos mais ferozes, ocupados apenas em salvar a própria pele. No momento decisivo, a riqueza e o poder, se ele os houvesse possuído, tê-lo-iam traído; não caíra, porém, na ingenuidade de acreditar no contrário. Vitor Hugo, nos primeiros capítulos de Os Miseráveis, fala, a propósito da decadência de Napoleão, de marechais traidores, do senado que, depois de havê-lo endeusado, o insultava e escarrava no antigo ídolo. E tratava-se de Napoleão. Mas a lei, para fra­cos e poderosos, foi, é, e será sempre uma só.

Quem, pois, estendia a mão a esse homem, atirado à des­graça? Quem o acompanhava na fuga, ajudando-o a supor­tar o peso da desventura? Os amigos, os admiradores, quem o adulava nos bons tempos? Não, ninguém. As perfumadas nuvens de incenso, como fumaça inconsistente, haviam de­saparecido no ar. Vaidades humanas. Agora estava sozi­nho. No momento da provação, verificava a imensa van­tagem dele não acreditar na glória, como não acreditara no poder e na riqueza, a imensa vantagem de haver-se acos­tumado a sofrer e a renunciar e estar moralmente prepa­rado. Em sua vida não houvera senão trabalho, obrigações, dor. Esta a sua bandeira, seu repto, sua força, sua vitória. Apegara-se a valores indestrutíveis, tomara-se indiferente aos golpes do mundo. Sua pobreza era a sua riqueza, sua nulidade a sua grandeza, sua inocência, constituía-lhe o poder e a salvação. Apenas a vida séria e dura e as pesadas fadi­gas da vida ascensional não lhe haviam mentido nem traído. No entanto, em que situação talvez se encontrassem agora todos quantos, epicuristas e materialistas, se haviam rido à sua custa, como se se tratasse de um louco? O apego deles às coisas materiais constituía-lhes agora a causa de grande dor. Na hora da destruição, porém, ele já se encontrava ligado ao indestrutível. Sua filosofia, e não a deles, é que no momento da provação resistia. Que triste espetáculo de avidez, de ferocidade, de loucura, de desespero, lhe apresen­tava esse mundo que só acreditara nos valores terrestres! Não. O cataclisma não o apanhava de surpresa, como a tan­tos. Acima de todos os sonhos de grandeza e de vitória, ele que já vira como a dor constitui a realidade da vida, agora verificava como a dor é também a realidade da guerra. E via que o mais desmoralizado de todos os mundos, e sem preparação moral para a dor, agora se encontrava diante de avalancha de sofrimentos como a humanidade jamais conhecera igual. Agora, podia finalmente comprovar, não des­mentida, mas corroborada pelos fatos, quanto era profunda a sabedoria do superamento, através do desprezo das coisas humanas. Naquele momento gozava desta grande vantagem sobre seus semelhantes; a de haver compreendido a vida, de não haver caído no engano de suas miragens, que agora se desfaziam, de não haver construído na areia, de não haver empregado seu esforço e investido seu capital espiritual na obtenção de coisas efêmeras. A quantos iludidos, pensava., não lhes vai cair a venda dos olhos, quando assistirem ao desmoronamento de todas as suas construções! Ele tinha tido necessidade de desenvolver grande trabalho de concen­tração e sofrer muito para poder atingir mundo superior, e isso, aliás, sozinho, abandonado e escarnecido. O áspero ca­minho de sua maturação evolutiva estava juncado de lágri­mas e sangue. Mas, agora, esse homem, tido na conta de imbecil porque inimigo do desonesto arrivismo que leva ao rápido sucesso, se achava na situação excepcional de quem conseguiria atingir mundo superior e nele encontrar a sal­vação pessoal, a mesma salvação negada aos outros, e por a, salvo os seus tesouros, intangíveis aí onde a guerra não pode chegar.

Há muito tempo ele aprendera a descrer do mundo e a viver isolado. Mas, embora assim pudesse parecer, não es­tava só, como bem o sabia. Ninguém pode estar sozinho em nosso universo. Jamais A ignorância do ateu, o poder ne­gativo do mal, a revolta de Satanás contra a ordem regula­dora de tudo não podem destruir Deus, que continua a existir e a operar não obstante a sua negação e acima de seus assaltos. Trata-se, sem dúvida, de imponderável que escapa aos grosseiros sentidos do involuído, mas nem por isso se torna menos, real. Em torno daquele homem turbilhonava solene e imenso o ritmo das leis da vida, inteligentes, poderosas, ativas. Aquele homem solitário estava imerso nessa di­vina atmosfera, aquele homem aparentemente abandonado estava próximo de Deus, e, portanto, menos solitário e menos abandonado que tantos poderosos ídolos das multidões. O imponderável não lhe voltava as costas, como aos outros, mas lhe abria os braços. Ao lado daquele homem estavam o seu passado, suas obras, pois nossas obras nos seguem e a substância da Lei de Deus, ao invés de força é antes de mais nada justiça, e não o contrário, como acontece no baixo mundo humano. Na hora fatal em que ruía o edifício social e seus valores se subvertiam, sua defesa residia agora exatamente em sua nulidade humana, por ele tão prezada. Em primeiro lugar, porque a nulidade, escapa mais facilmente às tempestades, não lhes oferecendo superfície de resistên­cia e, em segundo, porque, como toda pobreza, significa prin­cipio de inocência, crédito perante a lei de equilíbrio, direito em relação à justiça divina. Ele procurara defender-se por meio da própria inocência, que encontrara em si mesmo, e não a poder de astúcia, de meios materiais ou de ajuda hu­mana. Esta lhe parecera ajuda mais poderosa que todos os auxílios humanos. Procurara a força em Deus e na consci­ência a resposta E, em silêncio, gritara a sua inocência ao universo. Grito vindo do fundo da alma, trágico e profun­do, que não pode mentir. E o universo, dirigido por Deus, isto é, pela justiça, não pudera deixar de responder, porque do contrário, negaria a si mesmo. Invocara a ajuda das for­ças ativas no seu plano espiritual, e geralmente, no plano material terreno, paralisadas e afastadas pela mal emprega­da liberdade humana. Sentiu-se, então, fortalecido, levan­tou a cabeça e de olhar tranqüilo encarou o futuro. Ele es­tava no lugar que o dever lhe apontava. Isso bastava. Essa verificação infundiu-lhe na consciência sensação de paz e o inundou internamente de nova energia. O horizonte escuro tornou-se límpido e permitiu-lhe enxergar claramente. A guerra, furacão humano, não o atingia. Essa dor partici­pava do destino dos outros, não do seu. Aquelas armas não podiam matá-lo. Compreendeu, então, o sentido das pala­vras da voz: "Fuja; mas, para onde quer que você vá, estará sempre em segurança". A Lei de Deus quer que nossas penas sejam filhas de nossos crimes e não da má vontade e prepotência alheias e que nosso destino apenas possa ser construído por nós e só por nós. A grandeza e a justiça dessa Lei naquele trágico momento atingiram o homem com evidência tão viva que seu terror se transformou em confi­ança e em oração; em meio à dura provação, caiu de joe­lhos e agradeceu ao Pai que está nos céus, tão pronto a amar-nos e ajudar-nos, se nossa vontade espontaneamente lho permitir.

Pondo-nos de face à realidade mais crua da vida, pude­mos observar, em momento crítico, a transformação evan­gélica dos valores da terra em valores do céu e atingimos o resultado prático ou, mais precisamente, utilitário da invul­nerabilidade e salvação, através do superamento da dor. Esse modo de proceder pode ser incompreensível para o tipo humano normal de nossos dias que, quase sempre espiritualmente involuído, põe em jogo outras leis e outras forças e não sabe compreender aquelas que vemos aqui em plena ação. Torna-se necessária, pois, esta condição: a inocência; apenas ela permite visão clara, apenas quem a possui pode invocá-la perante Deus. Não se trata, por certo, de inocên­cia universal, e absoluta, que nenhum homem, enquanto homem, pode possuir. Se a houvesse alcançado, já estaria bem longe deste lugar de sofrimento. Trata-se, isso sim, de inocência particular, relativa a determinadas culpas e às provações correspondentes. Mais do que isso as inocências humanas não podem ser, embora mais ou menos extensas. Um é inocente em relação a um fato; outro é inocente em relação a outro fato; a mesma coisa se diga relativamente à culpa. Por isso, são os destinos tão diferentes e todos se cumprem inexoravelmente. O destino daquele homem não continha reações de violência e de sangue; estava, pois, imu­ne desse lado em que os outros eram vulneráveis; não pre­cisava, por isso, de sofrer as provações a que Os outros se­riam submetidos. Estava, ao contrário, exposto a provas es­pirituais de lenta maceração e desmaterialização, que os demais nem sequer podiam imaginar, a prolongadíssima5 agonias, à violência das tempestades psíquicas, ao choque contra as forças do imponderável completamente desconhe­cidas pela generalidade das pessoas. Ele, cônscio de seu des­tino, de seu passado e de seu futuro, compreendeu que a guerra não lhe dizia respeito e nenhum homem ou projétil poderia atingi-lo, se não o permitissem as leis da vida, aplicadas a seu caso particular.

Em geral, na defesa da vida e na luta pela vitória, a in­teligência humana não vai além das causas e acontecimentos próximos Em geral, as verdades humanas condicionam-se ao tempo e ao espaço, são verdades de interesse e de par­tido. Trata-se de verdades que apenas interessam ao indi­víduo ou ao grupo e, por isso, mutáveis e passageiras. Esta­mos procurando a verdade verdadeira que, longe de ser re­lativa e facciosa, tem de ser universal, interessar a todos os homens, estar acima do caso individual e do interesse par­ticular. Acima da verdade superficial, procuramos a verda­de profunda, superior a simples opinião, independente do espaço e do tempo, permanente, capaz de interessar a todos os homens indistintamente e válida para todos, fortes e fra­cos, poderosos e humildes, vencedores e vencidos, pois, nos maravilhosos equilíbrios da Lei de Deus e no funcionamen­to orgânico do universo, todo ser tem lugar certo e razão de ser.

Para quem compreendeu essa verdade, a concepção das coisas muda inteiramente. Quem compreendeu que a força humana não pode impedir a ação das forças cósmicas, se­não momentaneamente e assumindo a responsabilidade pe­los danos, não diz mais: "Ai dos fracos e dos vencidos", mas afirma: "Ai dos culpados, embora vencedores. O que tem valor permanente não é a posição material, e sim a posição moral. Exime-nos da responsabilidade a inocência e não a força, que na melhor das hipóteses poderá retardar, mas nunca impedir a reação primitiva da lei de justiça. De acordo com a lei de evolução, o futuro caminha em direção ao reino de Deus, que pertence somente aos justos. O poder militar, a superioridade técnica, o dinheiro e a astúcia não podem destruir a Lei de Deus, que participa essencialmente das coisas. Quem acredita que para vencer baste a força, representada por grande exército, grandes recursos e orga­nização e dotada de férrea tenacidade, não compreendeu como, no funcionamento das leis da vida, exatamente nesse apelo à força e à conquista violenta, como na guerra reside o ponto fraco do sistema que, precisamente por isso, traz em si mesmo o germe da própria destruição. Então, o gi­gante de pés de barro desaba, seja qual for; o fato é verda­deiro para quem quer que se encontre na situação de apli­car essas leis, para quem quer que se encontre nessas con­dições. Não estamos expondo mera opinião, mas simples­mente verificando a existência de algumas leis da vida. O preceito evangélico “Quem com ferro fere com ferro será ferido” exprime racional e inviolável lei biológica. Não fize­mos outra coisa senão estender a bem mais vasto campo o princípio da inocência acima exposto, mas tendo sempre em vista a guerra Em face da agitação da atividade humana, a sabedoria dessas leis íntimas, colocadas nas raízes dos acontecimentos, é que rege todas as coisas: por isso, a força mais poderosa, a que vence finalmente, é a justiça. As ex­ceções não passam de momentâneos desvios, concessões mínimas à liberdade humana que, para aprender., deve experi­mentar o erro. Mas, cedo ou tarde, são retificadas e recon­quistadas através do áspero caminho da dor. Para que o ho­mem aprenda, a Lei deixa-se fraudar, mas depois os iludidos devedores caem em si e reconhecem nela o único árbitro da vida. Explicam-se desse modo as oscilações da História. Com isso, neste capítulo demos novos desenvolvimentos e aplicações aos conceitos por nós já considerados quando estudamos a lei do merecimento.

Continuemos seguindo as vicissitudes de nosso persona­gem. Ei-lo numa casa de colono, atopetada de outros fugi­tivos. A guerra, vindo do Sul, aproximava-se raivando, com rumor sinistro e cada vez mais intenso, mordendo a terra com feroz encarniçamento. Tudo, como se estivesse carregado de ódio, explodia à traição. As casas, as pontes, os aquedutos, as instalações elétricas, as oficinas, as estradas e as ferrovias voavam. A terra, sem exagero, tremia. Em plena noite, clarões sinistros iluminavam o céu escuro sobre a cidade em chamas. Contínuo ribombo de explosões e perigosos abalos sacudiam o ar. Nos campos, cada vez que apareciam aparelhos isolados ou em grupos, começava, em cadência acelerada, o canhoneio das baterias antiaéreas vizinhas e sobre as cabeças caia chuva sibilante dos esti­lhaços. Os grandes pássaros de prata, maravilha da técni­ca e tão belos no límpido azul do céu, desciam rápidos como falcões, semeando morte; ou, então, chegavam de surpresa, em vôo rasante, metralhando. Todos os flagelos da guerra se sucediam em aterrorizante crescendo. Nas casas não ha via nem água nem luz; faltavam as pontes e, por isso, nem se pensava em reabastecimento. Em compensação, a terra estava inteiramente minada, pronta a explodir sob o passo mais leve. Então, como se não bastasse esse inferno, os sol­dados começaram a entregar-se ao saque e à orgia. Embria­gados com o vinho tirado às pobres mesas, roubavam as úl­timas provisões. A propriedade estava praticamente aboli­da. Tornava-se necessário expor-se a novos perigos para proteger, embora ameaçados de revólver miseráveis sobras de tantos anos de privações. E, finalmente, o canhoneio. Baterias colocadas bem próximo atraíam chuva de grana­das A todo momento podia dar-se o inesperado impacto; e ouvia-se, às vezes isolado, às vezes em longas rajadas, mas todo tiro sempre perfeitamente decomposto em três tempos bem distintos: a explosão da partida do projetil, o sibilo do trajeto e o ruído do impacto. Prestava-se atenção ao sibilo, pois trazia a morte consigo. Onde? Podia chegar a qualquer momento, pelo próprio teto. A morte rondava perma­nentemente no ar. Ouviam-na sair dai; daí se esperava que ela chegasse. As vezes a morte passava ao longe, às vezes caía a poucos metros de distância.

Nosso personagem observava. Que força estava movi­mentando esse inferno? Sentia no rosto a respiração do mal, atormentada e cheia de cansaço. Era de certo a voz de Satanás. Quem a ouviu uma vez, não a esquece mais. É áspera, traidora, egoísta, homicida, destruidora. A explosão exprime essa voz, resume essa alma. É terrível ânsia de tu­do despedaçar, esfacelar, aniquilar completamente. Tudo tem de ser reduzido a pedaços, emporcalhado, dilacerado, retorcido, queimado, cortante. É o estilo lançado pela guer­ra, estilo Kaput, estilo moderno, estilo destruição. Esse é o aspecto atual da Europa. É o estilo do mal. É psicologia, filosofia, método científico, loucura ajudada pela lógica, pela técnica, pela inteligência. É o destrucionismo, última fase do materialismo. É o último produto lógico da ânsia desesperada que a civilização moderna trocou por dinamismo criador, é o paroxismo da ação levado a grau de loucura, desequilíbrio não admitido pela natureza, precipitação fatal de um ciclo e prelúdio de fatal mudança de rumo, que está presente em toda regressão. O mal está encerrado no tempo e, por isso, tem pressa. Aí reside seu ponto fraco; ele não o ignora e, portanto, corre. O culpado foge. É desesperado, incerto, de­sordenado. O sábio trabalha com segurança e calma; assim trabalha melhor e com muito menos dificuldade. O erro re­presenta grande diminuição de rendimento. Essa ansieda­de do mundo não se poderia controlar senão por meio de aceleração contínua, constituía instabilidade que deveria ne­cessariamente terminar na auto-destruição. Isso revela o mal, cuja essência é a negação. É raiva que quer ver tudo subvertido, despedaçado. Tudo deve explodir, tudo se desti­na a matar. É o reinado da fera. Seu sistema é a força; a vitória, mero pretexto, ilusão; a realidade, seu verdadeiro desejo é constituído pelo massacre. Eis aí o ponto a que chega e como termina o método da força.

Por isso Cristo ensinou no Sermão da Montanha[13]: "Ou­vistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu vos digo, porém, que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te o vestido, larga-lhe tam­bém a capa;..." O mal sabe iludir-nos com suas miragens de grandeza e, assim, desafoga a sua raiva, e quem acredi­ta na força e a emprega se torna instrumento da lei e se liga inteiramente à destruição, inclusive à própria. E, en­tão, personifica o princípio destrutivo. O bem afirma e cria, e quem a ele se liga é obrigado à construção, inclusive à própria. Hoje, os construtores não podem senão esperar que a tempestade do mal se acalme e se canse. Isso é brutal, egoísta, desapiedado; mas, acima de tudo, é estúpido. Tra­ta-se de força agitada e frenética, porque desequilibrada, de força cega e absurda, cujo desenvolvimento termina na loucura, no desespero, inclusive na própria loucura e no pró­prio desespero. Eis o clímax do método da força. Quão lon­ge estamos das características do bem, que é equilibrado, calmo, confiante, esclarecido! Ninguém pode destruir essas leis e impedir que sua manifestação lhes revele a substância

Assim, a guerra avançava como gigantesco rolo com­pressor, trazendo morte e ruína, às cegas, ao acaso, até pa­ra civis inermes, crianças inocentes, mulheres inofensivas, doentes, velhos. E a loucura destruía com exatidão cientí­fica, método racional, lógica fria e sistemática, para obter o maior rendimento em morte e ruína, à custa de esforço mí­nimo, como acontece na fabricação das máquinas em série, na matança de reses. Mas essa ciranda é um vórtice que não se mantém senão a custa de massa e de velocidade, isto é, acelerando continuamente sua fúria macabra, escancarando cada vez mais as fauces e envolvendo em suas espirais núme­ro sempre crescente de vítimas. Tem avidez delas, atrai-as, prende-as e assim se alimenta e se robustece. Ai de quem pôs em movimento o "maelstrom" e se lhe confiou. Quem foi o apanhado por ele não lhe escapa mais. No fundo, o que há é desespero para todos, vencedores e vencidos. Esta­mos vivendo a última conseqüência da filosofia nietzschia­na. Seu super-homem ideal arranca a máscara e mostra seu verdadeiro rosto de fera. Nietzsche morreu louco. Loucura, naufrágio final do espírito, satânica ruína de rebeldes à Lei, conclusão fatal inserida no sistema e que diz respeito a quem quer que o siga. Eis os resultados de ciência utilitá­ria, amoral, de ciência sem consciência: as invenções do gê­nio prostituídas ao interesse e envenenadas ao ponto de se tornarem instrumento de morte. A primeira aplicação no­tável da conquista do ar foi o massacre da Europa. Não seria ótimo que os cientistas não comunicassem mais, a seme­lhante mundo, os resultados de suas descobertas?

De tarde, enquanto a infernal voz de Satanás dominava a planície, na miserável casa de colono, rezavam. É subli­me falar com Deus, é reconfortante senti-lo bem perto, prin­cipalmente nas horas terríveis. Rezavam com simplicidade e fé, na velha cozinha do colono, enfumaçada, pequena, po­bre. Rezavam, irmanados na mesma miséria, o camponês e o intelectual, o pobre e o rico, o rústico, morto de fadiga, e o homem fino, abatido e mal vestido. As grandes idéias da vida e da morte, do ódio e do amor da família e dos filhos, do dever do sacrifício, estavam ao alcance da compreen­são de todos, formavam essa estrutura da vida, instintiva e essencial, comum a todos. A prece sabia falar ao coração de todos. Em sua fé milenária a raça, já longamente experimen­tada nas desventuras, reencontrava sua força. A visão das excelsas coisas do céu, de um mundo melhor no além, con­fortava a miséria do momento. Nas asas da prece aqueles desventurados se sentiam transportados da dor à paz do coração e à confiança na ajuda de Deus, e não ao brilhante e científico desespero do mundo. Em meio daquela pobreza fraterna se sentia vagar suave esplendor; era a figura de Cristo que estendia sobre todos as mãos protetoras, se incli­nava sobre toda dor para aliviá-la e na soleira da porta da pobre cabana se erguia poderoso, desafiando a tempestade.

Assim ia o tempo correndo, entre forçados ócios empre­gados em meditação, perigos e aborrecimentos, terrores e esperanças. Por último, nova ameaça se juntou às demais: a caça ao homem. Militares armados entravam nas casas e requisitavam à forca a última mercadoria que restara: o homem. Certa tarde, chegaram de surpresa à referida casa de colono. Muitos, alertados, se esconderam ou fugiram, alguns foram presos. Nosso personagem estava na cama, can­sado, e não fugiu nem se escondeu. Não tinha força para defender-se. Gastara todas as energias no cumprimento do dever, isto é, protegendo, prevendo, provando, encorajando. Não lhe restaram forças para pensar em si mesmo. Aquela hora era, pois, a da Providência, seu derradeiro auxílio. Além disso, causava-lhe invencível repugnância ter de defender-se sozinho, não confiar em Deus para confiar em si mesmo e nos métodos de defesa humanos. Não podia mu­dar seu sistema, que era o de chamar sobre si o cumprimento do dever, ajudar os outros e confiar na Providência. Sua defesa não era a do tipo comum, isto é, improvisada na última hora e superficial. Fugia da força como fugia da as­túcia. Preferia a defesa longamente preparada na procura da invulnerabilidade que deriva do estado de inculpabilidade moral perante Deus, estado em que ele, há muito tempo, tinha procurado colocar-se. Mesmo na luta defensiva co­mum, empregava as forças de plano evolutivo mais elevado, submetendo-as mais uma vez à experimentação, mas sempre confiante nelas por havê-las visto funcionar tantas vezes. Ele percebia que compete a Deus defender a quem, tendo empregado tudo no cumprimento do próprio dever, não possuía mais meios e forças para prover-se do necessário. Assim, quis, até nesse momento crucial, manter-se coerente com os princípios que jamais o haviam traído. Pôs em prática, portanto, seu método; antes de mais nada, permanecer, com honestidade e plena consciência, tranqüilamente no seu posto de combate e de dever, até o último limite; depois, nada mais lhe restando, desinteressar-se por si mesmo, aban­donando-se às mãos de Deus com a fé mais completa. Per­cebia o profundo funcionamento das leis da vida e que estas não podiam mentir-lhe nem traí-lo; sentia-se participe da imensa organicidade do todo e sabia que a mente dire­tora não podia permitir a dispersão de parte alguma, por menor que fosse; tinha a nítida impressão da indestrutibi­lidade fundamental do próprio ser. Posição, por certo, estranha e incomum. Mas é inegável que as forças da vida a percebiam, pois se adequavam a essa sua posição especial. Ele via, então, a Providência tomar corpo na realidade e ma­nifestar-se-lhe aos sentidos, de modo a tornar-se auxilio con­creto, via Deus avizinhar-se-lhe e a justiça de Sua Lei tirá-lo do perigo. Sua experiência não era impregnada de dú­vida, desconfiada, analítica, mas confiante e embriagadora e cheia de alegria a que não era capaz de subtrair-se. Assim, de alma perfeitamente calma e visão absolutamente límpida, esperou o perigo.

Observemos o encontro entre as duas forças contrárias. Trata-se de dois princípios diversos, de dois métodos de lu­ta, de dois mundos opostos. Espírito e matéria, bem e mal, se defrontam e desafiam, cada qual com suas armas. Quem vencerá? O homem isolado, inerme, mas justo e, por isso, ajudado por Deus? Ou o militar armado, sustentado pelo número, mas assistido apenas por um organismo defensivo humano? Os mesmos conceitos e as mesmas posições, aqui considerados em seu aspecto individualista, vimo-los na "Vi­são" (aspecto coletivo) referida neste volume (cap. XVI e XVII) e no encontro entre Cristo e Pilatos (cap. XXI). Também no Quo Vadis de Sienkievicz vemos S. Pedro e Nero olharem-se por um instante frente a frente. Em Os Miseráveis, de Vítor Hugo, Mons. Myriel permanece calmo diante da ameaça de Jean Valjean, deixando que apenas sua inocência o defenda e na noite do furto, vemo-lo permanecer ileso, invulnerável, nas mãos do assassino, que se torna im­potente para feri-lo. A veracidade dessa lei do merecimen­to e o poder dessa força da justiça e da inocência foram, em­bora não demonstradas, percebidas pelos outros.

Nosso personagem, que estava na cama, vestiu-se e es­perou. Avisaram-no: "fuja, senão eles o prendem" . Sentou-­se calmo, escutando os passos dos militares que vasculha­vam a casa. Ouviu-os aproximarem-se. Um oficial escanca­rou a porta de seu quarto e, apontando-lhe o revólver, avan­çou até o meio do cômodo. "Você vir conosco", disse-lhe. Levantou-se e respondeu tranqüilamente: "Não posso, estou muito cansado, vou cair ao cabo de poucos quilômetros, não tenho mais força física. Sofro há muitos anos. Não posso suportar novas fadigas, novos incômodos. Estou falando a verdade. Se não acreditarem, podem matar-me agora mes­mo. Estou preparado". O militar, que lhe falara, olhou-o com seus olhos metálicos e acrescentou: "Você vir conosco, logo, ou eu disparar". Nosso personagem repetiu: "Matai-me. Estou preparado. Sempre estive. Peço apenas um minuto para falar com Deus. Ide até o fim nessa destruição. Estais armados até os dentes e podeis fazê-lo impunemente. Quem pode deter-vos? Apenas o vosso dano; não o vedes, porém. Minhas armas são outras. Não o entendeis. Quem, pois, vos detém?"

Em seguida, caminhou tranqüilamente em direção a um espaço vazio da parede, nele apoiou as costas, esten­deu os braços em cruz, fechou os olhos para o mundo exte­rior, reabriu-os para o outro lado da vida, esperou, rezando deste modo: "Senhor, em tuas mãos encomendo o meu espírito. Não permita se manche este homem com um homi­cídio, pois é da lei que ele mais tarde o pagará com "sua" morte. Forças cósmicas do bem, acorrei contra as forças do mal que agora estão envolvendo este pobre cego, a fim de ligá-lo a nova dor, para incorporá-la a seu destino; assim, não será ele perseguido incansavelmente até que a reação do delito se esgote com sua morte violenta. Senhor, aqui está minha vida, para que o bem, e não o mal, triunfe". Daí, como supremo e concludente gesto, fez o sinal da cruz, isto e, o sinal da dor, o sinal do amor e das maiores forças co­locadas nas raízes mesmas da vida, o sinal do Senhor, símbolo e síntese da gênese e da criação principalmente em relação ao espírito. Depois, pensou: "vem, ó morte, querida irmã, aceito-te alegremente das mãos de Deus, pois assim me livras deste inferno”.

Não tendo ouvido mais nada abriu os olhos. Seu olhar cruzou o do oficial que o fitava: o olhar metálico e o olhar ardente se defrontaram. O primeiro tentava compreender e não o conseguia. Extenso abismo abria-se entre os dois. Ele sentia atração e repulsão, fascínio e raiva, absoluto de­sejo de matar o rebelde, como havia ameaçado, aliás, e im­possibilidade de fazê-lo. Invisível potência o detinha. Ficou ali parado, perplexo com essa hesitação incomum, para de­cifrar-lhe o sentido, procurando descobrir que coisa o para­lisara, que coisa se interpunha entre si e o homem, ao pon­to de impedir-lhe o passo. Por que essa inércia? O homem de ação e de ciência, habituado a tomar conhecimento dos fatos, queria saber o porquê e a razão; por isso, escrutava, olhando aquele homem enigmático que tranqüilamente es­perava a morte. O homem de fé olhava o oficial e lia-lhe no coração, muito embora ele não estivesse percebendo nada do que se passava consigo.

Defrontavam-se os modelos de duas civilizações diferen­tes. O oficial era o produto de pseudo-civilização científico-mecânica, chegada às suas últimas conseqüências, civilização rica, armada, astuciosa, e potente, e, no entanto, pronta a desabar. Do outro lado estava o representante de nova civilização, no momento apenas embrionária, a única pos­sível civilização verdadeira: um indivíduo desacompanhado, pobre, desarmado, sincero, justo. O oficial não podia, com os olhos da carne, ver através da matéria e penetrar no se­gredo, que o perturbava, daquele homem enigmático a quem, embora armado, não tinha coragem de matar. Este homem representava principio diferente, mas tinha coragem de matar. Este homem representava princípio diferente, mais sublime e poderoso: o espírito. E o militar a si mesmo per­guntava por que essa invencível resistência que, embora ele não conseguisse compreender, lhe chegava do imponderável, e qual o mecanismo dessa energia desconcertante e capaz de inibi-lo desse modo. Nosso personagem fechou de novo os olhos, esperando o estampido do tiro: a morte. Silêncio. Quando os reabriu, o oficial desaparecera.

O homem esperou, mas ninguém se preocupou mais com ele. A morte passara bem perto de si e não o quisera. Deus passara bem junto dele. Atirou-se sobre o enxergão e ador­meceu como o fazia toda noite, tranqüilo e agradecendo, hu­mildemente, ao Pai que está nos céus e desejara continuasse a trabalheira toda de sua vida.

XXIII

VINGANÇA OU PERDÃO

A moral da narrativa feita no capítulo anterior tem al­cance universal e representa modificação completa da psicologia corrente, quando afirma serem todas as situações de nossa vida, boas ou más, conseqüência de nossa conduta Pode ser que não nos recordemos de quando e onde semeamos na plantação de nosso destino, mas, sem dúvida alguma, semeamos. Sempre procuramos nos outros as causas de nosso infortúnio; elas, porém, residem em nós, dentro de nós. Procuramos sempre inculpar os demais, pois queremos encontrar um Cirineu que nos carregue a cruz. No entanto nós é que devemos carregá-la nos ombros. Isso tudo satisfaz a lógica, a lei de causalidade, a justiça e a liberdade humana. Os acontecimentos não nascem fora de nós, mas dentro; se algo nos golpeia, não é por motivo de alguém no ter querido infligir e, sim, porque nosso modo de vida, esse feixe de forças, o atrai ou, pelo menos, por ser vulnerável desse lado, lhe garante livre acesso, verdadeira porta aberta. Nas infeções microbianas, não é a esterilização do ambiente, impossível de conseguir, que decide de nossa saúde mas, acima de tudo, a resistência orgânica do indivíduo. Assim também, quanto às adversidades morais e materiais, não nos é possível viver em um mundo inócuo e, ao tempo, esperar continuamente sua não-agressão; devemos ao contrário, confiar apenas nas qualidades individuais de resistência, de reação defensiva; de recuperação, isto é, naquelas forças por todos nós possuídas porque as conquista­mos e as incorporamos ao dinamismo de nosso próprio destino. A moral da precedente narrativa é que nós mesmos devemos construir-nos, cada qual por si e para si, e toda alegria ou dor, vitória e derrota constituem experimento que se registra indelevelmente no livro de nossa vida representam prova de que nos interessa sabermos sair mais esclarecidos. Ou nos construimos e robustecemos ou nos de­molimos e enfraquecemos. Se, como tantos fazem, procurar­mos a vida apenas fora de nós, nas outras pessoas e nas coi­sas, seremos escravos, seus escravos. Só seremos livres, se procurarmos a vida dentro de nós. A moral é que podemos ser senhores de nosso destino, mas se torna necessário que­rê-lo e sabê-lo. É preciso, porém, viver em profundidade, viver vida consciente. Não é a riqueza ou o poder, mas a vida interior, que nos dá a independência e o domínio. Po­demos viver no meio da guerra e, no entanto, ter a paz no coração. A maior conquista consiste em chegarmos a ser, e conservarmo-nos donos de nossa casa interior. Essa é a úni­ca direção útil do expansionismo, o do novo homem, expansionismo que não acaba em carnificina. Em relação nossa alegria e à nossa força, vale nossa casa interior muito mais que a exterior; podemos fazê-la ampla e sólida e conservá-la a nosso modo, em completa independência, em plena autarquia do espírito. Essa casa, porém, não a re­cebemos por herança; cada um de nós tem de construí-la com as próprias mãos, pois é de fato nossa. Mas essa posse deve ser plenamente justa, isto é, constituir fruto de nosso tra­balho. Essa casa é o verdadeiro refúgio na adversidade, o ni­nho de nossas alegrias, o cofre de nossos tesouros; mas e construção feita de forças, edifício entretecido de invisíveis fios em movimento e que necessita nutrir-se diariamente de nosso trabalho porque marcham para o futuro e são vivos e se desfazem, se não forem alimentados. Há homens que por fora vivem em palácios luxuosos e por dentro definham em casebres miseráveis, desleixados, tristes, em ruínas. Nos momentos de desventura, seu mesquinho eu não encontra refúgio, pois as grandezas terrestres não podem oferecê-lo. Percebem a miséria da casa interior de sua personalidade e, por isso, lhe fogem, temem a introspecção e, como percebem estarem nus, procuram avidamente cobrir-se com seus ou­ropéis. Mas os valores e as defesas estão dentro e não fora. Tudo quanto é externo se despedaça ao primeiro sopro da tempestade. Assim é a vida.

Por isso, podemos dizer com o Evangelho: "Ai dos ricos, ai dos vencedores, ai dos que gozam. Amanhã chorarão". São coisas ditas e reditas pelos sábios; todavia, nesta vida turbilhonante, não passa pela cabeça de ninguém que de­vam ser levadas a sério. No entanto, constituem a realidade mais profunda da vida. O encontradiço tipo involuído não sabe compreender como, para quem evolui, em dado mo­mento a ilusão desapareça sem causar mágoa e como, sob o nome de ilusão, devamos entender exatamente as coisas que a maioria das pessoas considera mais preciosas. De fato o caminho evolutivo do sábio é juncado de descobertas muito mais maravilhosas do que as científicas, proclamadas aos quatro ventos. Trata-se de descobertas verdadeiramente utilitárias e substanciais, completas e decisivas. Eis o verda­deiro sentido da vida, sentido que escapa ao entendimento das massas estúpidas e escravas, abandonadas à deriva de­sejosas apenas de vegetar. Contudo, a realidade material e exterior, que todos alimenta, tem as raízes mergulhadas nessa realidade interior e dela não pode separar-se. E pre­tendemos dominar os efeitos, combatendo-os quando já plenamente desenvolvidos, ao invés de extirpá-los no nascedouro. Todavia, o sucesso material, tão ansiosamente desejado por nós, não podemos obtê-lo sem o concurso da força moral, que não levamos em conta e, no entanto, se lhe liga estreitamente. O imponderável, embora incompreendido e maltratado, permanece indestrutível entre nós; não se dei­xa dominar e reage maleficamente, pois o nosso mau trata­mento para isso quis pô-lo em ação. Se as forças da Lei, agindo sabiamente, não nos reeducassem por meio da dor, nessa civilização não saberia fazer outra coisa senão condu­zir-nos, por meio do bem-estar e do abuso, à decadência física e moral.

Procuramos neste livro observar essas verdades sob todos es pontos de vista, conforme as várias formas mentais, servindo-nos da lógica, narrando os resultados da experiência, apoiando-nos na analogia e em relações com fenômenos de outro tipo. O problema que estamos enfrentando é o do me­lhoramento humano e este coincide com o aperfeiçoamento do indivíduo. Podemos, para isso, utilizar as grandes vias das reformas sociais e dos sistemas orgânicos de massa. Se aqui, porém, a ação é muito extensa, é necessariamente pouco profunda. De modo que, se quisermos fazer a evolu­ção humana avançar muito, temos de encaminhá-la pelo estreito caminho individual. Trata-se de mudar o sentido da vida. É preferível, pois, trabalhar no lado de dentro a tra­balhar no lado de fora do indivíduo, mais por livre conven­cimento do que por imposição, mais por maturidade do que por organização. São múltiplas as estradas do progresso. Essa maturação deve ter o caráter de espontaneidade. Por isso, apela-se para mais perfeito entrosamento da vida hu­mana com as leis biológicas. Da conquista de novo modo de conceber a vida, mais lógico e mais elevado, derivaria mu­dança no comportamento individual e nas relações entre as pessoas e as coisas, o que traria grande vantagem para todos Procuramos, aqui, fazer com que o homem moderno com­preenda a enorme vantagem de ser honesto. A humanida­de de hoje crê ter-se de súbito civilizado apenas porque des­cobriu alguma lei exterior da vida, que lhe permite mais cô­modo desfrutamento dos recursos naturais. Trata-se de do­mínio alcançado sobre algumas forças tornadas em parte obedientes, para atingir bem-estar de que nos pomos a go­zar, ignorando-lhe as conseqüências. Esse domínio também poderá servir para causar-nos a morte cientificamente, em larga escala, porém não nos torna mais adiantados. Isso não pode chamar-se civilização. De mudanças profundas de orientação, que interessem à motivação da atividade huma­na, nem se fala. Hoje em dia a vida se apresenta feroz e desapiedada como nos tempos pré-históricos. Não estar ar­mado de pedras lascadas mas de metralhadoras, não es­trangular o seu semelhante com as mãos, é sim com os Ban­cos, representa apenas progresso formal, substancialmente fictício. Civilização que deixa intactos os instintos bestiais do homem e, além disso, lhe oferece meios mais poderosos de satisfazê-los, não merece o nome da civilização. Hoje, ao invés de havermos progredido, descemos a tal ponto que per­demos o sentido do que seja civilização e mudamos o signifi­cado dessa e de outras palavras sublimes. A verdadeira ci­vilização está mais dentro do que fora de nós; é mais um poder das qualidades da personalidade que um poder origi­nado nos meios exteriores e no domínio material é progres­so no espírito, implica em mudança do comportamento hu­mano em profundidade e não apenas em superfície. Em meio dessa nossa barbárie, os raríssimos sábios caminham em silêncio, beneficiando e perdoando. O mundo ri-se deles. Mas neles apenas reside o futuro do mundo, o único futuro sem sangue.

As ações e as relações humanas podem ser estudadas como jogo de forças e, assim, descobrir-lhe-emos as leis. Aí esta o miolo da questão. Acreditamos que a lei do perdão significa pôr-se em situação de fraqueza e que o sistema de vingança e aniquilamento significa posição de forca. Não compreendemos como na realidade se dá o contrário, isto é, como o perdão nos liberta da reação e a vingança nos liga ao inimigo. Quando dois indivíduos estão em paz entre si, representam sistema de forças em equilíbrio. Mas, apenas um dos dois tenta superar o outro, procurando invadir e dominar, não só o legítimo campo de sua liberdade como o campo dos demais, esse sistema de forças não se mantém mais na posição natural e estável de justiça, mas se transforma em sistema desequilibrado que tende espontaneamen­te a voltar à primitiva posição de equilíbrio. Temos, agora, de um lado rarefação e vácuo e de outro concentração e pressão; de um lado derrota e danos, de outro vitória e van­tagens. Tudo poderia processar-se de acordo com a vontade do homem, que gostaria estivessem a seu favor essas mu­danças, se não existisse uma vontade superior, a dirigir e equilibrar, a vontade da Lei que guia todos os fenômenos de acordo com equânime princípio de justiça. O fato é que essa lei existe e um princípio impõe o equilíbrio, Acontece então, automática e irresistivelmente, que de um lado a atração exercida pelo vácuo e de outro a força de pressão tendem a estabelecer esse movimento de reação chamado vingança; esse movimento, se possui um fundo de justiça, pois tende a reequilibrar o sistema, lança-o em novo desequilíbrio constituído pela posição inversa, de que nasce nova reação, a contra-vingança e assim por diante. Estabelece-se, desse modo, cadeia de vinganças, interminável porque através de­las o desequilíbrio se mantém, permanece sempre a provo­cação originária que não tem remédio. Assim, acontece que quando dois indivíduos pela prática de algum abuso se ligam a tal sistema de forças, este não sabe mais como resolver-se e os indivíduos permanecem, mesmo através de seus descen­dentes, indefinidamente emaranhados. Assim, até a consu­mação dos séculos, o fratricida Caim revive no homem.

Continuemos a observar. Por um lado, a concentração constitui riqueza, superabundância de bem-estar, euforia biológica causadora de engorda enervante, que desabitua da luta, diminui as capacidades, aniquila as defesas. De outro lado, a rarefação é pobreza, incômodo, tormento originador de excitamento que anima ao combate, apura as capacidades, prepara e apresta o ataque. De um lado, pois, a pres­são tende naturalmente a diminuir; dentro a tensão tende a aumentar. Assim, as duas forcas do sistema, já ligadas tendem a combinar-se de novo, mas em posição inversa. E assim por diante. Tais são as vicissitudes de toda luta, de dois homens, famílias, facções ou povos. Existe, pois, enxer­tada no próprio sistema, uma tendência a compensar, cor­rigir e eliminar os abusos iniciais. Essa tendência à inversão das posições exprime tendência ainda mais profunda, isto é, a que leva ao restabelecimento do equilíbrio rompido. Ela se deve à presença de uma terceira vontade, que nada tem de comum com as verdades particularistas e relativas dos dois contendores, isto é, a vontade imparcial e justa da Lei, cuja tendência constante consiste em corrigir e reabsor­ver o erro humano.

Perguntamo-nos, agora: como se torna possível reequili­brar esse binário que, tendo perdido o equilíbrio, não sabe re­compô-lo? O maior sonho do lutador consiste na vitória e conseqüente aniquilamento do inimigo. Na verdade, porém, não passa de ilusão, pois o inimigo que representa uma força, é substancialmente um imponderável, e participa de um orga­nismo universal em que como já dissemos, nada se pode destruir e onde se torna impossível abrir-se o vácuo de sua destrui­ção; representando, pelo contrário, tendência a preenchê-lo, ir­resistível vontade de compensação. O homem não pode de mo­do nenhum neutralizar essa tendência, paralisar essa vontade superior. Possui apenas este recurso: a sua força, a que, para vencer, se agarra de unhas e dentes. Mas a manutenção de artificial estado de equilíbrio, como o de seu domínio sobre o próximo, requer esforço contínuo, que se resolve, já o disse­mos, em desgaste e, mais tarde, em inevitável cansaço. Desse modo, além de pelas razões precedentemente expostas, tam­bém por esta o sistema tende a inverter-se. A lei fundamen­tal de justiça tende incansável e tenazmente à compensação e exerce insistente pressão nesse sentido, e apenas encontrará paz quando completamente corrigido o precedente desequilí­brio. Impossível, pois, resistir indefinidamente; de fato, para conservar de pé um sistema desequilibrado, seria necessário ampará-lo continuamente por meio de incessante dispêndio de energia De um lado, temos o princípio-lei, que é vontade inteligente armada de energia, calma, paciente, mas constan­te e inexaurível. De outro lado, o homem armado de energia violenta, mas inconstante e pouco duradoura, colocado pe­rante lei de vontade diferente da sua e que não se deixa vio­lar senão temporária e excepcionalmente e à custa de esforço persistente e cansativo. O indivíduo poderá resistir e, até mes­mo, resistir vencendo por alguns momentos, mas cedo ou tarde chegará o momento de se inverterem as posições. Portanto, é fatal, como de fato se verifica, que cedo ou tarde o sistema se decomponha e o vencedor passe à condição de vencido e ao con­trário. No reino da força, vitória significa vitória. Mas, perante lei equânime, imparcial, desejosa de que todos vivam, vitória significa débito do vencedor para com o vencido, débito a ser pago de qualquer modo um dia. Então, que adianta vencer? Se não nos contentamos com resultados efêmeros nem da­mos crédito à ilusão, não é verdade que vitória e derrota re­presentam o mesmo fenômeno? Trata-se de posições instáveis, solapadas pelo tempo, de vantagens momentâneas, tra­balhosas e arrancadas violentamente aos naturais e inexo­ráveis equilíbrios da Lei. E assim, em última análise, a vi­tória não passa de prelúdio da derrota e a derrota signifi­ca o prelúdio da vitória.

Se, pois, a vitória não resolve definitivamente o proble­ma, visto como de fato não reequilibra o sistema das duas forças, se posição de estabilidade apenas pode ser garantida por espontâneo equilíbrio dos dois impulsos opostos, a que devemos recorrer, então? O sistema humano da vingança não atinge o objetivo previsto. Sem dúvida. Não se trata aqui de agravar, mas de reabsorver o desequilíbrio originá­rio e isso apenas pode ser conseguido pelo perdão. Vimos que a primeira usurpação causara um primeiro desajusta­mento, que o sistema ativo-reativo em cadeia das vinganças não consegue eliminar. Para consegui-lo, torna-se necessário um ato igual e contrário, porque só um ato assim pode neutralizar o primeiro. É preciso, portanto, movimentar-se em sentido contrário; e só o perdão pode fazê-lo.

Dirão, agora: para que serve essa luta e, se constitui erro, porque as leis da vida a permitem? Serve para apren­dermos o modo de não cometer mais erros e percorrermos o caminho da vingança a fim de aprendermos a lei do per­dão. O homem necessita aprender; por isso, Deus deixou-o livre. Não se trata, pois de liberdade desenfreada e louca, mas de liberdade limitada e protegida. A lei cede no limite do necessário ao aprendizado do homem. Deixa-o errar e, depois, sofrer as dolorosas conseqüências do erro. Age, po­rém, paternalmente; de fato, ao mesmo tempo que parece abandoná-lo, a lei se mostra sabiamente previdente, próvi­da e protetora e, por meio de lenta, mas constante e tenaz pressão, se compromete antecipadamente a recolocar tudo em seu devido lugar; e, na realidade, vemos que, apesar de todas as desordens humanas, a Lei alcança esse objetivo. Desse modo, todo erro contém em si o germe de sua corre­ção, a imperfeição se reduz a motivo de perfectibilidade con­tínua. O mundo constituí, assim, perene injustiça, que re­presenta poderosíssima aspiração à justiça; a vida é dese­quilíbrio constantemente à procura de equilíbrio; é vingan­ça avidamente desejosa de alcançar a fase superior de per­dão; é ânsia de ódio que não sossegará enquanto não reen­contrar o amor. A Lei existe, sem dúvida, porque nossa consciência sabe exatamente como as coisas deveriam., ser, perfeitas, embora não o sejam ainda, embora um abismo de dificuldades as impeçam de o serem. De fato, o mundo apresenta-se como oceano de desequilíbrios e por essa razão sofre, exatamente porque não consegue atingir o estado de equilíbrio, único, conforme o mundo mesmo percebe, em que encontraria a paz. Torna-se evidente que apenas o reequilíbrio poderá dar-nos a felicidade, mas esse reequilíbrio está bem longe de nós. O sofrimento do mundo não se deve a erros recentes, e sim milenários, a pavoroso amontoado de erros, acumulados através dos séculos, difícil de eliminar e impossível de reabsorver assim de um golpe. Hoje tudo está impregnado de erros; o ar, saturado de mentira; o mal que semeamos se transformou em nossa atmosfera. É preciso pôr-se a caminhar, lenta e tenazmente, pelo áspero cami­nho da regeneração. Os resultados do abuso não podem ser corrigidos senão movendo-nos em direção contrária, subin­do de novo pelo caminho que havíamos descido. Na prática, o simples caso de duas forças contrárias, há pouco exami­nado, complica-se num interminável entrelaçamento de de­sequilíbrios, que nos submete ao jugo de nosso destino de indivíduos e de povos, pobres autocondenados, exatamente como por ignorância ou má-vontade queremos. Quanto mais perseverarmos no caminho da força e da vingança tanto mais pioraremos nossas condições, agravando o desequilí­brio. A única saída é esta: o caminho do perdão, o caminho do amor, o caminho do Evangelho. Quando encontrarmos um homem que emprega a violência e se vinga, diremos: este é um involuído que está começando o longo aprendizado da vida. Quando virmos um homem que repele a violência e perdoa, diremos: este é um evoluído que já viveu bastante e aprendeu a lição da vida. A tendência da evolução consiste em substituir a vontade ignara, egoísta, desagregante e usurpadora do indivíduo pela vontade consciente, altruísta, orgânica e pacífica do homem da lei.

Eis em que consiste e para que serve o civilizar-se. Não se trata apenas de idealismo ou de sentimento ou de bon­dade. Trata-se de atingir a fase do homem que já compre­endeu. Este diz: "Perdôo-te, ó inimigo, porque só assim me livro do mal que quiseste lançar sobre mim. Não; conheço a Lei e não faço como muitos iludidos que caem na armadi­lha. Sei que sou livre. Não aceito ligar-me a ti por laços de ódio ou de vingança; não aceito, porque sou livre, o mal que quiseste infligir-me. Perdôo-te. Esse mal te pertence; tu o geraste, não eu. Perdoando-te, deixo-o recair sobre ti, não sobre mim. Se eu caísse na corriqueira ilusão do mais forte e reagisse, ofendendo-te também, e te causasse um mal que em mim se gerara contra ti, tornar-me-ia devedor e não mais credor teu e terias o direito de reter-me como escravo en­quanto eu não te pagasse meu débito, de acordo com a di­vina lei de justiça. Com o meu perdão, tu continuas nessa triste posição, tu, pobre iludido que te ries de mim porque pensas ter-me vencido. Muitos preferem comprometer-se cada vez, disputam corrida em direção ao aumento da dívi­da. Quanto a mim, prefiro libertar-me por meio do perdão. Liga-te, isso sim, com quem responder aos teus ataques. Eu por meio do perdão me liberto. Nada podes contra mim. sem que eu o queira. Não tens o poder de infligir-me a dor que quiseres. Isso depende apenas de mim e de minhas cul­pas. E se eu tiver de sofrê-la, não a aceito de ti, que ignoras o porquê das coisas e ages como cego; aceito-a apenas das mãos de Deus, a titulo de expiação merecida, de salutar pu­rificação e, por isso, de benefício para minha redenção. Não és mais do que instrumento inconsciente guiado pela Lei. ser ignorante do que faz, merecedor de piedade e por quem devo orar. És pobre irmão ainda ignaro, que devo esclare­cer e ajudar, irmão que está ferindo a sua própria vida e li­gando-se, sem sabê-lo, a nova dor, porque, acreditando gol­pear-me, está golpeando a si mesmo. Irmão! Devo socorrer-te no perigo por que estás passando. Mais tarde, depois de espontaneamente teres querido ligar-te, por mais que eu sofra e te perdoe, nada poderei fazer por ti contra as conseqüências fatais de tua conduta; assim, deverás pagar ine­xoravelmente e na proporção de teu erro. Tu, não eu, rom­peste o equilíbrio. Tu, não eu, deverás, penando, reconstruí-lo. A redenção é demorada, complexa e se processa átomo por átomo. Meu perdão me interessa mais do que a ti. Cairás debaixo da força que tu mesmo libertaste. Ai de ti, se venceres. Tanto mais pagarás quanto mais injustamente houveres vencido. Acreditas trabalhar fora de ti, em mim, e, no entanto, trabalhas dentro de ti mesmo, em ti, para teu benefício. Tudo quanto fizeres recairá sobre ti, porque tu o fizeste; não recairá sobre mim, senão na proporção em que eu o houver feito".

A terra é morada infernal, de débito e de expiação, lugar em que os homens gostam de endividar-se até o pescoço, vivendo debaixo de chuva de fogo aceso por suas próprias mãos Todavia, como a Lei de Deus se mantém jus­ta e boa! Somos livres, mas responsáveis. E, quando lhe compreendemos o significado, que poder regenerador o so­frimento adquire! Todos nós temos de responder apenas por nossas ações e não, também, pelas ações alheias; cabe-nos responsabilidade pelo esforço feito, não pelos resultados ob­tidos. A força máxima consiste em ser inocente. O ponto vulnerável à dor é apontado pela própria culpabilidade, quer dizer, não é a dor em si mesma que o determina, mas a pró­pria debilidade, que oferece o peito aos golpes da lei de jus­tiça. Tudo quanto fazemos perdura e quem deve não encon­tra salvação. Logo, nós mesmos criamos nossa vulnerabi­lidade, espontaneamente, por meio de nossas próprias ações. de acordo com nossa vontade mesma. A casa interior do culpado é indefesa, tem as portas escancaradas. Por qual­quer lado a dor pode entrar nela. Cabe culpa às portas abertas e a quem as abriu. Então, as forças do nosso desti­no atraem as investidas dos malvados, que nas mãos de Deus se transformaram em instrumentos de justiça, embora, con­siderados em si mesmos, sejam injustos e incapazes de com­preendê-lo. Os meios punitivos estão à solta, o mal conse­guiu libertar-se das algemas e pode, porque Deus o permi­te, agir com plena liberdade. Na Lei, o mal é escravo do bem, tem limites que não pode ultrapassar senão a serviço do bem. Esses instrumentos não são constrangidos, mas utili­zados. São, por isso, responsáveis na medida de sua com­preensão e liberdade de agir e nessa medida, quando lhes couber a vez, hão de pagar pelo que fizerem. Mas, se sou inocente, que podem eles perante mim senão oferecer-me no­vas oportunidades de expiação e ascese? Meu inimigo pode atirar-me às costas todo mal que quiser; apenas o que eu merecer me atingirá. Não responderei por ele, mas por mim. E, se não respondo às ofensas, toda a culpa recairá apenas so­bre o ofensor. A medida de nossa dor no-la dá nossa culpabili­dade. Fato importante como o desenvolvimento de nosso des­tino, fato grave como o peso de nossa dor não pode ficar à mercê da vontade de um estranho, que muitas vezes nada sabe a nosso respeito. Sem nosso consentimento, não obs­tante os permanentes contatos humanos, entre destino e destino não se podem efetuar trocas de valores ou de forças. Nós é que fazemos nosso destino; este não passa de campo de forças cerrado e protegido, em cujo centro está o eu, di­rigindo e controlando tudo. Um estranho poderá introduzir nesse campo apenas as forças que quisermos. As responsa­bilidades são graves; as sanções, inexoráveis. Nada mais jus­to do que liberdade completa e responsabilidades bem defi­nidas. Nada mais justo do que cada um responsabilizar-se apenas por aquilo que livremente fez.

Já vimos alhures, a propósito da lei do merecimento e da Divina Providência, quem na luta pela vida defenderá ao homem que confiou sua defesa à Lei, às mãos de Deus. Não acreditem vá esse homem, segundo muita gente pensa, deixar de ser vingado. Renunciando a fazer justiça pelas próprias mãos, ele se confia a juiz muito mais poderoso; quem perdoa entrega o culpado à Lei de Deus que, invisível e paciente, é também inflexível e inviolável e muito mais temível do que as sanções humanas. Os resultados do jogo da força, embora efêmeros, iludem porque são imediatos. Esse jogo não se realiza a longo prazo. Com o andar do tempo o justo se revela o mais forte e é quem vence por úl­timo. Há, sem dúvida, conveniência imediata na exploração imediata das posições cuja honestidade lhes conquistou con­fiança. Quanto mais a retidão de uma verdade ou de uma instituição lhe houver conquistado a estima pública, tanto maior atração exerce sobre homens inescrupulosos que pro­curam apropriar-se dela em busca de vantagens pessoais. Quem mais fama tem de honesto esse é o ladrão. Mas a po­sição é instável e não se mantém. Cedo ou tarde tudo desa­ba. Para civilizar-se a sério o homem do futuro teria ape­nas de fazer este pequeno esforço de inteligência: com­preender a vantagem utilitária de ser honesto, vantagem considerada apenas do ponto de vista do egoísmo (nem pretendemos mais do que isso); compreender que tudo quan­to podemos obter, empregando a astúcia ou a violência, não passa de adiantamento, que mais tarde devemos devolver, e pagando muito caro; pretender fraudar lei invisível e onipresente é ilusão própria de ignorantes; entender que o mais forte não é o prepotente, mas o mais justo e que o ca­minho do sucesso verdadeiro, permanente e durável não é o dos arrivismos tão admirados e seguidos, mas o do próprio dever. Evoluindo, o homem atravessou, na arte de conquis­tar os bens necessários à vida, a fase representada pelo mé­todo da força e, em seguida, a fase do método de astúcia. Agora, se não quiser, com grande desvantagem para si, con­tinuar na situação de involuído, deverá entrar na fase re­presentada pelo método da honestidade. Sem essa premissa, todos os sistemas coletivos que buscam justiça social mais completa contêm apenas ilusão, mentira e pretexto para in­justiças cada vez maiores. Sem esse fundamental progresso individual, é inútil acreditar em qualquer tentativa de pro­gresso coletivo.

XXIV

NOSSO LIVRE DESTINO

A humanidade compreende exatamente duas raças bem distintas; a dos evoluídos e a dos involuídos. Insistamos mais um pouco nesse conceito, que aliás já desenvolvemos neste livro Não vã o leitor surpreender-se com o que pode parecer-lhe repetição. Nestes casos o pensamento retorna, mas diversamente orientado, enriquecido de novas considerações, associado a novas idéias, visto sob perspectivas mas amplas. Muitas vezes a repetição é apenas aparente e a vol­ta ao mesmo conceito se deve ao fato de que todos os fenômenos obedecem ao mesmo princípio. Especialmente nestes últimos capítulos o pensamento gravita em torno do mesmo centro (a Lei e seus equilíbrios) e os problemas, inclusive os sociais e morais, são indistintamente propostos e resolvidos como cálculo de forças. Além disso, a repetição muitas ve­zes é útil, porque um prego não se prega com uma martelada só. Nem sempre é fácil fazer um conceito penetrar no cérebro humano duro como pau.

Enorme abismo separa as referidas raças. Os dois tipos se distinguem por dois modos diferentes de conceber a vida por dois diferentes métodos de luta, por diferente método de comportamento. Tudo isso no-los revela claramente. Ca­da qual escolhe o que mais se adapte a sua natureza e basta essa escolha para mostrar quem ele é. O involuído prefere a força, o evoluído a justiça, duas armas diferentes adapta­das exatamente às mãos que devem empunhá-las. Mas o primeiro ignora os complexos jogos do dinamismo da vida, é desarmônico em face da Lei, por isso fica isolado, não po­de apoiar-se senão na própria força. O segundo tem consci­ência dos inúmeros recursos e da energia que escapam à percepção do primeiro; seu potencial nervoso é mais eleva­do e, por isso, mais poderoso e penetrante, mais apto a ven­cer as resistências; dessa superioridade nem faz idéia quem se acredita composto apenas de corpo e não, também e prin­cipalmente, de espírito. Mas, ao lado dessas suas capacida­des intrínsecas, existe o fato de que o evoluído se harmoni­za com a Lei, não está, pois, sozinho, sem outro apoio que o de suas pobres forças, mas tem, atrás de si, a Lei a sus­tentá-lo; não sendo rebelde, que nada contra a corrente da vida, mas abandonando-se-lhe inteiramente, tem à sua dis­posição as forças da vida, que o ajudam e o impulsionam. Temos, assim, de um lado a astúcia, oblíqua, complicada, torva, enovelada e, por isso, de movimentos embaraçados; do outro lado, a inocência retilínea, simples, cristalina e, por­tanto, ágil e rápida. A astúcia e a inocência digladiam-se. De acordo com a lógica dos homens, o evoluído deveria per­der. Não obstante, muitas vezes vence; na realidade dos fatos, verificamos que vence. Vemos que, na prática, a forca e a astúcia, métodos do involuído, não oferecem garantia se­gura de vitória. Procuramos, neste livro, compreender-lhe a razão. Há nas armas do evoluído algo que não admitimos, pois, exatamente por ser muito sutil, nos escapa à primeira vista; e precisamente esse imponderável as torna mais po­derosas; existe nelas previsão, logicidade, organicidade e sa­bedoria íntima que não incidem nos erros grosseiros da for­ça bruta, e também equilíbrio espontâneo que não se perde nos artifícios nem se enreda nas malhas da astúcia. Na es­pada imaterial do arcanjo lampeja, todavia, desconhecido poder que lhe permite vencer a revolta bestial de Lúcifer. Em presença do homem do dever, do homem evangélico da paciência e do perdão, o homem da força ri-se sem dúvida e considera-o débil e maluco. Mas, envaidecido de sua força, iludido com sua astúcia, não compreende a estratégia do ou­tro, estratégia muito mais completa e profunda. A força do evoluído reside na compreensão. A ameaça que pesa sobre o involuído consiste na sua incompreensão

No capitulo "Tempestade", descrevendo a dolorosa fuga de um homem, dissemos que na hora do abandono, quando a riqueza e o poder falharam, o homem não estava sozinho, como pensava, mas a seu lado estavam seu passado e suas obras, pois nossas obras nos acompanham. Estas, uma vez acabadas, representam impulso fatal que testemunha, fala e age por nós. Somos nós mesmos que, depois de havermos estado na posição de causa, reaparecemos agora na de efeito. Suas fases de desenvolvimento no tempo entrosam-se perfei­tamente, pois representam o desenvolvimento de uma força e de um movimento. Dentro da fatalidade dessa lei é-nos concedida a liberdade de escolher, retificar e até mesmo de corrigir a trajetória. Mas, uma vez estabilizada, arrasta-nos. O involuído não o compreendeu ainda e acredita-se senhor de ilimitado arbítrio e da capacidade de, a seu talante, fazer e desfazer os acontecimentos de sua vida. Míope, vive apenas do efêmero presente. A estratégia do evoluído adere mais à realidade das coisas muito mais profunda, equilibra-se com as forças da vida e, no passado e no futuro, abrange muito mais vastos períodos de tempo. Dessa estratégia mais am­pla participa a consciência pura, fator sem dúvida estranho à luta (se a tomarmos na acepção vulgar), luta em que a honestidade não serve de ajuda, mas de estorvo. O mundo de hoje confunde arbítrio com liberdade e, quando clama pela liberdade, intimamente deseja o arbítrio, o abuso a licença; nem compreende como, exista ou não autorida­de humana, estamos, isso sim, permanentemente enqua­drados nas invisíveis leis da vida; nem como a autoridade, o poder e a hierarquia dessas leis jamais diminuem. O mun­do de hoje, infelizmente involuído ainda, não compreende como essa desordenada agitação chamada liberdade não atinja o objetivo previsto por quem a ela se entrega, isto é. libertar-se de encargos e sanções; não compreende como, através dessas sanções, a Lei cada vez mais fortemente o re­pele, fazendo-o mais tarde sofrer tanto mais amargamente quão mais loucamente tentou rebelar-se. A história é essa. Quem compreendeu as leis da vida, sabe que a retidão cons­titui elemento fundamental do sucesso verdadeiro e dura­douro e que a desordem e o arbítrio podem conquistar-nos apenas escravidão e dor porque, dada a estrutura de nosso universo, só esta liberdade se torna possível: a liberdade segundo a lei. A liberdade em desacordo com a lei é im­possível.

Observemo-lhe o mecanismo. As forças, que no passa­do foram postas em movimento por nossas ações, uma vez em jogo representam vontade, autônoma, impulso que por inércia tende, automaticamente, a continuar movendo-se e a levar-nos para a frente, segundo a direção inicial. Se, a princípio, movimentamos nossas obras, agora elas é que nos movimentam, arrastam-nos para onde ontem queríamos e não para onde queremos hoje. O passado não morre, mas revive sempre no presente. As nossas obras nos acompanham por toda parte. Em face dessa estrutura orgânica da vida (relação de causa e efeito a longo prazo), por força da qual o presente se preparou no passado e o futuro se prepara no presente, a filosofia do "carpe diem" é manifestação de inconsciência. A liberdade, que imaginamos sempre virgem e completa, é assim apenas na fase inicial de nossas ações. Não pode ela permanecer indefinidamente no terreno neutro da es­colha, mas fixa-se, condensa-se no determinismo represen­tativo do encadeamento, por continuação, ao impulso que, uma vez dado, constitui um impulso em nosso destino; esse impulso liga a liberdade às conseqüências do impulso cuja continuação já se torna impossível impedir, salvo novo im­pulso corretivo contrário. Assim, as obras que fizemos es­pontaneamente tornam-se vivas e, como se fossem animadas de vontade própria, são ativas e, na qualidade de criaturas nossas, agem por nós. Nossa personalidade é fenômeno con­tínuo, em que os momentos sucessivos de seu futuro se li­gam estreitamente e cujas forças, por nós suscitadas, se de­terminam e se põem em ação e, em seguida, não podem ser anuladas enquanto não se desenvolverem e esgotarem completamente. Essas forças formam nossa força, tanto em qua­lidade como em quantidade; desse modo, o passado e o pre­sente participam de nós. Representam essas forças a defi­nição de nós mesmos, a coisa consumada difícil de mudar e vivem em nosso destino sob a forma de fato, fato de modo algum absoluto, mas, ao contrário, sempre susceptível de re­toques e modificações, no incessante movimento da vida. Mas, vamos vivendo; e o novo fato que cada dia nos aconte­ce, se não o vinculamos já, é livre e, vivendo, ligamo-lo por meio de nossas ações. Assim vivemos, vinculando nossa li­berdade a isto ou àquilo, enquanto o impulso não se esgota e a trajetória não desaparece. Mas, desenovelando-se, o fio da vida sempre traz consigo nova liberdade virgem, que su­cessivamente andamos vinculando e cristalizando no deter­minismo, enquanto não a abandonamos no passado assim cristalizada, depois de haver completado o ciclo experimen­tal. A liberdade é interior, está no íntimo da personalidade, no reino das motivações e daí a atividade se dirige para a periferia e se expande no mundo exterior da manifestação, que constitui o reino do determinismo. Assim, vincular-se ao determinismo, ou extinguir-se nele, corresponde as carac­terísticas dos dois mundos, interior e exterior, que as forças motoras dos nossos atos percorrem, nascendo no primeiro, bem no íntimo da personalidade, e exaurindo-se no segundo, na periferia, no mundo exterior.

Do mesmo modo que, com a constante germinação de novas ações, nos aguarda liberdade intacta e permanente­mente nova, assim na fase de sua maturação um fardo de fatalidade sempre nos acompanha. Envolve-nos como a atmosfera, formando uma espécie de casca dinâmica que nos apri­siona a personalidade. É a nêmese da vida. Pode aniquilar-nos ou exaltar-nos, exatamente como ontem queríamos que acontecesse hoje. Assim como os filhos refletem as qualida­des dos pais, essas criaturas testemunham o passado, que­rem viver, mostrar-se e agir tais quais são; e não podemos destruí-las nem fazê-las calar. Gritam e querem como as queremos. Podem afirmar: este é inocente ou, então: este é culpado. Podem bendizer e maldizer, premiar ou exigir pu­nição. Se foram acionadas pelo bem, tenderão a salvar-nos; se foram acionadas pelo mal, não se deterão enquanto não houverem conseguido nossa desgraça. Isso acontece porque representam causa que exige o correspondente efeito, im­pulso desejoso de esgotar-se na direção em que o lançaram. Seja qual for a sua natureza, boa ou má, tenderão sempre a seguir seu caminho até o fim e sossegarão apenas quando houverem consumido todo o impulso recebido. Na realida­de, o bem e o mal existem personificados nessas forças. As do mal nos perseguirão como Fúrias enfurecidas, gritando aos quatro ventos as nossas culpas e pedindo vingança se atirarão contra nós, mordendo e dilacerando. A tragédia humana está repleta de exemplos disso. Como poderemos defender-nos de inimigo que está dentro de nós mesmos? Impossível fugir-lhe, impossível fazê-lo calar-se. Não há barrei­ra de força ou de astúcia capaz de detê-lo. Eis que o armadís­simo involuído agora está desarmado, o lutador não sabe mais lutar, o forte está intimamente minado e gasto; eis que, atra­vés das vias sutis do imponderável, o involuído é vencido pelo fato. Amedrontado pelo impalpável inimigo que ele não conse­gue entender, sofre e, examinando-se, procura entender. Essas forças são inexoráveis, são o destino, representam a lei de Deus, a inviolável justiça que tentamos violar e fatalmente põe as coisas de novo em seu lugar. Os recursos humanos clamam contra esses poderes silenciosos do fato, que aniquilam toda defesa, transpõem qualquer porta, seja do rico, seja do pobre, ou do poderoso ou do humilde. Apenas uma coisa detêm esses poderes, uma coisa inofensiva como o dedo de uma criança, leve como a asa de um anjo, imponderável e suave como uma prece: a inocência. Ser inocente! Essa coi­sa tão pequena se ergue diante do esmagador poder da força e o detém, porque isto é o que a Lei quer: que o honesto en­contre defesa e a justiça triunfe.

Se, ao contrário, em nosso passado não pomos o mal, mas o bem, as criaturas por nós geradas serão de natureza total­mente diversa. Com o passar do tempo, elas também crescerão, tornar-se-ão maduras para produzirem seu efeito no mundo exterior das manifestações causais e, em lugar de cercar nossa vida de inimigos que vomitam dor sobre nós, estarão a nosso lado, cariciando-nos, protegendo-nos, enco­rajando-nos, como bons amigos nossos. O involuído ignora que o presente não se improvisa nem se constrói à custa apenas do presente, mas se compõe em grande parte do pas­sado, e que a vida, no seio de organismo complexo e perfeito como o universo, não é louca aventura, mas desenvolvimen­to lógico e orgânico. Nada se tira do nada, mas todas as coisas vão e voltam nas ondas do tempo, se ligam aos gran­des ritmos da Lei, se entrosam em suas causas de que, aliás, não podemos prescindir; e não podem progredir senão por graus e por fases: germe, desenvolvimento, manifestação, exaustão. No universo tudo se entrosa e isso por força da lei de causalidade, que a tudo liga no decorrer do tempo. Nada vem à luz do sol senão através de filiação, isto é, atra­vés dessa derivação causal, por força da qual tudo revive sempre, indestrutível nas conseqüências em que necessaria­mente se continua. Como no filho se desenvolve o pai, na árvore a semente e na ação o motivo, assim também, por en­trosamento individual, toda causa continua no seu efeito. Em seu movimento evolutivo através do tempo, todo fenôme­no oscila entre estes dois extremos de um dualismo que não se isola numa forma impenetrável (princípio-fim), mas se articula continuamente, no termo final, com novo termo inicial e assim se prolonga até o infinito.

Portanto, se por lei de causalidade tudo é filho do pas­sado, a vida nos mostra então como jogo amplo e com­plexo de prolongada preparação, a vitória é determinada por dinamismos acumulados que afloram de um depósito interior, repleto ou vazio, rico de provisões boas ou más, úteis ou venenosas, o misterioso depósito da alma que passa des­percebido ao involuído. As posições terrenas são aparentes e enganam. Assim, o pigmeu pode, quanto à substância, ser um gigante e o gigante ser um pigmeu. Eis a força in­visível de tantos inermes, a grandeza recôndita de tantos humildes. A posição humana exterior é fictícia. A casa in­terior pode ser habitada por amigos ou inimigos, pelo bem ou pelo mal, por anjos ou demônios. Eis a arma moral do evoluído: as boas obras, o cumprimento do dever. Isso o isen­tará das sanções e o inocentará das culpas. Nosso passado já está feito. Ele traçou a trajetória de nossa vida. Do mes­mo modo que longa evolução biológica construiu nosso atual tipo biológico que, tal como é, resiste a toda deformação rá­pida e a toda mudança, assim também, depois de longa caminhada, se formou e definiu nossa constituição moral, re­servatório de instintos alojados no subconsciente e radica­dos em passado remoto. A forma não é definitiva, mas de­finida, pois o transformismo continua e processa-se e nada pode jamais considerar-se imutável. Permanece sempre aber­ta a porta da expiação e da correção, porque a liberdade, embora presa às conseqüências do passado, se mantém in­violada e inviolável, sempre capaz de dar novos impulsos ao destino e, através de novos esforços, corrigir-lhes, a seu bel-prazer, a trajetória. O futuro é sempre livre, se lhe tira­mos o peso do passado que nos inibe.

A característica principal desse mecanismo de forças con­siste na possibilidade de isolarmos nosso destino do destino alheio. Ao lado de cada um de nós falam e agem nossas próprias obras e não as obras alheias. Cada qual pode se­mear no seu terreno o que quiser; e ninguém pode semear por nós. A semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória. Portanto, livres, mas responsáveis. Absoluta independência quanto a semear o bem ou o mal; absoluta obrigatoriedade de colher o fruto da semente que se lançou ao solo. Por isso, o sábio procura, em causas profundas e remotas, as raízes de sua situação atual e prepara, com grande antecedência, o seu futuro. Não tem importância que os outros ignorem essas leis. Quem erra paga na mesma moeda e pagando aprende. Mas a maravilhosa justiça da lei divina consiste em cada um de nós permanecer livre e, seja qual for o am­biente em que viva, poder, à sua vontade, perder-se ou sal­var-se. A beleza de tudo isso consiste no fato de que essa liberdade permanece sempre garantida e o indivíduo inde­pendente, senhor absoluto, sempre, do próprio destino, senhor de, em qualquer tempo e lugar, construi-lo a seu modo. Assim, num mundo em que o ignorante involuído através de seus sistemas, impera e triunfa, ninguém pode impedir ao evoluído, que não é ignorante, de escolher seu caminho, se­gui-lo, e colher frutos copiosos. Conforme a ação praticada, assim a Lei dá a cada um a resposta adequada e funciona ao mesmo tempo, mas de modo diferente, em planos e for­mas diversos. Desse modo, a liberdade fundamental do in­divíduo é a tal ponto respeitada, sem lesar o princípio de responsabilidade, que ele pode sempre separar seu destino do destino alheio, pode conservar completa autonomia de tra­jetória em meio do mais complexo entrelaçamento de for­ças, pode atingir os objetivos que quiser, goza da liberdade de perder-se em meio à salvação geral ou de salvar-se em meio da perdição universal. O resultado é garantido, quer o do bem, quer o do mal. O justo pode, portanto, avançar com seu binário, mesmo se for colocado num mundo de de­mônios. Perante Deus o que vale é o seu passado, suas obras, seu merecimento. A Lei responde no mesmo tom em que a chamarmos e é rica ao ponto de possuir qualquer tom. Ao justo se torna, assim, possível apelar não mais para a força ou a astúcia, sistemas de luta por ele superados, mas para a justiça divina e dela receber a resposta adequada, isolada em meio a vasto oceano de respostas diferentes; é-lhe possível receber tratamento de bondade e de salvação em meio de cataclisma universal. Assim, o evoluído pode caminhar de acordo com destino todo seu, independente do de seus seme­lhantes, independente até mesmo da sua própria humanida­de. Enquanto os demais, considerados os seus métodos de luta, se destroem mutuamente, arrastados pelo turbilhão da força, pelo ódio recíproco ligados à própria destruição, o evo­luído, isento das culpas do mundo, poderá seguir um desti­no todo seu, de alegria e de paz. As forças do imponderável terão formado em torno dele uma camada protetora, uma defesa salvadora, que o tornará invulnerável, porque ino­cente, em meio dos mais graves perigos que arrastam os outros.

Deixemos aos juristas o estudo das vias da justiça hu­mana. Preferimos aqui nos ocupar do estudo da justiça divina, onde reside a gênese das adversidades que nos gol­peiam. Que importa o instrumento que no-las inflige, se ele mesmo muitas vezes lhes ignora as causas? O importante é possuir a chave do mistério e resolver o problema de saber evitar o dano. O sistema da justiça divina é sumamente respeitador da liberdade individual, menos quanto a ser in­flexível no campo das responsabilidades. Mas a liberdade inicial é inviolável. De acordo com a Lei, a base do fenôme­no social é o individualismo, o fenômeno coletivo represen­ta, pelo contrário, um agregado, um organismo de indivi­dualismos que, embora se combinem tendo em vista destino global mais vasto, permanecem separados e inconfundíveis. A necessidade de o indivíduo assumir determinada atitude em relação à sociedade não lhe tolhe, de fato, a autonomia mais completa. Por essa razão cada um de nós pode reve­lar-se e afirmar-se de acordo com a sua própria natureza. O rebanho tem plena liberdade de andar cegamente à deriva, à mercê dos seus elementares impulsos animais; o sá­bio, pode, se quiser, estabelecer-se no deserto e aí realizar sua vida independente Trata-se de independência interior e nela as construções humanas exteriores exercem influên­cia relativa. Desse modo, entre indivíduo e massa podem abrir-se hiatos abissais que não se preenchem; e a evolução pode impelir o solitário hiper-evoluído e vidente para fora da órbita dos destinos normais ao ponto de fazê-lo transpor as fronteiras da raça humana e entrar no domínio de hu­manidades evolutivamente superiores à nossa. Esse tipo de ascensão é biologicamente possível. Que faz agora esse indivíduo? Já perfez o ciclo das provas terrestres que os demais estão apenas iniciando, já conquistou a sabedoria pela qual os outros ainda vivem, lutam, sofrem. A terra naturalmen­te não é mais o seu reino. Acabado o seu trabalho de ex­piação ou missão e cumpridos todos os seus deveres para com os seus irmãos menores, nada mais lhe resta senão par­tir. A terra não o interessa mais; aos outros, porém, inte­ressa. Na terra ele se sente estrangeiro, e o é mesmo, e como tal é tratado. A vida humana, para ele agora inaceitável, expulsa-o de seu seio.

Já noutros trabalhos insistimos e jamais cansaremos de insistir nos deveres do irmão mais velho para com os irmãos mais novos; a toda superioridade são inerentes pesadas obri­gações, fadigas que não assoberbam os inferiores, deveres que se cifram em obras, renúncia e exemplo. Tarefas pesadas pesam na vida do evoluído; ele o sabe e afronta o sacrifício. E, por força da lei de fraternidade, o involuído é admitido a usufruí-lo gratuitamente, é admitido a desfrutar de graça o sacrifício do mártir, que ele próprio muitas vezes é o pri­meiro a agredir e a sacrificar. Isso não deixa de ser justo. Essa lei de fraternidade participa da estrutura do universo, como conseqüência de sua organicidade e hierarquia e da unidade do todo. É, pois, fundamental e inextinguível. Mas a própria lei de justiça limita essa doação fraterna que ameaça transformar-se na destruição das mais importantes conquistas da vida, representadas pelo tipo biológico do evo­luído A natureza protege os seus valores e estes, mais do que todos, devem ser protegidos por serem os mais custosos e preciosos. As vias do evoluído são diferentes das vias da maioria, a trajetória de seu destino projeta-se francamente para fora da órbita das experiências terrestres normais, as distâncias se acentuam, as formas mentais não se compre­endem mais. O evoluído torna-se um bólido que, lançado no espaço, emigra do plano humano. O evoluído iniciou espon­taneamente essa ascensão, que agora o envolve e arrasta. A estrutura desse jogo de forças leva-o agora ao ponto críti­co que consiste nessa célula já madura destacar-se da massa imatura da humanidade. Considerados a constituição e o funcionamento desse dinamismo, em dado momen­to ninguém pode impedir a inexorável, a fatal separação dos destinos e dos trabalhos. Então, tendo cumprido a tarefa, o evoluído vira as costas para o mundo e vai embora, aban­donando-o às suas próprias forças, para que ele, à custa do próprio esforço, como é justo, e não do alheio, continue o caminho da própria evolução. O individualismo, que cons­titui o substrato da organização social e a dirige, recobra a supremacia. A justiça divina exige e impõe a reafirmação dos direitos do solitário incompreendido e espezinhado. En­tão, o material biológico elaborado e complexo se destaca do material primitivo e rústico. Tendo-se tornado diferen­te, nos instintos e na raça, deseja ardentemente reencon­trar indivíduos de seu tipo, inencontráveis na terra, suspira por mais elevadas e adequadas formas de vida. Deixa de la­do todas as questões do mundo; não o interessam mais. Não se incomoda mais com os problemas das pessoas que o habitam não lhe dizem mais respeito. Os problemas mais torturantes, pelos quais a humanidade tanto sofre e luta, os sistemas sociais, econômicos, políticos, não mais lhe atin­gem o frágil invólucro corpóreo prestes a ser por ele aban­donado. Então, se ainda quisermos seguir o indivíduo selecionado nessas ascensões biológicas, absolutamente excep­cionais, extra-série e extra-massa, deveremos virar as cos­tas para o mundo e aventurar-nos em terreno que o leitor comum achará irreal e desinteressante, em terreno que pe­netra no imponderável e no inconcebível. Chega-se desse modo, fora da órbita humana, a uma atmosfera rarefeita, de natureza diferente, em que se tornam atuais as atitudes re­motas. Tudo quanto nos preocupou até agora permanece lá embaixo, nos pântanos da terra. A força de lutar, sofrer e ascender, o evoluído penetrou em nova forma de vida, que aos olhos dos demais surge como remoto e inatingível sonho. Para que pudéssemos continuar, depois de esgotado o exame dos problemas terrestres, precisaríamos de levar o leitor muito além do que lhe é possível conceber em relação aos problemas do céu.

O evoluído está sozinho. Gênio, herói ou santo, o su­per-homem, por mais humilde e humilhado que seja, tem consciência de sua verdadeira natureza de indivíduo maduro e do natural desequilíbrio que o leva a destacar-se da terra. Os inferiores ignaros gostariam de rebaixar-lhe o nível até eles, por força dos mal compreendidos princípios de igualdade. Poder-se-á humilhá-lo; mas fazê-lo retroceder, jamais. As classificações e os enquadramentos humanos não criam valores intrínsecos e, por isso, não podem mudá-los. Nem a vida nem a ascensão podem ser detidas. Poder-se-á rechaçá-lo e, até mesmo, matá-lo; porém, não se poderá destruí-lo. Nenhuma força pode mudar-lhe a natureza nem impedi-lo de continuar sendo o melhor. Em determinado ponto as amarras do mundo, dolorosas amarras, se rompem. Ele não tem mais o que dizer, dar ou fazer. O céu espera-o. Há muito tempo ele, embora devesse servir e sofrer preso ao mundo, pelo peso específico se distinguia da massa, incapaz de compactuar com a maioria e de integrar-se no rebanho. Finalmente, tudo chega ao fim, toda obrigação se esgota, o sacrifício se consuma: consumatum est. Com essa apoteose no terreno do super-humano fecharemos este livro.

Ao lado de seu modo especial de conceber a vida, exatamente a dor constitui uma das notas características do evo­luído. Por que razão o super-homem é condenado a sofrer mais do que o homem comum? Exatamente por motivos ine­rentes à sua posição. Se as verificações precedentes tendem a reafirmar os direitos do individualismo em face da moder­na tendência coletivista que tenta reabsorvê-lo, devemos re­conhecer o esforço e a fadiga que isso representa. Os cole­tivismos oferecem à preguiça do homem normal a comodi­dade de confundir-se e esconder-se nas massas, de deixar-se guiar e arrastar pelos líderes, de encontrar proteção no nú­mero; tudo isso constitui o instinto supremo e a defesa da nulidade. Nada nos causa mais piedade do que ver essas almas pensando em série, vivendo de imitação, essas cons­ciências nutrindo-se de produtos já confeccionados e anu­lando-se no número. Kant dizia: "É apenas máscara de homem pensando com o sistema alheio". A sociedade cons­titui-se em grande parte de máscaras, isto é, de rostos fictí­cios; por detrás deles não existe personalidade alguma. Os coletivismos protegem e encorajam essa nulidade. Podem tornar-se, até mesmo, via de acesso para a irresponsabilida­de. E o indivíduo gostosamente abandona parte da liberda­de, com o fito de eximir-se à correspondente porção de res­ponsabilidade. Chega-se, desse modo, à exploração do pro­gresso, ao parasitismo individual do coletivismo, em que o indivíduo inepto de bom grado se enquadra a fim de abandonar-se à indolência. No entanto, de quanta liberdade goza o indivíduo individualista! Por outro lado, quantas inicia­tivas e responsabilidade não lhe pesam nos ombros! Essa posição oposta constitui o antídoto apto a aniquilar os pa­rasitas de todo sistema, sempre prontos a tirar proveito dele, escondendo-se em seus ângulos mortos. O individualismo, pelo contrário, ressalta, expõe às vistas porque isola e, iso­lando, define os responsáveis, quer dizer, os conscientes. O enquadramento orgânico das massas se, de um lado, conse­gue educá-las, oferece também o perigo de transformá-las em rebanhos de indivíduos mantidos pelo Estado, de escra­vos que obedecem para poderem viver como vagabundos; oferecem, outrossim, o perigo de suprimir ou abrandar a lu­ta mestra da vida. No momento, o super-homem é o indivíduo menos enquadrado e mais isolado que possa existir e, por isso, o mais exposto, embora seja o mais livre e o mais consciente. Sua vida é tipicamente antiparasítária, completamente descoberta, bem afastada de agrupamentos prote­tores, de concessões cômodas e de cambalachos. É a vida mais nobre e gloriosa, mais seletiva e criadora, mas também a que mais fatiga. Sua vida significa alta tensão levada ao espasmo, bem-estar material sacrificado à idéia; significa aborrecimento, luta, paixão, intensíssimo trabalho de construção biológica. Não lhe é lícito abastardar-se no rebanho. Tudo isso, se enriquece a vida, também a torna difícil e do­lorosa. O evoluído não pode furtar-se ao trabalho, vivendo de imitação, nem resolver os problemas sem esforço, sem pen­samento, sem risco e sem iniciativa, à custa de atos coletivos em série, abandonando-se à direção alheia, deixando-se ir à deriva. Não faz parte do número e o número protege.

Consideremos agora outro fato. Seu utilitarismo é a lon­go prazo; o do involuído, pelo contrário, quer compensações próximas, imediatas. Por exemplo, observemo-lo em função de problema já tratado alhures, o problema da autoridade. O evoluído, orientando sua atividade segundo o plano orgâ­nico do universo, concebe a autoridade como dever e como missão. O involuído, inorgânico, rebelde e egoísta, concebe-a­ tão-somente como prêmio concedido ao mais forte, a e vencedor na luta pela vida. Parece-lhe natural o desfruta­mento de toda posição de comando, como também natural lhe parece o esmagamento do vencido. Na luta pela vida no plano do involuído, a autoridade constitui atributo do ven­cedor, como a submissão é atributo do vencido. Ainda des­conhece o conceito de justiça. O dependente é inferior, escravo, que deve ser calcado aos pés e explorado, e não pode ser considerado como indivíduo irmanado no mesmo organismo e que deve, por isso, receber educação e auxilio Assim é que, através de compensação de equilíbrios, a autoridade raramente se apóia no amor de pai, mas se regula pelo temor; e o dependente, por isso, tem-na como inimiga natural. De fato, autoridade e subordinado, governo e súdito, são duas forças contrárias e complementares que reciprocamente se influenciam, se educam, se plasmam. Sem direitos, como o consideram, ao vencido não lhe resta senão sofrer e esperar a ocasião propícia para rebelar-se, rechaçar a auto­ridade, por-se em seu lugar, não para cumprir-lhe as obrigações, mas apenas desfrutar-lhe as vantagens. E assim por diante, cada um por sua vez. O evoluído não pensa desse modo. A sua psicologia, esses métodos e o desfrutamento dessas posições repugnam extremamente. Seu utilitarismo é bem mais amplo e consciente e paira sobre esses resulta­dos efêmeros, imorais, mas imediatos. Para ele, todo encar­go social não constitui afirmação e ampliação do eu, mas uma função, serviço. Manzoni demonstrou havê-lo entendido muito bem, quando escreveu: "Não é justa a autoridade de um homem sobre os demais, senão quando se exercita no interesse deles". Quando o evoluído respeita a autoridade, sem considerar-lhe o mérito, é porque a abrange em sua concepção de autoridade, embora ela não corresponda à rea­lidade dos fatos e isso signifique, da parte dele, apreciação moral superior a que essa autoridade merece. O evoluído não julga, respeita; não discute, obedece. Em face de auto­ridade exercida com espírito involuído, o máximo que o evo­luído faz é manter-se em respeitoso absenteísmo, pois a isso o constrangem. Ao contrário, o involuído subestima a autoridade, discute-a, julga-a, tenta condená-la e, ao primeiro si­nal de fraqueza, agride-a a fim de apossar-se de suas vantagens. Estamos bem longe ainda do plano superior de estima e fé, de compreensão e justiça, do plano em que os dois ter­mos (autoridade e súdito) não se encontram na posição de rivais, mas na de colaboradores. Essa atitude de obediência e respeito (aí onde seria necessário, isso sim, defender-se por causa da existência palpável de agressão e defesa) constitui no plano social um dos gravames da vida do evoluído. O po­der humano possui recursos; o evoluído não. Todos aspiram ao comando; o evoluído obedece. Os outros se julgam cheios de direitos; o evoluído só tem obrigações. Os demais homens trabalham em grandes grupos, compensando-se com riquezas e honrarias o evoluído trabalha em silêncio ignorado e po­bre. Num mundo assim o evoluído não pode ser senão mártir.

Na sua vida, porém, há bem mais profunda e substancial causa de sofrimento que não esses desacordos de relações e essas incompreensões. E também essa causa é inerente à sua posição. Pelo menos neste mundo a dor constitui, sem dúvi­da, a nota fundamental da gênese No pomar da vida os fru­tos mais nutrientes ficam ao lado da sombra, mas entenda­mos: sombra segundo a matéria, luz segundo o espírito. A alegria não alimenta; a dor, sim. Só ela corta, escava, plas­ma e torna maduro, transforma e renova. Em resumo: reve­la e cria. A alegria dura muito pouco, nos rouba as energias e nos deixa completamente vazios e adormentados. A alegria é dissipadora; a dor leva-nos de novo às fontes vitais, nos concentra e refaz as energias, eleva-nos o poder espiritual. A dor pode piorar os maus, mas sem dúvida melhora os bons. Nalgumas vidas, a dor é incidental, episódica, fenômeno. Tra­ta-se de primitivos. Noutras, a dor apresenta-se como plano fundamental que lhes dá sentido e valor, é estável, é fenôme­no em profundidade. Trata-se, agora, de indivíduos maduros. A alegria constituí a experimentação dos inexperientes na vida, e primeira experimentação elementar e juvenil. É ingê­nua, cheia de simplicidade, espontânea. Quando, porem, a taça da alegria está cheia até as bordas, agora a lei de evolução nos proporciona experimentação bem mais profunda a fim de fazer-nos descobrir verdades mais recônditas e remo­tas, que ainda não podem ser reveladas aos primitivos. Quan­do o destino do evoluído se destaca da terra e dos destinos dos demais homens, então a dor aparece, como experiência dos maduros, senil, complexa e profunda, dos fortes e dos jus­tos, como verdadeiro campo de ação do evoluído. A alegria é atmosfera natural dos que há pouco começaram a viver, dos recém-chegados de graus inferiores de evolução. A dor é, por sua vez, o ambiente normal dos velhos que exauriram toda as experiências desta terra e, por isso, partem para mundos melhores. Os primeiros são inexpertos; os outros, sábios. Estes aprendem a lição, terminam o aprendizado. As posi­ções inverteram-se; para aquele significa sujeição; para estes, desinteresse. Quem parte e quem chega, quem deve viver nesta fase e quem já viveu nela, o involuído e o evoluído, dois estilos de vida. Cada qual tem sua tarefa a cumprir.

Estamos agora em condições de compreender que a di­ferença de raça entre involuído e evoluído não passa, em úl­tima análise, de diferença de idade. E também se nos torna fácil compreender a razão de o involuído preferir o método de luta e o evoluído inclinar-se para o da justiça. O método da força revela o primitivo, que se a ele recorre é porque é exuberante e inexperto ou, melhor, rico de energia e pobre de sabedoria. O evoluído, por sua vez, já chegou ao fim da estrada, que o primitivo mal começa. a percorrer. Já está cansado, gasto; esgotou-se-lhe a carga dinâmica, agora trans­formada em experiência. Pobre de energia, rico de sabedo­ria. Permanece conscientemente sintonizado com os princí­pios da Lei. Noutros termos: no físico-dínamo-psiquismo, isto é, na evolução trifásica do universo, o involuído representa a fase dinâmica e o evoluído a fase psíquica ou espi­ritual. A vida da humanidade percorre o trajeto necessário a passagem de uma posição a outra, quer dizer, à transfor­mação da força em consciência. O evoluído já transpôs a passagem; o involuído ainda não, pois não sabe pensar senão agindo, não concebe a idéia senão como fato, isto é, formalmente concreta. Trata-se de elaborar matéria, matéria prima rude, fornecida pelo impulso ou, seja, pela carga dinâmica necessária para levar a efeito a experimentação, em que essas forças paulatinamente se esgotam. O evoluído, por sua vez, apresenta-se com material já elaborado; quanto a ele, esse impulso já atingiu o objetivo desejado, superando a sua fase de transformismo. Nada se perde, nada se des­trói. Os jovens valem tanto como os velhos e os velhos tanto como os jovens. Acontece apenas que as posições são dife­rentes e os valores de qualidade diversa. A quantidade transformou-se em qualidade: a obtusa e rude exuberância, em sabedoria consciente e refinada. Se o dinamismo biológico se degrada e esgota, vai mais tarde ressurgir, sob forma di­versa, como poder espiritual. Apesar da equivalência subs­tancial, os dois extremos são diferentes e não conseguem harmonizar-se. Cada um dos dois condena aquilo que não possui, exalta aquilo que possui, dá valor a tudo de que ne­cessita e despreza tudo quanto não lhe serve. O sábio per­correu o ciclo, pois exatamente para isso é que a forca exis­te, serve e lhe foi dada. O sábio elaborou dentro de si um sucedâneo que, para quem como ele está desse modo trans­formado, a substitui com vantagem. Para o primitivo, forte mas ignorante, se reservam os duros golpes conseqüentes aos erros praticados durante a experimentação, golpes a que o sábio nenhum medo tem mais porque já aprendeu a evitar a prática desses erros. Que imenso dispêndio de ener­gia para assimilar apenas algumas idéias! Isso nos mostra a importância e o poder da idéia. Não tivemos, para con­quistá-la, de empregar e consumir tanto dinamismo, de que a idéia é o equivalente. Isso nos demonstra a necessi­dade da compreensão sobre que tanto insistimos. No plano do universo, portanto, a força reduz-se a instrumento de ex­perimentações, a reserva de energias de cujo consumo de­pende a compreensão, isto é, a construção da consciência. De um lado, a força dos jovens; doutro, a experiência dos velhos. No organismo universal cada coisa tem função bem determinada e está no lugar exato. Os jovens valem pela posição que ocupam e os velhos também. A vida obriga-os a trabalho alternado e que mutuamente se compense; du­rante o período em que suas qualidades encontram campo para manifestar-se, eles trabalham ativamente de modo a imprimir um cunho especial à História e a impulsionar de algum modo o progresso. Todo ser pode sempre dar algo de útil. E o jovem audaz e batalhador, mas inexperto e in­consciente, vive para tornar-se o velho cansado e pacífico, mas sábio, às vezes por ele desprezado.

Dá-se com a força e a sabedoria o que se dá com a ale­gria e a dor. Estão ligadas estreitamente. A alegria juvenil, que nos vem de sermos fortes, leva-nos, através da ilusão da vitória, à realidade dolorosa de que nasce a sabedoria. Para o involuído espontaneamente desejoso de alegria e senhor natural da terra, que é o seu mundo, a dor terrena é sufo­cação, asfixia, mutilação da vida material que constitui pa­ra ele todo o bem desejável. E para o evoluído, que já se considera um desterrado na terra, essa dor constitui a última experiência amarga num mundo superado, experiên­cia que lhe abre as portas para a expansão da vida em ou­tros mundos mais adiantados, únicos em que doravante lhe é possível viver. Essa dor representa o meio de romper grilhões já por demais pesados e preparar futuro melhor. No céu o evoluído encontra alegria, a que o involuído procura e encontra na terra. A festa da vida está sempre no ama­nhã, nesse futuro melhor que, pelo menos relativamente, está na posição por nós ocupada. O involuído amaldiçoa e teme a dor. O evoluído, porém, ama-a e abençoa. O involuído tem a dor na conta de destrutiva, o evoluído considera-a construtiva. Tudo depende do sujeito. O sábio, que viveu e, portanto, sabe, não incide mais nas ilusões humanas e re­cebe a dor, utilizando-a na função criadora; ri-se dos primi­tivos e de suas alegrias, que não lhes deixam na consciência senão saciedade, cinzas do cansaço e náusea.

Eis aí várias causas da dor do evoluído. Se muitas vezes sua vida é trágica, a dor transforma-o em altar de oferen­das em que se consuma o holocausto supremo. E, enquan­to os primitivos se debatem entre a morte e a dor, o evoluído representa ardente chama de sacrifício a Deus. No incên­dio, ele se consome feliz, pois sabe que, depois desta vida, vida muito mais sublime o espera.

XXV

O DUALISMO FENOMÊNICO UNIVERSAL

No capitulo anterior resolvemos o debatidíssimo e con­trovertido conflito entre determinismo e livre-arbítrio, des­cendo às raízes de problema filosófico e prático de que em A Grande Síntese apenas pudemos tratar por alto. Agora descemos às particularidades, cuidamos dos pormenores, entregamo-nos a exposição completa desse problema, impossível de fazer naquele livro, destinado principalmente, como dissemos, a dar o rumo geral e o quadro orgânico de nossa problemática. O leitor ali poderá encontrar-lhe apenas a ex­posição sistemática. Vamos, mas sempre de acordo com o esquema de A Grande Síntese, deter-nos no exame de alguns pontos mais controvertidos, enriquecendo-os cada vez mais e aproximando-os da realidade da nossa vida. Desenvolve­mo-los e aprofundamo-los, mas também lhes damos aplica­ção prática, pois não objetivamos perder-nos em abstrações filosóficas, e sim tornar a vida mais clara. For essa razão, aos raciocínios complicados preferimos simplesmente a lin­guagem do bom senso e dos fatos; aliás Newman convenceu-nos de, que "a conclusão de um silogismo, sozinha, jamais convenceu alguém; jamais"

Até agora estivemos desenvolvendo argumentos que de preferência se relacionam com a terra e a vida coletiva (ou de relação) no plano biológico dominante ou, seja, no do in­voluído. São, portanto, argumentos referentes a tentativas, a lutas, a incertezas; entremeiam-nos o incessante e penoso trabalho de construir e de promover a demolição que possi­bilite reconstruir e a cansativa tarefa de plasmar mil e uma vezes a matéria a fim de, através de experimentos sucessi­vos, chegar à compreensão. Estamos em pleno reino da for­ça e da ignorância humana, dos violentos desequilíbrios da injustiça,: no reino da traição e da mentira. O evoluído pe­netrou no espírito da Lei, aderiu a ele, repousa na paz de seus equilíbrios e na suave musicalidade de seu ordenamen­to; volta-se para trás horrorizado, suporta-o porque a isso é obrigado, mas deseja ardentemente fugir. Procuremos acompanhar-lhe a fuga para outros mundos, para outras realidades superiores que, embora para os deste mundo se afi­gurem sonhos, tão longe estão de nossa vida, no entanto a iluminam, mostrando-nos a ordem perfeita reinante aqui embaixo também, não porém na superfície, onde, em caótica desordem, tudo nos parece fora do lugar exato. Ao lado da vida exterior, que tantos vivem, existe outra, interior, mas igualmente real e poderosa Se a primeira se mostra mes­quinha, podemos, ajudados pela segunda, torná-la intimamente grande. Embora não possamos mudar as condições de nossa existência, nossa conduta será capaz de enobrecê­-la e, até mesmo, podemos com nossa flama interior tornar luminoso o ato mais simples e comum. O maravilhoso e o sublime podem a cada passo nascer dentro de nós, nas cir­cunstâncias mais humildes. A própria vida de Cristo entreteceu-se exteriormente de pequenos episódios, comuns e va­zios de sentido, se considerados em si mesmos, e determinados pela miséria espiritual de todos quantos o circundavam. E, todavia, sua vida continuou sendo sublime. Nossa vida é exatamente igual ao que somos. O ambiente e as circuns­tâncias influem apenas na vida dos débeis, que não as dominam e, além disso se deixam dominar por elas. Em face da miséria espiritual de tantas coisas mais importan­tes da vida passam despercebidas. Aí onde os indivíduos ma­duros vêem e fremem de entusiasmo, os outros passam des­percebidos de tudo, correndo no encalço de futilidades. Ape­nas quando possuímos grande alma e nos anima grande paixão nos pomos no mesmo nível dos grandes acontecimentos da vida; aí, compreendemo-lhe o valor, respondemos às vo­zes sublimes que vêm das profundezas do universo ilimita­do, onde cada qual vê e aprende conforme a própria acuida­de visual. Assim, as verdades correspondem às vistas, às ca­pacidades, à evolução, variam desde as mais grosseiras e ma­teriais até às mais refinadas e espirituais. Onde um sussur­ra e chora porque percebe a mão de Deus, aí mesmo outro sorri e despreza porque não percebe, não compreende coisa alguma. Todos se abalançam a julgar; quem, no entanto, acredita estar julgando as coisas, acusa e julga a si mesmo. O caos de opiniões é ordenamento, equilíbrio, desordem que se harmoniza de novo num plano mais elevado onde encontra possibilidade de acordo. Há quem ouça e há os surdos também. Todos nós apenas podemos viver em nosso nível, de acordo com o que somos. A alma, a vida interior é que dá ao homem a medida das coisas. O eu assemelha-se a um vaso que não pode conter nada além de sua capacidade. Fiquemos tranqüilos. O sublime não contagia. Os grandes pensamentos, as grandes paixões, as grandes ações permanecem solitários. O mundo está sempre pronto a compreender e aplau­dir o que se encontra no seu nível. O melhor não pode afir­mar-se senão lentamente e à custa de martírio que não che­ga a interessar o mundo. Diz Schuré no Sonho de Minha Vida: "É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que uma idéia nova penetrar no cérebro dos homens". E Máximo Gorki acrescenta: "Quem nasceu para andar de rastros não pode conhecer a alegria do vôo". Pior ainda nos faria pensar em face dos heróicos pregoeiros da verdade, o rifão popular: "Vulgus vult decipi, ergo deci­piatur[14]"

Em geral, o mundo interior fica entregue aos poetas, artistas, místicos, isto e, à classe considerada mais ou menos inútil pelos homens práticos. Desse mundo, no entanto, emanam a força propulsora do progresso e a única luz que nos ilumina e atenua a miséria da vida quotidiana, embora materialmente muito rica. O evoluído foge para esse mun­do mais adiantado e aí se reencontra. Mundo espiritual, aí existe a única liberdade que não se chama abuso e torna possível distender-se a tensão das férreas necessidades da vida material. Nesta o elemento moral é menosprezado e apenas palidamente aparece nos últimos planos; nesse novo mundo, ao contrário, guinda-se aos primeiros planos, como fator fundamental. Trata-se de dois mundos inversos e com­plementares em que nossa existência se divide e se completa, de acordo com a grande lei de dualidade. Até agora os contrapusemos como duas posições antagônicas, que mutua­mente se excluem na conquista do campo da vida. Mais atento exame desses mundos em relação a essa lei nos per­mitirá até mesmo nesse dualismo reencontrar a unidade, considerar os dois termos opostos como se fossem os dois aspectos do mesmo princípio. Veremos tratar-se de existên­cia dúplice, de duas formas de vida, entre as quais o ser oscila em seu caminho evolutivo, de acordo com as possibi­lidades da fase alcançada. O exame confirmará a lei, reve­lando-nos dela aspectos novos.

Devemos reportar-nos ao cap. XXXIX de A Grande Síntese, "Principio de trindade e de dualidade", cujo conhe­cimento presumimos. Ai o leitor encontrará o mesmo pro­blema agora exposto, mas intimamente relacionado com a cosmogonia universal. Ao invés, destas páginas poderão de­rivar algumas aplicações e desenvolvimentos particulares, como, por exemplo, essas duas vidas, exterior e interior, de que estamos falando agora. Na ordem universal todo fenô­meno se apresenta como campo de forças fechado, fato que lhe caracteriza a individualidade e lhe limita a ação. O eu fenômenico está encerrado em seu ritmo interior, equilibrado em duplo e inverso movimento respiratório, em oscilação que constitui a base da íntima elaboração chamada evolução. Essa bipolaridade é universal. Toda unidade se nos apresenta como formada de duas partes iguais em que, contradizendo-se, ela se inverte e se compensa, mas também encontra sua estrutura simétrica e equilibrada. Esse vaivém de forças antitéticas em campo fechado, essa correspondência de antíteses e simetria, de inversão e complementariedade, esse íntimo ritmo dualístico compõem a fi­sionomia que o pensamento e a vontade da Lei imprimiram às individuações fenomênicas, quer dizer, significam estru­tura orgânica e funcional. É o de que vamos tratar profun­damente agora. O princípio de ordem, fundamental na Lei, transforma o universo, desde o fenômeno máximo ao fenô­meno mínimo, em sistema equilibrado, orientado, ritmado e periódico. Faz-nos, por isso, compreender e sentir a Cria­ção como fato fundamentalmente harmônico, rítmico, musical.

Embora tenhamos posto frente a frente as duas vidas, a exterior e a interior, a da matéria e a do espírito, a vida é una e oscila entre estes seus dois extremos inversos e com­plementares. Trata-se de duas formas comunicantes, de bipolaridade da vida. É perfeitamente possível e verifica-se continuamente a passagem do mundo da matéria ao do es­pírito e ao contrário, que se completam através de funções compensadoras, atraindo-se por força da lei de simpatia es­tabelecida entre os contrários. O conceito da musicalidade existente na ordem universal faz-nos pensar que ritmo caracteriza e distingue as duas formas de vida. O mundo ex­terior, o da matéria, da vida física e sensória, poderíamos imaginá-lo caracterizado por ondas longas; o mundo inte­rior, o do espirito, da vida psíquica e intuitiva, caracterizado por ondas curtas. Essas duas ondas existem nos fatos, sem dúvida; mas é lógica a existência de onda típica individual, distintiva da personalidade, reveladora das notas funda­mentais do caráter. Mais tarde esses ritmos pessoais se en­trosam e se fundam em outros ritmos mais amplos: familiares, nacionais, mundiais etc. Neles a observação nos re­vela correspondências e oposições. Nos países meridionais, por exemplo, ricos de calor e luz solar, as forças vitais prefe­rem revelar-se exteriormente através de manifestações sen­sórias. Essa espécie de expansão forma tipo humano fisicamente exuberante, expansivo, de inteligência vivaz e realis­ta. Há, sem dúvida, entre raça e ambiente certa relação de ritmo, que neste caso se poderia chamar ritmo de ondas lon­gas. Nos países nórdicos, onde, pelo contrário, domina o frio e a umidade e a luminosidade é menor, as forças vitais se expandem de preferência intimamente, sob formas refle­xas. Isso determina a preponderância de tipo humano de inteligência dobrada sobre si mesma, introspectiva, menos viva, profunda, nebulosa. Mesmo o desenvolvimento físico é mais lento. Esse diferente ritmo vital poderíamos chama-lo ritmo de ondas curtas. É claro que com o passar do tempo os ritmos entre ambiente e indivíduos acabam por sintoni­zar-se, por viver simbioticamente; a coexistência (diríamos, mesmo, a coabitação) entrosa-os e harmoniza-os; a persona­lidade absorve e incorpora, fazendo-o seu, o tipo de vibração dominante, conserva-o e depois torna a irradiá-lo, como se o tivesse ela mesma produzido. A vida é sensível e tudo re­gistra, assimila, devolve. Assim, as manifestações raciais são típicas e diferentes, de Verdi a Wagner, do catolicismo ao protestantismo, de Dante a Goethe. O ambiente concorre para dar seu tom característico à psique coletiva e aos líde­res que a representam, de modo que as próprias atividades e funções se plasmam de maneira diferente. Mas em toda parte, mesmo nos campos mais disparatados, esse dualismo perdura. O pensamento da própria Igreja equilibrou-se en­tre a tese e a antítese, entre Pedro e Paulo, isto é, entre a corrente judaico-cristã de tipo particularista e a corrente greco-cristã de tipo universalista, como se equilibrou, mais tarde, entre Agostinho e Tomás, quer dizer, entre a corrente platônico-intuitiva e a corrente aristotélico-racional. O pró­prio mundo está dividido e, no entanto, unido entre os seus dois extremos ou, seja, entre a civilização ocidental, mate­rialista, e a civilização oriental, preponderantemente espiritualista. Toda unidade fática se deve ao equilíbrio de duas metades, opostas e contrastantes. Por isso, não se pode fa­lar que, de dois elementos postos em presença um do outro, este seja superior ou inferior àquele e ao contrário Como já dissemos, relativamente a jovens e a velhos, um tipo va­le tanto quanto o outro. O dinamismo, em última análise o mesmo, assume formas diversas, mas substancialmente equivalentes. Enquanto num caso (ondas longas) se desenvolve como quantidade, noutro (ondas curtas) se desenvol­ve como qualidade, isto é, encontra-se sob a forma de potencial ou pressão. Já nos ­referimos neste volume (cap. IX – Das Trevas à Luz) à relação, aos efeitos dinâmicos entre amperagem e voltagem no campo da eletricidade, e entre volume e pressão, na mecânica dos líquidos. Reencontramos a inversão dos dois extremos no dualismo entre outras posições, como, por exemplo, luz e sombra, dia e noite, primavera e outono, equador e pólos, verdade e erro etc., pois não existe ser algum que não contenha essa oposição de ritmos contrários.

Continuando a observar, verificamos correspondências ainda mais remotas e relações novas. O tipo espiritual, de expansão interior, aparece-nos também como de sintoniza­ção noturna (cf. o volume As Noúres), azul, lunar, hipersen­sual e supersensória, inimigo da ação, da matéria, da vida física animal. Esse tipo é esquivo, solitário, silencioso, sofredor, sensitivo, pacífico e, em relação ao mundo, negativo. É um "não-ser", relativamente a este último. Ao contrário, é um "ser" em face do imponderável, que é um "não-ser" para os outros. Estes são constituídos pelo tipo material, de expansão exterior, de sintonização diurna, vermelha, solar, sensual e sensória, amiga da ação, da matéria, da vida físi­ca animal. Tipo audaz, sociável, bulhento, gozador, volun­tarioso e agressivo, mostra-se positivo perante o mundo. Trata-se de atitudes relativas e opostas. Cada uma delas significa ou afirmação ou negação que se invertem relativa­mente à negação ou à afirmação do outro termo Trata-se de alta ou de baixa freqüência. Em meio dos jejuns, das re­núncias e dos sofrimentos, os santos estavam sempre absor­tos em contemplação, que é apenas visão interior. A espiri­tualidade, vida sutil de alta freqüência e notas agudas, subs­titui a animalidade, vida vegetativa de baixa freqüência e notas graves; o baixo potencial transformou-se em alto po­tencial, amperagem em voltagem, o volume em pressão, a vida grosseira dos sentidos na hipersensibilidade refinada; o mundo físico desmaterializa-se no imponderável. Os dois lados da vida continuam sempre opostos e complementares. Reencontramos aqui a mesma razão inversa observada entre força e sabedoria, entre alegria e dor, entre jovens e velhos. A exuberância vital dos primeiros reside na força e na alegria, na expansão física; a dos outros está na sabedoria, na dor, na expansão espiritual. As lutas, as fadigas, as con­quistas, tudo é diferente. Os sentidos das projeções dinâmi­cas são diametralmente opostos. A vida oferece dois lados, opostos, em cuja complementariedade se completa; desse equilíbrio lhe advém a unidade perfeita.

Todas as manifestações humanas adquirem essa cola­boração diferente e passam de um para outro tipo. Uma pessoa gosta do que outra detesta; para uns é vida o que para outros representa morte. O próprio Sermão da Monta­nha exemplifica a mudança dos valores terrenos, considera­dos de ponto de vista material, em valores celestes, conside­rados de ponto de vista espiritual. A própria morte: para o homem material é morte apenas; para o espiritual, vida. É evidente o contraste. A vida oscila do extremo do sadismo (que afirma consistir a vitória na afirmação egoísta, no es­magamento do próximo) ao extremo oposto, o do masoquis­mo (que diz: a vitória consiste na altruísta negação do eu, no amor ao próximo, na tolerância, no sacrifício, na derro­ta). A evolução caminha amparada por ambos os impulsos. Perguntamo-nos, então: relativamente a esse dualismo, em que sentido caminha a evolução da vida? Para os indivíduos como para as famílias e os povos e, portanto, para a humanidade também, a vida caminha da juventude até à velhice, com todas as alterações de qualidade decorrentes dessa passagem. Essa passagem, aliás, significa inversão de caracte­rísticas, exatamente porque é mudança de posição de um extremo a outro. Por isso, a evolução da vida oscila entre o ritmo de ondas longas e o de ondas curtas, o baixo e o alto potencial, a quantidade e a qualidade, a baixa e a alta freqüência. A evolução, portanto, nada muda à substância, mas somente à forma; e o que a torna possível é um ritmo in­terior, de freqüência vibratória. A vida dos velhos não significa destruição, mas apenas inversão formal da vida dos jovens. As duas vidas, a espiritual e a material, são inver­sas e, portanto, antagônicas; o enfraquecimento ou atrofia de uma condiciona o desenvolvimento da outra. No sistema compensado e equilibrado da natureza, não pode haver hipertrofia sem a correspondente atrofia. Assim, verificamos constantemente existir relação inversa entre saúde física e vida espiritual, tanto assim que, quando a vida orgânica tende a enfraquecer-se, também tende a sensibilizar-se e a manifestar-se sob formas mais refinadas, em planos mais elevados; por outro lado, em organismo fisicamente desen­volvido e exuberante, geralmente não cabe vida interior su­til e sublime A trajetória da atividade física, em seu desenvolvimento, maturidade e decadência, não coincide com a trajetória da atividade psíquica que, quando o indivíduo evoluir ao ponto de possuí-la, se atrasa, isto é, floresce e de­finha muito depois da atividade corporal, como se necessi­tasse, para melhor desenvolver-se, da atenção dos processos da vida vegetativa. A maioria das obras-primas surgiram quando os autores tinham de quarenta a sessenta anos. A morte seria, então, o caso-limite de máxima decadência fí­sica e de afirmação espiritual, a passagem completa de uma forma vital em ondas longas a outra em ondas curtas As duas vidas são inversas e opostas. Durante a permanência na terra verifica-se a oscilação entre uma e outra, conforme o poder adquirido pelo indivíduo em qualquer campo e de acordo, também, com o ritmo e o tipo de onda dominante em sua personalidade. Quanto ao involuído, em que prepon­dera o desenvolvimento físico, não pode haver, sem dúvida, enfraquecimento orgânico capaz de revelar-nos espirituali­dade nele inexistente. Mas, se a evolução a houver suscita­do, não podemos pôr em dúvida que o enfraquecimento fí­sico progressivo, o desgaste da vida de ondas longas favo­reça a vida de ondas curtas. A vitória de uma só se torna possível com o enfraquecimento correspondente da outra. Noutras palavras: o enfraquecimento orgânico pode funcionar como revelador da personalidade rica e profunda, mas preexistente. Quando, porém, nada existe, como lhe é pos­sível revelá-lo? Quanto à dor, acontece isso mesmo. Se a sua função preponderantemente criadora, na sua forma mais imediata e evidente se nos mostra reveladora, o eu tende à expansão e a dor constitui prisão, asfixia, mutilação. Mas essa opressão que se exerce num plano pode resolver-se em compressão capaz de elevar o potencial, a pressão, de trans­formar a freqüência da onda; e isso tudo ao ponto de obri­gar a personalidade, quando lhe possua os elementos, a ex­pansão diferente, em plano de vida mais elevado, isto é, de fazer a vida do ser, desde que maduro, ascender da forma vegetativa animal à forma espiritual. A dor pode, assim, constituir instrumento de progresso, como quando, barran­do a passagem às fáceis ressonâncias inferiores dos jogos ma­teriais, abre as portas às sintonizações superiores dos gozos espirituais. Trabalho mais difícil, esforço para atingir ten­sões mais altas; elemento de progresso, porém, pois o ritmo vibratório do espírito, em alta freqüência, se reforça, se com­pleta, se estabiliza na personalidade. A personalidade sofre, debate-se, mas acaba sendo controlada e assim, não conse­gue explodir; é até mesmo constrangida a fazer uma con­quista que mais tarde será sua e a levará a bendizer a dor, transformada em instrumento de progresso.

Um esclarecimento se torna necessário agora. No leitor atento, que se lembra do cap. XLVIII (Série evolutiva das espécies dinâmicas) e o cap. LXXXV (Psiquismo e degrada­ção biológica) ambos de A Grande Síntese, pode surgir certa dúvida, se confrontar esses capítulos com frases como estas deste livro: “O mundo da matéria podemos imaginá-lo ca­racterizado por ondas longas; o do espirito, por ondas cur­ta.... Trata-se de alta e baixa freqüência... Animalidade, vida vegetativa, notas graves, baixa freqüência; espirituali­dade, vida sutil, notas agudas, alta freqüência. A evolução da vida caminha, portanto, do ritmo em ondas longas ao ritmo em ondas curtas, do baixo ao alto potencial, da baixa à alta freqüência. Na evolução da vida é a onda longa que se funde na curta”. Nos referidos capítulos de A Grande Síntese se afirma, ao contrário, que, ao longo da série das espécies dinâmicas, a freqüência vibratória diminui enquan­to a amplitude aumenta. Aí parece, portanto, que a evo­lução caminha para a diminuição de potencial, representa­da pelo decréscimo da freqüência vibratória e pelo aumento de amplitude de onda. Neste capítulo dizemos, pelo contrá­rio, que a vida caminha das ondas longas para as curtas, da baixa para a alta freqüência, com elevação de potencial. Há contradição nisso? Não. Expliquemo-nos.

Cada uma das três fases evolutivas do nosso universo se resolve, finalmente, em decomposição final que relativamen­te à matéria se chama desintegração atômica; para a ener­gia toma o nome de degradação dinâmica; e, quando se refere à vida, diz-se degradação biológica. E, de fato, a vida, considerada como dinamismo biológico, caminha para a bai­xa freqüência e o aumento do comprimento de onda e isso até ao esgotamento e à morte em seu caráter de vida vege­tativa animal. Este é apenas um caso do fenômeno de entropia, isto é, da tendência dos fenômenos ao nivelamento dinâmico e à extinção na quietude. Essa entropia, se existe nos fenômenos, não é constante e perpétua; se fosse, já teria feito sentir sua ação e o universo já estaria morto; no en­tanto, vemo-lo em contínuo progresso. Deve existir nele, e é lógico que exista em sistema equilibrado como nosso universo, a parte inversa e compensadora do fenômeno da en­tropia, isto é, tendência paralela e complementar à constru­ção, reconstrução de potencial e de freqüência, que equili­bre e anule a tendência à destruição e à degradação de po­tencial e à diminuição de freqüência representada pela en­tropia. A forma de toda fase evolutiva também se sujeita, sem dúvida, a desgaste que termina em desagregação. Esta, porém, é apenas aparente e não se verifica, se tomarmos em sentido absoluto o termo. A destruição não incide na subs­tância, mas apenas na forma, e reduz-se a renovamento, condicionador da evolução. Na realidade, se os fenômenos diminuem de intensidade e se esgotam em sua forma atual, se se desgastam, envelhecem e morrem, nem por isso se ani­quilam e anulam. A substância de coisa alguma pode ser destruída; ressurge de outra maneira, e isso acontece exatamente como resultado da elaboração da fase precedente, em que a forma se degrada, mas a substância evolui, impreg­nando essa forma situada em plano mais elevado e igualmen­te real, embora ela escape aos nossos sentidos. Esta res­surreição, sob forma diversa, da substância imortal é que se encarrega da reconstituição do potencial, da alta freqüência em ondas curtas. Assim, na desintegração atômica a maté­ria não desaparece senão como matéria, mas renasce na qualidade de energia de alto potencial e freqüência em on­das curtas (gravitação); do mesmo modo, no caso da degradação dinâmica, essa energia vai-se degradando, de gravitação passa a eletricidade. Aniquila-se como potencial, freqüência e comprimento de onda, mas finalmente morre como ener­gia e renasce sob a forma de vida. Se considerarmos a de­gradação biológica, veremos que por sua vez a vida se des­gasta, enfraquecendo-se como potencial, freqüência e com­primento de onda, mas por fim não se extingue senão na qualidade de vida vegetativa animal e renasce, como espírito em fase mais adiantada, em nova e mais evoluída forma de existência, de alto potencial, alta freqüência e ondas cur­tas. E assim por diante.

O fenômeno da entropia não representa, pois, toda a evolução, mas apenas o período destrutivo da forma de uma fase evolutiva, período que constitui a aparência e o efeito de íntima elaboração a ele correspondente na intimidade do fenômeno, e representa correlato período reconstrutivo, cujo resultado é o nascimento da nova forma, mas em fase mais adiantada. Assim, a evolução recomeça a marcha e, em meio da destruição da forma, a substância progride desse aparentemente misterioso meio de recuperação de energia, que outra coisa não é senão a resultante dos equilíbrios das forças do sistema. A entropia, portanto, é apenas aparente, a aparência assumida pela realidade do transformismo evo­lutivo. De fato, não se trata de dispersão nem de nivela­mento, mas de elaboração. O processo de reconstrução se desenvolve subterraneamente e nada tem de científico, mas o resultado aparece-nos como nova forma que, mais poderosa, renasce em plano mais adiantado. Chamamos entropia a destruição apenas da forma, condição de renovamento evo­lutivo. A parte inversa e complementar do fenômeno se en­carrega de reconstruir, equilibrando-o em seus dois momen­tos inversos e complementares. Prova o fato de que o re­sultado final de toda degradação não é a morte, mas a res­surreição em plano mais elevado. A entropia constitui ape­nas a revelação do desgaste resultante do trabalho da elaboração evolutiva, desgaste que desempenha também a ne­cessária função de destruir uma forma, que por força da lei de evolução sempre progride e se aperfeiçoa. Não é verdade que por toda parte, até mesmo em nós, em nossa vida como em cada um de nossos atos, encontramos sempre essa lei de morte e ressurreição? Doutro modo não poderia haver reno­vamento e evolução. A forma necessita de desfazer-se e re­fazer-se continuamente para prosseguir no caminho ascen­sional do ser, que vai assumindo-as sucessivamente, de acor­do com suas necessidades. A morte condiciona a vida.

Agora se compreenderá mais facilmente o que neste ca­pítulo estamos dizendo, isto é, como a destruição biológica conduz à construção espiritual. Agora podemos verificar como, apesar de toda forma tender a degradar-se na baixa freqüência e em ondas longas, ela se reconstitui mais tar­de em uma forma superior, de alta freqüência e ondas cur­tas. Eis por que, embora a vida do indivíduo e a da huma­nidade se desgastem no curso da juventude à velhice, em progressiva diminuição de potencial biológico que caminha para a baixa freqüência e as ondas longas, desse desgaste nascem o espírito, a consciência, a sabedoria, resultado de experiências da vida, cujo fruto é o espírito, em elevado po­tencial, alta freqüência e ondas curtas. A vida, enquanto vida apenas, caminha para a baixa freqüência e as ondas longas; como espírito, porém, se reconstitui em ondas cur­tas, rápidas e poderosas. No plano da vida o processo de en­fraquecimento de freqüência, alongamento de onda e degra­dação de potencial continua exatamente como dizem os referidos capítulos de A Grande Síntese e isso até à exaustão e à morte. Desse processo, porém, surge o espírito, como produto sintético dessa elaboração biológica. É o que se afirma neste capítulo. Parece que no fim de cada período evolutivo, do percurso de cada fase, desgastada a forma que lhe é própria, as forças do universo se contraem e concen­tram em uma forma sintética, de potencial mais elevado e filha da forma precedente, que morre. Assim, apesar de tu­do, o ser se fortalece, se aperfeiçoa, cada vez mais se reaproxi­ma de Deus. Isso porque a degradação não passa de pro­cesso negativo de anulação da forma, anulação aparente de que nada subsiste senão a forma renovada e outro trecho percorrido no caminho da evolução. A degradação é, na rea­lidade, apenas íntima colaboração construtiva e seu resul­tado não é a extinção, mas a evolução. O desenvolvimento de determinada fase evolutiva é um percurso expansionista, caminhando do centro para a periferia; mas é também um caminho que, no fim de cada um desses períodos, impor­ta em haver-se percorrido intimamente um caminho inver­so, com que o fenômeno evolutivo se compensa, completa e reequilibra porque contemporaneamente percorreu no seu outro pólo um caminho da periferia ao centro. Assim, a manifestação jamais termina em dispersão, por causa de afastar-se de sua fonte; pelo contrário, é novamente atraída pelo poder divino que tudo rege e reconduzida ao conta­to com as forças diretivas de que o outro lado do processo tendia a afasta-la. Sem esses equilíbrios compensatórios, o universo se esgotaria por degradação. A própria lei de dua­lidade nos mostra a estrutura desse fenômeno de compen­sação Se de um lado há degradação, do lado oposto deve necessariamente existir reconstrução. Assim acontece, na verdade, e os resultados, que não significam morte, mas vi­da, põem-no em evidência. Trata-se apenas de dois momen­tos de processo evolutivo único. Por necessidade de equilí­brio devem ser inversamente proporcionais. O nascimento implica na morte; a morte, na vida. A degradação biológi­ca constitui condição do processo genético do psiquismo, co­mo a degradação dinâmica se revela condição do processo genético da vida e a desintegração atômica condiciona o processo genético da energia. Os dois momentos são pres­supostos um do outro e reciprocamente se impõem. Cada fase acaba degradando-se. Nasce moça, de elevado poten­cial, ondas curtas e alta freqüência, e morre velha, de po­tencial baixo, ondas longas e baixa freqüência. E ao mor­rer gera fase de ascensão mais adiantada e mais próxima de Deus. Essa lei se estende a todas as coisas. Esclarecido esse ponto, continuemos.

Quem a experimentou sabe muito bem que a vida espi­ritual, em que reside o futuro biológico, se caracteriza pela alta tensão; sabe também que fadiga representa o ser cons­trangido a elevar o próprio potencial, a habituar-se a vibrar em ondas curtas e em alta freqüência. Exprimindo-se assim, procuramos dar a entender mais facilmente aquilo em que consiste a evolução, traduzindo em termos científicos o fe­nômeno de espiritualização que em geral não é entendido, lato sensu[15], como fenômeno biológico, mas apenas no cará­ter de fenômeno religioso. O ritmo vegetativo da animali­dade mostra-se mais lento, menos fatigante, menos potente, é de ondas longas e baixa freqüência. O sofrimento, que matura e desmaterializa, exprime o esforço de habituar-se a viver em ritmo mais rápido e intenso, mais laborioso e fati­gante, porém, mais potente. A evolução constitui, em subs­tância, aceleramento de freqüência de vibração; a dor aí fun­ciona como excitante, espécie de transformador de poten­cial. Através da evolução a substância permanece idênti­ca; a quantidade transforma-se em qualidade; a força, como vimos, muda-se em sabedoria; a ignorância do involuído pas­sa a ser a sabedoria do evoluído; a violência torna-se justi­ça; e o caótico desequilíbrio da desordem e do abuso trans­forma-se nos harmônicos equilíbrios da ordem divina. Por força da evolução, o concreto caminha para o abstrato; a ação, através da experimentação, transforma-se em concei­tos e qualidade, a atividade material em atividade espiritual, o trabalho em contemplação. No homem primário o pensa­mento é concreto, não se concebe a idéia senão revelada por fatos concretos, a palavra mostra-se mais como gesto (isto é, síntese inspirada na ação) do que como conceito; e o pen­samento é mais expressão por meio de palavras e gestos do que meditação; toda manifestação espiritual permanece sepultada num invólucro material. Apenas o evoluído atin­ge a concepção abstrata, imaterial, que se mantém por força própria, sem ligações ou apoios físicos. Nele os membros de simples instrumentos de ação se transformam em antenas transmissoras e receptoras de radiações. O evoluído parece inerte, mas sua ação, que aparenta um "não-fazer", pois foge às formas e percepções comuns, desenvolve-se no im­ponderável. Ela desmaterializa-se em ritmo mais sutil, po­deroso e penetrante. O futuro abrange a passagem da vida animal à espiritual; para que esta se desenvolva aquela tem de morrer, pois se torna impossível a coexistência de dois ritmos diversos. São antagônicos, mas reciprocamente se ligam e continuam. Na evolução da vida a onda longa é que acaba terminando em onda curta. Progredir significa conquistar onda curta. É a forma do futuro. Mas, supera­da a fadiga do aceleramento e a dor da asfixia em plano inferior, a vida, transformada e não destruída, continua mais intensa e alegre num plano mais elevado. Trata-se de ressurreição. Assim, a morte não é igual para todos. A noi­te não é trevas para os noctívagos. A morte só é morte para os tipos involuídos, animais e vegetativos, isto é, em ondas longas; para os tipos evoluídos, espirituais ou, seja, em on­das curtas, a morte significa vida. Todos nós somos relati­vos, limitados e estamos fechados numa das metades da vi­da. Mas sempre a experiência oposta, a outra metade, está pronta a compensar-nos e completar-nos. Tudo pode transformar-se. A vida em ondas curtas representa a morte da vida em ondas longas, mas constitui a vida dos tipos em on­das curtas. A vida deles não reside na terra, e sim no além, no reino da noite, enquanto que para os tipos em ondas longas ela está no mundo, no reinado do dia. Há, pois, tem­peramentos adequados a viver na vida e temperamentos adequados a viver na morte. Nossa própria vida cotidiana se divide em dois turnos diferentes: o dia, vida física, prá­tica, concreta, sensória, à luz solar, em ondas longas; e a noite, vida espiritual, de sonho, incorpórea, no imponderável, à luz azul, lunar, em ondas curtas. A vida é contínua; de dia vivemos a vida dos vivos, de noite a vida dos mortos. As duas faces inversas do mesmo fenômeno se alternam. E enquanto uma forma prepondera, a outra se atenua e espera o seu despertar. De noite a vida física adormece e se afir­ma a vida interior, intuitiva, vidente. De dia, a vida interior permanece entorpecida, deixando o campo livre àquela. Trata-se como de duas linhas de visada diferentes, mas to­madas pelos olhos da mesma pessoa: um, míope, diurno, capaz de perceber todas as minúcias dos objetos próximos, precisa, concreta; outro, presbita, noturno, bom para distin­guir os objetos afastados, as visões panorâmicas, mas vaga, sonambúlica, onírica. As horas da madrugada são as mais profundas, as melhores para a atividade espiritual e, por outro lado, as piores para o enfermo, o que sofre no plano físico; são as em que geralmente o homem morre, pois com­preendem o período de maior depressão do dia todo, de ritmo vibratório mais curto, o mais afastado do ritmo longo, len­to, vegetativo, diurno.

Todo o nosso ser está saturado desse dualismo inverso. A própria luta pela vida, fato fundamental, assume duas formas extremas: a positiva, de agressividade (conquista) e a negativa, de resistência (conservação), ambas válidas. Sobre esse dualismo também se apoia o básico fenômeno biológico da sexualidade, tanto assim que a encontramos, como oposição de termos, em nossa própria carne. De fato, os tecidos todos se compõem de células e a célula de dois elementos contrários e complementares, o núcleo e o proto­plasma. Até mesmo a unidade celular, que está na base de nossa estrutura orgânica, é bipolar, conforme a lei de dualidade. O núcleo, originário do espermatozóide masculino, vibra em ondas curtas; é de radiações azuis, voluntarioso, dinâmico, como o próprio espírito. O protoplasma, oriundo da célula-ovo feminina, vibra em ondas longas; é de radia­ções vermelhas, sensual, pacífico, acumulador, como a vida vegetativa. O núcleo é eletricamente positivo; o protoplas­ma, negativo; eis os dois termos antitéticos que, da intimidade de nossa própria carne, do indivíduo ao desenvolvimen­to biológico e social, representam cisão e compensação de qualidade e divisão de trabalho, por força do qual o princí­pio masculino assume tarefa inversa e complementar da atribuída ao princípio feminino. Ao primeiro desses princí­pios, a virilidade, em ondas curtas, incumbe o dinamismo criador, a função de, por meio de estímulos revolucionários periódicos, reanimar, reativar a onda longa da feminilidade que, se tende a conservar, a proteger, acumular, tende tam­bém ao enfraquecimento e à estagnação. Essa atividade ge­nética e conservadora equilibra-se na atividade oposta do princípio masculino, diretora e distributiva. A este se con­fia a iniciativa da evolução, ao feminino a elaboração da matéria-prima, o princípio masculino plasma, o feminino recebe. Mas o primeiro também é eminentemente destruti­vo, enquanto o segundo domestica e civiliza. O fato de sua natureza inversa torna-os incompletos e leva-os a se atraí­rem reciprocamente. Assim, os dois princípios, na luta pa­ra se destruírem, se apertam no mesmo abraço. Ai de nós se, compensando-se e combinando-se, as duas funções não se equilibrassem. Então, reciprocamente expurgadas do exces­so individual, a destruição do dinamismo positivo se trans­forma em construção e a passividade do dinamismo nega­tivo se torna civilização. Da combinação dos dois princípios nasce a evolução; o masculino e o feminino são o pai e a mãe daquele filho chamado progresso.

Esse dualismo imprime-se em todo o nosso ser. Das al­turas da personalidade desce até à intimidade de nossa car­ne, até à célula, onde, aliás, está insculpido e donde sobe de novo até à síntese máxima do ego, tornando-se antagonis­mo entre espírito e matéria. Esse contraste, que se verifica sem cessar e constitui a base da evolução, reencontramo-lo até mesmo no mais íntimo de nossa estrutura orgânica, na divisão e união dos dois sexos. Pode acontecer que as cor­rentes de consciência, que se manifestam em nossa perso­nalidade e a caracterizam, se relacionem com essa bipolaridade das células e nesta se encontre a chave do mistério do subconsciente, dos instintos, das idéias inatas, da hereditariedade; pode acontecer que a recordação atávica se acumule e transmita através dessas células eternamente reproduzidas por filiação direta, das células destacadas dos progenitores, isto é, o espermatozóide e a célula-ovo. Não podemos, agora, perder-nos em divagações a respeito da gê­nese e da estrutura da personalidade de que mais adiante falaremos. Mas, sem dúvida, o problema espiritual não pode isolar-se do fisiológico; os dois se ligam estreitamente. É verdade que as correntes espirituais nos penetram o organismo até ao interior da célula cuja estrutura é bipolar, quer dizer, contém, o germe das duas vidas, das duas vibra­ções e radiações, dos dois ritmos fundamentais da existên­cia. Também é verdade que a vida é um fenômeno elétrico, não da eletricidade por nós usada em vários aparelhos. Trata-se de quantidades enormes de energia de posicionamento alveolar e de baixo potencial; trata-se de um grande número de elementos (vários milhões de células), cada um com capacidade energética mínima; poderíamos, mesmo, dizer numero infinito de causas infinitesimais. Num extremo da vida há como que uma pulverização dinâmica; noutro, uma espé­cie de concentração sintética e unitária em torno do ego. Também neste sentido se verifica uma oscilação entre os dois extremos opostos e complementares. As raízes do psi­quismo mergulham profundamente nos misteriosos mean­dros da estrutura orgânica. Pensam que o material dessa construção é, como primeiro elemento, o átomo, e as molé­culas as primeiras construções atômicas em que os átomos se ordenam sistematicamente. Para chegarmos até à célu­la, precisamos antes considerar a formação dos corpús­culos chamados micelas, compostos de um grânulo recober­to por uma espécie de casca (substância peri-granular). Água circula entre o grânulo e essa espécie de casca. A micela é dotada de movimento contínuo, chamado movimento Browniano. A micela é, pois, constituída de moléculas que, por sua vez, se constituem de átomos, em dois grupos de matéria, um positivo e outro negativo, como, por exemplo, a célula. Essa bipolaridade corresponde, do átomo e da célu­la aos organismos extremamente complexos, a um esquema geral da criação, estabelecido de acordo com a lei de dua­lidade. O esquema fundamental dos fenômenos universais é simples e válido para quaisquer grandezas e planos evolu­tivos. O próprio átomo compõe-se de um núcleo central po­sitivo e de elétrons (ou cargas elétricas negativas) que gra­vitam em torno dele, à semelhança do sistema solar e seus satélites. O princípio dualístico manifesta-se em toda par­te. Encontramo-lo impresso no desenvolvimento da trajetó­ria típica dos movimentos fenomênicos examinada na 1ª parte de A Grande Síntese, desenvolvimento resultante da alternância de períodos inversos, evolutivos e involutivos, de progresso e retrocesso.

É natural que esse dualismo permaneça até mesmo na síntese máxima da personalidade. E assistimos não somen­te à pulverização de seu dinamismo causal como também à de sua estrutura material que, se de um lado, o máximo, se desfaz na espiritualidade da alma, de outro desaparece na imaterialidade dos últimos de seus elementos constitutivos. Não deve, pois, causar estranheza, o imaginarmos que essa imaterialidade se resolva no dinamismo de uma polaridade elétrica e de um ritmo vibratório radiante, em maravilhosa or­questração de harmonias equilibradas e compensadas com as dissonâncias relativas. A vida, portanto, se elaborou através de atividades mínimas, mas gastou nisso imensos períodos de tempo. Não é demais imaginar que a evolução consiste em lenta aceleração do ritmo vibratório, em transformação do potencial elétrico no sentido de freqüências mais altas, de ondas cada vez mais curtas; nem é fora do comum pensarmos que isso aconteça no processo chamado desmaterialização e espiritualização. A matéria viva de nosso organismo, sensível a todos os choques externos, de que registra os recentes e lembra os antigos, palpitante ao impulso de for­ças internas e externas, sofre continuamente a ação das vi­cissitudes da vida social, as asperezas da luta, a hostilidade ambiente. Deve, por isso, elaborar-se e mudar por força. O homem, os povos, a humanidade significam vida e a vida é como um projétil que percorresse trajetória pré-determi­nada. Tudo se transforma, nada pode deter-se. A carga elé­trica, impulso inicial que acompanha o nascimento do ser e anima o percurso do projétil, tende ao esgotamento e en­tão começa o ramo descendente da trajetória. O dinamismo acaba cedendo, primeiro no campo orgânico e em seguida no campo psíquico, exatamente porque neste campo se de­senvolveu tardiamente. O último destes dinamismos parece filho do dinamismo orgânico, de que representa a resultante e o objetivo, o efeito residual mais bem elaborado da causa. Isso faz pensar que, como se verifica em relação ao indiví­duo, as funções espirituais representam o futuro da raça, sua futura fase de evolução, e também na humanidade se de­senvolvem mais tarde. Tanto assim que esse psiquismo cor­responde a complexidade orgânica cada vez maior, necessi­dades de defesa cada vez mais difíceis, pois o drama se tor­na sempre mais inçado de problemas e requer, por isso, estratégia cada vez mais sábia e rica de mil e uma qualidades. Do contrário, o indivíduo não triunfa. E tudo nos faz pen­sar em que, analogamente, a evolução deve alcançar, tam­bém nos seus mais altos graus, a coordenação atingida nos mais baixos, como, por exemplo, na estabilização atômica e celular. Como o passado criou formas hoje estáveis assim o, futuro estabilizará formas bem mais complexas. Por que ra­zão o princípio protetor da vida não deveria presidir tam­bém à defesa das construções biológicas do futuro, mais sublimes e delicadas? A criação é fatigante, laboriosa, lenta, mas contínua.

Baseados nessas considerações, agora podemos definir mais precisamente a lei de dualidade, até mesmo relativa mente à evolução. Assim:

"Todo indivíduo constitui unidade dupla, isto é, equilibrado paralelismo de forças emparelhadas, mas antitéticas. Ou melhor; a unidade compõem-se de metades inversas e complementares, em contraste e em equilíbrio. Desse con­traste nasce a elaboração íntima que se chama evolução"...

A evolução, portanto, resulta de processo bipolar, des­trutivo-construtivo. Já vimos de que modo o mal se torna necessário às finalidades do bem. Dessa lei se infere que, se toda unidade é um binômio, tudo é necessariamente luta e guerra, mas também paz; tudo é ódio, mas amor também. Poderemos até mesmo dizer que, por força da íntima estru­tura dualística dos fenômenos e, portanto, do fenômeno bio­lógico também, e em virtude do dinamismo de duas forças opostas, a positiva e a negativa, a masculina e a feminina, se produz uma auto-elaboração interior, também chamada evolução, que faz a vida humana progredir do tipo animal, vegetativo, espiritualmente involuído, sensual, sensório, fí­sico, em ondas longas, para o tipo super-humano, psíquico, evoluído, sensitivo, espiritual, em ondas curtas. Em suma: transforme-se de besta em super-homem. Se essa elabora­ção íntima conduz a vida humana a um ritmo que vai das ondas longas às curtas, leva-a também a caminhar do dia para a noite, afasta-a da luz e do calor de um sol poente, des­materializa-a por força de maturação íntima, do mesmo modo que, na desintegração atômica, a matéria se transfor­ma em energia; a vida humana extingue-se como forma fí­sica, a fim de, em outros ambientes, ressuscitar sob nova forma espiritual.

Estamos discutindo estes problemas e, ao mesmo tempo, aplicando a lei acima exposta. De fato, também a idéia constitui um binômio de forças (isto é, inversas e comple­mentares); e, por isso, como todo debate representa uma oscilação entre os dois extremos opostos do mesmo concei­to, conduz àquela íntima auto-elaboração que é a maturação do pensamento, isto é, sua evolução. O leitor pode encon­trar por si mesmo muitas outras aplicações dos princípios aqui expostos. Mesmo a radiestesia se baseia em dois tipos de movimentos pendulares inversos e correspondentes ao bem e ao mal, isto é, capazes de, seja qual for o objeto, reve­lar-lhe as radiações favoráveis ou nocivas. Se o movimento é circular, pode ser no sentido horário (sentido do movimen­to dos ponteiros do relógio) e no sentido anti-horário; se é retilíneo, falamos em sentido longitudinal e sentido trans­versal.

A tudo isso se poderia objetar que o princípio de causa­lidade não basta para explicar a fase superior de evolução que, representando estado mais complexo, significaria "mais" obtido de "menos", isto é, efeito superior à causa. A obje­ção se justificaria, se o funcionamento do universo depen­desse apenas de relação causal. Não se concebe, aliás, des­proporção entre causa e efeito nem desenvolvimento maior do que o conteúdo do germe poderia dar. Na realidade, po­rém, o fenômeno não se desenvolve como as aparências nos fazem supor. O funcionamento do universo não pára, mas, além de orgânico, e contínuo, é evolutivo, quer dizer, é in­términa florada de vida; a mecânica, representada pelo prin­cípio de causalidade, constitui apenas o processo de elabo­ração dessa florescência. Em resumo: na evolução, mais do que simples relação entre antecedente e conseqüente, verifi­ca-se o desenvolvimento de algo latente na intimidade do ser e a sua manifestação no mundo exterior. Os dois mo­mentos, causa e efeito, não surgem, portanto, ligados por uma relação de igualdade, porque no centro, na causa no germe das coisas, se concentra o invisível poder do pensa­mento de Deus, poder que se expande e desenvolve na ma­nifestação exterior, por nós mais claramente perceptível. Todavia, se observarmos mais atentamente, verificamos a existência dessa relação de igualdade entre causa e efeito, não na forma, mas apenas na substância. Os nossos senti­dos, porém, só percebem a relação formal. A igualdade foge, pois, à apreciação dos sentidos. Se existe na substância, on­de o equilíbrio tem de ser perfeito, não existe na forma, que é tudo quanto o homem percebe e, efetivamente, dá a sen­sação de disparidade entre causa e efeito.

XXVI

A MÚSICA - A VIDA DUPLA

O capítulo anterior deu-nos apenas ligeira idéia da ma­ravilhosa simetria de impulsos e da correspondência de ritmos orientadores da ordem de que se compõem o funcionamento orgânico do universo. Nossa vida é força que navega em oceano de forças; toda força é vontade que a anima, pensamento que inteligentemente a dirige, é tipo de vibração, é radiação. Tudo se move, ouve, registra, recorda e respon­de. Apesar de algumas cacofonias, tudo se harmoniza em maravilhosa sinfonia, tudo se articula em grandiosa arqui­tetura de ritmos. A ciência deixa-nos tão-somente entrevê-la. O homem para percebê-la apenas dispõe de sentidos em­botados e dela tem idéia muito vaga. O tato, sentido tota­litário fundamental, nos dá sensação ampla, mas genérica e elementar Os outros sentidos, derivação específica e es­pecialização do tato, permitem contatos mais íntimos e per­feitos com o ambiente. Assim: o gosto constitui aperfeiçoa­mento do tato, o olfato é especialização do gosto, o ouvido deriva do olfato, a percepção da luz origina-se da percepção do som. Na ascensão há ordem, progressão evolutiva. Ao progressivo aperfeiçoamento do sentido corresponde, quanto ao dinamismo, a transformação da quantidade em qualida­de: o comprimento da onda diminui à proporção que a freqüência aumenta. Por essas poucas portas abertas penetra vasto mar de ondas, mas o restante nos escapa à percepção. Quem sabe quantas irradiações mais estão vibrando no ar, chamando-nos, e não sabemos captá-las! O resto parece-nos silêncio e trevas! Quanta vida e quanta beleza nos passa despercebida! A ciência, descobrindo novos métodos de re­gistrar vibrações, oferece-nos uma espécie de sentidos arti­ficiais que nos abrem novas vias sensórias. Rasgam-se no­vas clareiras iluminadas; depois, trevas, o inexplorado, como antes, interminável. A matéria se evapora; diríamos mes­mo, espiritualiza-se em nossas mãos. Sua composição quí­mica não basta para esgotar o conhecimento de sua natu­reza. No universo tudo está animado de vida, de inteligência, de relações e de trocas. Toda individuação tende a sin­tonizar com o ambiente e a reagir, impondo ao ambiente essa sintonia. Modificando e modificando-se, tende-se à concordância, a recíproca mimetização rítmica. Por-se de acor­do com a ordem é o caminho que oferece menor resistência. E dá maior rendimento, é a tendência constante e a resul­tante final que a estrutura do sistema de forças necessaria­mente impõe. Por maiores que sejam os antagonismos, tudo não passa de coexistência, de sensações recíprocas, de vibra­ções em comum. A coexistência no mesmo ambiente impli­ca a inevitabilidade das trocas e, por isso, a reciprocidade das influências exercidas. A relatividade de cada qual im­plica a necessidade de procurar nos outros, para alimentá­-la, o próprio complemento. Assim, antes ou depois, tudo se adapta por força de concordância recíproca; por maior que seja o desacordo, acaba sempre por dissolver-se, harmoni­zando-se no consenso. De fato, embora dividido pelo indivi­dualismo, está ligado por essa complementariedade; embora afastado e separado pela antipatia e repulsão existente entre semelhantes, é reaproximado e reunificado pela simpatia e atração que se estabelece entre contrários.

A estes contatos cada qual corresponde conforme sua sensibilidade; e evolução é sensibilização, isto é, dilatação contínua das vias da percepção bem como do poder e da ale­gria de perceber. Cada um reage conforme suas particula­res capacidades seletivas e de sintonização; assim, o musi­cista para as ondas sonoras; o pintor para as ondas lumi­nosas, o pensador para as ondas psíquicas, o romântico poe­ta para as ondas vitais do amor. Quanto mais a vida é es­piritualmente profunda mais nos dá o senso do ritmo e nos transforma o ser em concerto de harmonias. No gênio tri­unfa exuberante riqueza de percepção, a hipersensibilidade abre tantas portas à ressonância, as irradiações penetram e os seus registros se amontoam febrilmente. Onde o ho­mem comum percebe poucas sensações e duas ou três idéias com que enfeita o simplíssimo esquema de sua vida, o gê­nio deve saber movimentar-se, orientar-se, cair e levantar-se, em meio da vertiginosa complexidade de sua imensa or­questração perceptiva.

Todo esse movimento origina-se de desequilíbrio que procura, e enquanto procura, o seu reequilíbrio. Se aquele constitui o impulso motor, significa também transitória mudança de fase, instrumento de evolução, e acaba sendo, na­turalmente, reabsorvida no equilíbrio. Embora haja desor­dem na superfície, na camada mais profunda reina a har­monia a que todas as coisas tendem; e o ser mais evolui, mais se lhe aproxima e mais a sente. A sintonização rítmi­ca é o estágio final de todas as alterações dinâmicas. En­contrado o equilíbrio, o objetivo foi atingido, o problema está resolvido, o ser fica saciado e o movimento cessa, para recomeçar em plano mais elevado e em desequilíbrio mais complexo e, por isso, em movimento. E assim por diante. Se o dinamismo é conseqüência do desequilíbrio, este por sua vez deriva do dualismo existente em cada ser e implica unilateralidade, isto é, carência que o torna incompleto e por isso o incita ao movimento em busca de complemento. Mas se a natureza nos onera com a necessidade para que ela nos constranja ao movimento e, assim, façamos experimen­tos e evoluamos, propicia-nos também os meios de satisfazê­-la. Há sempre outro termo apto a dar-nos riqueza necessá­ria para realizarmos troca e conseguirmos satisfação, apenas tenhamos tido o trabalho de encontrá-la. Assim, os seres estão fraternalmente unidos e o universo pode organizar suas construções de relações, seus edifícios de forças; assim, tudo se move e se renova, foge à cristalização e no movimento se torna possível a evolução.

Todas as coisas são movidas por essa combinação de altos e baixos, de qualidades inversas e complementares. Cada termo vai procurando reequilibrar-se no seu contrário e, assim, encontrar repouso. Desse modo, todo elemento se liga a seu oposto e por isso, até mesmo no árduo trabalho de auto-elaboração é arrastado rumo à evolução. O progresso está implícito no sistema, como resultante, e o estado de equilí­brio representa evolução acabada, estado de paz que é a fase final de todas as guerras da luta pela vida. Na natureza, os objetivos existem para serem atingidos. O universo atual está em fase de desequilíbrio, base do dinamismo criador, e isso significa que está em fase criadora e evolutiva. Para as forças e os fenômenos que o conseguem, o equilíbrio re­presenta a fase de chegada, de satisfação, de repouso final em terreno que jamais permanece inoperante e sossegado; por isso é também fase de morte e, em seguida, de supera­mento. O equilíbrio entre os dois contrários pode, com efei­to, ser perturbado pelo menor choque, porque as forças do universo estão perfeitamente entrosadas. Então, os equilíbrios se rompem para se porem de novo em movimento, como desequilíbrios, até recuperarem novos equilíbrios de paz. Mas, a cada união e a cada troca, também corresponde nova prova e nova experimentação; a volta ao trabalho, após o repouso, significa superamento do passado e trabalho mais produtivo, mais sábio, mais profundo. Assim, toda necessi­dade, desequilíbrio, esforço e criação se relacionam estreitamente; desse modo, a luta e a dor constituem instrumentos de evolução, isto é, construtores de equilíbrio, de ordem, de harmonia. Trata-se de cadeia de momentos necessariamente ligados em série até que atinjam seu objetivo. O estado de determinismo é, portanto, apenas a parte conclusiva, o ponto de chegada em que o livre arbítrio deixa de oscilar, cristalizando-se nas qualidades adquiridas e em conseqüência perde, em dado campo, a sua função e razão de existir. Agora as qualidades estão bem caracterizadas e fixadas e já funcionam por simples automatismo, como se fossem ins­tintos.

Concebido dessa maneira, o funcionamento do universo adquire significado musical. Quanto mais profundamente observamos mais evidente nos parece a sinfonia dos ritmos. Podemos exprimi-la de muitas formas: geométrica, matemá­tica, artística, poética, musical, filosófica, heróica, moral Mas é sempre a mesma ordem que se revela como ritmo no tempo e simetria no espaço, ordem que, dinamicamente, é equilíbrio; moralmente, justiça; artisticamente, beleza; hu­manamente, bondade. Arquitetura, poesia, música, a própria bondade, tudo são ritmos. Há pensamentos musicais; siste­mas morais que, como o Evangelho, sintonizam com os mais sublimes ritmos do universo, isto é, mais próximos da ordem. divina. A palavra de Cristo está saturada de vibrações cons­trutivas e vitais. O gênio, porque sabe encontrar relações novas entre as coisas, revela-nos novas harmonias e nos aproximam do pensamento de Deus. A música dá-nos ale­gria porque nos patenteia a ordem que constituí a essência mesma da divindade e condiciona a felicidade suprema. Tudo quanto é harmônico nos eleva, melhora, dá-nos a paz que consiste no equilíbrio. Há tanto ritmo num teorema de geometria como no cálculo matemático, nos processos dinâ­micos e nos químicos, nas leis físicas e nas leis morais, em astronomia como em estética e em filosofia, tanto num ra­ciocínio como num destino. No universo um tipo fundamen­tal de vibração ressoa e multiplica-se em mil tonalidades, alturas e dimensões; os esquemas basilares são simples e, repetindo-se, vão-se diferenciando e multiplicando ao infinito Por isso, todas as coisas guardam estreita analogia entre si; não é por mero acaso que, para descobrimento do des­conhecido, tanto se recorre em A Grande Síntese, como tam­bém fazemos aqui, ao princípio da analogia. O espírito ade­re instintivamente à alegria do ritmo em que percebe ter­minadas as asperezas da luta e as dolorosas dissecações do caos. Toda harmonia é uma festa, pois nos eleva, nos apro­xima de Deus, centro irradiador de todas as harmonias. O paraíso deve consistir em no sintonizarmos com ritmos subli­mes do universo. O problema da felicidade talvez seja ape­nas questão de sintonia ou, seja, de colocar-se em fase com radiações superiormente harmônicas.

Esses conceitos podem lançar nova luz sobre o problemas da evolução da arte e, especialmente, da música. Po­demos, assim, tecer agora considerações mais profundas a respeito de alguns de seus aspectos, de que, aliás, já fala­mos no último capítulo de A Grande Síntese: "A Arte". Nele dissemos o seguinte em relação à música: "Nossa atual fase artística consiste no aniquilamento, no abandono da forma. Estais na última fase de queda... O progresso ar­tístico não passa, em substância, de processo de harmoni­zação... Como todas as coisas, a música moderna evolui em profundidade... em sua 3ª dimensão de sinfonia... O futuro consiste em continuar tornando cada vez mais ampla a estrutura sinfônica..."

Aprofundemo-nos. Se observarmos a música de nossos dias, principalmente se a relacionarmos com a que a precedeu, verificamos separação, diversidade e desacordo funda­mentais. A música de ontem nos aparece como música re­solutiva, estágio final de pacificação; a de hoje, no entanto, surge como música revolucionária, estágio inicial de luta. Hoje, na música, predomina a dissonância, o desequilíbrio dos ritmos e dos tons. No campo artístico, isso tudo expri­me o atual ciclo biológico, como manifestação viva de des­trucionismo, de decadência moral, de queda evolutiva no materialismo, de que nos afastamos dos superiores ritmos divinos, de espiritual estridor humano. É revolução, ruína, destruição que, contudo, também pode transformar-se em reconstrução, com elementos novos e, por isso, de bases mais largas e objetivas e dirigida para fins mais elevados. É, sem dúvida, luta e esforço, desordem; mas representa, no caos, abundância de novas relações, de que surgem novas possibilidades. Essa a característica de nossa época, ao mesmo tempo infernal, perigosa e notável.

Até há poucos anos a música constituía processo harmô­nico, em que o choque sonoro tendia a composição amigá­vel, a solução pacífica. A música moderna, expressionista, tende pelo contrário a estado em que predominam a inimi­zade e a luta. Modernamente, a fadiga de colocarmo-nos acima do acordo fundamental, resolutivo, pacífico, calmo, não é mais descontínua, entremeada de contínuas pausas para descanso; é, isso sim, desesperado impulso que não consegue mais resolver-se e aclamar-se num acordo. A disso­nância se transforma de exceção em regra. Os choques con­tinuam, acumulam-se, perseguem-se numa luta sem tréguas. Daí nasce um estado de tensão permanente, de irredutível hostilidade que, se de um lado desenvolve ao máximo o di­namismo das correntes sonoras, se reduz a simples paroxis­mo de instabilidade tonal que dá o sentido revolucionário da desordem caótica. Isso está agravado pela instabilidade rít­mica (mudança de ritmo), hoje muito em moda. Existe aí, sem dúvida, abundância de elementos novos, mas ainda no informe eruptivo, no estado caótico de desequilíbrio, isto é, na posição mais afastada daquela harmonização que cons­titui elemento evolutivo e representa o grau de evolução ar­tística. Verificamos, pois, a existência de duas tendências contrárias (outra manifestação da lei do dualismo), luta acerada e mais viva; e a luta, sem dúvida, serve de base à criação. Verificamos inegável intromissão de fatores novos na moderna arte musical, em que surgem novos recursos, e se manifesta ampliação de bases construtivas; e isso consti­tuí benefício, germe de progresso. Mas aí verificamos tam­bém existência de estado de desequilíbrio que, se pode ser dinamizante e, por isso, genético, é desordem também e a desordem significa involução, ao passo que a ordem quer dizer evolução. Eis a grande questão: saberemos dominar essa desordem, transformando-a em ordem? Esse dinamis­mo terminará em construção ou em destruição? O gênio hu­mano terá o poder de torná-lo genético, disciplinando-o em construções superiores? Saberá reequilibrar esse ameaçador desequilíbrio no plano de harmonias mais sublimes e com­plexas? Ou, então, a corrente modernista nos prenderá os pulsos e arruinará completamente a arte?

Hoje, sem dúvida, vivemos como se fôssemos vulcão ati­vo e a música atual constitui apenas um momento da psi­cologia de nossa época que, em qualquer ramo de atividade, se apresenta como desesperada tentativa para encontrar va­lores novos. Atualmente, ao invés de próximos, estamos muito afastados da sistematização e da alegria da harmoni­zação; estamos hoje em pleno período de retrocesso e des­truição que nos lembra o descrito no Cap. XXII - "Tem­pestade", deste volume. Esse estilo musical pode ser tolerado apenas como fase preparatória e de transição. O futuro da música não reside na desarmonia, mas na complexidade e profundeza. Ao contrário! Se não voltarmos a percorrer esse caminho, o único aberto à evolução musical, também do ponto de vista musical afundaremos na barbárie. Essa liberdade exagerada de ritmos significa ruína da ordem, de­cadência e destruição. Depois dos grandes clássicos não hou­ve mais boa música. Não temos, freqüentemente, senão ce­rebralismo, e lucubração, artifício intelectual sem inspira­ção alguma, virtuosismo técnico, isto é, paródias, sucedâneos, degeneração. Talvez estejamos agora na parte mais baixa da onda, na noite escura que precede a aurora. Assim cremos e esperamos. Ouvido acostumado às velhas arquite­turas musicais, que, embora mais simples, alcançaram alto grau de equilíbrio, suporta com dificuldade, sem dúvida, essa espasmódica e caótica mudança de fase dos ritmos e o cho­que dessa dolorosa ruína estética. E o espírito, para aderir e aceitar, espera que tudo se reordene nos novos equilíbrios. Não somente a música, mas a arte em geral, corre perigo. E, infelizmente, isso não acontece apenas com a arte. Esses desequilíbrios significam a intromissão de novas forças; mas, se não soubermos dominá-las, arriscamo-nos ao esfacelamen­to completo. Saberemos, sob o fardo dessa riqueza nova, su­birmos em direção ao objetivo final da vida e da arte, que é a harmonização? As revoluções devem saber resolver-se em novos ordenamentos; e exatamente para conquistá-los é que elas surgem. Apenas isso pode justificá-las. Tudo quanto hoje fazemos está condicionado, depende de que se conquis­te esse domínio da ordem sobre a desordem e a violência revolucionária se enquadre, a tentativa dê resultado, a ins­piração retorne e o espírito nos sintonize de novo com os grandes ritmos da vida. Nossos antepassados, mais simples do que nós, haviam-no alcançado; somos mais ricos e com­plexos, mas devemos saber ganhar a luta e realizar o imen­so trabalho de progredir e consegui-lo também.

Até mesmo o problema da arte se nos apresentou sob a forma de antagonismo de forças em que atua o universal. dualismo da Lei. Equilíbrio e desequilíbrio, luta, harmoni­zação, presumem sempre esse dualismo, binômio de forças, princípio que está sempre nas raízes da gênese e da evolução. Para onde quer que nos voltemos, sempre os dois ter­mos opostos, que se atraem e se repelem, que se amam e se odeiam. Duas vidas, a interior e a exterior; dois tipos hu­manos, o involuído e o evoluído; dois ritmos, um longo e lento, outro breve e rápido. No começo deste capítulo fala­mos ligeiramente das diferentes vias sensoriais por onde os ritmos do ambiente penetram na personalidade humana. Mais uma vez dois termos, dois mundos, o íntimo e o exte­rior, o eu e o universo. Qual dos dois o maior? Ninguém pode negar que, assim como o mundo exterior, o mundo in­terior seja imenso, infinito abismo. Os dois impulsos se cho­cam e se combinam e daí nasce a vida. Luta criadora. O universo irradia e exerce pressão para, através dos sentidos, penetrar no eu. O eu recebe, experimenta, adapta-se, assimi­la; irradia, reage para, por sua vez, penetrar e, assim, domina e plasma o ambiente à sua imagem e semelhança. Dupla irradiação, portanto, do mundo exterior para o inte­rior e ao contrário. A lei de dualidade, a coexistência dos dois mundos e sua atividade, enfim, essa dupla irradiação deles faz-nos pensar na existência de partes inversas e com­plementares das vias sensoriais já referidas, de canais de saída que lhe correspondam e fiquem em sentido contrário ao dos canais de entrada; faz-nos pensar, também, na pos­sibilidade de inversão das vias sensórias que passem a per­correr o caminho sensorial também do interior para o exterior. Até agora vimos o movimento dessas irradiações ape­nas em uma direção, do exterior para o interior. É lógico que, por necessidade de equilíbrio, deva também existir o movimento em sentido contrário. Paralelamente, a nature­za material dos canais de entrada deveria, nos de saída, assumir forma espiritual. A sinfonia dos ritmos complica-se. Examinemos o problema, agora. Veremos, então, novos as­pectos do funcionamento da lei de dualidade. Isso diz res­peito inclusive à arte que, através da inspiração, vai até às fontes íntimas para vivificar-se.

Beethoven era completamente surdo quando escreveu a Nona Sinfonia. Morreu com 57 anos (1827) e com 29 come­çou a ficar surdo... No entanto, a impossibilidade de ouvir não interrompeu a produção genial; parece, mesmo, haver cooperado para sublimá-la, tanto assim que seus trabalhos vão mostrando-se mais inspirados à proporção que a surdez aumenta. Contudo, tinha ele de ouvi-las. Se não, como po­deria concebê-las, valorá-las, trabalhá-las? Beethoven as ouvia, embora simples sensações, com a mesma nitidez e exa­tidão que a percepção exterior permite. Sua percepção era, pois, diferente, mas de igual poder, canalizada por outras vias, as vias interiores. A atividade do musicista, que era a maior possível exatamente no campo de ação do órgão deficiente, mostra-se independente dele. A concepção, é claro, vinha inspirada de dentro de sua personalidade. Mas, como é que essa concepção se transformava em percepção e, através da sensação, conseguia o controle? Este caso faz-nos pensar no daquele homem que, para degustar qualquer prato, apenas se limitava a ler um tratado de culinária. Podem as vibra­ções que excitam os órgãos dos sentidos provirem de dentro e não de fora? Parece que os próprios sentidos podem ser impressionados por dois lados (dualismo), isto é, por vibra­ções vindas de fora e por vibrações oriundas de dentro; e mais ainda: que o fato de não funcionar o órgão externo de modo algum isola a consciência do indivíduo, mas antes pe­lo contrário o estimula a compensar-se, buscando outros meios de comunicação. Parece, outrossim, que nessa troca, o sentido ganhe em refinamento tudo quanto perde em ob­jetivismo e materialidade e, finalmente, que as vibrações po­dem usar vias imateriais de comunicação. Embora continuem sendo do tipo correspondente aos vários sentidos, assumem elas forma bem mais sutil, espiritualizam-se e, concomitan­temente, a produção do gênio se sublima e espiritualiza. Além do mais, parece que a compressão ocasionada pelo fe­chamento das janelas dos sentidos, abertas do lado físico para fora, aumente correspondente capacidade receptiva, por motivo da abertura de janelas sensórias do lado psíqui­co para dentro. Já observamos esse fenômeno de compen­sação na dor como instrumento de evolução, no enfraque­cimento físico agindo como elemento de sensibilização, com­pensação, aliás, que facilmente se observa no desenvolvimen­to orgânico e psíquico (o braço ou a perna remanescentes são sempre mais fortes e os infelizes quase sempre mais in­teligentes). A natureza, de estrutura bipolar, equilibrada, consegue desse modo compensar-se, remediando as suas im­perfeições com o reforço que leva ao lado correspondente ao de sua debilidade. A vida, se se lhe fecham as portas da expansão, retrai-se, volta-se para si mesma e, ao invés de cres­cer horizontalmente, cresce em profundidade, em outra di­reção e segundo outra dimensão. Realiza, desse modo, outros experimentos, adquire qualidades diferentes; a duplicidade de sua estrutura permite-lhes afirmar-se igualmente, reali­zando-se de acordo com desenvolvimento diferente.

Nosso corpo, isto é, a parte que vemos, é apenas a me­tade do organismo humano. Como decorrência da aplicação da lei de dualidade e dos princípios acima expostos e dela derivada, a outra metade deve possuir características inver­sas e complementares. Uma das metades é matéria; a outra, espírito. Comunica-se com dois mundos e podem-se perceber suas vibrações inversas, recebendo de dois lados e por duas vias, isto é, por percepção fisiológica direta e percepção es­piritual inversa. Trata-se de duas vidas que disputam entre si o predomínio sobre a personalidade. Porque são comple­mentares se completam; mas, sendo contrárias, reciprocamente se excluem. Assim, quando a vida física sensória adormece no sono, no transe, ou se debilita em razão de mo­léstia ou velhice, como já observamos, então a vida psíquica pode revelar-se e surgir com mais nitidez na tela da cons­ciência. Observemos o duplo funcionamento dos sentidos. Os dois mundos vibram e irradiam nas duas direções opos­tas em que a vida se desenrola. Examinemos, primeiro, a percepção visual (ou a acústica, olfativa, táctil e assim por diante). É bem conhecido o processo óptico por força do qual a imagem se reproduz na retina, mas invertida, e de­pois é transmitida ao cérebro pelo nervo óptico e, finalmen­te, percebida na posição normal. Onde o mundo físico ter­mina, o mundo psíquico principia. O órgão central é o cé­rebro, suspenso entre dois mundos, como diafragma sensível capaz de registrar as vibrações provenientes de um e de outro. Esse órgão, porém, não basta para realizar a síntese visual. Mas, afinal, com que é que vemos? Não vemos com os olhos; de fato, percebemos, já na posição normal, a ima­gem que, invertida, se forma na retina. Não vemos apenas com o cérebro porque, se causarmos alteração no nervo ópti­co, não percebemos coisa alguma, embora a imagem conti­nue a formar-se na retina do olho intacto. E se os órgãos permanecem intactos e livre o caminho até o cérebro, isso basta para que o fenômeno da visão se realize? Mas, e se o espírito está distraído, com a atenção voltada para outro objeto, preocupado, é colhido de surpresa, não se interessa em ver ou não quer ver ou a vibração, por ser habitual, não lhe atrai mais a atenção, nesses casos, a visão não se verifi­ca. E, no entanto, o fenômeno óptico é mecânico, consiste na transmissão de vibrações que, se encontram caminho li­vre, chegam automaticamente ao cérebro. A vibração atin­giu o cérebro, foi registrada e, no entanto, não se realizou a visão. Quantos atos automáticos, secundários, desse modo continuamente escapam à nossa consciência! A visão, a que o eu percebe e sente, não se dá, então, no cérebro, mas além do diafragma, bem mais longe, do outro lado da vida, o lado imaterial, isto é, no espírito. Durante esse trajeto é que de­ve dar-se alguma transformação nas vibrações; dessa trans­formação derivaria o fato, doutro modo inexplicável, de que a imagem readquira a posição normal. A ciência não vai além das células nervosas cerebrais; mas, além dos órgãos de recepção (olho), de transmissão (nervo óptico) e regis­tro (cérebro), o caminho deve continuar até ao objetivo final, a sensação. Só o espírito sente. Através de todos esses transformadores intermediários, a vibração é filtrada, desti­lada, cada vez mais desmaterializada, porém não pára. Quem a apreende e a faz sua é, no espírito, a consciência. Quando, porém, se chega ao cérebro, o organismo físico termina; de que modo se pode, partindo daí, prosseguir a caminhada até ao espírito? Como e através de que vias pode estabelecer-se comunicação? Chegadas ao diafragma que está suspenso en­tre os dois mundos, dá-se nas vibrações a transformação própria da passagem de um mundo material para um mundo imaterial. Depois que o cérebro é ultrapassado, a tele­grafia-com-fio se transforma em telegrafia-sem-fio; a vibra­ção, como acontece na transmissão radiofônica, liberta-se do suporte de seu condutor e, apoiando-se apenas no éter, tor­na-se livre, radiante. De modo que o cérebro se relaciona com duas formas de vida, a material e a espiritual; a pri­meira o atinge através de vibrações canalizadas pela rede do sistema nervoso; com a segunda ele se comunica por meio de radiações em liberdade no espaço. O cérebro não é, por­tanto, apenas a central nervosa em que se coletam, em sín­tese, as correntes elétricas do organismo físico, mas é tam­bém estação transmissora, parecida com estação de rádio ou de televisão. Eis como o cérebro se liga ao termo final de todo o percurso, o espírito. Só agora está completo o caminho que vai do objeto exterior ao eu cognoscente. Aqui estão os vá­rios pontos do trajeto completo; objeto exterior, cristalino, retina, nervo óptico, cérebro, espírito. A proporção que pro­gride, a corrente dinâmica sofre várias transformações até atingir o cérebro para poder continuar progredindo, já ago­ra no reino espiritual, desmaterializa-se, adquire forma ra­diante, isto é, a forma característica do espírito, pois, para que possamos comunicar-nos com os outros, temos de falar a mesma linguagem. Qualquer um pode facilmente imaginar e fazer o gráfico representativo desse percurso.

Assim é que, por esse caminho e através dessas trans­formações, a percepção sensória pode chegar ao espírito. A verdadeira visão não se realiza, portanto, no cérebro, mero diafragma intermediário e transformador de energia, mas acima dele, do outro lado do binômio vital. De fato, a sín­tese óptica final é muito mais do que simples registro cere­bral. Enquanto no particular existe a forma receptiva da vida, no outro lado, no da matéria, do organismo físico e dos seus vários órgãos, inclusive o cérebro, o estágio final é processo sintético, unitário, é juízo, confronto, coordenação e reação. O cérebro apenas registra e, desempenhando o pa­pel de secretário ou escrivão, se encarrega da conservação mnemônica. Só no espírito, a que o cérebro é órgão subor­dinado, é que se realiza esse trabalho complexíssimo e la­borioso, se movem as forças imateriais, inteligentes e cons­cientes, que tudo sabem, querem e dirigem. O cérebro está para o espírito assim como o olho está para o cérebro. Só o espírito diz: eu. O cérebro não pode dizê-lo porque não passa de um órgão. Através dos condutores elétricos do or­ganismo, dá-se, certamente, a confluência de suas correntes dinâmicas, sua concentração na periferia capilar, em con­tato com as células, e a mistura dessas correntes todas. Mas a síntese totalitária depende do ego e não do órgão. Há muitos órgãos e funções, mas o eu é único; não é instru­mento guiado, mas centro que guia. Apenas ele é consci­ente; todo o trajeto precedente não passa de inconscientes movimentos automáticos. No espírito, a vibração, que se tornou radiante, atingiu o termo final, depois de, para atingi-lo, haver passado por vários graus de transformação, através de vários órgãos especializados, de capacidades e fun­ções diferentes; e depois, também, de haver percorrido o ca­minho de que um trecho está num mundo e outro trecho está no outro, embora os órgãos se relacionem estreitamen­te e as fases sejam contíguas e sucessivas, de modo a formar um caminho desembaraçado e contínuo de um extremo a outro. Com isso, a primeira metade do trajeto foi percorrido e o período de ida está completo e acabado. Nada mais nos resta senão examinar a segunda metade do circuito, isto é, o período de volta, a parte inversa e complementar em que a primeira se completa e cuja existência é indicada e im­posta pela universal lei de dualidade. Portanto, observemos agora como a corrente se move em sentido contrário, desse modo completando o ciclo.

Gerador de vibrações não o é somente o mundo exte­rior, mas também o mundo interior. O mundo imponderá­vel da personalidade é muito mais vasto e rico que o dos fenômenos tangíveis. Não o vemos, muito embora lhe sai­bamos da existência. Representamo-lo por imagens que no­-lo revelam no campo das sensações e nos mantêm unidos em torno do mesmo modo de sentir. Se essas imagens fos­sem vazias de significado, não subsistiriam; se subsistem, é porque são animadas por uma realidade interior per se stante[16], que de algum modo percebemos e com que instinti­vamente concordamos. Ouvimos dentro de nós a voz do imponderável, exprimimo-la por meio de símbolos; através deles, exprimimos nossa sensação e, assim, entendemo-nos uns aos outros. Esses símbolos continuam vivendo entre nós e evoluem conosco. Conhecemo-los e somos capazes de reco­nhecê-los. Por detrás deles palpita a realidade que sentimos e eles nos manifestam. Não importa que essa realidade se situe no imponderável. Continua sendo realidade assim mes­mo. Os símbolos desempenham, precisamente, a função de materializá-la no campo do sensível, isto é, de torná-la ca­paz de impressionar-nos os sentidos, através da via normal de percepção sensória de que já falamos. As imagens não constituem, portanto, simples imaginação e forma inútil, mas têm alma e ela é que nos fala; são projeções tiradas do mundo espiritual sobre o nosso, formas materiais que reves­tem as figuras imateriais. Trata-se de percepções que, por via contrária da normal, e a ela oposta, derivam daquele mundo interior que ninguém pode ver com os olhos da car­ne, mas é visto perfeitamente pelos do espírito.

Como é que podem, no entanto, a vibração e a sensação descer do mundo espiritual até este mundo material? Que caminhos percorrem para atingirem nossos órgãos sensórios? A posição inversa, que os dois mundos guardam entre si, con­tém implicitamente e nos mostra, ao lado de um caminho, o que segue direção contrária. Já examinamos a estrada de volta, a fim de constituir a indispensável segunda metade do circuito completo. Também já tivemos ocasião de exami­nar o percurso que vai do exterior para o interior; conside­remos, agora, o percurso contrário, isto é, o que caminha de dentro para fora. Neste caso, o trajeto por nós já consi­derado em sua posição normal, se inverte, assume posição inversa e passa a percorrer, nesta ordem, os seguintes pon­tos: espírito, cérebro, nervo óptico, retina. Aí, a fonte da corrente dinâmica não se situa mais no ambiente material externo, mas sim no ambiente espiritual interno; não ema­na do objeto, mas do sujeito. O processo se inverte total­mente e as transformações não se realizam no sentido da desmaterialização, e sim no da materialização. A corrente que provém do espírito é, em princípio, radiante e o cére­bro não é mais aparelho transmissor, mas apenas receptor, exatamente como se fosse um aparelho de rádio, ou de te­levisão, que capta essa energia radiante para que, em segui­da, percorrendo a rede nervosa, possa, através do nervo ópti­co, atingir a retina. Desse modo, a imagem, passando atra­vés de vários órgãos transformadores, pode chegar ao mundo material e assumir-lhe as características. Portanto, os dois mundos, o do espírito e o da matéria, o imponderável e o tan­gível, se comunicam; ao primeiro chega, como representação imaterial, o equivalente da forma material; ao segundo che­ga, como representação material, o equivalente da forma ima­terial. Assim, através de uma série de trocas, o conteúdo de cada um dos mundos se derrama no outro, no qual, embora transformado, o encontramos sempre.

A estrutura desses dois mundos contíguos e comunican­tes não é idêntica. De um lado, temos um meio sensório-analítico; de outro, uma forma sintético-unitária. De um lado, o cérebro se ramifica por todo o corpo, através da rede ner­vosa, como se o quisesse polvilhar de células nervosas sen­sitivas para captar todas as vibrações do ambiente; de um lado, temos os canais especializados das vias sensoriais, a captação analítica, particular, definida, concreta, enquadrada nas dimensões do espaço e do tempo, canalizada e diri­gida para vias cada vez mais centrais. De outro lado, o es­pírito sintetiza e unifica no eu todas as sensações; os canais cedem o lugar a livres radiações - sem-fio; a captação torna­-se sintética, geral, imaterial, em dimensões super-espaciais e super-temporais, tendo como resultado final, elaborado e destilado ao longo do trajeto, da recepção sensória analítica do plano material. A vibração pode percorrer a estrada nos dois sentidos, com resultados diametralmente opostos. Na­turalmente, percorre a via fisiológica comum, que transmi­te ao espírito os estímulos do ambiente. A outra via é me­nos conhecida, menos comum, mas existe. Quando a vibra­ção percorre o caminho em sentido inverso, transmite ao ambiente os estímulos do espírito e nasce de movimentos da alma que todos nós conhecemos muito bem pois, embora não possamos vê-los, sentimo-los profundamente. Se, porém, a inversão do circuito sensório é excepcional, todas as nossas manifestações vitais não provêm do interior? E em que con­siste nossa vida senão em contínua manifestação de nosso espírito? Ao lado de cada uma de nossas atividades exterio­res existe a correspondente atividade interior que a dirige e guia, lhe condiciona de modo absoluto a atividade. Assim, ao lado de cada ação nossa existe a correspondente reação interior; o movimento exterior penetra na parte de dentro, imprimindo-lhe e gravando nela as suas características, assim como o movimento interno passa para o lado de fora, manifestando-se em infinidade de expressões.

Voltemos, porém, ao caso particular do fenômeno ópti­co e observemo-lhe como funciona em sentido inverso. A vibração originária constitui, desta vez, um estado do espi­rito, um fenômeno do imponderável. O primeiro trecho do percurso não se faz através de condutores, mas funciona por via radiante. Desse modo é que são atingidas as células ce­rebrais, nada mais nada menos do que aparelhos rádio-re­ceptores. Aqui as radiações, além de serem captadas, se transformam ao primeiro contato com a realidade concre­ta, isto é, revestem-se de imagens, assumem o aspecto de representação do mundo material. O abstrato dramatiza­-se, o genérico especifica-se, exemplificando-se como um de seus casos particulares, pois, enquanto o período inverso re­presenta processo de espiritualização, este representa pro­cesso de materialização. Do cérebro até à retina a vibração se define e concretiza ainda mais, até chegar à sua forma óptica, que corresponde à forma física; assim se chega à formação da verdadeira imagem na retina. O olho realmen­te registra projeção que não provém do exterior, mas do in­terior, embora com idênticos resultados visuais. Tendo a corrente percorrido o percurso todo, de um pólo a outro, o período, não importa se positivo ou negativo nem em que direção se desenvolve, está completo e o sujeito sente sensa­ção semelhante à normal, de modo que ele acredita estar vendo no espaço, sob forma concreta e vinda do ambiente exterior, aquilo que não passa da projeção materializada de uma forma imaterial, impossível de encontrar naquele am­biente. Tudo isso é levado à conta de alucinação, isto é, algo de irreal, produto de estados patológicos; no entanto, nada se tira à normalidade do fenômeno, à sua qualidade de fato natural e à veracidade da sensação que, em lugar de cons­tituir expressão do mundo exterior, como acontece nos casos mais comuns, é tão-somente expressão do mundo interior. Assim, nas visões a imagem efetivamente se forma na retina (como no caso de Bernadette de Lourdes), do mesmo modo que, em relação às vozes (caso, por exemplo, de Joana D'Arc), a vibração acústica se forma no ouvido, a mesma coisa se diga quanto aos outros sentidos. A única diferença consiste em que não vem de fora a excitação, mas de dentro, o que, aliás, pode-se compreender facilmente porque ambos os mun­dos estão repletos de energias em plena atividade. Como o mundo interior não é, como o mundo exterior, igual para todos, visto que são muito diferentes as capacidades espi­rituais e o grau evolutivo, explica-se desse modo por que, nesses casos, a sensação visual, auditiva etc., é absoluta­mente pessoal e incomunicável, isto é, seja capaz de captá­-la apenas o sujeito que se encontre em condições adequa­das. Desse fato deriva a desconfiança que ele provoca, e a pecha de patológico que gratuitamente lhe atiram.

Tudo isso pode completar as observações do volume As Noúres, estudo critico da técnica receptiva com que se es­creveu A Grande Síntese. Agora podemos explicar melhor o fenômeno da inspiração. Trata-se da captação de noúres ou correntes de pensamento que emanam de centros espirituais e ficam vibrando no espaço. Ainda neste caso, o fe­nômeno se dá por via radiante; mas o receptor não é mais o cérebro, mas o espírito do indivíduo que recebe e, exata­mente para pôr-se em condições de captar essas correntes, deve antes de mais nada colocar-se em estado de vibração harmônica ou sintonização. O mesmo fenômeno pode dar­-se entre os espíritos de dois ou mais homens vivos; ao invés de se comunicarem pelo meio mais demorado, projetando o pensamento através do cérebro, nervos, órgãos vocais, da pala­vra inclusive, preferem transmitir e receber diretamente por via radiante, muito mais rápida (telepatia). Assim, o impul­so psíquico pode partir de outros eu, não importa de encar­nados ou desencarnados. Nessa primeira fase, o pensamen­to está em estado radiante puro. Assim determinada, por causas próprias ou alheias, a vibração que se faz sentir num espírito, deste centro e da maneira já explicada, se transmi­te ela ao cérebro e aos outros órgãos sensitivos. Nem todas as percepções, porém, especialmente as de ordem superior, devem percorrer, para serem sentidas, todo o período de re­torno até chegar ao órgão sensório; pelo contrário, podem deter-se nos primeiros estágios da transformação, se se mos­trarem suficientes. No caso de tratar-se de conceitos, basta, para serem percebidos, que o cérebro os capte; especialmen­te quanto aos intelectuais, torna-se desnecessário, em abso­luto, que entrem em jogo as vias sensoriais. Assim, na captação noúrica, o pensamento desce do mundo espiritual, on­de se encontram tanto a fonte transmissora como o eu re­ceptor, que primeiro funciona como antena e, depois, como transformador, isto é, canal em que se realiza o processo de materialização da idéia, processo diametralmente oposto ao normal, que consiste na espiritualização da percepção sen­sitiva. O primeiro desses fenômenos encontramo-lo na fé, na arte, na intuição, na inspiração, nas revelações.

O cérebro, portanto, é órgão bipolar e diafragma cen­tral que, suspenso entre duas vidas, pode ser percutido pe­las duas opostas aparências da realidade. Observemos mais um pouco. De acordo com a capacidade do ser, as correntes podem mover-se numa ou noutra direção. Geralmente, por serem os indivíduos mais desenvolvidos física do que espiri­tualmente, a vibração vai da matéria ao espírito. Excepcio­nalmente, porém, as correntes podem movimentar-se ao ponto de provocar em sentido inverso a projeção sensorial, quando o indivíduo é espiritualmente forte e, em compensação, fisicamente fraco. Esse fato, aliás, já foi por nós devi­damente frisado. Para inverter a direção da corrente, tor­na-se necessário que também seja inversa a potência dos dois termos extremos. O gênio, o artista, o santo, na quali­dade de seres inspirados, são espiritualmente fortes e nisso superiores à média; pertencem ao tipo evoluído. Na vida ve­getativa do involuído, não é possível nem concebível essa reversão de sensibilidade. O indivíduo normal geralmente conhece e vive apenas a primeira metade do fenômeno, pois é limitado, atrófico e, por isso, funciona muito mal no que diz respeito ao espírito. Os tipos desenvolvidos, porém, con­seguem perceber em ambas as direções e tomar consciência não só da vida material projetada no espírito, mas também da íntima vida espiritual, percebida como projeção senso­rial. Podem, desse modo, viver não apenas uma vida, a vida vegetativa, que é a mais comum, mas duas vidas, a vida normal e concreta da matéria e a vida do espírito, feita de imponderáveis e inversa. Esse é outro mundo, imenso como o mundo físico; no entanto, muita gente não o vê, não o compreende, não lhe admite a existência. E realidade nega­da por muitos. Por aí se vê que abismo de incompreensão divide os seres diversamente desenvolvidos. Muitas das coi­sas aqui narradas se referem exatamente a essa vida para tantos inacessível; dos conceitos aqui registrados muitos baixaram, nas asas da inspiração, do mundo íntimo do espírito, isto é, graças a inversão do sentido normal da cor­rente vibratória. A "Visão", narrada em dois dos capítulos precedentes deste volume, formou-se opticamente na retina, mas de olhos fechados, graças à projeção interior, com a mesma sensação causada pela visão óptica normal. Estas páginas constituem viva aplicação dos princípios já expos­tos; são estas afirmações nada mais nada menos que re­sultado experimental.

Cada uma das duas vias, consideradas de per si, repre­senta a metade da dupla vida total. A verdadeira vida com­pleta é binômio bipolar e bifronte. Eis nova aplicação da universal lei de dualidade. E até mesmo neste caso o binô­mio se equilibra em dois termos inversos e complementares. Observemos mais ainda. Temos espírito e corpo, o impon­derável e a matéria, consciência e fenômeno, o eu e o am­biente, a vida interior e a exterior, contemplativa e ativa, a percepção espiritual e a percepção fisiológica, a impressão subjetiva proveniente do mundo interior e a impressão ob­jetiva proveniente do mundo exterior. O primeiro termo eletricamente positivo; o segundo, negativo; o primeiro é em ondas curtas; o segundo, em ondas longas; um é de alta; o outro, de baixa freqüência; e, na passagem de um a outro extremo e ao contrário, deve dar-se mudança de sinal, de comprimento de onda e de freqüência (muito mais notável que a simples normalização das imagens ópticas). Entra­mos ao nascer, no segundo tipo de vida e dele saímos ao morrer; ao morrer, entramos no primeiro e dele saímos ao nas­cer. A própria lógica da arquitetura do universo impõe esses equilíbrios todos. A verdadeira vida, completa e íntegra, oscila continuamente de um a outro de seus pólos. Só as­sim, percorrendo alternativamente uma e outra metade, o ser incompleto pode viver a vida integral. O tipo comum está na terra do lado que parece vida, mas é morte, se visto do lado oposto. Para os do além, ele parece indivíduo entorpecido, à mercê da ilusão dos sentidos. O evoluído não sabe viver apenas a vida dos vivos, mas vive também a vida dos mortos. De um lado é dia; do outro, noite; de um lado, luz; do outro, trevas. Tudo conforme, é claro, com a posi­ção em que nos encontramos. Na terra, para os vivos a via direta e normal da percepção é a fisiológica; a inversa e ex­cepcional é a via espiritual. Para os mortos ou, melhor, pa­ra os vivos de além-túmulo, a via direta e normal da per­cepção é a espiritual; a via inversa e excepcional é a via fi­siológica. Entre as duas formas de sensibilidade existe a mesma relação que entre vigília e sono; a primeira caracte­riza-se por percepção límpida e exata; a segunda oferece-nos percepção vaga, sonambúlica. Quando o estado ativo se manifesta num lado da vida, as qualidades do lado opos­to permanecem latentes, em estado de espera e em repouso Assim, funcionando cada uma por sua vez desenvolvem-se graças a essa atividade alternada, enquanto a outra parte, a antítese do binômio, permanece por sua vez à espera. Essa oscilação entre atividade e repouso, entre ausência e presen­ça, entre vida e morte, constituí o ritmo do fenômeno vida, em relação a cujos ritmos se fazem as harmonias univer­sais. O fenômeno vida não pode constituir exceção dessa lei de simetria, de justiça compensadora. Em nosso universo, tal como está construído, não passa de absurda qualquer po­sição de desequilíbrio, não compensada pelo correspondente impulso contrário. Uma única exceção faria desabar todo o edifício.

A percepção inversa, espiritual, pode dar-nos idéia do tipo de sensações dominantes do além-túmulo. Além disso, se aparecem também neste mundo e, portanto, existem co­mo fato objetivo e experimental (clarividência, inspiração, visões, profecia), é-nos lícito perguntar para que servem, tendo em vista as finalidades biológicas, as qualidades su­per-normais. E não nos esqueçamos de que, na natureza, todas as coisas existentes, pelo simples fato de existirem devem ter objetivo determinado. Trata-se de qualidades que esperam sua vez de entrar em atividade; estão adormecidas agora, mas viverão na outra vida, que chamamos morte. Por isso, enquanto a sensação terrena resulta da vibração específica de uma série de células enfileiradas à maneira de canais condutores, no além-túmulo a sensação é causada por um estado vibratório sutil (de ondas curtas e alta freqüência), que, todavia, abrange todo ser imaterial. Teremos sensações de grande extensão e alcance, se comparadas com as sensações limitadas, mas precisas, da vida terrena; no entanto, para nós que estamos chumbados às vias limitadas dos sentidos, pareceriam evanescentes, imateriais, indefini­das, flutuantes e sonambúlicas. A sensibilidade do desen­carnado é difusa, não possui órgãos específicos aptos a captar vibrações particulares e definidas; sensibilidade, para nós estranha e fantástica, como que adormecida, em transe, sensibilidade de conjunto e não de minúcias como a nossa, mais sintética que analítica. Assistimos neste caso a uma espécie de vaporização da sensibilidade (entendida de acordo com o sentido terreno), que em compensação au­menta de intensidade relativamente às qualidades opostas àquelas qualidades materiais em que se lhe torna maior a debilidade, isto é, como generalização e abstração. Assim, a verdadeira solução dos problemas reside mais na intuição do que na razão, a centelha reveladora brilha no espírito intuitivo e não no cérebro raciocinante, que não cria, mas apenas explica e aplica. Da parte do corpo temos o espaço e o tempo, quer dizer o limite. Da parte do espírito, o infinito e a eternidade. A extinção dos limites importa na ubiqüidade e na presciência do futuro. O eu espiritual vê lon­ge, vê o conjunto, é bem orientado, sábio, olimpicamente calmo. O eu vegetativo está encerrado no espaço e no tem­po, isto é, na prisão do limite, está sujeito a fatigante cor­rida para superá-lo, anseia pela evasão, é analítico e deso­rientado, vive e percebe apenas as particularidades, entre coisas insignificantes e transitórias. O mundo de além-tú­mulo é o dos valores morais; o mundo de aquém-túmúlo é o dos valores materiais, da luta, do trabalho, da riqueza. O senso moral emana do espírito. Tudo isso naturalmente presume adequado desenvolvimento até mesmo em relação ao lado, espiritual, da vida; sem ele não podemos alimentar a esperança de encontrar as qualidades que lhe são inerentes. Do lado de lá, atividade especulativa e abstrata; deste atividade utilitária e concreta. Duas formas de vida, duas linguagens completamente diferentes: contemplação e ação. Todo mundo tem virtudes e qualidades próprias e uma escala de valores exclusiva. No topo da escala de valores terrestres coloca-se o interesse egoísta; no da escala de valo­res espirituais estão a bondade e a justiça. O Evangelho, o reino dos céus pertencem ao mundo do lado de lá; são luzes que dele promanam, revelando-no-lo. Cada um de nós ima­gina o paraíso a seu modo e luta para conquistá-lo, ou do lado de cá ou do lado de lá. Quem hoje goza na terra amanhã sofrerá na outra vida; quem hoje sofre no mundo, amanhã go­zará no céu. O Sermão da Montanha, quando diz "Bem-aven­turados os que sofrem; amanhã gozarão", exprime a lei de dua­lismo e equilíbrio e mostra uma das aplicações de sua lógi­ca e justiça supremas. Quem executa bem suas tarefas nes­te mundo, executa mal suas tarefas do lado de lá e ao con­trário. Os valores se invertem. Assim a sublime loucura da nobreza se explica como condição necessária de grande ri­queza espiritual.

A qualidade do espírito é a sensibilidade e todo espiri­tual é um sensitivo. O evoluído é o tipo biológico que co­nhece essa outra vida também e os seus valores. Tudo isso o involuído ignora. Aquele tipo biológico é o canal por onde estes valores descem na terra e fator da fecundação espiri­tual da matéria. A tarefa do artista consiste em plasmar a forma que nos revele o imponderável, representando-o a nossos olhos; deve, pois, inspirar-se em valores eternos; se, no entanto, vai buscar inspiração a coisas rasteiras, represen­tando os valores terrenos, o artista trai e deixa de cumprir a própria missão. Dos equilíbrios da vida participam também as atividades supranormais, que outra coisa não represen­tam senão legítima função biológica. Por aí se vê que a so­ciedade humana precisa também do artista, do inspirado, do gênio, do santo; embora quase sempre incompreendidos e maltratados são indispensáveis, cabe-lhes a tarefa de, en­frentando sozinho todo risco e canseira, mergulhar nos abis­mos do mistério, apoderar-se-lhe dos valores e trazê-los até ao plano humano, a fim de dinamizá-lo, orientá-lo, dirigi-lo. A matéria não é auto-suficiente, sabe viver e progredir ape­nas se animada pela divina centelha do espírito. Aqueles seres, ainda raros, representam na sociedade as células es­pecializadas na função evolutiva. O involuído mostra-se in­capaz de progredir sozinho e fortalecer-se; por isso, necessita dessas antenas reveladoras e desses canais dinâmicos. Os sábios equilíbrios da Lei suprem-lhe essa incapacidade, for­necendo-lhe esses apoios. Ele, então, crê. Quem se revela incapaz de por si mesmo ver é constrangido a acreditar piamente em quem vê por ele. Quem não sabe, à custa dos pró­prios meios, subir o áspero caminho espiritual se vê obriga­do a apoiar-se em quem o sabe e a depositar confiança em quem, tendo visto, dá testemunho de tudo quanto viu. Por isso, quem sabe assume o compromisso de testemunhar a verdade; se cala, trai sua função biológica de célula evolu­tiva, mesmo que proclamar a verdade possa às vezes levar ao martírio. Na divisão do trabalho da vida a parte que lhe toca é essa. Se não puder oferecer a todos a prova direta do que, por transcender as capacidades e experiência comuns, se mostra inconcebível, sua vida de evoluído, orientada de modo bem diverso, deve ser tão sublime que constitua prova bastante. Desce, desse modo, até nós a evanescente realida­de do espírito, que, embora lhe constitua a própria alma, nossa vida concreta sempre nega; a estranha e longínqua rea­lidade que gostaríamos de esquecer e, no entanto, estamos continuamente seguindo, invocando-a nas preces, represen­tando-a nos ritos, materializando-a nas criações artísticas. A humanidade concorda de tal modo com a existência do invi­sível que, com fundamento nesse acordo, se tornou possível o aparecimento das religiões. Se estas existem, possuem tanta importância histórica e social e exercem poderosa influên­cia na vida dos povos, daí se conclui que elas satisfazem uma necessidade, um instinto e, por isso, desempenham uma função. De fato, na natureza todo apelo que exige resposta possui significado bem determinado. Normalmente, somos incapazes de, sozinhos, chegar até ao espírito; não o vemos, embora nos chame e nos atraia; foge-nos e, no entanto, está entre nós; comove-nos e nutre-nos; a realidade quotidiana, colocada bem no outro extremo da vida, nega-o, embora lhe presuma a existência. Assim, através dessa via sensorial in­versa por nós examinada, o espírito desce até nós e se comunica conosco. Eis o que acontece quando o crucifixo de S. Damiano fala a S. Francisco, Joana D'Arc ouve as vozes de Donremy, Teresa Neumann vê a paixão de Cristo, a beata Angela de Foligno escreve movida por inspiração, S. João vê na Ilha de Patmos o drama do Apocalipse. Tanto na vi­são como na audição super-normais a percepção vem do mun­do interior e não do mundo externo. Isso levou muita gente a acreditar se tratasse de tipos de alucinações, patológicas apenas porque anormais, de projeções subjetivas e, só por isso, irreais. No entanto, a subjetividade constitui-lhe exatamente a característica lógica e natural. A sensação se origina de vibração que não provém do mundo exterior, mas do mundo interno, não deriva de fonte objetiva dotada de existência própria, independentemente do sujeito, per se stante, em si mesma igual para todos, embora ainda neste caso o modo de percebê-la não seja o mesmo para todos. Assim se explica e justifica a subjetividade da percepção, isto é, por que a luz e o som apenas possam ser percebidos pe­lo sujeito. Os homens normais não percebem coisíssima alguma. Embora presentes, não vêem nem ouvem. Para que tivessem idêntica sensação, igual capacidade de ver e ouvir, deveriam encontrar-se nas mesmas condições, particulares e excep­cionais, do sujeito. Como isso se torna muito difícil, não lhes resta senão tentar reconstruir, deduzindo-a do estado do su­jeito, essa fugacíssima realidade íntima. Quando a ciência estuda esses fenômenos, o germe da incompreensão já se encontra nas suas premissas, isto é, na dúvida, no seu mé­todo de investigação, quer dizer, na experimentação objetiva, e na sua atitude sensória, cerebral e racional. Mas, no êxtase como na prece, não nos armamos de instrumentos de análise, de aparelhos de laboratório, para aumentar nossa capacidade de observação, mas abandonamo-nos inteiramen­te à visão introspectiva, fechamos os olhos e concentramo-nos, olhamos para dentro de nós mesmos, do lado do espí­rito, isto é, exatamente na direção contrária à seguida pela ciência. O antagonismo entre ciência e fé (embora não se apoie em razão substancial, visto como constituem ambos apenas os dois extremos opostos da verdade e dois aspectos da realidade) nasceu precisamente do fato de que a fé diz res­peito ao mundo interior, ao espírito, e a ciência se refere ao mundo externo, à matéria. Todas essas afirmações nossas parecem fantasia aos olhos da ciência justamente porque não resultam da observação, e sim da introspecção, exames orientados para direções diametralmente opostas. A reali­dade do positivismo científico constitui uma das metades da realidade completa. A outra é a dos artistas, poetas, santos, pensadores, místicos, inspirados, é a de todos os ho­mens do espírito

XXVII

A PERSONALIDADE HUMANA (1ª PARTE)

Agora que percorremos caminho tão comprido podemos finalmente enfrentar o problema da personalidade humana. Mas, antes de mais nada, observemos mais uma vez os proble­mas precedentes. O estudo da lei de dualidade conduziu-nos a visão da vida total e completa, mais ampla que a unilate­ral vida física. Nada mais lógico que, como todas as indivi­dualidades, também essa unidade da vida se divida em me­tades justapostas. A vida completa, como um pêndulo a os­cilar continuamente, vai de um a outro de seus extremos e percorrendo esse caminho oscilante, evolui, não como vulgar­mente se pensa, isto é, através de simples evolução biológica terrestre, mas sim através de evolução dupla, inversa e com­plementar, a material terrena e a espiritual ultra-terrena, a do corpo e a do espírito. Uma vez que tudo é bipolar, é lógico que também o homem deva passar por duas experiências opostas, a da vida ativa e da vida contemplativa. Para conceber a existência no além-túmulo, basta-nos imaginá-la como o inverso da existência terrena. Dissemos que a psique apenas contém os resultados conseqüentes das experiências possíveis no ambiente que a cerca, isto é, não pode ser impressionada senão por elementos oriundos do mundo exterior. Essa cren­ça, se podemos explicá-la como resultante da concepção co­mum que se faz da vida ou, seja, da meia-vida e não da vida completa, todavia não corresponde à realidade. Quem pos­sui a vida terrena e a vida espiritual sabe muito bem que a psique contém, em quantidade e variedade, muito mais do que o ambiente externo pode oferecer e que grande parte de nossos conhecimentos podem, por vias interiores, provir de outras realidades. Os sonhos, a intuição, a inspiração proporcionam-nos sensações e resultados diferentes dos senso­riais, filhos da experiência terrena, oferecem-nos concepções diversas das comuns concepções racionais, demonstrando co­nhecimentos que a terra não pode dar. A sensibilidade do evoluído fica na fronteira de dois mundos e sua psique se enriquece com as experiências nascidas de duas realidades diversas. Muitas vezes o mundo interior lhe oferece muito mais do que o mundo externo. Mas, seja quem for o indiví­duo, por mais rudimentar e inerte que se mostre seu espírito, a percepção interior sempre dá sinal de si, embora fraco; não existe quem, em algum momento da vida, não a te­nha experimentado, mesmo embrionariamente. Quem viveu o fenômeno inspiração sabe como é lábil e pronto a evanes­cer-se qualquer conceito espiritual, cuja radiação ainda não alcançou o cérebro e como só então o sujeito adquire cons­ciência desse conceito e se torna senhor dele. Sabe como a solução dos problemas percorre vias absolutamente independentes dos processos lógicos e racionais e como o relâm­pago, que ilumina uma zona de pensamento, de improviso o apreende. Poincaré, no seu livro Invention Mathématique registra nestes termos o fato: "O que nos fere a atenção desde logo são as aparências de súbita iluminação, reveladoras de longo e prévio trabalho anterior". O autor observa, à custa de experiência própria, que nesses casos o pensamen­to se caracteriza pela rapidez, subitaneidade e certeza imediata. Quando menos se espera, apresenta-se à nossa mente a solução de problemas já de há muito propostos. Podería­mos citar inúmeros trabalhadores intelectuais, como, por exemplo, Goethe, para quem a criação artística não passa­va de revelação. Isso nos mostra como grande parte de nós mesmos opera fora do campo da consciência lúcida, onde se manifestam apenas os resultados de numerosos processos de elaboração e maturação. Nesses casos como influem pou­co nossa vontade e nosso esforço! Nossos conceitos podem ficar adormecidos dentro de nós, bem recalcados e invisíveis nos planos mais profundos da consciência. Não obstante, desenvolvem-se e se aperfeiçoam, como se, aí nessas profun­didades, reencontrassem a ordem divina, e se fortalecessem graças à retomada de contato com a essência e as origens das coisas. Mais cedo ou mais tarde, porém, uma vibração afim os desperta e por sintonia (as outras vibrações não o conseguem) os faz reaparecerem, como um relâmpago, no campo da consciência. Percebe-se facilmente que se trata de criação pura e simples; constitui conquista de espírito, que exulta por desse modo aproximar-se de Deus. A medi­tação prepara o fenômeno, coloca a matéria-prima no abis­mo do espírito, propõe o problema e lança a interrogação. Silêncio. A mente debate-se no redemoinho do pensamen­to, não consegue escapar-lhe, logo se cansa e esquece. Mas pôs em liberdade uma força que continuará agindo. Onde? Como? Esquecemo-la, chegamos quase a ignorá-la. E eis que de repente ressurge, transformada, fortalecida, luminosa. E antes se nos mostrava obscura e cansada! A alma, então, grita, como Arquimedes pelas ruas de Siracusa: "Eureka, eureka". Quem viveu o fenômeno inspiração sabe que a con­cepção mais profunda corresponde a uma posição psiquicamente inerte, de desatenção passiva, de distração relativa­mente ao assunto ou, mais exatamente, num estado de ine­xistência do pensamento ativo normal; sabe que, quanto mais rápido e percuciente for do ponto de vista sensorial, quanto mais, em relação à vontade, tende para a pesquisa e a observação, tanto mais esse pensamento serve de obstáculo à intuição. Sabe também, por experiência, que toda atividade reflexa de atenção e controle, toda tentativa cons­ciente no sentido de passar do estado passivo de contemplação ao estado ativo de apreensão (recordação, controle, ra­ciocínio, escrita etc.), destrói a miragem e faz as idéias se desvanecerem.

Isso tudo nos mostra esta grande verdade: a criação ins­pirada constitui fenômeno de colaboração entre o homem e Deus, isto é, a construção, como se poderia crer, não resulta apenas da vontade e da ação, mas também no cumprimento da Lei, na obediência a Deus, a quem devemos entregar-nos sem reservas. Mostra-nos também que a finalidade criadora se atinge ativa e passivamente, não só se impondo às sábias forcas vitais, mas também deixando-se arrastar por elas. A sabedoria egípcia resumiu num aforisma esse conceito: "o arqueiro atira ao alvo, esticando e soltando o arco; o nada­dor chega à praia, nadando e ao mesmo tempo deixando-se levar pelas ondas". Em conseqüência da lei universal de dualidade, também esse fenômeno resulta do equilíbrio de duas partes inversas e complementares. Portanto, queremos e fazemos tudo quanto for necessário; somos, porém, tão ig­norantes, limitados e imperfeitos que necessitamos de ser guiados por uma sabedoria que nos supra a ignorância e por uma força capaz de trabalhar onde a nossa não o con­siga mais. E além de nossas possibilidades está a Lei que satura a corrente das coisas com o pensamento de Deus e plena de natural sabedoria. Assim, parte de nossa melhor atividade pode consistir em obedecer à vontade de Deus. Assim, depois que fizemos nossa parte do trabalho, nossa obri­gação cessa e convém abandonarmo-nos à Providência. Por isso o mundo consegue, em caótico estado de inconsciência, falar sobre assuntos de que não entende absolutamente na­da. Do ponto de vista racional isso se chama inconsciência, pois o homem não prepara e, além do mais, ignora o seu fu­turo. Mas, do ponto de vista da intuição, no instinto em que a Lei se faz ouvir, essa atitude representa, em essência, maravilhosa fé na sua sabedoria e na proteção divina. E a vida, que se sabe protegida, vai progredindo. Apenas desse modo se justifica o fato de querermos continuar a viver e a reproduzir-nos para irmos ao encontro de futuro pleno de espantosas incógnitas, embora saibamos que a vida nos ofe­rece apenas canseira e dor.

A intuição constitui fenômeno espiritual e, por isso, re­vela e cria. A razão, ao contrário, é função cerebral e, pois, mais do que à concepção de grandes idéias reveladoras, ori­entadoras e sintéticas, se destina às pequenas idéias da vida terrestre, práticas e analíticas. Algumas aplicações. A ciên­cia moderna tem desvantagem em ignorar a vida do espírito e não dispensar-lhe cuidado algum. Esta ciência, porém, é filha de fase materialista do pensamento humano, quer dizer, racional, em antítese com a fase intuitiva; limita-se, em conseqüência, ao lado terrestre, prático, utilitário e mate­rial da vida. Pelo menos, enquanto essa fase não for superada, a ciência moderna não pode conhecer-lhe senão a re­ferida parte. Enquanto isso, permanece na zona constituí­da de experimentos, análises, afastada da que se constitui de intuições e sínteses. Isso a torna incompleta, mutilada pela orientação, pela visão de conjunto necessárias para di­rigir as pesquisas e chegar a uma conclusão. De fato, a ci­ência moderna tem finalidades utilitárias e não sabe pô-las de lado. Essa unilateralidade representa lacuna e defeito graves. Mas também a síntese é necessária, mas a síntese não se consegue senão através da intuição, isto é, traba­lhando no pólo oposto ao em que trabalha a ciência ou, seja, no pólo espiritual. Ativa ao lado material, a ciência acumu­la conhecimentos, porém não fecunda. Falta-lhe a centelha do espírito. É necessário, sem dúvida, acumular conhe­cimentos materiais; mas é necessário também, como acon­tece no binômio sexual, que mais tarde o outro termo inter­venha e os fecunde. Se isso não se der, coisa alguma pode nascer. Quem afirma ser verdadeiro apenas o que possa ser demonstrado experimentalmente não exprime senão parte da verdade e ignora a outra metade, que afirma serem fruto de inspiração, fruto mais do espírito que experimental, de laboratório, todas aquelas verdades fautoras do progresso científico. Como conseqüência das observações até aqui fei­tas assinalamos, para o bem da ciência, o perigo constituído pela exasperação analítica de nossos dias, limitados a acumu­lar experiências ao invés de se estenderem à descoberta de relações remotas, o perigo da especialização divergente devida ao predomínio desse método analítico. Se não ocorrer mudança de direção, que inteligentemente nos impulsione para direção convergente e conclusiva, esse caminho nos conduzirá à pulverização da consciência. Membros não nos faltam; o que nos falta é cabeça. Os fatos acumularam-se demais; falta-lhes o senso unitário da coordenação. Há cen­to e poucos anos Augusto Comte escrevia em seu curso de Filosofia Positiva, anunciando o advento do período atual: "O presente período é a idade de especialização, graças a universal preponderância do particular sobre o espírito de conjunto". A observação muito minuciosa nos tornou míopes. G. B. Shaw chega a dizer: "Ninguém pode ser puro espe­cialista sem ser perfeito idiota, no mais rigoroso sentido do termo". Leonardi na introdução de seu livro A Unidade da Natureza (1933), acrescenta: "Seria necessária uma classe de cientistas que, sem entregar-se inteiramente à cultura especializada, se ocupasse unicamente da determinação do espírito das diversas ciências, descobrindo-lhes o nexo, a fim de determinar-lhes os princípios comuns". Henri Poincaré, no seu livro A Hipótese e a Ciência, afirma que "também as ciências, inclusive as mais exatas, necessitam de certa ins­piração e devem seus progressos ao fatigante trabalho das faculdades subconscientes". Em seguida acrescenta: "É quase infinito o número de fenômenos; por isso, não pode­mos submetê-los todos a experiências". "A menos que não se queira conseguir simples acumulação de fatos... pois a experimentação nos dá apenas certo número de pontos iso­lados, torna-se necessário ligá-los". Não basta, portanto, que a observação registre e a experiência controle; não caminhamos de modo algum senão à luz da intuição. Esta, natural­mente, deve submeter-se ao controle da experimentação, que, sozinha, jamais abandona os atalhos experimentais para percorrer a estrada real do conhecimento. Ao lado das pequeni­nas experiências particulares, espalhadas pelo infinito mundo fenomênico, é necessária também a experiência unitária do ego, único a quem se torna possível aproximar-se do pensa­mento divino. Para subirmos pelos caminhos do espírito, necessitamos de uma atitude de fé e de prece. Os caminhos da dúvida e do controle sensório nos levam para o lado da matéria, para a periferia, afastando-nos cada vez mais do centro. Os primitivos, que em lugar de senso de análise, como nós, possuíam senso de síntese, enfrentavam de modo diferente o mesmo enigma que nos assoberba. Enquanto enfrentamos o mistério, como a um verdadeiro inimigo, ar­mados de todos os recursos e todas as astúcias, para derro­tá-lo, dominá-lo e submetê-lo a nós, os antigos se aproxima­vam dele com palavras sagradas e solenes que suscitavam no coração dos homens o silêncio e a veneração. Hoje em dia, porém, não queremos tanto contemplar, compreender e harmonizar-nos como intervir na natureza, operar, influin­do nos ritmos da vida para submetê-los ao nosso desejo. Este mais parece um assalto à Divindade. Nossa época ten­ta-o de novo. Semelhante experimentação se conduz por tentativas, com movimentos completamente desorientados, na completa ignorância das conseqüências e reações que possam desencadear. Isso é extremamente perigoso em univer­so tão orgânico e interdependente, num campo de forças tão sensíveis e equilibradas. Ninguém desconhece a impor­tância da contribuição do método positivo experimental. Afirmamos, isso sim, a necessidade de completá-la com a contribuição oferecida pelo método intuitivo. Do mesmo modo que a vida, a ciência é bipolar; e, assim como estive­mos à procura da vida total e completa, procuramos agora a ciência completa nos seus dois ramos: razão-análise e in­tuição-síntese. A intuição não é considerada como caso ex­cepcional e pouco apreciável, mas elevada a verdadeiro sis­tema de pesquisa. Os resultados do objetivismo, que vêm de baixo, deveriam fundir-se com os resultados do subjetivismo, vindos do alto. Deveriam dividir entre si as duas fases do trabalho, uma consistente em encontrar, a outra em anali­sar e demonstrar. Por que motivo, então, nos é tão difícil encontrar na prática conceitos assim fáceis de compreender, tão lógicos e persuasivos? A razão é esta: a intuição apenas pode ser exercida por tipo biologicamente selecionado, isto é, pelo evoluído, de que há poucos exemplares e esses mes­mos acabam sendo, cedo ou tarde, eliminados pela socieda­de na luta pela vida.

A sede dessas fontes particulares, a que agora lançamos um apelo, se encontra na personalidade humana, imenso problema cujo resumo procuraremos fazer nestas últimas pá­ginas, a título de coroamento desta obra. Não poderíamos enfrentá-lo antes de propormos a solução de tantos outros problemas até agora tratados, que lhe servem de orientação e dos quais o problema da personalidade serve de fecho. Co­meçamos a falar da personalidade nos fins do capitulo XXVI. Mas era necessário percorrer outro caminho e antepor ou­tras demonstrações para que agora possamos continuar ela­borando a conclusão. Na parte final daquele capítulo, defi­nimos a lei de dualidade. Não pode fugir à lei universal o problema que agora nos preocupa. Até mesmo essa indivi­duação constitui, por isso, unidade dupla, isto é, formada de metades inversas e complementares, em choque e em equi­líbrio. Também nesse caso nasce desse choque aquela ela­boração intima que lhe constitui a evolução. Vimos as características dos dois termos da unidade e agora retomamos o contato com eles. Portanto, a personalidade humana é bipolar: espírito e matéria, alma e corpo. Quer dizer: equi­líbrio e desequilíbrio. Do movimento das duas partes, que se entrechocam, nasce a elaboração evolutiva. As duas par­tes são amigas e rivais, atraem-se e repelem-se, procuram­-se e evitam-se; estão ligadas uma a outra, para que assim possam viver, mas, apenas uma delas se mostra mais fraca, a mais forte predomina e invade o campo da outra. Disse­mos que as raízes do psiquismo mergulham profundamente nos meandros misteriosos da estrutura orgânica. Acrescen­temos agora que as causas e as razões da estrutura orgâni­ca estão sediadas na parte mais elevada do campo do psi­quismo. O mistério do espírito estende-se até à intimidade da célula, cuja complexa estrutura já estudamos. A vida palpita num e noutro pólo, desde a inconfundível individua­lidade sintética e unitária à extrema ramificação sensorial, à infinita multiplicação celular, à analítica pulverização fe­nomênica ambiental. O eu é duplo, não fica no centro ape­nas, mas também na periferia, ora analítico, para captar e absorver experiências, ora sintético, para resumi-las e des­tilar-lhes as qualidades; no centro, permanece idêntico a si mesmo, como eu inconfundível; na periferia, flutua em meio a experiências mutáveis. A corrente move-se em duplo sen­tido: o mundo interior nutre-se das vibrações provenientes do mundo exterior, mas acaba dominando-o e plasmando-o à sua vontade. A atividade celular repercute na atividade psíquica e ao contrário. O eu pode ser concebido como cen­tro apenas enquanto pudermos relacionar-lhe a idéia com­plementar de periferia. Assim, a personalidade espiritual pode significar a síntese de inteligência celulares; e o ocea­no dos microorganismos celulares, inclusive o átomo e seus elétrons, representará o veículo dessa personalidade, como corpo, roupagem da alma. O espírito, uma vez que é o cen­tro, pertence a todos os pontos da periferia: é o centro e, ao mesmo tempo, a periferia.

No homem se repete, em ponto pequeno, o plano cons­trutivo do universo; o microcosmo é feito à imagem e seme­lhança do macrocosmo. A natureza obedece a esquemas úni­cos e simples, repetidos em todos os estágios evolutivos, em todas as dimensões e presentes em todas as complexidades, de maneira que, para dirigir e animar tudo, basta um úni­co princípio, método e dinamismo. As infinitas manifesta­ções fenomênicas obedecem a um só motor e a um só tipo diretivos. E isso de um extremo a outro, dos mais complexos agregados às unidades mais elementares, (por exemplo: do sistema solar ao átomo). Assim, todo fenômeno não passa, em substância, de uma espécie do mesmo modelo; todas as formas se calcam no esquema originário de que derivam os demais. Torna-se fácil, portanto, compreender a analogia entre todos os fenômenos e justificar-lhes o parentesco. Daí a possibilidade de reduzi-los a tipo único; assim se explicam as comparações, a que tantas vezes recorremos, entre os fe­nômenos morais e físicos e a relação unitária dos campos mais díspares. Como a personalidade humana, também o universo é bipolar e construído segundo o mesmo princípio. A unidade máxima, ao invés de constituir-se exceção, confirma a lei de dualidade. Essa bipolaridade é a estrutura interna do monismo, que é dualístico. As observações, que até agora fizemos e culminaram no estudo da personalida­de humana, corroboram esse conceito e resultam nesta con­clusão. Os dois termos do binômio, embora extremos opostos e distintos do fenômeno, estão indissoluvelmente unidos, funcionam conjugados, condicionam-se reciprocamente, po­dem ser considerados como luz e sombra um do outro. São, portanto, distintos e distinguíveis, Criador e criação, alma e corpo; princípios diferentes, porém, pelo fato de serem com­plementares, de funcionamento único, indivisível, recipro­camente condicionado e, portanto, equilibrado, de modo que a queda de um termo importa na do outro. No esquema de nosso universo, pelo menos tal qual se nos revela hoje, não tem sentido a sobrevivência de um termo só. O equilíbrio de impulsos que o rege impõe não se possam os dois termos separar sem ruína total. Isso não é simples hipótese ou teo­ria filosófica, mas verificação objetiva do estado atual das coisas. Portanto, o eu central, no universo e na personali­dade humana, está presente na intimidade até mesmo do último átomo de seu organismo físico; como já dissemos, é ao mesmo tempo centro e periferia. Deus encontra-se no centro e em toda parte. Como poderia, doutro modo, estar em toda parte? A causa está no efeito e o efeito na causa. Transcendência e imanência constituem os dois pólos do mesmo binômio. O hipersensível evoluído, que como S. Fran­cisco sente e, por isso, não pode negar essa presença de Deus em todas as coisas, não é panteísta. E não constitui panteísmo afirmar que o binômio Deus-universo, o espírito-matéria, é inseparável e igualmente relacionados em recíproco funcionamento; não o constitui, também, dizer que os dois ter­mos, embora opostos, se acham tão impregnados um do ou­tro ao ponto de qualquer um, deles, presente e ativo, pene­trar profundamente no campo do outro. Tal o significado, em A Grande Síntese, de: "Monismo, quer dizer, o conceito de um Deus que, ao mesmo tempo, é a criação" (Cap. VI); "Em todas as suas manifestações, Deus é onipresente" (Cap. XI); "Tudo deve reentrar na Divindade" (Cap. LXIII); "Não temais diminuir-lhe a grandeza, dizendo que Deus é também o universo físico" (idem). Esses conceitos vamos aprofundá-los e esclarecê-los mais no próximo volume: Problemas do Futuro.

Voltemos ao problema da personalidade humana. Já dissemos resultar a evolução biológica de evolução dupla e inversa, a material, terrena, e a espiritual, ultra-terrena; ela realiza-se através de duas experiências opostas, isto é, de vida ativa e de vida contemplativa. Quem realiza esse trabalho? E como se divide ele? O espírito, de sinal positivo, masculi­no, dinamiza e dirige a evolução. Preside às experiências da vida. Emprega-as para elaborar-se e, por conseguinte, ela­borar também o seu corpo, aperfeiçoá-lo, desmaterializá-lo. O espírito evolui em direção a planos cada vez mais eleva­dos, arrastando-se atrás de seu veículo material, quer dizer, utiliza corpos cada vez mais sutis, adaptados à sua fase evo­lutiva e a formas relativas de vida. Compreende-se que, pa­ra poder fazer experiências, o espírito sempre necessita de um corpo, na função de outro extremo do binômio; para isso, não importa esteja o corpo desmaterializado ao ponto de pa­recer incorpóreo. Ele sempre constitui veículo adequado, quanto à finura e à sensibilidade, ao grau de evolução atin­gido pelo indivíduo, que, graças ao seu peso especifico, se equilibra, escolhendo um ambiente onde as provas sejam proporcionadas às qualidades adquiridas por ele.

O organismo corpóreo, de ondas longas e baixa freqüência, segue, portanto, o espírito que caminha para a evolução, isto é, aproxima-se, morrendo e ao mesmo tempo renascen­do, do extremo oposto, de ondas curtas e alta freqüência, transformando sua vibração em vibrações deste último tipo; em uma palavra: espiritualiza-se. A corrente de vibrações, que sobem das múltiplas experiências sensoriais e convergem para a síntese espiritual, fornece as forças a elaborar; ao mesmo tempo, porém, uma corrente paralela desce do espi­rito ao organismo, invade-o com tipos de energia cada vez mais bem elaborada, quer dizer, de ondas cada vez mais curtas e freqüência cada vez mais alta; desse modo, lentamente o potencial de toda a personalidade se eleva de um extremo a outro, inclusive na parte física. Dessa oscilação de ativida­de, conexão e repercussão de forças deriva a evolução. Em­bora a evolução se opere graças ao princípio ativo, o nega­tivo também colabora; não fora ele, e faltaria ao primeiro a matéria a ser plasmada, a substância com que construir. Observamos nesse caso a mesma divisão de trabalho exis­tente entre homem e mulher. O organismo físico coleta e acumula; o espírito dinâmico elabora e progride. O primei­ro engorda, preguiçoso e vegetativo, e se sacia apenas satis­faz os instintos de conservação e de reprodução; o segundo gasta a vida vegetativa na consecução de fins mais elevados, bate-se e atormenta-se na ânsia de evoluir. Esse é o duplo aspecto da vida.

No entanto, esse dualismo espírito-matéria não basta para esgotar o problema da personalidade. Não é a única bipolaridade da vida essa antítese entre periferia e centro, entre as correntes de ascese e descensão pelas quais se dis­tribui, entre os dois termos, o positivo e o negativo, a ativi­dade evolutiva. A esta bipolaridade, que poderíamos figu­rar como bipolaridade vertical em que, do ponto de vista evolutivo, a matéria está em baixo e o espírito em cima, ima­ginaríamos superposta uma bipolaridade horizontal em que o princípio biológico positivo, derivado do núcleo do esper­matozóide paterno, e o princípio biológico negativo, deriva­do da célula-ovo materna, se situam à direita e à esquerda da bipolaridade vertical. A consciência humana, portanto, é o ponto de convergência da orquestra de vibrações provenientes dessas quatro grandes vias determinadas pelo cru­zamento dos dois binômios. Disso é que somos constituídos, somos filhos e parentes, isto é, desse conjunto orgânico de forças e correntes, quer dizer, de algo muito mais complexo e extenso que a carne dos nossos pais, por mais que essa carne tenha vivido e traga inscrita em si mesma a sua his­tória. A personalidade humana abrange os dois binômios, isto é, encerra em si quatro elementos que necessitam de fundir-se, embora lutem para se destruírem, dois desequilí­brios de forças à procura de reequilíbrio, isto é, duas fontes de movimento, de contraste, de sensação. Conforme concor­dem, forte ou fracamente, deles derivará estado de maior ou menor entrosamento ou de maior ou menor contraste e po­der criador e, desde as notas graves até as mais agudas, mais ou menos profunda e extensa gama de ressonâncias e rique­za de sentimentos A personalidade serve de campo de ba­talha a essas forças, que se encontram dentro dela e podem ser calmas e concordantes ou impetuosas e discordantes ao ponto de transformá-la em violento explosivo. Pode a per­sonalidade, pois, manifestar-se sob tantos aspectos quantas são as posições por ela assumidas e variáveis de um extremo a outro, isto é, de um estado de passividade inerte a outro de intenso dinamismo criador, derivante de desequilíbrio que se não o sabem dominar, pode precipitar-se na loucura. Procuraram identificar o gênio com a loucura, não porque am­bos possuam algo de comum, como estado e resultados, pois a diferença entre os dois termos jamais foi tão profunda, mas porque o desequilíbrio originário do dinamismo cria­dor do gênio fica a um passo apenas da anarquia espiritual da loucura. A superioridade do gênio, porém, reside exata­mente na capacidade de domínio e de coordenação das pró­prias forças, de que jamais perde o controle. Domínio e co­ordenação muito mais fáceis para o homem normal, dotado de recursos bem mais escassos. Em todo caso, porém, em face desses elementos fundamentais que constituem a per­sonalidade, o segredo da vida consiste em saber encontrar a harmonia.

As correntes vibratórias que nos percorrem a personali­dade, fluem, portanto, de quatro fontes, representantes de quatro mundos, quatro sínteses, fruto de longo passado. São: 1) o eterno eu espiritual; 2) o ambiente terrestre; 3) o ele­mento paterno; 4) o elemento materno. Se grafarmos a reta da bipolaridade vertical sobre a reta da bipolaridade hori­zontal, obteremos o desenho de uma cruz, em que os quatro termos correspondem aos quatro braços. Na cabeça da cruz teremos o espírito, nos pés o ambiente-matéria, no braço es­querdo o elemento paterno e no direito o materno. As expe­riências ambientais, se quiserem atingir o espírito, devem atravessar o organismo físico. As correntes vibratórias oscilam de cima para baixo e de baixo para cima, da direita pa­ra a esquerda e da esquerda para a direita; em todas as direções se trava luta. A personalidade representa o resulta­do dessa luta, a síntese desses elementos; por isso, pode ser múltipla, como se oscilasse entre os diferentes pólos extre­mos. No plano orgânico-psíquico (já vimos que o espírito não reside no cérebro) a luta se trava entre a personalidade paterna e a materna e explode na puberdade. Uma das duas personalidades vence, firma-se e constitui a dominante, em que prevalece o tipo de um dos dois progenitores. Como acontece na coexistência, o mais fraco cede o passo no pon­to em que o mais forte conquista e, desse modo, se estabe­lece a harmonia. Vencida, nem por isso a personalidade morre; continua, modestamente como força subordinada, a gravitar em torno da principal, como os planetas em torno do sol do sistema a que pertencem. A natureza não a aban­dona nem despreza; utiliza-a, porém, confiando-lhe funções mais modestas, mas necessárias, como, por exemplo: o controle representado pela oposição, pelas minorias; a tarefa de equi­librar, refreando-o, o domínio exclusivo e a manifestação re­pentina e irrefletida da personalidade dominante. Reflexão significa controle recíproco entre duas tendências; quando elas entram em conflito, a hesitação aparece. Daí as dife­renças de vontade, a tragédia dos impulsos opostos da cons­ciência. Quando uma das forças vence, a vencida se retira para a sombra, contentando-se com viver vida apagada, à espera da desforra, mas assumindo, enquanto isso não acon­tece, a direção de funções modestas, a fim de assumir a di­reção geral, apenas a força vencedora se canse e baqueie.

Entre os dois elementos há vários graus de fusão. Há indivíduos, os chamados impulsivos, em que uma das perso­nalidades venceu tão nitidamente ao ponto de dominar pa­cificamente, sem resistência, todo o campo da ação, pois a parte oposta o abandonou inteiramente e nenhum controle exerce mais sobre ele. A decisão, assim, torna-se fácil, sim­ples, automática, retilínea, sem lutas, oscilações e dúvidas. São poucas as forças empenhadas na luta; por isso, encon­tra-se rapidamente a solução. Parece até rapidez o que, no entanto, não passa de simplicidade e pobreza de meios. Ou­tros, ao contrário, aparecem tarde e, apesar disso, são ricos e complexos; neles o desequilíbrio não se resolveu pela pa­cificação estática e continua alimentando a contradição. Neles as duas personalidades, ambas prepotentes, concorrem contemporaneamente em todos os atos, levando-lhes tal ri­queza de forças propulsoras e contraditórias que as divisões se tornam muito mais laboriosas. Daí deriva completa gradação de manifestações volitivas e de capacidade decisória, gradação que varia desde a ação imediata até à irresolu­ção, da ausência de controle observável no impulsivo até o controle tão rigoroso ao ponto de paralisar a ação (Hamlet), da ação desorientada até à orientação inativa, isto é, a refle­xão paralisante. Tudo isso depende das características dos dois elementos: paterno e materno. Não se fundem ou se fundem mal, se muito dissemelhantes do ponto de vista bio­lógico. Desse fato resultam todas as anormalidades descri­tas na fenomenologia psiquiátrica; as conformações mentais em que se predominam a dissonância e a instabilidade; o desequilíbrio dinamizante, mas perigoso, que, se controlado e reconduzido a ordem superior, pode constituir o gênio e, se abandonado a si mesmo, se desfará na loucura Geral­mente, porém, os dois estímulos, paterno e materno, acabam por harmonizar-se Se a diferença for demasiado grande, nascerá um caráter mais ou menos estável e equilibrado, verdadeiro mosaico de tendências. Se pensarmos em como, na reprodução, os elementos determinantes podem grupar­-se em combinações infinitas, compreenderemos que inexau­rível quantidade de tipos pode a natureza produzir. Na rea­lidade, não existe o tipo normal, isto é, o tipo médio perfeito e absolutamente equilibrado. Portanto, não existe o completa­mente anormal, o tipo patológico absoluto. A vida a cada pas­so nos oferece exemplos de compensação! Quem não vence hoje amanhã talvez vença! Ao contrário, novidades, coisas originais, personalidade brilhante podem nascer desses desequilíbrios, se soubermos dominá-los, coordená-los e discipliná-los, desequi­líbrios que, assim, se tornam qualidade preciosa, capaz, só ela, de oferecer contribuição inédita ao pensamento e ao progresso. A natureza, embora pareça proceder por tentati­vas, sabe errar e corrigir-se; de qualquer modo sempre nos compensa do que nos manda; deixa-nos cair para ensinar-nos a levantar-nos; expõe-nos aos assaltos, mas guia-nos à vitória e, por ela, à aquisição de novas qualidades, ao enri­quecimento do nosso patrimônio de capacidade e defesa Todos os golpes recebidos são registrados no livro da vida, onde tudo fica escrito, de modo a poder ser lido em qualquer tempo. A moléstia tende a imunizar-nos, o erro a instruir-nos, a queda a reequilibrar-nos, a fraqueza a fortalecer-nos Tudo acaba sendo utilizado e transmitido e a vida imortal, desse modo, enriquece e acumula grande acervo de comple­xas heranças, através de prolongadíssimas experiências mi­lenares que o nosso organismo incorpora e possui como ri­queza oriunda da imensa sabedoria biológica, que, aliás, ca­da um de nós carrega consigo, sem sequer imaginá-lo. Desse modo, na batalha entre as duas forças contrárias, a nature­za surge como grande harmonizadora, demonstra ser potência benfazeja, sábia, previdente e protetora, que transforma os desequilíbrios em elementos dinâmicos e criadores, as dis­sonâncias em harmonias, o dinamismo contraditório em per­sonalidade original e potente.

Essas observações são válidas apenas no campo estrita­mente biológico; não bastam para resolver o problema da responsabilidade moral e esgotar o da hereditariedade. A personalidade humana também resulta de outras forças e de outras posições. Já analisamos a luta no interior do bi­nômio horizontal; não observamos ainda a que se trava na intimidade do binômio vertical, com que a primeira se har­moniza. Acima dessas incompatibilidades biológicas se situa o mundo moral do espírito; e abaixo, o mundo exterior, com todos os seus golpes e resistências. A personalidade resul­tante dos dois elementos (pai e mãe) cruza-se e combina-se com a constituída pelo binômio espírito-matéria, eu interno e ambiente externo. A personalidade completa resulta de todos esses elementos e movimentos. Que riqueza! Porém, como nos desgasta essa luta! A natureza, tão amiga de defi­nir as suas construções sob forma concreta e precisa, não tolera ócio e preguiça, mas exige permanente colaboração mútua dos valores e correspondência rigorosa entre a forma e a substância. Se chega a completar-se, a harmonia deriva­da da fusão dos elementos herdados da linha paterna e ma­terna, deve por sua vez lutar contra o ambiente para, tam­bém nessa outra dimensão, conseguir harmonizar-se. E a isso que, nos casos mais comuns, se limitam as fadigas da vida, no seio da natureza que também se revela economizadora de energias. Verdade que, embora limitada a esses ele­mentos, embora utilize o patrimônio hereditário constituído das numerosíssimas experiências adquiridas e atinja os dois reservatórios, paterno e materno, continuamente cruzados, a personalidade deve, à custa do próprio esforço, fazer no­vas aquisições; deve, outrossim, aumentar aquele capital, investindo-o em novas combinações, empregando-o na atividade que lhe é própria, completando-o com novas aquisições, obtidas experimentalmente no meio ambiente. Assim aumentado, a personalidade deve por sua vez devolvê-lo à cir­culação, gratuitamente como o recebeu. Se, porém, são es­tas as fadigas comuns da vida, podem existir outras bem di­ferentes, a que o homem normal escapa. A existência tor­na-se muito mais complexa, a luta áspera e difícil a harmo­nização; mas, em compensação, torna-se mais rica de dese­quilíbrios dinamizantes e criadores, quando surge e atua com forças preponderantes o elemento espiritual, por sua vez ser­vido de uma bagagem de experiências pessoais, extensamen­te desenvolvida e, por isso, tão desejosa de viver vida própria e de afirmar-se perante os outros elementos da personalida­de que chega a desafiá-los e a combater contra eles. Então, a personalidade, se mais extensa e mais rica, representa concerto de ressonâncias mais complexo, transforma-se tam­bém em campo de batalha bem mais vasto; neste a harmo­nização é muito difícil de obter, pois a síntese unitária do ego não se verifica somente no plano orgânico-psíquico, mas também no plano espiritual, mais elevado. É o caso do tipo evoluído. Portanto, todo o extenuante trabalho que deriva do desacordo entre as forças da personalidade, da concor­dância ou discordância dos ritmos, não se limita ao binômio horizontal pai-mãe e ao ambiente, mas se estende para as zonas elevadas do espirito; aí, e não no plano biológico, é que vai procurar a sua solução. As correntes dinâmicas, en­tão, navegam e se cruzam em todos os sentidos, a luta bio­lógica do homem contra a mulher (pai-mãe) e a da mulher contra o homem (mãe-pai) se cruza com a luta moral, do espírito contra a matéria (espírito-ambiente), e com a luta material, da matéria contra o espírito (ambiente-espírito), então os antagonismos do binômio vertical martelam o cor­po físico e dão nascimento ao processo de maceração, que amadurece e evolui. Já observamos essa elaboração evoluti­va, que estamos continuando a examinar. Desse trabalho intenso nascem indivíduos cada vez mais especializados. Mas, se por um lado parece que a natureza caminha para o individualismo, isto é, para o separatismo que do corpo social isola e afasta o indivíduo, doutro lado vemo-la mais tarde procurar o reequilíbrio dessa tendência, apoderando-se do indivíduo e engendrando-o nas múltiplas unidades sociais constitutivas dos coletivismos modernos. Isto porque a cé­lula-indivíduo se diferencia, não em proveito próprio, não para isolar-se da ordem da natureza, mas para ser empre­gada numa ordem social muito mais vasta, com funções adequadas às qualidades características adquiridas.

Já dissemos que a visão estritamente biológica não basta para esgotar o problema da hereditariedade. A ciência limi­ta-se a levar em conta os dois elementos do binômio hori­zontal e o elemento inferior do binômio vertical; não leva em consideração o elemento superior deste último. Os ins­tintos, as idéias inatas, as qualidades adquiridas median­te a experiência ambiental e, graças a infinitas repetições, transformadas em automatismos, não seriam conquistadas pela eterna personalidade espiritual, capaz de conservá-las e restitui-las em qualquer momento em que forem úteis, através de prolongada série evolutiva de vidas corpóreas, menos significativas e encerradas na oscilação nascimento-morte; mas seriam adquiridas em virtude de uma espécie de memória biológica, celular, e nela depositadas e conservadas.

Em A Grande Síntese, cap. LXIX ("A Sabedoria do Psi­quismo"), entre os coleópteros citamos o ceramyx miles, como exemplo de sabedoria imensamente superior à or­ganização e aos meios que possui. Acrescentemos, ago­ra, o caso, ali apenas esboçado, de um himenóptero, o sphex, cuja fêmea, ao lado dos ovos, que põe na areia, coloca um inseto por ela previamente paralisado com um golpe de ferrão, para que sirva de alimento à futura larva. Ora, o sphex atinge a vítima exatamente no ponto onde, no dorso, se encontra o gânglio nervoso que preside ao movimento. Desse modo, obtém a provisão representada pelo inseto, que, por estar paralisado, não pode sair do lugar e se conserva em boas condições porque continua vivendo. Como é que o sphex conhece anatomia e anestesia? Quem lhe ensinou esse fato anátomo-fisiológico? Dirão: a experiência. Mas os in­setos vivem poucos meses e as larvas, quando nascem, já os pais e toda a geração precedente desapareceram. Onde, pois, o ensino e a imitação? Ou esse inseto possui, talvez, sensibilidade bastante para perceber as radiações transmitidas pelo gânglio nervoso e poder desse modo encontrá-lo? Se fos­se assim, quem o mandou atacá-lo e o informou das conseqüências? Quem responde pelo raciocínio que relaciona to­das as fases do processo lógico? Ninguém pode negar a exis­tência de princípio inteligente nesse inseto e, se não é possível que ele o tenha criado, então lhe foi transmitido. Por que caminho, porém? Porventura, as células é que conser­vam a memória atávica? Mas basta esse caminho? São as células capazes de semelhante síntese racional? Isso quer dizer psiquismo. Deposita-se ele nas células? Existe outro psiquismo? Este conserva a memória de todas as experiên­cias vividas durante milênios e, no presente caso, até mesmo as inerentes ao estado de simples inseto. A conservação desse tão precioso patrimônio hereditário, e do novo patrimônio que a experiência continuamente lhe acrescente, é confiada à memória celular ou a um organismo imaterial em que se registram e fixam definitivamente, sob a forma de qualidades adquiridas, as correntes vibratórias oriundas do ambiente?

De acordo com a ciência, a memória biológica residiria na célula que traz inscrita em si mesma sua prolongadíssi­ma história, cujo conteúdo lhe foi transmitido através da filiação e da derivação dirigida pela célula germinativa he­reditária. A essa história do passado cada vida acrescenta a própria experiência, soma-a à precedente e com esta, assim completada e corrigida, a transmite. Tratar-se-ia de uma espécie de reencarnação celular; a continuidade das vidas sucessivas não seria confiada à sobrevivência de um prin­cípio espiritual supercorpóreo, mas à persistência das im­pressões celulares. É verdade que o ambiente atua e conti­nuamente nos impressiona o ser, a repetição fixa nele há­bitos ou automatismos, tendentes a radicar-se sob a forma de instintos (cf. A Grande Síntese, cap. LXV: "Instinto e Consciência Técnica dos Automatismos"). Também é verda­de que todas as nossas experiências se registram e transmitem por hereditariedade. Mas o problema consiste em saber como, por que via e por que mecanismo a célula se impres­siona e conserva as impressões.

Para compreender, torna-se necessário reduzir o fenô­meno à pura substância cinética. Trata-se, agora, de várias correntes de vibrações, de ritmos, de movimentos ondulató­rios que se transmitem e se imprimem. Já os examinamos nos capítulos precedentes. Os movimentos vibratórios do ambiente externo penetram no organismo através das vias nervosas e sensoriais. Essa penetração contínua constitui fato indiscutível. E essas vias, portas escancaradas. Nosso organismo é também uma orquestração de ritmos. Os mo­vimentos vibratórios entram, avançam, invadem a estrutu­ra orgânica cada vez mais intimamente, percorrem-lhe e sa­turam-lhe as vias, penetram-na sempre mais. Têm de pa­rar no último termo que nossa decomposição analítica nos dá a conhecer, isto é, imprimir-se-ão, sob a forma de desvios de trajetórias já existentes nos movimentos atô­micos (cf. A Grande Síntese, cap. LV: "Teoria dos Movimen­tos"), movimentos atômicos dos quais resulta, em grau de com­plexidade progressiva, o sistema cinético-dinâmico molecular, micelar, celular, orgânico, psíquico. O fato de a repetição fun­cionar como determinante de automatismos, confirma de um lado a referida atividade cinética e de outro a impressionabili­dade cinética. Trata-se, talvez, de atividade electromagnética. Daí derivaria a memória celular. Se os vários elementos compo­nentes forem reagrupados de conformidade com a lei das uni­dades coletivas (cf. A Grande Síntese, cap. XXVII) e os movi­mentos atômicos fundamentais estiverem presentes a todos os organismos mais complexos, existirá a possibilidade de conseguir sínteses progressivas, até chegar-se à síntese má­xima, que se nos revela sob a forma de consciência. Os re­sultados cinéticos da experiência, desse modo, se imprimiriam em todas as células do corpo e, graças à hereditariedade, se transmitiria e receberia essa sabedoria adquirida pela raça, comum a todos, de que cada indivíduo seria depositário, pa­ra usá-la em benefício próprio, conservá-la, enriquecê-la e, enfim, transmiti-la aos descendentes, em benefício deles, e assim por diante. Essa sabedoria, percorrendo os órgãos ner­vosos e cerebrais, se concentraria, de acordo com o princípio das unidades coletivas, na síntese máxima do psiquismo, derradeira resultante das experiências da vida.

Já o dissemos: sabedoria a ser aumentada e transmiti­da. O trabalho, portanto, é duplo: de nova experimentação, tendo em vista o aumento, de conservação do velho e do novo, tendo em vista a transmissão. Temos, pois, dois tipos de registro cinético: o recente e o atávico, o novo e o velho, o que nós fazemos e o feito pelos nossos antepassa­dos. O primeiro conduz à captação e fixação dos movimen­tos de variação da espécie; o segundo representa, na raça, as qualidades mais íntimas e mais estáveis, fixadas em to­das as células, não por via de aquisição, mas de hereditarie­dade. As duas diferentes funções, isto é, o desvio e a conser­vação das trajetórias, seriam confiadas a dois sistemas celu­lares: de um lado os conjuntivos, ou seja, os tecidos de nova formação embrionária e de outro o sistema de todas as demais células. Dois sistemas, portanto, que culminariam em duas sínteses psíquicas: a primeira, temporária, indivi­dual, representante da porção de vida pessoal do indivíduo; segunda, coletiva, eterna, representando a espécie e a conti­nuidade da vida. Dois psiquismos, pois: o psiquismo ativo, tra­balhando por armazenar novas qualidades, construtor do ego através das experimentações, registrador, receptivo, assimilador e fixador de novas experiências biológicas a serem transmitidas ao outro sistema; e o psiquismo atávico, conservador, que, sob a forma de qualidades hereditárias e de instintos, de idéias inatas e capacidades adquiridas, faz ressurgir e restitui as referidas experiências. Os dois sistemas giram em torno um do outro, de acordo com o costumeiro esquema do binômio de forças contrárias e complementares de que resulta a composição do binômio de toda unidade, de con­formidade com a lei universal de dualidade.

Tudo isso não deixa de ser persuasivo, mas permanece insolúvel o problema da conservação das impressões, isto é, das novas características cinéticas que se vão continuamen­te formando nos movimentos atômicos. Como conciliar a per­manente identidade do ego, não obstante a mudança de suas qualidades, e a renovação completa e contínua do material constitutivo do organismo? E, então, não é possível que, ao invés de a memória celular, a conservação das impressões seja confiada à memória espiritual sediada no organismo imaterial que chamamos alma? Se a vida é metabolismo, é uma corrente, que é que lhe impede a dispersão e mantém a unidade? Ao nascer, já trazemos conosco, sem dúvida, os resultados de um passado. Mas onde foi esse passado inscri­to: na intimidade da célula, ou na do espírito? É difícil, sem sombra de dúvida, conceber uma transmissão hereditária através apenas da célula genital e a sua capacidade de con­ter-lhe todos os desenvolvimentos futuros e, depois, guiá-los na reconstrução do ser completo. Não o é menos imaginar uma transmissão hereditária fundada na reflexão de vibra­ções produzida por um organismo espiritual que, introdu­zindo-se no organismo físico, através das vias imateriais vi­síveis da percepção interior, lhe guie o desenvolvimento (ideoplástica). Tanto mais que o primeiro sistema não pode ser suficiente para transmitir todas as impressões registra­das pela espécie, pois as melhores experiências, as da matu­ridade, adquiridas depois da idade da reprodução, que é fe­nômeno juvenil, não seriam transmitidas, permaneceriam in­comunicáveis. Perder-se-iam, então, as melhores aquisições; e a vida dos solteiros, por não haver sido utilizada, não teria utilidade alguma para a raça. Ora, como é que a natu­reza, em ponto dessa importância vital, pode deixar que lhe roubem os resultados mais preciosos e custosos? Como é que ela, previdente e econômica, pode abandonar as experiên­cias mais importantes da vida, as experiências espirituais, que se adquirem até mesmo em plena senilidade? Como é possível tão flagrante contradição com a habitual economia da natureza? As melhores conquistas se dispersariam tan­tas fadigas se tornariam vãs e seu resultado ficaria destruí­do; isso tudo constituiria mais uma gritante contradição do mundo em que nada pode ser destruído e também essas for­ças, como tudo, aliás, devem ressurgir. E como poderia pro­gredir uma raça incapaz de acumular senão experiências elementares e juvenis? De que se alimentaria o progresso, fato espiritual e de realidade inegável? Não. Não é possível que a vida seja mutilada desse modo, exatamente no centro do seu sistema, tão perfeito, aliás, sistema que se tornaria imperfeito precisamente no ponto mais substancial, ao pon­to de, com o desaparecimento das experiências mais sublimes da raça, fechar-se o caminho do progresso.

A herança fisiológica, portanto, não basta. Se os filhos se parecem com os pais, muitas vezes não se parecem e, até mesmo, os superam. O gênio não é hereditário. O fenôme­no, sem dúvida, deve ser bipolar; não pode constituir exceção da lei universal de dualidade. Na realidade, se tudo é dúplice, a hereditariedade também deve sê-lo, quer dizer, de­ve processar-se pelos dois caminhos possíveis, em posições e com funções complementares. Dois são os eixos constituti­vos da personalidade (pai-mãe e eu-ambiente), duas as suas formas de luta, dois os sistemas de forças e duas as evolu­ções (material e espiritual); assim, nada mais lógico que também sejam duas as formas de hereditariedade correspon­dentes aos dois eixos, cada forma de luta tenha objetivo de­terminado e todo tipo de evolução, como todo sistema de forças, possua canal de transmissão privativo, As forças não param e as experiências acumuladas devem dar algum resultado. Quem se limita exclusivamente à hereditariedade fisiológica, esquece o imenso mundo do espírito, dos va­lores morais, onde, em atmosfera de plena responsabilidade, nosso destino se cumpre.

Percorremos os caminhos da ciência, para permanecer­mos positivos, e chegamos aos movimentos atômicos, a des­vios de trajetória, a ações e reações cinéticas, à absorção de ritmos, a movimentos de correntes vibratórias. E eis que tudo se desmaterializa em nossas mãos e se traduz no im­ponderável, característico do espírito. Quando chegamos ao fim do caminho, percebemos que o fenômeno como que se desfez e dele não resta senão o jogo de forças, a estrutura de vibrações, o dinamismo imaterial, que possui muitas das características do espírito e das suas invisíveis atividades. Mas, então, o contraste, na aparência verdadeiro, entre ma­terialismo e espiritualismo, não passa de simples questão de palavras, pois afinal tudo termina no mesmo ponto, desco­brindo a mesma verdade e dizendo em substância, a mesma coisa. Quando acabamos de percorrer os caminhos da ciên­cia e da matéria, exclamamos: Mas isso é o espírito! E, de fato, é o espírito mesmo. Já vimos que, no binômio espírito-matéria, ele se encontra até mesmo no pólo oposto e que o mistério do psiquismo se estende até à intimidade da célu­la. Dissemos que o eu é dúplice, não está apenas no centro, mas também na periferia; que o espírito, central, também está em qualquer ponto da periferia; é, ao mesmo tempo, o centro e a periferia. Dissemos também que a memória atá­vica, a sabedoria adquirida pela raça, está confiada a todas as células do corpo e nelas se difunde. Mas, então, falar desse sistema é, em última análise, o mesmo que falar do es­pírito, se sua substância pode traduzir-se cientificamente numa orientação de cinética atômica e se dessa maneira o psiquismo se manifesta até mesmo na intimidade da célula. Surge, então, esta pergunta: O espírito constitui a causa ou o efeito do sistema? Ou, melhor, o espírito representa o mo­tor determinante das correntes de consciência que dirigem o funcionamento do organismo ou, então, é a síntese das correntes de consciência derivadas dos sistemas celulares?

Para Renan "a alma resulta das forças do corpo". Po­demos, no entanto, observar: se é natural que a síntese de correntes de consciência derivadas dos sistemas celulares atinja o plano biológico, como poderá ele, no entanto, ele­var-se até ao mundo moral, tão absolutamente diverso, do ponto de vista qualitativo? Harmonizemos o antagonismo. Geralmente, o homem, por motivo da luta que sua nature­za bipolar lhe impõe, apesar de dividido se conserva uni­do. O materialismo e o espiritualismo, ambos unilaterais, manifestam apenas a parte que possuem da verdade. Se nos perguntarem se o espírito constitui causa ou efeito do sistema, respondemos com as mesmas palavras por nós já empregadas: a causa está no efeito e o efeito na causa. Tra­ta-se apenas de dois termos da mesma unidade bipolar, de um caso particular da lei universal de dualidade. Atingimos o limite em que se supera o binômio e se resolve a contra­dição. Tocamos, agora, o limiar do mundo superior em que desaparece a grande ilusão da forma e tudo se unifica na mesma verdade.

XXVIII

A PERSONALIDADE HUMANA (2.a PARTE)

O desenvolvimento dos últimos capítulos permite-nos imaginar o jogo de forças e o entrelaçamento de ritmos que constituem o íntimo dinamismo de nossa vida. Só penetran­do assim na intimidade do imponderável, poderemos com­preender tudo quanto escapa ao homem que vive na super­fície. Este ignora o maravilhoso mundo circundante de que, aliás, ele mesmo se compõe. Esse mundo escapa em grande parte à própria ciência que, em virtude da orientação posi­tivista e do método objetivo-experimental, em lugar do in­tuitivo, não pode atingi-lo. Desse modo, a opinião científi­ca em voga a respeito do problema da personalidade é incompleta, apesar de haver estabelecido diversas verdades no campo biológico e psicológico. Para compreensão geral do fenômeno, torna-se necessário seguir-lhe a oscilação comple­ta, de um a outro extremo do ser, de conformidade com o mesmo esquema da construção e funcionamento do univer­so. O homem, de fato, encontra projetadas, na sua estrutu­ra e na sua vida, as linhas essenciais do fenômeno cósmico. A oscilação vai do espírito à matéria e volta, com sinal con­trário, da matéria ao espírito, reproduzindo a cada momen­to os dois grandes períodos da criação: involução e evolu­ção. No homem e na criação, o pensamento se materializa na ação até encontrar a forma concreta que o revista e o exprima, e isso através da fase intermediária do dinamismo volitivo; e, ao contrário, a ação se desmaterializa no pensamento, destilando-se sob a forma de experimentação realizada, a fim de, na consciência, fixar-se como qualidade adquirida ou instinto. A cada oscilação o eu aumenta e se dilata, para retomá-la e continuá-la cada vez com mais intensidade. O físio-dínamo-psiquismo, íntima trindade do monismo uni­versal, no cosmo e no homem, não é apenas estrutura orgânica, mas também funcionamento. Na oscilação, um dos extremos, embora transformando-se, transporta-se intei­ramente para a posição do outro extremo e ao contrário e, assim, o ser vai e vem, vem e vai, sem cessar, de um a outro de seus dois pólos. O princípio trinitário, sua fórmula estru­tural, não passa de conseqüência do principio de dualidade. Apenas o binômio é animado pelo dinamismo vital e a con­tradição, não mais estática, se põe em movimento e na os­cilação de um termo a outro se formam as correntes de ida e de retorno, do antagonismo e da fusão nasce terceiro termo, que constitui fase intermediária, traço de união e resul­tado das trocas. É novo ser, terceiro elemento, filho do binômio pai-mãe e da íntima oscilação dessa unidade dualís­tica, que descarrega uma na outra as suas metades inversas. Estando completo o desenvolvimento das forças do sistema, essa nova individualidade se destaca do binômio e permane­ce autônoma e independente, mas incompleta e à procura de sua metade complementar, para juntas formarem novo binômio e, através da troca de correntes, novo ser interme­diário, e assim por diante. Assim, da estrutura dualista do universo, do principio fundamental de dualidade, deriva o principio trinitário, que representa o esquema da técnica genética.

O movimento dessa troca é dinamismo interior da uni­dade formada de duas partes iguais; por isso, apenas influi na estrutura íntima dessa unidade. Mudança só acontece em sentido relativo; a substância permanece invariável e o monismo intacto. O movimento volta sempre sobre si mes­mo; cada uma das duas formas extremas do ser constitui apenas posição diferente no seio da mesma unidade, não re­presenta senão a metade do mesmo ciclo. O ponto de che­gada é ao mesmo tempo ponto de partida; do mesmo modo, o ponto de partida é ponto de chegada. Os extremos se tocam.

Todos esses conceitos já foram expostos no cap. VIII ("A Lei") de A Grande Síntese. Mas, enquanto, nesse livro, os aplicamos ao fenômeno universal, aqui os consideramos especialmente em relação ao fenômeno da personalidade hu­mana. Entre as duas fases extremas ou posições limites da oscilação entre espírito e matéria, pensamento e ação, princípio e forma, há uma fase intermediária de passagem: ener­gia, vontade ou movimento. Tanto no homem, como no uni­verso, de que é imagem, a transição do primeiro momento para o terceiro, dá-se através do segundo que, na ida (su­bindo), tem sinal positivo e na volta (descendo) se inverte com sinal negativo. Em outras palavras, o espírito ou pen­samento (1º momento) como iniciador ativo da transforma­ção do princípio na forma material (2º momento), para chegar à sua ação plasmadora, se ativa como vontade ves­tindo-se de energia (3º momento). Portanto, cada ato nos­so é uma exteriorização do espírito, um conceito (1º) que se manifesta (2º) em dinamismo e conclui (3º) numa rea­lidade exterior. No caminho de volta, porém, a atividade do momento intermediário muda-se em passividade a vontade em receptividade o homem de ação em homem contempla­tivo, justamente porque não estamos mais em fase de ema­nação mas de reabsorção; as portas do ego estão abertas pa­ra o interior, não para o exterior e a direção do dinamismo fenomenal invertida. Por isso as funções afirmativas e positivas da vontade, tão úteis à ação são um estorvo, representando impulsos negativos no caminho da volta, onde por sua vez age o sensitivo, o espiritual, o místico.

No período atual, descobrindo uma lei qualquer da na­tureza, o homem conquistou maior domínio sobre a energia, meios de maior manifestação de si mesmo, através da ação no mundo da matéria. Tais meios deram força ao dinamis­mo positivo de ida, fase por que atravessa atualmente a hu­manidade. O espírito, porém, motor e dirigente destes meios, permaneceu o mesmo; a sabedoria não recebeu um impulso proporcional. Com a mentalidade de um primitivo, o homem atualmente se encontra em poder de meios poderosos como nunca esteve. Por isso o terceiro termo do ciclo, do qual se está avizinhando, nada mais é que erro (resultado de tentativas inexperientes) e, portanto, sofrimento (com­preensão involutiva). Somente no segundo tempo, quando o movimento de vida se inverte em movimento de volta, a expansão ativa, em concentração reflexiva, é que o resulta­do trará vantagem (como premissa de nova expansão evo­lutiva). Eis o que acontece. O primeiro impulso da ciência nasce no espírito, amadurecido por precedentes experiências, resultando daí maior conhecimento. A este trabalho do úl­timo século, sucede o atual trabalho de atuação experimen­tal. O espírito, achando-se ainda em fase primitiva, encon­tra-se em face de experiência desconhecida que, feita por inexperientes (como acontece nas crianças), produz, como já dissemos, dor e erro. Chegamos então ao fim da terceira fase que conclui o ciclo da jornada. A dor abre o ciclo de retorno, marca a nova direção a seguir, o início da subida, a nova gênese. Não mais agindo ou desenvolvendo-se ma meditando em dolorosa reflexão sob os golpes recebidos pela reação das forças da Lei, dados em conseqüência de esforços improfícuos. Completa-se, portanto, lentamente o ciclo in­verso da assimilação, resultado doloroso mas benéfico da ex­periência humana neste período. A meta final é compreender. O ponto de chegada está no espírito, na conquista de maior sabedoria, que representa maior base para início de novas experiências. Com o ciclo experimental, feito de di­namismo centrífugo de descentralização, e com o ciclo inver­so de assimilação, constituído por um dinamismo centrípeto de centralização, o ar de que se nutre a evolução biológica completou sua oscilação e se prepara, firmando-se em tal base, para nova e mais vasta oscilação. Assim até o infini­to. As verdades relativas do homem, por ele expressas, uma a uma de forma absoluta, serão as etapas deste caminho, o mesmo caminho da única verdade progressiva. A história dos acontecimentos sociais nada mais é que a história do desenvolvimento da personalidade humana cujos movimentos observamos.

Movamos o prisma de observação. No ciclo de assimila­ção que finaliza o dinamismo centrípeto da concentração, onde e como os frutos da experiência se depositam na personalidade? Confrontemos as teses acima acenadas com a teoria do subconsciente. Fala-se tanto disso nos nossos tem­pos! Trata-se, porém, de um conceito que, se verdadeiro, não está completo. A natureza unilateral dos métodos de pesqui­sa hoje adotados, só podia revelar a metade racional e ma­terial do fenômeno, deixando de lado a parte intuitiva e es­piritual. Esta é representada pelo superconsciente. Desen­volvamos aqui tudo o que já dissemos, completando o pen­samento de A Grande Síntese no cap. XX: "O Subconsci­ente", do volume: Ascese Mística (citado no prefácio). A personalidade humana não é um ponto, mas uma zona onde se distinguem três partes: o subconsciente, o consciente e o superconsciente. Portanto, os resultados da experiência não se transmitem a um único ponto mas se depositam e regis­tam diversamente pelas várias partes da zona. Enquanto o subconsciente representa a assimilação completa de velhas experiências em estratificações antigas donde emergem co­mo instintos, ou, em outros termos, o núcleo conquistado pela consciência biológica confirmada pela vida prática, o superconsciente, no extremo oposto, representa a zona de espera, onde se registam as experiências de vanguarda, pela quais se antecipa o futuro, zona que não está, como a outra, no fim mas na frente da evolução. Estes são os dois termos da personalidade humana. Em baixo, sob a escada da evolução está a zona da animalidade, o que é próprio da besta; no alto está a zona do espírito, o que é próprio do super-ho­mem. Num extremo, a sólida, estável, mas primitiva e ele­mentar experiência do passado, firmada como patrimônio aquisitivo representando um material de uso continuamen­te aprovado pelas condições ambientes; no outro extremo, as experiências em formação, novas, incertas, instáveis, mas audazes, elevadas, complexas, desenvolvidas, representando não o patrimônio adquirido, mas o novo patrimônio em vias de aquisição, não a evolução conseguida, alcançada, mas a continuação, não a personalidade já constituída, mas o seu complemento. A primeira experiência está escrita na carne, a segunda, no espírito. A personalidade é, portanto, não um ponto, mas uma zona em movimento, alcançando assim o di­namismo íntimo que a amadurece, fazendo-o subir na escada da evolução. Neste sentido, a personalidade não é imóvel, mas se desloca da terra para o alto, caminhando com os pés (subconsciente) no passado e garantindo com os braços le­vantados (superconsciente) o futuro.

Entre tais extremos, porém, há um terceiro termo, uma zona intermediária: o consciente. Qual a sua função? Que acontece ao centro do sistema? Nas partes inferiores, onde está finda a assimilação, dispensa-se novo trabalho de regis­tro, estando tudo, salvo adaptações e modificações, confiado ao automatismo de instintos já conquistados. Esta parte acha-se sepultada no inconsciente, sem participação da cons­ciência, não sendo mais zona de desequilíbrios, de formações, de trabalho, mas zona de equilíbrio e êxtase Para o tipo normal, não sendo a manifestação na parte superior nem contínua, nem ativa, o esforço é apenas exceção. Esta par­te, onde ainda não se formaram desequilíbrios e atividades com o impulso das forças do ambiente, geralmente fica se­pultada no inconsciente. Se a personalidade estende suas raízes às profundezas do subconsciente e eleva suas rami­ficações às alturas do superconsciente, a vida ferve no tron­co: a zona do trabalho intenso de novas formações está nor­malmente no centro. Sendo esta uma zona de trabalho, desequilíbrio, contrastes, e, portanto, ativa e criativa, ela é lúcida e consciente. A personalidade brilha na luz máxima da consciência em sua zona central. A luz se dilui gradativamente nas duas zonas limítrofes, a inferior e a superior, até se extinguir completamente além dos dois extremos, onde se encontram traços das evoluções, situadas fora do campo da personalidade. É uma luz entre dois riscos de trevas, onde o que está latente, seja memória ou pressentimento, dormem e despertam aos poucos.Depois disso o nada em relação à persona­lidade, quando está além de qualquer capacidade correspon­der, por ressonância, às vibrações do ambiente E tudo em posição relativa à evolução do indivíduo, caminhando da besta ao super-homem, do subconsciente ao superconsciente, da carne ao espírito.

O que para o consciente constitui trabalho atual, para o subconsciente é passado vivido, não morto, cuja síntese so­brevive sepultada em seu íntimo como resultado da opera­ção que atualmente é desenvolvida pelo consciente. A sín­tese resultante, chama-se instinto, estando, ainda, no plano do consciente, na fase de formação de análise. Aqui o equi­líbrio ainda não estabilizado, ainda indefinidas as resultan­tes dos contrastes, permitem o trabalho de criação que no subconsciente terminou suas aquisições. O instinto é superior como maturidade formativa, mas inferior como nível evolu­tivo. A razão pertence a um plano superior, é a forma mais complexa, mais criança do instinto. Este, síntese da análise feita pelo subconsciente, é mais velho e perfeito, em seu ní­vel, que a razão. Esta é um processo em formação, de análise, de experiência incompleta, mas em vias de sê-lo, é fase inicial de assimilação de qualidades novas mas em grau mais elevado de evolução Os resultados da análise, amanhã serão síntese; os da razão que procura e escolhe, instinto que já sabe e conhece. A intuição pertence a um plano ain­da mais alto; é a forma ainda mais complexa, porém mais primitiva da razão. Elevando-se pela evolução, o que se ganha em agudeza e perfeição, se perde em estabilidade de equilí­brio e solidez. No alto voa-se; em baixo, anda-se. No alto, o domínio dos espaços, mas os riscos e incertezas das tentati­vas; em baixo, o passo lento e pesado, mas o controle, a segurança, a certeza. Por isso o raio intuitivo do gênio, é con­trolado pela razão. E como os resultados desta serão o ins­tinto de amanhã, assim as funções excepcionais da intuição se regularão como funções normais, como as atuais funções da razão. Como esta é um instinto em formação; trata-se no primeiro caso de um instinto que se elevará à altura evolutiva da razão, e no segundo, de uma razão que chegará à altura evo­lutiva da intuição Enfim, entre instinto, razão e intuição a diferença está no grau de trabalho para a captação e assi­milação das experiências. A intuição atua no superconsci­ente que é uma antena estendida como antecipação em di­reção aos mais altos e inexplorados graus de evolução, para captar o novo, o inédito, o futuro. A razão atua no consci­ente Não funciona por raios, como a intuição, é menos rá­pida, porém, mais contínua, mais ordenada, mais segura. Precisamente porque se projeta para menos alto, é mais equilibrada, porém, mais curta e limitada. O instinto é obra terminada, cujos resultados perdem-se no subconsciente, de­positando-se nesse magazin de reservas, como patrimônio da personalidade que aí se pode reabastecer segundo as neces­sidades. A medida que se avança, a fase evolutiva, inicialmente conseguida somente pelos raios da intuição, torna-se domínio normal e controlado da razão, cumprindo a função de assimilação que encontramos terminada no instinto.

Portanto, três fases: captação pela intuição, assimila­ção pela razão, depósito pelo instinto. Conquistam-se assim, aos poucos, os graus de evolução, parecendo que descem pa­ra o homem quando é o homem que sobe a eles. Assim a ex­perimentação avança pela escala evolutiva, eleva-se em com­plexidade e dificuldade para o alto. O inédito, o superior, antes compreendido pela intuição, atividade do superconsci­ente, é fixado pela razão, atividade do consciente, no ins­tinto, produto do subconsciente. Trata-se de experiência pro­gressiva que se ativa para o alto dominando-o. É este o tra­balho da personalidade humana, o conteúdo, o escopo da existência. A vida é conquista e adição contínuas. O ego lança-se ao inexplorado, agarra-o, assimila-o e não descan­sa enquanto não o transforma em qualidade própria, carne de sua carne. Assimilação espiritual paralela à orgânica. Tudo é adição e desenvolvimento evolutivo, quer se trate do corpo, quer da alma, quer se trate de conquista individual como espiritual, material, econômica ou moral. Na frente está o super-homem, ameaçado por todos os perigos: depois vem o homem que controla e confirma com sua análise na prática da vida; enfim, a besta feita de instintos e imita­ção, pronta a se apoderar dos úteis resultados do esforço total. Assim a conquista se adianta, o homem se eleva e o patrimônio dos instintos se avoluma. O subconsciente nada mais é que um consciente decaído, um raciocínio escrito em sangue, um resultado selado pela experiência e fixado a fogo no instinto. O consciente não é nada mais que o su­perconsciente coordenado, disciplinado, equilibrado, intui­ção trazida à razão e submetida ao seu controle, elemento incerto e transitório, embora sublime, enquadrado transito­riamente à realidade da vida. Do mesmo modo, o subcons­ciente foi, há um tempo, consciente, isto é, campo ativo das formações atualmente cristalizadas no instinto que, a seu tempo, foi raciocínio, outrora intuição. É ao contrário: o atual consciente amanhã será subconsciente; a luta atual de for­mação individual e social, que é raciocínio com a vida, fixar-se-á em seu produto feito de qualidades assimiladas (ins­tintos). O atual superconsciente amanhã será consciente, isto é, a intuição incompreendida será normalmente sotoposta aos processos racionais. O involuído e o normal tor­nar-se-ão, portanto, conscientes na zona atualmente cober­ta pelo superconsciente, no campo onde hoje é consciente a única exceção biológica representada pelo evoluído. Com­pleta-se, assim, por sucessivas estratificações o processo de aperfeiçoamento da personalidade.

Ainda uma observação. A personalidade, como dissemos, não é ponto, mas zona em que se distinguem três partes: subconsciente, consciente e superconsciente. A estas correspondem, segundo o próprio grau de desenvolvimento e pla­no de atividades, três tipos biológicos: a besta, o homem e o super-homem, e três formas de ação: instinto, razão e intuição funções diretivas alcançadas pelo indivíduo segundo seu grau de evolução. A estas correlacionam-se três formas de trabalho (em sucessão inversa): captação, assimilação e armazenamento. (Como o universo, a personalidade huma­na é uma trindade em caminho pela escada da evolução. No homem encontramos o físio-dínamo-psiquismo do cos­mos. O pensamento, na forma humana, se materializa, pas­sando do superconsciente ao subconsciente, através do dina­mismo do consciente. Temos, também, aqui, portanto, não uma simples estrutura, mas um funcionamento. No ciclo experimental, que acabamos de ver, o dinamismo vem do subconsciente em direção ao superconsciente, tentando a experiência e conquista do alto; no ciclo de assimilação, o dinamismo desce do superconsciente ao subconsciente, ope­rando o armazenamento, a fixação dos resultados da experiência. A descentralização segue-se a concentração no ego. Este dinamismo dúplice e inverso, é o passo segundo o qual a personalidade progride.

Antes de notar novos paralelos e correspondências, an­tes de observar o reencontro das correntes ascendentes e descendentes na zona lúcida da consciência, reassumamos e completemos os dois conceitos fundamentais desenvolvidos até agora neste capitulo: 1) a natureza não puntiforme mas trifásica, da personalidade humana; 2) o movimento ascensional desta zona trifásica. Temos, portanto, três zonas na: personalidade das ações consumadas, das ações atuais e das tentativas e explorações. Representam o trabalho feito, o que se faz e o que se fará, isto é, a atividade passada, presente e futura, ou ainda, a lembrança, a ação e o pressentimento. Somente a zona do trabalho é consciente. Para o alto e para baixo este clarão nítido se perde gradativamen­te nas trevas e o dinamismo desaparece na inércia. Acima e abaixo, imersas na inconsciência, estão as zonas crepus­culares onde a consciência sente as sombras vagarem incer­tas, embrião de futuros motivos ou restos de motivos destruídos ainda sonolentos no marasmo da indiferença ou do es­quecimento. O passado sobrevive no consciente como síntese, o futuro aí nasce como antecipação. A consciência está re­pleta e se nutre do presente em construção. No subconscien­te está escrita nossa história, no consciente está o esforço da subida, no superconsciente, o futuro. O primeiro representa o patrimônio acumulado, o segundo a atividade com que se fazem as provisões, o terceiro a zona das expectativas e possibilidades, das tentativas e formações futuras. As três zo­nas estão ante a experimentação nestas posições: de quem já recebeu o depósito, de quem o está recebendo e de quem o espera. O eu sente no campo onde está ativo e não onde está latente. O sistema esta em movimento evolutivo, e o consciente, isto é, a zona ativa do registro, não é o mesmo para todos. Os três tipos biológicos: a besta, o homem e o super-homem, têm seu centro consciente em três alturas di­versas: a besta, no subconsciente (instinto), o homem, no consciente (razão), o super-homem no superconsciente (in­tuição). Com a evolução o centro consciente tende a passar do nível inferior ao superior. Na escala da evolução uns são conscientes, poder-se-ia dizer, à altura da cabeça, outros à altura do ventre e outros à altura dos pés. Uns têm a cabeça abaixo do nível dos pés de outros; outros têm os pés acima do nível da cabeça de outros. Do involuído ao evoluído os tipos se escalonam em todos os níveis, mas a compreensão só é possível entre os que se acham à mesma altura, tendo portanto, partes comuns de ressonância, isto é, que vibram, como já dissemos em capítulos precedentes, com o mesmo comprimento de onda, velocidade e freqüência vibratória, que é o que justamente diferencia o grau de evolução. A evolução caminha do subconsciente ao superconsciente, da besta ao super-homem, como das ondas lon­gas e baixa freqüência às ondas curtas e alta freqüência. Há portanto correspondência entre subconsciente, instinto, animalidade, ondas longas e baixa freqüência de um lado, e superconsciente, intuição, espiritualidade, ondas curtas e alta freqüência do outro. Também a personalidade é um binômio que vai do extremo do subconsciente ao extremo do superconsciente, gerando, na oscilação entre estes dois ter­mos, o terceiro componente da trindade: o consciente. Dis­semos que esta é a zona do trabalho. Isto significa que re­presenta a zona de vibração, enquanto as outras duas representam, relativamente à posição do indivíduo, as zonas de descanso. Portanto, dizer que o consciente com a evolu­ção tende a passar do nível inferior a um superior, é o mes­mo que dizer que o estado cinético se desloca para estados evolutivos mais elevados, isto é, que o movimento toma ritmo vibratório cada vez em mais alta freqüência e ondas cada vez mais curtas. O mesmo fenômeno aqui observado com terminologia e de um ponto de vista psicológico, pode ser observado, como nos últimos capítulos antecedentes, como vibração e fenômeno dinâmico, de um ponto de vista cinéti­co. A mesma verdade pode ser traduzida em várias formas segundo a posição e perspectiva escolhida pelo observador. Se, para comodidade de estudo, é necessário isolar os vários aspetos, na realidade eles coexistem unidos.

Encontramos, portanto, os vários tipos humanos, do ex­tremo involuído ao extremo hiper-evoluído, distribuídos por todas as alturas na escala da evolução em tantas posições, onde altura, profundidade e os vários estados psicológicos e vibratórios que lhes correspondem são relativos a cada per­sonalidade. O que para alguns é superconsciente, persona­lidade futura, embrional, ainda a ser acabada, para outros é consciente em formação ou mesmo subconsciente, isto é, personalidade instintiva já construída. O que para o invo­luído é futuro, para o evoluído é passado. Todo indivíduo caminha, seja qual for sua posição, para um plano relativamente superior ao que ocupa. As zonas de subconsciente, consciente e superconsciente são, portanto, relativas ao desenvolvimento do indivíduo e podem ocupar diferentes graus ria escala da evolução. Todo o sistema trifásico da persona­lidade se movimenta e avança pelo condutor de suas várias zonas, tendo à frente o superconsciente, no centro o consciente e no fim o subconsciente. O sistema é único, igual para todos, mas a sua posição é, para todos, relativa, isto é, em graus evolutivos diversos de tal modo que não possa dar a estes termos senão valor relativo. O que, comumente, lhe damos aqui, é em relação a um tipo médio situado com o consciente no plano da razão, com o subconsciente no plano dos instintos e com o superconsciente no plano da intuição e do espírito. Expomos aqui o sistema, a es­trutura da personalidade, e não sua posição evolutiva que muda para cada caso em particular. Neste sistema o ego consciente é dado por uma zona lúcida, de operações, situa­da no centro de duas zonas obscuras, e o todo não fica es­tático, mas em movimento ascensional. O ego percebe a própria existência unicamente na zona consciente do sistema que tem alturas evolutivas diversas, segundo o desenvolvi­mento individual. Segundo o mesmo, cada um explora, to­rna, elabora e assimila e, assim, segundo sua posição e natureza, agindo através do esquema geral do fenômeno, constrói a própria individualidade segundo particularidades espe­ciais. A captação, o registro e o armazenamento das expe­riências pode ser feito em alturas diversas segundo a escala evolutiva, mas o processo, o método, é idêntico para todos, o resultado é sempre ascensão, autoconstrução, progresso da fase evolutiva subconsciente, à fase consciente e supercons­ciente.

Terminado este conceito da relatividade das posições e do movimento do sistema, completemos agora o exame de seu aspecto estático com outras comparações. Terminado o problema da conquista voltemos ao da estrutura da persona­lidade. Estabelecemos, até aqui, as seguintes relações do subconsciente, consciente e superconsciente com a besta, o homem e o super-homem; com o instinto, a razão e a intui­ção; com o armazenamento, a assimilação e a captação; com o ato terminado, o atual, e o futuro; com a recordação, a ação, e o pressentimento; com o passado, o presente e o porvir; com a cauda, o centro e a cabeça no caminho da evolução. Tudo isto ainda não é suficiente. Como e onde se localizam as sedes destas diversas funções? Onde são depo­sitadas, elaboradas, captadas as respectivas anotações? Liga­mo-nos aqui aos conceitos dos últimos capítulos. A sede do subconsciente, seus paralelos e atividades está na estrutura celular, nos tecidos, na carne da raça, zona de animalidades, de instintos, de memória biológica. As experiências primordiais e fundamentais da vida, fixaram-se em automatismos nestas profundas e antigas estratificações biológicas, comuns ao homem e ao animal. Freqüentemente, para o homem, este é o seu passado, a zona mais profunda, situada no extremo da evolução. A sede do consciente está no sis­tema celular escolhido, selecionado, no ápice da evolução animal, aperfeiçoada até às portas do espírito, com funções psíquicas: o sistema nervo-cerebral, zona humana, da razão, zona dos mais recentes feitos biológicos ainda não fixados em automatismos, ainda em processo de formação, fase central da evolução do ego, fase de elaboração e livre escolha. Obedece-se a instintos inconscientes da carne, mas racioci­na-se com o cérebro. Freqüentemente este é o presente do homem. A sede do superconsciente está além da parte material, sensitiva, do organismo físico, situada no imponderável, no espírito. Vimos no cap. XXVI (“A Música – A Vida Dupla), deste volume, suas relações com o sistema cerebral e que aqui a vibração, separando-se de seu nervo transmissor torna-se radiante, livre, de ondas curtas e alta freqüência Estas qualidades ainda não conseguidas no plano inferior, permitem ao superconsciente a transmissão telepática, a captação noúrica, a visão sintética da verdade, isto é, o uso natural e normal do método intuitivo, próprio do supercons­ciente. Tudo isto representa a zona super-humana, o mun­do do evoluído, o reino do espírito, a fase mais elevada da vida humana, que o homem laboriosamente vai conquistan­do, formando sua estrutura espiritual, fase situada acima de nossa evolução humana. Para a maioria, isto é futuro, ex­ceção Raciocina-se com o cérebro, mas unicamente o espí­rito é capaz de intuição.

Para o homem comum a zona lúcida, a fase atual, é a cerebral. Normalmente esta é a sede consciente do ego. Este se estende pelas duas outras zonas, inconscientemente porém. O ego cerebral e consciente acha-se no centro da personalidade, entre seus dois extremos contíguos, o sub­consciente e o superconsciente; está em contato, em comu­nicação recíproca, beneficiando-se pelo instinto e intuição, relativamente ao seu desenvolvimento e potência. Todas as correntes da personalidade trifásica, de qualquer plano em que estejam, reencontram-se no ego cerebral, central, cons­ciente, unindo-se no campo da consciência às duas zonas la­terais extremas, fazendo convergir para aí as próprias aqui­sições por que são representadas. Conhecemos suas vozes, distinguimos três fontes e três correntes: a voz do instinto, a voz da razão e a voz da consciência. A primeira e a últi­ma vêm de longe, são produtos-sínteses; a segunda é pre­sente, atual, analítica.

A razão apreende, controla, discute. Torna-se, às vezes, campo de batalha entre as diversas correntes, quando diver­gem entre si ou da razão e se revela difícil a harmonização. Nasce, então, a interferência das vibrações e a luta se esta­belece entre os vários impulsos. São por demais conhecidas essas tempestades íntimas. Porém, especialmente no evoluí­do, de superconsciente mais desenvolvido, se desencadeia com mais violência a guerra entre o superconsciente e o sub­consciente, entre o passado e o futuro e ao contrário, entre es­pírito e matéria; entre os dois extremos da evolução que se batem pela posse da consciência, como campo de realizações.

O subconsciente contém o patrimônio adquirido, coleti­vo, as reservas da raça, o decálogo da vida animal, inscrito na carne e no sangue. A célula conhece-o muito bem, graças à repetição milenar que ratificou as experiências originárias. Esse é o alicerce do edifício biológico, o ponto de partida da evolução humana. A célula, na orientação a que obedecem seus íntimos movimentos atômicos traz inscrita a sua longa experiência; e, por inércia, não deixa esgota­rem-se os impulsos recebidos do ambiente e agora transfor­mados em conhecimento por si mesma adquirido. E desse modo continua a emitir correntes de ordem, aviso, consenti­mento, proibição. A razão apreende, procura tomar consci­ência e quase sempre, embora não compreenda, obedece a essa sabedoria mais profunda, porque a reconhece verdadei­ra e também porque, embora sepultada nas profundezas da célula e nas trevas do subconsciente, essa memória biológica continua participando do seu ego. O subconsciente, que re­gistrou tudo e se recorda de tudo, está sempre por detrás de nós para guiar-nos, executa, por nós, automaticamente, inúmeras atividades e resolve, em nosso lugar, grande quan­tidade de problemas, sem perturbar nem agravar o consci­ente. Simples divisão de trabalho. Representando o patri­mônio comum e a sabedoria da vida, o subconsciente diz respeito à hereditariedade fisiológica com que se transmite. A célula constitui-lhe, de fato, a sede e o canal de transmissão. O subconsciente contém o capital hereditário que mais do que ao indivíduo enquanto indivíduo pertence à vida. É riqueza que recebemos ao nascer, como bagagem necessária para percorrermos o pedaço de caminho representado por uma existência. O patrimônio individual, diferenciado, que não se transmite por hereditariedade fisiológica celular, mas, como vimos, por hereditariedade espiritual, está situado no espírito. Vivendo como corpo, acumulamos o primeiro desses patrimônios e, vivendo como espírito, o segundo. Mas bem poucos possuem esse patrimônio individual; a maior parte da humanidade encontra-se ainda nos alicerces de sua construção espiritual, que no atual estado evolutivo, não pode ser o resultado de esforço coletivo, e sim individual. O superconsciente é produto pessoal diferenciado e, por isso, não obedece à hereditariedade comum que se processa através dos caminhos da carne.

Podemos, agora, concluir a exposição do problema da hereditariedade, de que já cuidamos no final do capitulo an­terior. A vida é bipolar e, por isso, uma hereditariedade adequada garante a continuidade de cada um de seus dois extremos: a fisiológica responsabiliza-se pela transmissão do subconsciente; a espiritual pela transmissão do patrimônio do superconsciente. Portanto, duas vias, dois canais abertos, um material e outro imaterial, ambos adap­tados à transmissão dos resultados das experiências de dois organismos diversos, as do corpo e as do espírito. (Cf. as palavras de Cristo a Nicodemos: “O que se gerou da carne é carne; o que nasce do espírito é espírito": João, 3:6) Do subconsciente e do superconsciente, os dois diferentes patri­mônios, acumulados no passado que vivemos em ambas as formas, e que, nos dois campos herdamos de nós mesmos, emergem no consciente, oferecendo-lhe suas úteis produções. A carne adquiriu experiência própria e repete-a. O espírito adquiriu a sua e ofereceu-a. A criança desenvolve-se plas­mada por ambas as forças, cujo desencadeamento ela mes­ma preparou, cresce debaixo dessa dupla orientação, e influência, útil e necessária em ambas as formas. Trata-se de simples restituição, é propriedade nossa que nos volta às mãos e nos diz respeito, porque esses dois patrimônios, na medida em que existem, nós os conseguimos com nosso tra­balho. Cada um dos dois transmite a si mesmo e, em segui­da, age como força, mas operando cada qual no seu próprio campo; cada um constitui impulso que, por força da lei de causalidade, se liga ao próprio passado de que constitui conseqüência e continuação e se imprime no eu atual, plasman­do-lhe o corpo e o espírito. Esse impulso representa a in­corporação já acabada, a zona já formada, e por isso fatal, de nosso livre destino (cf. cap. XXIV: "Nosso Livre Desti­no", deste volume). E como a memória biológica reconsti­tui o organismo físico, repetindo a história celular, conti­nuada agora através da hereditariedade biológica, assim também o espírito reconstrói a personalidade moral, repe­tindo-lhe a história, agora continuada através da heredita­riedade espiritual. O espírito, amparando-se nos instintos do subconsciente delegados à vida animal, plasma a criança, compondo-lhe a personalidade e, quase sem que ele o perceba, atingindo-lhe o cérebro (o consciente), pelas vias imateriais (que sabemos serem conscientes no evoluído) de percepção interior inversa (cf. cap. XXVI: "A música - A Vida Dupla”, deste volume).

O corpo, o cérebro e o espírito constituem, pois, as sedes da personalidade trifásica (subconsciente, consciente e superconsciente), nas suas três funções: instinto, razão e intuição. A personalidade humana, una e trina como o uni­verso, possui, portanto, o organismo instintivo da besta, o cérebro raciocinante do homem, o espírito intuitivo do su­per-homem. Três zonas, três funções, três sedes. A propor­ção que evoluímos, o domínio da intuição torna-se, como vi­mos, o domínio da razão e, em seguida, o domínio do instin­to. As três zonas representam, também, três fases de acrés­cimo. Quanto mais progredimos, porém, tanto mais a fun­ção é precária e a forma imatura. Se no alto vemos o mais evoluído, vemos também o mais novo e menos completo. A elevação e a estabilidade são inversamente proporcionais. A intuição, mais elevada e mais ampla, vive em equilíbrio mais instável que qualquer outro. A razão, mais restrita e terra a terra, fica bem mais embaixo, mas se mostra muito mais sólida e segura e, exatamente por isso, é muito mais adequa­da ao controle da intuição. O instinto fica no ponto mais baixo possível, por ser o de conteúdo mais elementar e limi­tado; no entanto, revela-se o mais garantido pela estabili­dade de equilíbrios e segurança de experiências. Três graus de elevação e, em razão inversa, três graus de solidez. Assim, o animal, servido pelo instinto, é, no seu plano, o mais se­guro e perfeito, embora menos adiantado do ponto de vista da evolução e mais limitado quanto ao domínio; seu instin­to é mais seguro e perfeito do que a discussão racional, per­to dele insegura e oscilante; esta, por sua vez, comparada com os arriscados vôos da intuição, mostra-se muito mais positiva e garantida. É natural, porém, a instabilidade e o perigo aumentarem, à medida que deixamos de rastejar como vermes e começamos a marchar e a voar. Toda forma de atividade tem lugar apropriado e função determinada. A vida não se arrisca, senão em excepcionais emersões, às grandes altitudes. Quer ficar tranqüila, e fica mesmo, em plena massa, nas suas bases mesmas.

Ainda uma observação. Não vá o leitor surpreender-se, porque, nestas páginas, não estamos mais formulando hipó­teses, mas fazendo contínuas afirmações. Isso depende dos seguintes fatos: por brevidade, estamos dando aqui apenas as conclusões; por querermos que este livro seja construti­vo, deixamos de lado toda discussão, como elemento nega­tivo; tudo isso, enfim, resulta do método intuitivo adotado neste trabalho. A dúvida, a hipótese, a espera da confirma­ção espiritual e o horror às conclusões pertencem ao método racional; o método intuitivo, que nos leva à obtenção des­ses conceitos, tem características completamente diferentes. A intuição por sua própria natureza, vê, não discute, aceita as conclusões como estado de fato, não analisa, para atingi-las, não duvida, não experimenta; apenas sente. Por isso, diz, naturalmente: "é"; não diz: "poderia ser" ou "suponha­mos que seja". A verdade surge-lhe já completa e não em estado de elaboração. Chegamos a esses conceitos graças a visões interiores, que não são dirigidas do cérebro para fora, graças a observações sensoriais, mas do cérebro para dentro, por meio de audição espiritual. Aqui a personalidade hu­mana se nos apresenta funcionando como acima dissemos e aquelas afirmações encontram aplicação direta. Eis um pri­meiro controle experimental das teorias acima expostas, uma sua correspondência à realidade, pelo menos neste caso. Reco­nhecemos ser justo que, em seguida, em um segundo estágio, a razão analítica graças a seu método positivo se apodere dessas sínteses intuitivas, para avaliá-las e controlá-las, por meio da lógica, da observação e da experiência, e relacioná­-las com os conhecimentos atuais Isso não significa, porém, não tenhamos já feito aqui um trabalho de coordenação. Esses conceitos, a que, como sempre acontece com o método intuitivo, chegamos tempestuosamente, intermitentemente, rebeldes a todo registro metódico, obedientes a leis diferentes das leis da concatenação lógica e da conexão de idéias que, por afinidade vibratória (fenômeno da ressonância), se atraem; esses conceitos sintéticos, mas racionalmente indisciplinados, aqui já foram reprimidos e, apenas roubados ao superconsciente, coordenados e enquadrados sistematicamente no consciente. Eliminadas irregularidade e intermitência, o relâmpago torna-se luz regulada e contínua, permitindo que se veja o caminho. Este domínio da intuição dinâmica e rebelde num concatenamento racional é um dos maiores esforços necessários à exploração do super-normal, sendo todavia disciplina imprescindível sem a qual tornar-se-ia inútil o método intuitivo. De outro lado tal método permite a compreensão contínua e progressiva dos proble­mas por captações sucessivas como o estão demonstrando estes "Comentários à Grande Síntese", pelos quais pode-se provar que tal livro não tem propriamente um fim, poden­do ser desenvolvido ad infinitum[17]. Se os esquemas funda­mentais então expostos são simples e unitários, torna-se agora ilimitado o número de combinações possíveis entre as posições da forma. Realmente são esses os caminhos da na­tureza seguidos por nós: chegar por meios extremamente simples ao infinitamente complexo, partindo de princípios elementares ou temas fundamentais, repetindo-os em altu­ras, dimensões e combinações diversas. Dualismo universal. A criação, num pólo, simples, noutro, complexa, centralmen­te unitária e de incomensurável multiplicidade na periferia, imutável no absoluto e instável no relativo, é, ao mesmo tem­po, perfeita e imperfeita; se por um lado se inclina a formas e existências efêmeras é assinaladamente eterna em seus princípios vitais. Os dois pólos se pressupõem e se subenten­dem. Segundo a lei do dualismo, para o princípio universal da oposição dos contrários, a forma transitória do lado ma­téria presume e impõe, do lado espírito, a presença de uma vida eterna correspondente.

Pelo lado forma ou matéria uma das características do ser é a caducidade, a necessidade, portanto, de continua troca para sobreviver, de ininterrupto renovamento para su­prir, com as entradas, as perdas e saídas, tornando-se a vida uma corrente onde é necessária e implícita a presença de um dinamismo animador e dirigente, reencontrando tudo na forma sem o que esta não se pode suster. O limite desse complemento, que contrabalança o binômio, e o equilibra com um elemento e impulso inverso, é o espírito. Ele reali­za precisamente a reparação contínua, sem a qual a caducidade não seria renovamento vital, mas morte. Sem a pre­sença ativa de tal espírito encarregado da contínua manu­tenção, isto é, encarregado de tudo alimentar, sustentar e reparar interiormente, onde é seu lugar, nada se manteria, nada haveria de sobreviver. Tal caducidade da vida é a sua fraqueza, o seu perigo, a sua lida. O mal, a dor, a morte estão continuamente em choque. Tudo se decompõe e é sempre necessário reconstruir. O ritmo do fenômeno vital acha-se ligado ao ritmo fatal do tempo, dentro do qual, se abandonado a si mesmo, se extingue e morre. As contínuas relações que o sustêm não podem sofrer intermitências. Se pára, vem a morte. A caducidade, fraqueza congênita da vida, subentende e impõe o movimento ininterrupto. Esta é sua condenação: o fragmentar-se no relativo, de única tor­nar-se múltipla, o cair do eterno na corrupção, do infinito na prisão do limite, na necessidade de reconstruir, com o cansaço de um condenado e o sofrimento de um decaído, tudo o que desmoronou, e que permanece como um sonho, um lamento, um ideal. Esta reconstrução chama-se evo­lução e todo trabalho necessário à complexa estrutura da personalidade representa o esforço constante que a ela está ligado.

O mesmo princípio universal do dualismo, estabelece que, estando num pólo do sistema a divergência, no outro esteja, por compensação, a concórdia, ficando a vida condenada a constantes rupturas e recomposições; a isolar-se no egoísmo e a dedicar-se ao acoplamento; a separar-se no individualis­mo e a reajustar-se na vida social. A própria personalidade, em seus extremos, subconsciente e superconsciente, está di­vidida, mas para o centro, o consciente, convergem todas as correntes, reunificando-as no ego. A mesma personalidade se divide em dois pólos, pai e mãe, espírito e matéria; nela porém, os mesmos se reencontram, fundindo-se numa única individualidade. Para cada ser, a existência consiste no mes­mo processo de reconstrução da antiga síntese. O múltiplo deve retornar à unidade. Eis a constante labuta da vida, a essência da evolução: o sofrimento, tendo, porém, como meta a felicidade. A lei de dualidade é imprescindível que, se num extremo da involução o limite é a dor, no extremo opos­to da evolução, o limite seja, pelo contrário, a felicidade. Assim a dor é, a um tempo, redenção, reatualização, recon­quista, e tem a função reconstrutiva do progresso, que cul­mina em triunfo. Assim nos ensina a lei do sistema.

O homem nasce incompleto. É por todos os lados moles­tado por privações, sempre vulnerável e sensível, num am­biente indiferente ao seu dano, à sua dor. O sistema supõe a vida como um campo de provas. As investidas são inin­terruptas mas a sensibilidade é proporcionada às provas e as provas à sensibilidade. Da reação recíproca nasceu a mútua educação, uma simbiose de forças que, nas contínuas relações e trocas se contrabalançam. O ego e seu ambiente se conhecem, um está disposto a se encontrar com o outro demonstrando profunda presciência de suas mútuas quali­dades. São as harmonias da vida. Até a luta tem suas har­monias sem as quais seria absolutamente impossível qual­quer aproximação ou equilíbrio. Luta e harmonia se suben­tendem; se a primeira está num extremo do binômio, a se­gunda deve necessariamente ser de natureza oposta e si­tuar-se no extremo oposto. Se há luta e sofrimento, há também proporção entre resistência e ataque, entre ação e reação. A Lei, portanto, manifesta automaticamente a sua ação de acordo com a sensibilidade do indivíduo, e, propor­cionando o tom de voz à sensibilidade, consegue fazer-se ou­vida por todos. Quanto mais insensível e surdo o homem, tanto mais forte a Lei grita, tanto mais violentos são seus golpes, tanto mais difíceis suas provações.

O homem é um binômio, dividido em dois entre os ex­tremos de sua personalidade, dividido no sexo, na contradi­ção contida pelo antagonismo de todo pensamento ou ato, na luta que se trava em seu consciente entre subconsciente e superconsciente, na divergência entre seus dois mundos, o interno e o externo. Em contínuo movimento a fim de pre­encher suas falhas, aflige-se com os desejos de suas qualida­des contrárias. Satisfazendo-os vê restabelecer-se a despro­porção e descontentamento que o tornam desiludido pela impossibilidade de alcançar a paz proveniente da sua completa satisfação. As duas partes em que se fragmentou a antiga unidade parecem condenadas a perseguir-se mutuamente sem jamais se alcançarem. A meta de chegada se distancia mais e mais ou, se alcançada, reaparece sempre mais longe. O desequilíbrio acelera a corrida, mas conseguida a felicidade do repouso, se restabelece a desproporção e a necessidade de novo movimento para tranqüilizá-lo. A alegria da tarefa cumprida foge sempre. A imperfeição congênita muda-se em contínua necessidade de perfeição. Sublime e terrível condição de sofrimento e felicidade, de escravidão e liberdade, de miséria e triunfo. Negação originária que em si contêm implícitos todos os elementos da afirmação. Condenação de origem levando fatalmente às portas do progresso e do resgate. Todo este sofrimento se chama vida.

A divisão da unidade em duas partes, tornando o homem incompleto, faz dele um partidário. Não sabendo ser senão uma parte da verdade, para alcançar o seu complemento na parte oposta, sente necessidade de discutir e lutar. Ele pos­sui a verdade fragmentada, não a verdade na sua unidade totalidade. Seu poder de concepção não sabe ir além; acha-se imerso no particular, no relativo, na contradição. De qualquer lado que esteja, na discussão, sente-se ausente da outra parte e, por isso, sofre e procura indenizar-se. Sob as aparências do antagonismo, expressão da oposição dos termos, deseja e procura aquilo mesmo que é o objeto de seu combate, aparentemente para destruí-lo, mas na verdade para apoderar-se dele, devorá-lo, assimilá-lo, tornando-o parte de si mesmo. Por esta única razão combate, primeiro para que seu adversário, igualmente incompleto e desejoso de comple­tar-se, não o devore, não o assimile; depois porque ele próprio sendo imperfeito é sequioso de aperfeiçoar-se no outro. Eis o que é a vida: o estrugir de uma batalha que é unicamente desejo de amor.

A luta pela vida nasce do dualismo, unilateralidade e privação, havendo sempre atrás do amor o ódio, e atrás do ódio, o amor. Embora cada ser egoisticamente se incline a isolar-se do todo, contínua fazendo parte do todo, e por mais que deseje dominar para impor-se aos outros, na verdade não passa de um pobre que procura completar-se. Reaparece então uma bipolaridade inversa: conquanto o egoísmo seja indispensável à vida do indivíduo, sem altruísmo não pode haver nem fecundidade, nem geração. O primeiro, que parece conservar e acumular, torna-se um fator de separação e destruição; o segundo, que parece dissipar, constrói e une. Todas as possíveis atitudes da vida humana acham-se compreendidas no binômio egoísmo-altruísmo, composto de dois termos contrários que se completam. E todo esforço está compreendido num sistema de equilíbrios que o tornam pos­sível somente dentro dos limites impostos pela Lei e sem possibilidade de causar desordens ao funcionamento univer­sal. Assim, a luta se transforma em elemento de fecundida­de e construção; não é, como pode parecer, caos e destruição, mas fator regulado dê evolução. Há compensação e equilíbrio: o eu luta para se assegurar contra tudo e contra todos, mas por lei tem necessidade de outros para unificar-se com a totalidade. Todo elemento está, por Lei, unido ao seu opos­to de tal modo que altruísmo e egoísmo, atração e repulsão, impulsos contraditórios, se contrabalançam, se equilibram perfeitamente.

Tudo nasce corroído interiormente por essa autocontra­dição que cada ser traz em seu íntimo e em seu exterior. Porém, ao mesmo tempo, em si tem o remédio necessário. A própria contradição que supõe extermínio, subentende a construção, tornando-se princípio evolutivo de rejuvenescimento. Portanto não se pode dizer imperfeita uma natureza que traz no íntimo de sua imperfeição tanta beleza, a Lei que, apesar das aparências de desordens e desalinho é a própria substância da ordem e disciplina. É verdade que a natureza é falha, insegura em suas tentativas, sempre cega em frente ao desconhecido, porém, assim como tende a cair e pecar, como é grande seu poder de restauração, e que ri­queza de possibilidades! Que variedade de doenças, mas que abundância de remédios! Continuamente perseguida, furti­vamente ameaçada a cada passo, a vida prossegue ininter­rupta, triunfando de todas as negações. Também aqui, a rea­lidade é bipolar: exteriormente imperfeita, é em seu íntimo, realmente perfeita; corruptível e transitória na forma, é substancialmente incorruptível e eterna. Enquanto tudo ao seu redor se deteriora e acaba, seu interior é uma fonte inexaurível de fecundidade e rejuvenescimento. Em meio à instabilidade do futuro nas formas-efeito, permanece intac­ta a estabilidade do imutável no princípio-causa. Daí nasce a beleza e a necessidade do movimento. Tudo roda em con­tínua erosão sem que nada se destrua, tudo é tomado de assalto mas a vida continua ilesa. Do movimento, nasce a grande ilusão, a periferia complexa, mutável, fugidia. Po­rém só na periferia. Desçamos um pouco abaixo da superfí­cie revolta do oceano e encontraremos a calma. A verdade simples, inalterável, divinamente tranqüila está no centro. Embaraço, instabilidade, incerteza, barulho, desordem, luta, sofrimento, tudo aumenta à proporção que nos distancia­mos do centro Quanto mais perto, tanto maior estabilida­de, segurança, harmonia, ordem, paz, contentamento. O difícil e múltiplo desorientam, mas no centro se dissolvem em um princípio fácil e unitário onde a direção é evidente. As almas que, afastando-se da vida exterior da matéria e dos sentidos, sabem interiormente aproximar-se de Deus, conhe­cem por experiência a verdade destas afirmações. O primi­tivo que vive superficialmente não vê senão desordens, mas quem vai ao fundo da substância encontra a ordem perfei­ta. Sendo portanto diverso o poder de visão, quem só vê de­sordem e caos, é negativo e materialista; quem encontra ordem e harmonia é positivo e espiritualista. Para quem olha de fora, como a análise racional e experimental, o uni­verso é um dédalo inextricável de contradições, precipitação cega para a autodestruição, sabedoria incerta e falha, dissipação incontida, construção desconexa, onde as partes não se adaptam, incompleta, corroída pela maldade, pelo cansa­ço, pela dor, pela morte. Porém tanta imperfeição e corruptibilidade é apenas externa, aparente. Um olhar mais profundo, como a síntese intuitiva, descobre um universo que funciona perfeitamente como desenvolvimento lógico, potência construtiva, sabedoria e segurança de ação, cone­xão de partes, capacidade de compensação e reparação, enfim, um organismo completo, incorruptível, inexaurível. So­mente se soubermos chegar ao centro, isto pode tornar-se evidente. Somente agora pode ser compreendida a oração de A Grande Síntese (cap. LXVII: "A Prece do Viandante"): "Nada posso pedir-te, Senhor, porque na tua Criação tudo é perfeito e justo, até meu sofrimento e minha momentânea imperfeição..." Portanto, o que se procura é a própria ade­são à vontade de Deus. A fórmula "pulsate et aperietur vobis"[18], pertence ao plano humano; o "fiat voluntas tua"[19], ao super-humano. De fato, Cristo, no Getsêmani, usou esta última. É esta a diferença da oração do involuído e do evoluído.

Se o involuído sofre sem compreender sua dor e sua fun­ção, o evoluído, de superconsciente culto, compreende-as per­feitamente. Exalta-se na luta entre consciente e superconsciente, como na elaboração criadora. Sente-se dividido entre dois extremos, perseguido pelo desejo insaciável de se com­pletar. Os dois extremos de seu ser estão em mundos opos­tos, o espírito de um lado, o corpo de outro, querendo cada qual dominar tudo sozinho, desencontrando-se no conscien­te. Que brilho intenso provoca esta batalha! A pátria terrena impõe-se por suas necessidades práticas, mas do íntimo chama com voz possante a longínqua voz do céu. Há olhos insensíveis, mudos, vazios, sem alma, inertes e silenciosos. Há olhos cheios de tempestades, onde se vê lutarem as for­ças do espírito, onde se sente a atmosfera vibrante dos gran­des esforços construtivos, olhos abertos também para outro lado da vida, revelando-nos sua complexidade, falando de coisas misteriosas e longínquas, ultrapassando os limites, enxergando até no abismo do universo interior de onde emer­gem, resplandecendo da luz que dele emana. Falam-nos de outros mundos que viram, trazendo-nos recordações em seus olhares, esses olhos que choraram e pediram, deixando transparecer neste mundo a imagem neles impressa da divinda­de. Se soubermos entendê-los teremos o testemunho da ou­tra realidade distante que foge aos sentidos e não se mani­festa neste mundo.

Fragmentou-se a personalidade, porém não se quebrou por completo. Foi lançada na discórdia, mas pode se recons­tituir na harmonia. Perdeu sua plenitude, está condenada a viver à custa de ininterruptas substituições, ligada às vi­cissitudes da vida e da morte que a impelem além ou aquém do limite; contudo, sua ascensão é lei fatal; fatalidade de culpa, fatalidade de evolução, inevitável e necessária conquis­ta de felicidade. Se a dor e o esforço são impostos, do mes­mo modo seus preciosos frutos. Olhando-se o exterior fica-se pessimista, procurando o íntimo das coisas, a única con­clusão possível é o otimismo. A injustiça é aparente, a jus­tiça real. Se a vida é penosa, também a lei de Deus, conti­nuamente se esforça para eliminar as más inclinações, para libertar a luz das sombras, o bem do mal, a alegria da dor, procurando transformar o Getsêmani em glorificação. Atra­vés de infinitas oscilações entre um e outro pólo de sua exis­tência, o eu renasce, cicatrizando a grande ferida da sepa­ração. Um dia, elevados sempre mais para o Alto, compre­enderemos como era necessária a prisão do espírito no corpo, como este irmão menor era instrumento de perfeição, como era inevitável o impacto da matéria inimiga para se fortifi­car a resistência, instruir-se com a experiência e reconstruir através de provas e dificuldades. Compreenderemos então quanta sabedoria se originou da prisão no tormento da con­tradição íntima, algemados a um inimigo, rodeados por um ambiente de assaltos e negações. Compreenderemos a utili­dade de nos unirmos ao inimigo, completamente imersos na luta incessante, universal e inevitável, destruidora, mas re­construtiva.

XXIX

S. FRANCISCO NO MONTE ALVERNE (1ª PARTE)

Chegamos, finalmente, a estes últimos capítulos, em que o trecho de caminho percorrido neste livro se fecha numa pausa; depois dessa pausa, talvez continue mais para adian­te. Este novo episódio pára no ponto culminante de sua ma­nifestação, retira-se para o outro extremo da eterna oscilação do ser, mudando para dentro o sentido de seu deslocamento a fim de, após haver narrado e demonstrado, poder atingi-la de novo. De fato, a vida processa por meio desse deslocamen­to alternado, de dentro para fora e de fora para dentro, as duas fases inversas de todos os atos. A oscilação pendular entre tese e antítese, segundo a qual tudo se move e se equi­libra, impõe que a introspecção e a manifestação se sucedam no tempo.

Ao longo de nossa caminhada neste volume, a vastidão dos problemas sociais foi gradativamente diminuindo, à pro­porção que se aprofundava na complexidade do problema individual; o campo apequenou-se, mas o potencial se elevou. Até mesmo na forma, portanto, este livro reproduz o fenô­meno evolutivo, que lhe constitui o problema central. Par­timos do problema dos grupos, da questão social coletiva, que por causa da extensão e involução se coloca na base da pirâmide humana, e subimos até o problema dos pouquíssi­mos evoluídos, à questão individual, que se coloca no vérti­ce dessa pirâmide. Alcançamos, desse modo, alturas a que a massa não pode aspirar, a formas de vida que apenas po­dem ser atingidas pela excepcional emersão biológica. Com­pletamos, assim, uma oscilação entre os dois extremos da vida humana: o coletivismo e o individualismo. De fato, ao progredir, a história oscila entre o sistema social igualitá­rio e disciplinador de multidões e a exaltação do indivíduo excepcional, autônomo e rebelde, e, graças aos dois extre­mos contrários, se compensa e se completa. O sistema social, coordenando os elementos necessários, disciplina-os, constrói o indivíduo; da emersão do indivíduo resulta o sistema. Ambos estes termos são necessários e colaboram no mesmo processo biológico de evolução. Agem alternadamen­te na História e assim equilibram suas funções, no que têm de contraditórias. O progresso alimenta-se nas duas fontes. Agora, depois de havermos tratado dos numerosos problemas das multidões e chegado às bordas do abismo da personalidade, o último passo tem de necessariamente colocar-nos mesmo no ponto culminante da evolução humana, além do qual o espírito se desembaraça da forma corpórea para as­sumir formas superiores, que por enquanto nem mesmo po­dem ser concebidas pelo homem comum. Para chegar, porém, a esse ponto devemos percorrer de novo o caminho todo e ir subindo aos poucos, através de vários problemas, esgo­tando antes de mais nada até mesmo o da personalidade humana. O de que agora vamos tratar representa um de seus casos particulares mais evoluídos e complexos. Trata-se de emersão escolhida entre as mais conspícuas e espi­rituais, embora não seja nem a única nem tenha apenas esta forma.

Todos obedecem aos impulsos expansionistas do eu. A expansão constitui a primeira e mais evidente expressão vital. Este é o esquema do ser: manifestar-se por meio de individuações sintéticas, resultantes de concentração de for­ças no eu, mas subordinadas a inverso período de descentra­lização, por força do qual a personalidade humana se ma­nifesta como sistema expansionista. Desse modo, o binômio se completa e os impulsos se equilibram. Mas, para a maio­ria, essa expansão se dá horizontalmente, em superfície, e verticalmente, em altura, se se trata de emersão biológica. A expansão do tipo normal dirige-se à posse, que, por reci­procidade, significa sujeição; a expansão do super-normal se dirige para a liberação e isso quer dizer domínio. O normal, inexperto, vítima da ilusão, tenta dominar, mas acaba sen­do dominado, procura libertar-se e acaba agrilhoando-se. Conhece apenas a expansão terrena e, por isso, mostra-se avidíssimo, como hoje acontece, de munir-se de energia, ne­cessária para aumentar seu raio de ação em superfície e sua capacidade de ação em profundidade, de modo a que a afir­mação de si mesmo atinja a matéria o mais extensa e pro­fundamente possível. Mas, desse modo, não toma conheci­mento da expansão vertical, que lhe escapa à percepção e com ela a conquista do volume, quer dizer, de uma dimen­são superior. As duas atitudes em face da vida correspondem a duas posições e a duas concepções totalmente diver­sas. O primeiro tipo revela-se muito pequeno, espiritualmen­te falando, para que. não possa alojar-se comodamente na pequenina casa do corpo. Sua única ambição consiste em ampliá-la, de modo a construir para si mesmo prisão cada vez mais bela e vasta e a anexar-lhe todas aquelas depen­dências do corpo chamadas posse, riquezas, honras, poder. O evoluído revela-se muito desenvolvido espiritualmente pa­ra que não se sinta sufocar no ambiente terrestre. Prova a sensação que sentiria um animal transformado em planta. Com efeito, a vida física, se a compararmos com a ilimita­da liberdade de movimentos do espírito, poderá parecer, a quem já a experimentou, como a imobilidade da árvore com­parada com a agilidade dos animais. O evoluído, prestes a sair da crisálida terrena, e que já saboreou a vida em dimensões super-espaciais e super-temporais, sente de fato os grilhões do corpo e do limite imposto, nas dimensões exatas, ao plano evolutivo da matéria. Sente a angústia da vida terrena, tolera-a como expiação ou missão, não espontaneamente, mas por dever; seu íntimo impulso expansionista, po­rém, segue rumo vertical, não tem em vista a ampliação e o enfraquecimento da prisão, mas liberta-se dela. Não há ou­tro sistema sério para resolver as dores da vida. Descobriu os truques da ilusão e não se deixa mais iludir. Já sabe que os domínios humanos, na realidade, não passam de servidão e, por isso, não se dispõe a consegui-los mais; reconhece serem eles necessários para os primitivos, como meio de experimen­tação, compreende-lhes a função nesse plano; não pode, po­rém, aceitá-lo, pois executa trabalho completamente dife­rente. É justo que, de acordo com sua capacidade, cada um maneje na vida os instrumentos a que mais se adapte. Quem sabe, porém, dá a cada um deles o valor que merecer. Assim, o evoluído recusa uma fingida extensão de domínio, que para ele se resolve em mentira, pois em substância é, isso sim, aumento de escravidão; assim, repele as miragens que o ligam aos grilhões da posse, torna-se o mais possível independente de tudo e de todos e volta as costas a todas as co­nhecidas lisonjas da vida. Não faz questão de superiorida­de, mas de maturidade. Cada um de nós exerce a função exata no seu plano, e está no lugar certo. Mas também está na lei de justiça e equilíbrio que todos os que apren­deram a desempenhar funções mais elevadas devem ir exer­cê-las onde isso se torne possível, quer dizer, em outros mundos, mais adiantados e mais adequados. A natureza, econômica como é, conhece muito bem e, por isso, não desperdiça os seus valores; o funcionamento orgânico do universo e a grande marcha evolutiva não podem parar; a as­cese, depois de realizada intimamente, imp5e inexoráveis mudanças, inclusive à forma. O ciclo deve continuar na fa­se seguinte, o fruto maduro deve destacar-se da árvore, o homem evoluído deve destacar-se da humanidade. Por mais que, por bondade, humildade, ou amor, se dedique a seus se­melhantes, o evoluído é irresistivelmente impelido, cada vez mais para cima, no aflitivo turbilhão da vida.

Fechemos o pedaço de caminho percorrido neste livro, contemplando esse momento sublime através de um. caso excelso em que um tipo de personalidade madura, foge, como se fora um projétil, do campo das atrações terrestres e se atira no espaço infinito. O fruto, elaborado e amadurecido no ponto mais alto das ascensões biológicas, o produto mais bem acabado da vida humana, destaca-se da árvore que o produziu. Bem próximo da morte, em que ele ressurge, no limiar de vida muito mais ampla, veremos um ente, que, embora pareça, não é mais humano, nascer para a realidade iminente de um mundo superior que se abre diante dele. Revela-se-lhe ele como supremo lampejo espiritual sobre o tripúdio de paradisíacas sensações interiores. Esse mundo constitui o céu de Cristo; o ser, que, embora pareça, já não e mais humano, foi Francisco de Assis; o momento sublime, da derradeira ruptura das órbitas terrenas e do lançamen­to no infinito, se passou, num incêndio de luz e amor, nos cimos do Monte Alverne.

Relatemos a singela história dos Fioretti, acrescentando à citada no volume Ascese Mística (Cap. XV - Segunda Parte) a dos precedentes do maravilhoso acontecimento aproximava-se a festa da Cruz de setembro; certa noite, na hora em que se costuma rezar as matinas, frei Leão foi ter com São Francisco; e, tendo dito da cabeceira da ponte, como se costumava, Domine, labia mea aperies[20], São Fran­cisco não lhe respondeu; frei Leão não voltou para trás, como São Francisco lhe ordenara; mas, com boa e santa in­tenção, atravessou a ponte, entrou-lhe devagar na cela e, não o encontrando, supôs estivesse ele na floresta, ou final­mente, entregue à oração em algum lugar; saiu e, à luz do luar, foi procurando-o cuidadosamente na floresta. Finalmente, ouviu a voz de São Francisco e, aproximando-se, viu-o de joelhos e com o rosto e as mãos voltados para o céu; e com grande fervor perguntava: Quem sois, ó Deus, dulcíssimo senhor meu? E quem sou eu, vosso vilíssimo servo? E repetia sempre as mesmas palavras e não dizia mais nada. For isso, frei Leão ficou muito admirado, levantou os olhos e fitou o céu; e viu vir descendo belíssimo e esplêndido fa­cho de fogo, que pousou sobre o corpo de São Francisco; e da chama ouvia sair uma voz que falava com São Francisco; mas frei Leão não distinguia as palavras. Quando viu isso, julgando-se indigno de estar assim tão perto daquele santo lugar, onde se dava aquela admirável aparição, e, além dis­so, temendo ofender a São Francisco e perturbar-lhe a con­solação, caso São Francisco lhe percebesse a presença, afas­tou-se silenciosamente e, ficando de longe, esperava ver o fim de tudo aquilo. Olhando atentamente, viu São Francis­co estender três vezes as mãos na direção da flama: final­mente, depois de grande espaço de tempo, viu a chama vol­tar para o céu. Então, mexeu-se e São Francisco percebeu-lhe a presença, por causa do barulho de seus pés esmagan­do folhas, e disse-lhe que o esperasse e não se movesse do lugar. Então, frei Leão, obediente, ficou parado e espe­rou-o... São Francisco, aproximando-se, perguntou-lhe: Quem és? Frei Leão, tremendo, respondeu: Sou frei Leão, meu pai! E São Francisco lhe disse: Por que vieste até aqui, frei carneirinho? Não te disse eu que não me andasses espionan­do? Diz-me, em nome da santa obediência, se viste ou ouviste alguma coisa. Frei Leão respondeu: Pai, ouvi-te falar e dizer muitas vezes: Quem sois, é dulcíssimo Deus meu? E que sou eu, verme vilíssimo e inútil servo vosso? Em segui­da, lhe pede devotamente lhe explique as palavras que não havia compreendido. Então, vendo São Francisco que Deus concedera ao humilde frei Leão, por sua simplicidade e pu­reza, a graça de contemplar algumas coisas, concordou em revelar-lhe e expor-lhe o que ele pedira; e falou assim:... Naquela flama que viste estava Deus, falando-me sob aquela mesma aparência com que outrora falara a Moisés... Mas, toma cuidado, não andes espionando-me por aí e volta pa­ra a tua cela, com a bênção de Deus e toma bem conta de mim: pois dentro de poucos dias Deus fará tão grandes e maravilhosas obras neste mesmo monte que todos ficarão maravilhados; e fará, também, algumas coisas novas, que Ele nunca fez em proveito de criatura alguma deste mun­do... Daquele momento e daquele ponto em diante, São Francisco começou a libar e a sentir mais abundantemente o dulçor da divina contemplação e das visitas divinas. En­tre elas, uma, logo depois, preparatória da impressão dos Estigmas. Foi assim. Na véspera da festa da Cruz de setem­bro, estava São Francisco em oração na sua cela, quando o anjo do Senhor lhe apareceu e lhe disse da parte de Deus: Vim confortar-te e recomendar-te que te prepares e te dis­ponhas, humildemente, e com toda a paciência, para rece­ber o que Deus quer fazer em ti. São Francisco respondeu: Estou preparado para suportar com paciência tudo quanto meu senhor queira fazer em mim; e dito isto, o anjo partiu. No dia seguinte, isto é, no dia da Cruz, São Francisco, por ocasião das matinas, de madrugada, se pôs a orar diante da porta da cela, com o rosto voltado para o Nascente; orou, e permanecendo por muito tempo em oração, começou a contemplar devotamente a Paixão de Cristo e sua infinita ca­ridade; tanto cresciam nele o fervor e a devoção que, por amor e compaixão, todo ele se transformava em Jesus. Es­tando assim inflamado nessa contemplação, nessa manhã mesmo viu descer do céu um serafim com seis resplendentes e flamejantes asas e, voando velozmente, aproximou-se de São Francisco ao ponto de este poder discernir e ver perfei­tamente haver nele a imagem dum homem Crucificado; (...) Estando imerso nessa admiração, foi-lhe revelado pela aparição que a Divina Providência lhe proporcionava aquela visão a fim de que compreendesse dever transformar-se, não por martírio corporal, mas incendendo-se mentalmente, em imagem perfeita de Cristo crucificado. Durante essa apa­rição admirável, todo o Monte Alverne parecia arder em cha­mas esplêndidas, que, como o sol, iluminava os montes e os vales dos arredores; os pastores, que velavam por ali, vendo o monte em chamas e tantas luzes em torno, ficaram com muito medo, isso de acordo com o que mais tarde eles mes­mos contaram aos frades, dizendo-lhes até que as chamas permaneceram sobre o Monte Alverne pelo espaço de uma hora. Assim também, diante da claridade dessa luz, que res­plendia nas janelas das estalagens da região, alguns mula­deiros se levantaram na Romagna, crendo haver surgido o sol material, e carregaram seus animais: e, tendo-se posto a caminho, viram a referida luz apagar-se e aparecer o sol material. Na aparição serafínica, Cristo manifestou-se e disse a São Francisco algo secreto e sublime, que São Fran­cisco jamais quis revelar a pessoa alguma... Depois de grande espaço de tempo e de colóquio particular, a admirá­vel visão desfez-se, deixando o coração de São Francisco abrasado em vivo fogo de amor divino: e deixou-lhe na car­ne maravilhosa imagem e estigmas da Paixão de Cristo. Nos pés e nas mãos de São Francisco começaram a surgir os horrendos sinais dos pregos, exatamente como a visão lhe mostrara no corpo de Jesus crucificado, que lhe aparecera sob a forma de serafim; e, assim como as mãos e os pés do serafim apareciam com as marcas dos cravos, também as de São Francisco tinha impressa, nas mãos, nos pés e no la­do, a imagem e semelhança de Cristo crucificado. Embora se empenhasse em esconder os gloriosos Estigmas, tão niti­damente impressos em sua carne, a necessidade obrigou-o a escolher frei Leão, o mais simples e puro dos frades, ao qual tudo revelou, deixando-o ver e tocar aquelas santas chagas e enfaixá-las em trapos para mitigar-lhes a dor e receber o sangue que delas saía. Finalmente, tendo São Francisco ter­minado a quaresma de São Miguel Arcanjo, se dispôs por divina revelação a voltar para Santa Maria dos Anjos, como, juntamente com frei Leão, lhe era conveniente voltar. Assim partiu e desceu o santo monte".

Isto nos contam as “Fioretti”, deixando os acontecimen­tos envoltos numa atmosfera de lenda e sonho. Que há de objetivo e real nesta narração? O fenômeno aqui é visto de longe, do plano comum da vida humana; do super-normal não se vêem senão efeitos físicos, aquilo que pode ser per­cebido pelo normal. Não chega até nós senão uma projeção dos fatos nos sentidos. A história depois passou de boca em boca e quem nô-lo narra não o assistiu, nem viu de perto qualquer testemunho; somente frei Leão sabe alguma coisa. Não recebemos senão um pouco de luz vista de longe, atra­vés do espaço e do tempo, de reflexo, filtrada pela psicologia dos narradores. Para nos aproximarmos do fenômeno é ne­cessário penetrá-lo, reencontrá-lo cada um por si. Da redu­ção por nós percebida, devemos tentar alcançar o seu es­plendor primitivo, revê-lo em sua realidade; devemos não so­mente observá-lo, mas procurar senti-lo e revivê-lo como re­almente aconteceu. Isto é possível pelos caminhos do espí­rito. O olho normal, que vê o exterior e não sabe penetrar até às realidades espirituais, não percebo senão indícios. Não temos aqui a história do que realmente aconteceu, mas de uma parte desse fenômeno grandioso que pôde se refle­tir na pequenez do olho comum. Este não poderia perceber com clareza o super-normal, que portanto lhe aparece envol­to em névoas de mistério, como algo velado, perdido nas alturas do milagre. Para a comum percepção concreta, o mun­do espiritual desaparece no irreal. Mesmo as vidas do Santo narram genericamente, sumariamente este momento, que não só é o ápice de sua perfeição, como o é também de toda a humanidade em sua subida à procura de Deus e do espí­rito. Momento crucial, decisivo da evolução, libertando o ser da animalidade humana, fuga ao mundo, às suas restri­ções, ao nosso modo de viver e sentir, para entrar numa fase de vida mais elevada, exaltação do amor até à divinda­de. O olho normal do historiador não vai além dos efeitos físicos, não penetra a substância, não pode, portanto, dar-nos a realidade destas exceções. A história pára no exterior, sendo-nos de pouca valia. Por isso mesmo não pode dar-nos detalhes de coisas profundas, esfumando-se em lendas. No campo místico, milagroso, fora de nossa realidade, rodeado de luz mas muito distante e irreal, o fenômeno foge à sua percepção, tornando-se inacessível à nossa experiência, à nossa observação objetiva.

Realmente não é nada fácil avizinhar-se a fatos seme­lhantes. Por momentos parece que o mesmo fenômeno pu­dicamente se mostra envolto em mistério, porque lhe repug­na tomar forma material; parece que lhe seja impossível ou não lhe seja permitido apresentar-se claramente, ao olho humano, sob a luz crua dos sentidos e que é preciso encon­trá-lo mais por meio da fé, que por meio da crítica históri­ca e científica. Sente-se que o profano é justamente des­prezado. A própria natureza do fenômeno o exige. Não é permitido ao olho vulgar, além da homenagem que deve prestar à santidade, o direito de penetrar no sagrado retiro de mistério onde se ouve a voz de Deus. Trata-se de coisas altas e sublimes, que neste mundo de matéria e de armas se desfazem, existem e não existem, e, se nos aparecem, pro­curam e devem se esconder para a própria defesa, prestes a desaparecer no imponderável, horrorizadas pelo contato brutal com a matéria terrena. Estes fenômenos, portanto, não podem aparecer neste mundo em plena luz. A maioria só é possível crer e venerar. Segue-se daí que as mentali­dades racionais e cientificas voltam-se para outras coisas, sentindo-se, por tudo isso, autorizadas a classificar o fenô­meno entre os fatos da arte, da lenda, do sonho e nada mais, chegando ao extremo de duvidar de sua realidade objetiva, negando tudo materialisticamente.

Os fatos são bem diversos. O fenômeno realmente exis­tiu. Ê racional e cientificamente possível. Para afirmá-lo e demonstrá-lo, como o faremos, é necessário primeiramente tê-lo reconstruído e sentido por meio da intuição e da fé, tê-lo vivido interiormente, no espírito, para reduzi-lo aqui em forma racional e compreensível, porque o fenômeno, em sua profunda realidade, não pode fazer-se sentir ou ser narrado; como percepção direta é incomunicável a espíritos comuns Isto não significa destruí-lo, mas reforçá-lo, já que sua rea­lidade, de outro modo, fugiria, sendo portanto facilmente negada. Achegar-se a ele para melhor compreendê-lo não é irreverência. Assim poderemos analisá-lo e, analisando-o, ex­plicá-lo, defini-lo, mostrando sua realidade objetiva, elevan­do-o assim a mais elevado significado. Estudando sua estru­tura íntima não negamos nem diminuímos sua supernormalidade, antes a confirmamos. O prodígio compreendido, con­tinua sendo prodígio, mesmo tornando-se-nos mais acessí­vel e capaz de imitação. A intuição é compreensão e amor, não destruição; avizinha-nos e não nos afasta desse modo espiritual onde se dão tais fenômenos. Trata-se de fazer sentir o irreal como real, fazendo-o descer das alturas onde se encontra até este nosso mundo racional. E se também esta procura não tiver, por imperfeição de seu instrumento humano, a capacidade de conseguir o escopo desejado, fica­rá, contudo, como tentativa honesta, feita com fé e em boa-fé, inspirada não por desejos de destruição, mas de constru­ção espiritual.

Entramos no mundo da realidade supersensória impon­derável, situada no pólo oposto da realidade sensória e ma­terial de nosso mundo terreno. Já falamos de S. Francisco em diferentes fins e sentidos nos volumes As Noúres (Cap. IV) e Ascese Mística (Cap. XV - Segunda Parte). Para po­dermos nos avizinhar ainda mais a Ele, é necessário nova caminhada da fadiga e dor de onde nasceu o pensamento destas páginas de conclusão. Somente após esta nova ma­turação, depois de estabelecidos e resolvidos novos quesitos, é possível encarar racionalmente tão complexo problema pa­ra o qual convergem tantos outros presumindo outras tan­tas soluções menores. Podemos pormenorizar mais ainda, aplicando tudo isto a um caso real. Neste trabalho de ca­ráter sobretudo racional e de pesquisa, falamos presentemente ao homem racional em particular, ao homem que não crê e não sente, para fazer que também ele compreenda este raro e incrível fenômeno vivido por S. Francisco no Alverne, seu significado científico, evolutivo e biológico: além disso, para dar a nós mesmos base lógica aos arroubos de fé e afirmações místicas e intuitivas desenvolvidas sobre este argumento em outros volumes. Antes tais fenômenos pode­remos não só crer e venerar, chorar e amar, mas também pensar e compreender. O do Alverne tem seu lugar e natu­ralmente se enquadra, também ele, na filosofia dos fenô­menos que vimos desenvolvendo em A Grande Síntese e nes­ta explanação.

E nestes capítulos conclusivos que se confirmam as teo­rias precedentes que para aqui convergem recebendo expli­cação e encontrando aplicação lógica. O cap. XXV, deste volume, sobre o dualismo universal fenomênico distingue duas vidas, exterior e interior, material e espiritual. Trata-se de dois mundos diversamente constituídos. O fenômeno do Alverne pertence ao segundo. Vimos como é individualiza­do e caracterizado por ritmo próprio, por uma forma de vi­da. Vida que é expansão para o intimo, introspectiva, intui­tiva, ativa, espiritual, incorpórea, desenvolvida como quali­dade, evoluída; ritmo de ondas curtas, alta freqüência e po­tencial, de sintonização noturna, azul, lunar, supersexual e supersensória; tipo biológico solitário, silencioso, sofredor, sensitivo e pacífico, negação do mundo. Tais as caracterís­ticas dos fenômenos espirituais entre os quais, embora de nível infinitamente superior, se inclui o fenômeno de Alverne. Segundo a lei do dualismo, estamos no pólo oposto do rit­mo e forma de vida material da animalidade humana, cujas características são opostas. O não-ser no mundo da maté­ria estabelece no espírito o ser do mundo imponderável. Eis o que se nos apresenta atualmente. A visão não é sensória, exterior, mas interior: é contemplação. A vida vegetativa é mortificada por jejuns, renúncia, sofrimentos. O ser vive de vida sutil de notas agudas, penetrante, intensa, poder-se-ia dizer, de alta voltagem, quase imaterializando-se em forma de energia radiante, constituída de ritmo vibratório. A exal­tação vital está toda na expansão espiritual. A projeção di­nâmica do ser dirige-se para a substância, o absoluto, Deus. A forma, o relativo, as coisas terrenas estão superadas. O tipo biológico já superou a fase da evolução humana, sepa­rando-se de nossa forma de existência e alcançando outra mais elevada. O ritmo da vida animal se transformou, atra­vés do longo caminho da evolução em ritmo de vida espiritual. O transformismo evolutivo superou a fase humana, alcançando outra superior, mais aproximada à divindade. Eis as características do fenômeno de Alverne e do seu pro­tagonista.

Nossa pesquisa não o destrói; exalta-o. Tudo o que dis­semos neste volume mostra-nos como verdadeiramente al­cançou o limite supremo da evolução humana, estando aqui em seu verdadeiro lugar, na conclusão deste tratado, no vér­tice da pirâmide humana, no ponto supremo da evolução. Possui em sua mais legítima forma, embora em relação a seu tipo, as características do evoluído que indicamos como meta dos esforços humanos, como modelo do futuro tipo bio­lógico. Esta conclusão nos mostra S. Francisco neste mo­mento entrando triunfante nos umbrais de um mundo su­per-humano. Alverne representa precisamente um caso típi­co do fenômeno final da evolução humana; por isso foi es­tudado no fim destas considerações. Vemos aqui o esgota­mento da vida no plano físico (o organismo consumido pe­las penitências), a sua ressurreição no plano espiritual, a extinção do dinamismo animal pela deterioração e a sua res­surreição em forma radiante. Vemos S. Francisco alcançar um estado espiritual que representa o mais alto potencial supor­tável na fase da evolução humana, seu limite supremo além do qual a forma material se extingue. Chega-se a este esta­do por etapas, pois a freqüência de vibrações, o aumento de ondas, e a obtenção de potencial elevado progridem parale­lamente, desde o pensamento concreto que não sabe existir senão se materializando em ação, até as ondas cerebrais do pensamento simples e comum, e sucessivamente ao pen­samento abstrato, à intuição do gênio, à oração sempre mais elevada, ao êxtase e união espiritual com Deus. Trata-se de ondas cada vez mais rápidas, portanto, mais penetran­tes, mais poderosas, mais imateriais. Por fim, o espírito con­segue a forma radiante, imaterializada, independente da forma corporal.

O enfraquecimento do organismo age, no presente caso, como revelador da personalidade espiritual. As leis da fome e do amor (cf. História de um Homem, cap. XXIII: "O Evangelho e o Mundo") já estão superadas. O amor, por fim, se desma­terializou com funções puramente espirituais (cf. A Grande Síntese, cap. LXXXII - "A Evolução do Amor"). Para aqui convergem, e aqui se aplicam as teorias expostas anteriormen­te. A dor, transformada em perfeita alegria, cumpriu toda sua função criadora e é parte integrante do fenômeno de transumanização do Santo. Acham-se fechadas as portas do vício, abrem-se as portas da virtude, e o ser, impelido e guiado pela renúncia, corre para elas a expandir-se. O fruto do martírio já está maduro; o espírito afinal, depois de tantas lutas com a carne, triunfa; a vida, outrora mortificada, res­surge mais intensa. O processo construtivo-destruidor da evolução chega ao ápice de sua fase humana. O fenômeno do Alverne confirma completamente todas as nossas afirmações precedentes. Havermos concebido o fenômeno espiri­tual como fenômeno igualmente biológico deu-lhe mais for­ça ao mesmo tempo que encontrou para os mesmos uma explicação científica e racional. A maceração dos santos não é mais utopia ou crença, mas processo evolutivo, método de imaterialização e espiritualização, isto é, impulso à degra­dação biológica que é condição para a ressurreição espiritual no imponderável, elemento indispensável ao aceleramento da freqüência no ritmo da vibração e transformação do potencial impulsionador da evolução. Sua meta é a harmonização na ordem divina; e que harmonização maior com a criação e Deus que a realizava no Alverne? Cessou todo o barulho, a alma fundiu-se em paz na vontade divina, e a criação na­quela noite sublime faz eco, em sua ordem material, à or­dem espiritual, sintonizando-se e fundindo-se numa única harmonia. Para confirmar quanto dissemos no cap. X, des­te volume, - "O Problema do Mal" - vejamos neste caso como, quando o ser chega a um vértice da evolução, alcan­ça relativamente sua autodestruição, depois de cumprir seu dever a serviço e triunfo do bem.

Enquanto o cap. XXV, idem, nos dá elementos para definir e classificar o fenômeno de Alverne e as características biológicas do ser que o vive, o cap. XXVI, idem, sobre o dua­lismo da vida, dá-nos a estrutura interior e funcional do mesmo fenômeno. Somente confrontando-o em relação à função orgânica do universo é que poderemos compreendê­-lo. Trata-se de um fenômeno de sintonização entre o hu­mano, levado pela evolução até às portas do super-humano, e o divino. Para chegar a isto, o ser deve conseguir uma for­ma de vida de ritmo vibratório tão sutil e poderoso que pos­sa penetrar no âmago das coisas e ai harmonizar-se com a ordem interna da criação. Só o evoluído é capaz de captar e perceber as radiações da realidade interior do espírito. As vias de comunicação não são, portanto, as normais, exterio­res, sensórias, mas interiores e imateriais. Precisamente no já citado cap. XXVI sobre o dualismo vital, observamos o mecanismo destas comunicações por via interior com o mundo imaterial do espírito, e mostramos sua realidade tão objetiva quanto a realidade deste nosso mundo material. A percepção, nestes casos, segue canais de volta corresponden­tes em posição contrária aos canais normais de ida, em um caminho sensório que não vai do interior para o exterior. Neste caso os órgãos sensoriais são sujeitos a vibrações pro­venientes do interior, nada tirando à existência objetiva da realidade excitante de percepções das quais resulta o fenô­meno. E é natural que quanto mais a vida se muda de sua forma material em espiritual, tanto mais nela se normaliza esta nova forma de sensibilidade, pela qual se substitui a percepção fisiológica direta e normal por uma percepção super-normal, inversa e espiritual. O processo é facilitado, como já dissemos, pela deterioração física (degradação bioló­gica) e depende do grau de imaterialização (momento des­trutivo) e espiritualização (momento reconstrutivo) alcan­çado pela evolução. Vimos como, no caso normal, as várias partes de caminho, por percepção visual, são: objeto externo, lente ocular, retina, nervo óptico, cérebro e espírito. Na úl­tima etapa a corrente dinâmica deixa qualquer base física, imaterializando-se em forma radiante. Mas vimos que não só o mundo externo mas também o interno e imponderável da personalidade, podem ser geradores de vibrações. O mun­do do espírito, que se abre para as alturas da evolução, isto e, em direção à divindade, acha-se deste lado do ser e não do lado sensório exterior. Está dentro de nós, no intimo, di­rigido ao cerne das coisas e dos seres, onde está a substân­cia, o absoluto, o imutável, e não a periferia onde se encon­tra a forma, o relativo, o transitório. A evolução é elabora­ção levada sempre para o mais profundo do ser, isto é, despertar e viver sempre mais perto de Deus. As percepções e manifestações espirituais vêm daí: a alma as consegue se­gundo o grau de sutileza e transferência conseguido por seu invólucro material; a realidade excitante, neste caso, está situada não no exterior, mas no interior, e a sensação é o último produto de um esforço inverso ao precedente normal, isto é, como dissemos, de uma inversa percepção espiritual super-normal. Os termos deste caminho inverso percorrido são: espírito, cérebro, nervo ótico, retina. A fonte da cor­rente dinâmica excitadora da percepção, não está mais no ambiente material externo, mas no ambiente espiritual in­terno. Tratando-se de radiações espirituais, não podia estar em outro lugar. A sede natural dos fenômenos espirituais e de sua origem, é precisamente o mundo interior, do espírito, mundo que se abre para a divindade que está em nosso in­terior, no centro do universo, e não na periferia do ser. So­mente o involuído, incapaz de sentir uma realidade diferen­te de seu mundo físico pode crer que estas realidades sejam inconscientes e inexistentes, unicamente porque escapam a sua percepção. No entanto para quem consegue sentir profundamente nada há de extraordinário. Não sabem todos que a mesma e solidíssima matéria, em sua essência é im­ponderável? A ciência já não nos mostrou que logo que penetramos na íntima essência das coisas, tudo se imaterializa? Imaterializar-se significa espiritualizar-se, passar da for­ma transitória à eterna substância, da ilusão à realidade, do relativo ao absoluto, o que é o mesmo que caminhar para Deus.

Eis, portanto, como aconteceu o fenômeno do Alverne. O dinamismo originário é radiante, movido por estados vi­bratórios de substância imaterial adequada ao mundo espi­ritual. O cérebro capta e registra, como se fora receptor radiofônico, esse dinamismo transmitido sem fio. Assim, a rea­lidade espiritual se concretiza em imagem que, através do nervo ótico, é conduzida à retina e gera a percepção ótica. Obtém-se, portanto, sob forma sensória, a equivalente expressão do imponderável, de outro modo impossível de tra­duzir em termos de sensação. Observando os olhos do indi­víduo inspirado (os de T. Neumann, por exemplo), sentimos que, apagados para o mundo, não vêm coisa alguma da realidade exterior, mas contemplam, como verdadeiro vidente, vaga e profunda realidade. Já expusemos os princípios do fenômeno e, até mesmo, já os aplicamos. O olho, de fato, registra uma projeção, com resultados visuais, não oriundos, porém, de realidade externa, mas de realidade interna. natural que os fenômenos espirituais, evolutivamente mais elevados, não possam ter sede e origem na periferia, no ex­terior, na forma, que é menos evoluída, mas apenas no cen­tro, na parte de dentro, na substância; é, também natural que, por força do principio de dualidade, esses fenômenos se transmitem de maneira inversa da dos fenômenos materiais. Não se trata de alucinação nem de ilusão ótica. Nossos olhos, quando olham para dentro de nós, vêem tão real­mente como quando olham para fora. Tudo se resume em saber olhar, em saber sentir as vibrações do mundo espiri­tual, e, principalmente, em possuir um mundo espiritual dentro de si mesmo. O próprio vácuo interior é que nos le­va a acreditar na irrealidade desse mundo. O supranormal é percepção do normal, que por isso lhe nega a existência. Trata-se de um problema de potencial interior, de desenvol­vimento espiritual, de refinamento orgânico, de sensibilização conseguida por evolução. Se o fenômeno ocorrido no Monte Alverne constitui caso sublime e excepcional, para al­guns temperamentos evoluídos, no entanto, é suscetível de experimentação, embora em grau e sob forma diversos. Mas, torna-se necessário que sejam evoluídos; ora, já vimos que no mundo domina o tipo oposto; além do mais, na terra as opiniões são, em grande parte, elaboradas pelo tipo involuído, para seu uso e consumo. Em face dessa psicologia, nin­guém pode sentir, compreender, nem admitir nada disso. E questão de adiantamento evolutivo Necessário se torna seguir e amar essa realidade interior, servir-nos ela de ali­mento e vivermos em contato estreito. É indispensável sin­tonizarmo-nos com ela, através das preces, aproximarmo-nos dela por desmaterialização à custa de sofrimento, destruin­do em nós a animalidade humana. O fenômeno, que esta­mos analisando, nos oferece tudo isso em grau elevado. Quando todas essas condições se verificam nesse grau de intensidade e elevação, o fenômeno pode adquirir tal potência que o dinamismo radiante originário não chega apenas a transformar-se em visão, mas em fato objetivo até mesmo no que diz respeito à realidade externa, como o caso, por exemplo, da lesão muscular dos estigmas. Então, a imagem espiritual interior, não só se materializa sob a forma de ima­gem ótica, mas consegue até mesmo impor-se às leis físicas e orgânicas comuns e a causar, na carne, alterações perma­nentes das células e tecidos. Já vimos como, relativamente à sua estrutura íntima, a própria célula não passa de movimentos atômicos e cargas elétricas. As formas exteriores constituem apenas a ilusória roupagem, resultado desse di­namismo imaterial. Quando reduzimos os fenômenos materiais e espirituais ao seu denominador comum, quer dizer, à sua estrutura cinética, aí compreendemos facilmente essas concomitâncias e correspondências. Os efeitos verificados no fenômeno do Monte Alverne mostram o elevado grau de potência radiante da fonte transmissora e a enorme capaci­dade sensitiva do organismo receptor.

O fenômeno é, pois, perfeitamente possível e se verifi­ca de acordo com as qualidades do indivíduo receptor. Quem não as possui não percebe coisíssima alguma. As radiações mais poderosas podem estar-lhe ao lado e, mesmo, envolvê­-lo completamente: ele continua cego e surdo. A visão per­manece na estreita dependência do estado e das qualidades individuais. O indivíduo imaturo fica do lado de fora, não é admitido a participar do fenômeno; sua visão exclusivamente exterior, não penetra na intimidade das coisas. Pa­ra ver-lhe a intimidade, torna-se necessário, sem dúvida, olhar de dentro de si mesmo para o interior das coisas. Assim, a historieta se limita à verificação dos efeitos, cujas causas3 refugiando-se no miraculoso, lhe escapam inteira­mente. Frei Leão é o único que percebe alguma coisa. Vi­mos, pois, o fenômeno verificar-se no grau permitido pela potência espiritual, pelo desenvolvimento, pela maturidade evolutiva e pela intima sensibilização do sujeito. Tudo dependeu apenas dos seus poderes de percepção nesse campo. Desse modo, a visão só têm os indivíduos maduros; e, por­tanto, fato estritamente pessoal. Para que outros a perce­bam torna-se necessário que estejam nas mesmas condições de sintonização e recepção. Apenas proporcionalmente às suas capacidades espirituais é que podem sentir ou parte do fenômeno, como frei Leão, ou coisíssima alguma, como acon­tece na maioria dos casos. Isso é muito natural, tratando-se, como se trata, de, por meio das vias interiores, registrar formas imateriais que não encontram símile nas formas materiais do mundo exterior. Para perceber as formas ma­teriais faz-se necessário possuir, e em bom estado de fun­cionamento, os correspondentes órgãos sensoriais; nada mais natural, portanto, que para perceber a realidade espiritual devamos possuir, e absolutamente livres, as vias interiores que nos põem em comunicação com o lado oposto, com o imponderável. O que pertence ao espírito não podemos per­cebê-lo senão com recursos espirituais, isto é, com processos diametralmente opostos aos nossos processos sensoriais co­muns. A projeção da realidade interior (projeção ótica, acústica, tátil, etc.) fica limitada ao sujeito exclusivamen­te. Quando, porém, produz modificações no estado da ma­téria, o fenômeno torna-se domínio comum, principalmente se a alteração se revela permanente. Para os demais não resta senão o caminho da fé ou da prova, representado por esse último resultado atingido no seu plano material. Rela­tivamente a isso, observemos que não se trata de materializações ectoplasmáticas, isto é, de novas formações em sentido mediúnico, mas de percepções e projeções do imaterial por vias internas e de transformações operadas na matéria já existente. Os fenômenos sempre se aproveitam da via de menor resistência, que, no caso do evoluído, é exatamente a via interior.

A simpatia levou-nos a escolher S. Francisco, entre tan­tos outros, como tipo de evoluído, para determo-nos apenas nesse setor particular das formas evolutivas. Mas sempre se trata, sem dúvida, de ponto culminante, de homem que atinge a fase super-humana e, no momento crítico, faz che­gar ao nosso mundo, por seu intermédio, reflexos do mun­do superior a que ele pertence e que, embora sob tantas formas diversas, representa o futuro da humanidade.

XXX

S. FRANCISCO NO MONTE ALVERNE (2ª PARTE)[21]

Depois de havermos racionalmente individualizado, em suas características, o fenômeno do Monte Alverne, segundo o esquema por nós aqui traçado de sua estrutura, agora procuremos compreender e reviver, espiritualmente, esse grande acontecimento, na moldura em que a História o en­quadrou.

Quem já subiu até ao alto do Monte Alverne em Casenti­no e visitou a capela dos Estigmas terá lido a inscrição cen­tral: "Signati, Domini, hic servum Tuum Franciscum, Sig­nis Redemptionis nostrae"[22]. Esse é o lugar em que Cristo apareceu a Francisco e este recebeu os estigmas. Para bai­xo, a rocha abre-se num abismo; subindo em direção do pico e da floresta, encontra-se logo a gruta de frei Leão, o único companheiro do Santo, o único ser humano que, embora contrariando proibição expressa, se aproximou dele e o ob­servou naquele instante supremo. Por isso, entre tantos fra­des, é escolhido para curar as chagas dos estigmas. O grande acontecimento deu-se em 1224, na madrugada de 14 de setembro, festa da exaltação da Cruz. Em 30 de setembro Francisco deixou o Alverne para sempre. Acompanhado de frei Leão, "carneirinho de Deus", desceu montado num bur­ro até S. Sepulcro, onde parou num leprosário e por esse caminho voltou para Porciúncula, onde morreu dois anos depois, em 4 de outubro de 1226 ("De Cristo recebeu o últi­mo selo, que seus membros dois anos carregaram"). Frei Leão, que celebrou missa, foi amigo e confessor de Francis­co, confidente e testemunha de numerosos acontecimentos espirituais íntimos, viu e tocou os estigmas e "costumava tirar os pensos de pano tintos de sangue para colocar novos”. Em 1224, na época. destes acontecimentos, ele e o Santo ainda eram moços. Frei Leão teve, mais tarde, tempo de recor­dar e meditar, pois morreu Beato em Assis, em 14 de novem­bro de 1271, isto é, 45 anos mais tarde. Foi em Alverne que o Santo escreveu para ele a Bênção, na segunda quinzena de setembro de 1224, logo depois de recebidos os estigmas. Escreveu-a com a mão trespassada e sangrenta:

"Benedicat tibi Dominus et custodiat te:

"Ostendat faciem suam tibi et misereatur tui:

"Convertat vultum suum ad te et det tibi pacem:

"Dominus benedicat te, Frater Leo"[23]

... "Que o Senhor te abençoe, frei Leão". No autógra­fo o nome de Leão está dividido pelo Tau ou cruz, sigla de Francisco e essa palavra está dividida bem no meio para in­dicar, na fusão dos dois nomes, a estreita união das duas almas. Mais tarde, frei Leão de próprio punho acrescentou, em letras vermelhas bem pequenas: "Beatus Franciscus scripsit manu sua istam benedictionem mihi frati Leoni".[24] A Bênção esta escrita numa folha de papel pequena. Frei Leão, enquanto vivo, sempre a trouxe consigo.

Relativamente à manifestação exterior e sensorial, nada se pode acrescentar à belíssima história dos Fioretti. Que acontece, porém, no interior dela, na intimidade do fenôme­no? Frei Leão tenta acostar-se a essa outra realidade, pe­netrando-a por meio dos sentidos e da fé. E volta a ver a flama e a ouvir a voz que vem de dentro dela; não conse­gue, porém, entender nem uma palavra. Sua percepção in­terior não consegue mais do que isso. Mas intui o resto e fica de lado, reverentemente. Então, o amigo Francisco, que entendeu tudo, conta mais tarde tudo quanto Leão não pôde ouvir. Só o amor e a fé podiam induzi-lo a isso. Porque de repente Francisco se torna reservado e procura disfarçar, por humildade, reverência, temor e por causa de pudor de que sempre se reveste o sublime. Nesses momentos, sentimos necessidade de estar sozinhos com Deus. Então, ordena de novo a frei Leão que não ande espionando e pede-lhe que tome cuidado com ele, pois sabe o incêndio espiritual que vai lavrar-lhe no corpo. Francisco percebe a aproximação do Incêndio. Já o envolvem línguas de fogo, que saem do in­cêndio, antecipando-o e preparando-o. E Francisco ouve dentro de si um anjo de Deus, advertindo-o do que está pa­ra acontecer. No dia seguinte é a festa da Cruz de setem­bro. E agora a história dos Fioretti não e mais tão minu­ciosa e se torna vertiginosa, levando-nos de um golpe ao momento em que, naquela madrugada, o fenômeno se pro­cessou de modo a ser percebido até mesmo pelo homem nor­mal. E nada mais nos diz. Que aconteceu durante aquela noite, no extremo oposto do fenômeno, no seu lado espiri­tual? Quais os derradeiros estágios que o tornaram possível? O fenômeno já vinha amadurecendo lentamente du­rante toda a vida do Santo, desde que começou a ouvir "vo­zes" em S. Damiano; a maturação se acelera intensamente no Monte Alverne durante os dias precedentes e, embora atingisse o clímax pouco antes da alvorada, o fenômeno ti­nha-se processado com intensidade durante a noite, nos seus claros-escuros e contrastes de forças. Acompanhamos até ao ponto maior da curva o ciclo de sua maturação.

Observemos. Francisco está na rocha dos estigmas. Frei Leão está um pouco afastado, mais para cima, em sua cela. Embora não possa ver muito bem no meio daquelas pedras e galhos de árvore, tão perto está que pode ouvir tudo. Per­manece acordado, procurando ver, mas, por obediência, não ousa aproximar-se. Procura ouvir o menor ruído porque, se não deve andar observando, tem de, no entanto, proteger o Santo. "Tome bem conta de mim, porque dentro de poucos dias Deus fará grandes maravilhas neste monte..." Tinha­-lhe sido, pois, confiada a guarda do amigo. Discreto, afas­tado, como demonstração de respeito, e, ao mesmo tempo, próximo, por força do amor, estava pronto para, se necessário, acudir em seu socorro. Ambos estavam esperando que, a qualquer momento, acontecesse algo de extraordinário. Francisco estava mais embaixo, mais afastado do Monte e mais isolado da terra, em cima da rocha vertical dos estig­mas, guardado de perto pelo afeto do amigo, que até nesse momento supremo lhe servia de ajuda e proteção. A cela de Leão estava um pouco mais acima da Rocha onde Francis­co orava. Mergulhado no profundo silêncio do céu e da ter­ra, imerso na infinita paz da noite, Leão esperava. Não se ouvia o menor ruído. As tempestades do espírito não encon­tram eco na matéria. Porém, fervorosa prece abrasava-lhe a alma. Que insuportável desejo de aproximar-se, de com­preender, de imitar! Que atração e que temor! A espiritua­lidade de Francisco causava-lhe medo; naquele momento e naquele lugar, causavam-lhe vertigem a misteriosa proximi­dade de Deus, o contato com o infinito, a sensação do su­blime. E o amigo estava quase a precipitar-se naquele abis­mo de potência e de mistério, que o fazia tremer. Estava de espírito suspenso, presa de afetuosa angústia pela sorte do Santo, temia pela vida do querido "pai", que, refugiando-se no desconhecido e desaparecendo na vertigem dos céus, pa­ra ele se tornava inatingível. Tinha medo do sublime, mas temia por ele, que poderia queimar-se inteiramente no di­vino incêndio. Examina-se interiormente e fica triste por não poder segui-lo e, incapaz de progredir para o alto, ser obrigado a permanecer no sopé da montanha da santidade, a ficar sozinho na terra, em meio à própria miséria. E cho­ra com pena de si mesmo. Mas, logo em seguida, se esque­ce de si e pensa no amigo, pensa na sua grande missão da­quele instante e quer continuar vivendo apenas para exe­cutá-la. E transborda de alegria por seu triunfo no mundo divino. Mas esse mundo divino, de que o amigo se apode­ra, com seu peso, magnitude e poder, volta mais uma vez a esmagá-lo, a esmagar o pobre frei Leão, que se amedronta ainda mais. E se amedronta principalmente por causa de seu amado amigo, sobre quem recai todo o peso do infinito, daquela imensidade esmagadora em que a alma se perde. Por isso, escuta, reza, alegra-se, extravia-se, crê e espera. Pequena tempestade, reflexo da terrível tempestade que se apodera do Santo. Além disso, Leão ignora. Tomado de medo, admira de longe a para ele inatingível santidade do ami­go; intui, porém não compreende tão incomuns colóquios com Deus. Não podemos, portanto, ver a substância do fe­nômeno através dos olhos de frei Leão, ainda fechados na­quele momento. Apenas mais tarde, depois da morte do Santo, é que vão abrir-se, contemplando os divinos crepús­culos de Assis, através da saudade que sentia por Francis­co e defendendo-lhe as idéias, amando-o e chorando-o. Aí então é que, meditando sobre o que ouvira da boca do ami­go, se maturará até ao ponto de compreendê-lo perfeitamen­te. Para nós, porém, a compreensão do fenômeno ainda permanece na sombra.

Francisco contemplara demoradamente, na véspera, o suave crepúsculo. E, sem dúvida, verdadeira véspera de ba­talha havia sido a jornada anterior, pois, na vida tudo é luta, sobretudo a conquista espiritual. A noite precedente fora consumida no fogo devorador da oração, porque o pa­roxismo do amor realmente é voraz. Francisco sentia que estava para chegar ao zênite de sua vida, ao momento crí­tico da última separação da terra. Quem sempre foi a apli­cação viva do Evangelho, está maduro para se desligar de qualquer forma terrena de vida. Mas para ai chegar, quan­to caminho! Antes de ousar lançar olhares a um futuro ma­ravilhoso, ele hesitava recordando o passado. Nas primeiras horas da noite, antes de afrontar sua ressurreição na divin­dade, representava-se diante de seu passado humano, cheio de fadigas e sofrimentos. Quanto caminho de S. Damiano ao Monte Alverne! Revivendo todas estas coisas, enorme can­saço parecia esmagá-lo, sua vida física agonizava e agoni­zando chorava sua destruição, oprimindo-o com seu pranto. Seu corpo ainda jovem, embora subjugado, sofria derradeira tentação: a tristeza de não ter vivido para si, de não poder mais viver. Expulsa do espírito, tornava-se mais sutil: a inutilidade do sacrifício. "Senhor, não me compreenderão! Não me compreenderão, como não nos compreenderam!" As forças do mal assaltaram-no então no ponto mais alto e pre­cioso de sua vida: sua missão de santo. Talvez um assobio sinistro soou a seus ouvidos: "é inútil teu amor, tua paixão. Cumular-te-ão de louvores, mas a traição não tardará". E Francisco, como Jesus no Getsêmani certamente chorou pela incompreensão, reformas, traições, e adaptações que ha­viam de tentar sua obra, para reduzi-la a nada. Seu ânimo foi tomado de profunda tristeza e mortal abatimento como se lhe pusessem uma mordaça, sucumbindo momentanea­mente. Junto à agonia física, a agonia espiritual. Nas primeiras horas da noite deve ter travado tremenda luta con­tra as trevas e o mal.

Em tais fenômenos há ritmo de períodos característicos e fases opostas em equilíbrio. Como aconteceu a Cristo, an­tes de seu martírio físico no Gólgota, houve na noite precedente, o martírio moral do Getsêmani; assim, com Fran­cisco antes de sua crucificação pelos estigmas,. houve, certa­mente, uma crucificação de dor no espírito. Sintonia lógica entre fenômenos semelhantes. A tentação noturna é a con­traparte, a primeira metade, negativa, do fenômeno, em oposição a seu segundo momento, positivo, o triunfo do espíri­to. O mal, a negação, tiveram seu turno como condição e preparação da afirmação e do bem. Francisco, portanto, para chegar à união com Cristo, devia naturalmente revi­ver-lhe as dores morais do Getsêmani antes de reviver-lhe o sofrimento físico da crucificação. Foi permitido ao mal que vencesse por momentos. O contraste entre as forças involuídas da matéria e as outras forças do espírito torna­va-se cada vez mais violento na fase final da luta. Antes de definitivamente triunfar na luz foi desferido o assalto mais forte das trevas. Antes de conseguir sua perfeita sin­tonização com as supremas harmonias do divino, antes de poder unir-se a Deus na harmonia de um íntimo acordo de todas as criaturas e forças irmãs, Francisco certamente te­ve que atravessar na escuridão da noite a tempestade de ruídos e dissonâncias, desencadeada pelo choque caótico de for­ças involuídas, desarmônicas, ainda não disciplinadas na or­dem superior. Em Alverne, não era novidade para o Santo se as forças do mal destruíssem o Monte, fazendo precipitar suas pedras. As primeiras horas da noite, as mais tristes e profundas, eram as mais próprias para semelhantes assal­tos: mas, às primeiras horas da manhã a vitória já era certa.

O ritmo da vida é duplo e inverso, diurno e noturno, ma­terial e espiritual. Já vimos suas características. As primeiras horas da noite, trazem consigo os últimos e mais profundos ecos das horas do dia, ressentindo-se de sua proximidade, re­tardando-se, enquanto à meia noite o ritmo se inverte até a manhã, cuja espiritualidade, por sua vez, se retarda nas pri­meiras horas do dia. Tal ritmo acha-se deslocado em relação ao ritmo da luz. As primeiras horas da tarde parecem carre­gar o peso de toda a escória da vida física diurna, dos encon­tros e asperezas da luta material. O mundo diurno é de ex­pansão exterior, de sintonização solar, vermelha, sensual e sen­sória, material e animal, de ondas longas, baixa freqüência, notas profundas, e baixo potencial em face do espírito. É o mundo do involuído, forte na carne, débil no espírito. Tam­bém aqui este momento do ritmo vital presume e espera seu momento oposto dado pelo poder do espírito.

Gradativamente, porém, a tempestade do mal se acal­ma, pára e passa. É na segunda metade da noite que, supe­rada sua fase negativa, se inicia a fase positiva do fenôme­no. Entramos no período de reconstrução da freqüência de onda, de potencial, em seu período espiritual. Esgota-se a vida material, cala-se revivendo no imponderável. Vimos suas características. É uma vida sutil, imaterializada, inte­rior, vigorosa, penetrante, de ondas curtas, alta freqüência e grande potencial, de notas agudas e radiações noturnas, violetas, lunares. As condições ambientes que lhe são rela­tivas e harmônicas, acentuam-se pela aurora, depois do que tendem novamente a inverter-se na fase diurna. Vemos nos Fioretti que o fenômeno aconteceu mais ou menos uma ho­ra antes do nascer do sol, e que o Monte Alverne resplandecia pela chama que iluminava os montes e vales adjacentes como se fora o próprio sol. A chama continuou visível (portanto era ainda noite) por mais de uma hora (antes do dia); tan­to que muladeiros que se dirigiam, para a Romanha foram despertados pela luz nos albergues, levantaram-se, carrega­ram seus animais, e puseram-se a caminho. Só então viram que a luz se extinguia e se levantava o verdadeiro sol. Por sua própria lei e pelas condições das radiações ambientes, o fenômeno só podia acontecer neste momento, antes da au­rora.

Trata-se de fenômeno de harmonização com a divin­dade, onde a sintonização do sujeito receptor com a fon­te transmissora, deve ser por esta acompanhada e fortaleci­da de radiações circunstantes, cuja contribuição é igualmen­te indispensável. Para isso concorrem não só fatores espiri­tuais, como também condições especiais de dinamismo am­biente, porque se trata de universal orquestração de forças, e forças de todo tipo. É inadmissível qualquer dissonância, seja nas alturas, seja nas profundezas. Deus é harmonia, ordem suprema, e sua manifestação não age senão em at­mosfera de harmonia e ordem perfeitas. É necessária, além da hora apropriada, a atmosfera pura das altas montanhas, a paz dos bosques, a vastidão dos espaços, o céu límpido e es­trelado, o silêncio, a solidão. Para se dar a harmonização que constitui o fenômeno, é preciso não só a sintonização do sujeito humano com Deus, mas de todas as criaturas que o rodeiam, e as forças da matéria e da vida são, também elas, criaturas de Deus. Recordemos que tudo vibra, que to­do ser, toda forma, mesmo material, desprende de seu ínti­mo radiações que são vida, expressão do pensamento, da po­tência, da presença de Deus. Deus está em todas as coisas. As vozes da natureza, falam-nos d’Ele. Atrás da aparência, toda forma traz uma íntima substância imaterial de que é efeito e que a mantém em vida pela continua reconstituição, pertence ao mundo espiritual, trazendo um traço, embora mínimo, da face de Deus. Só assim, contemplando essa face interior da natureza, é que poderemos nos aproximar dele. Aqui se revelou esta forma interior, só percebida por espíritos amadurecidos. Por isso, Francisco era capaz de ouvir em todas as coisas, forças e criaturas, a voz de Deus presente. E no alto do Monte Alverne, naquela hora, cada ser, cada coisa, árvores, rochas, pássaros e estrelas, ofereceram, reverentes, a homenagem de sua contribuição. A criação assistiu, vibrou, ofertou-se, acompanhou com sua íntima pre­sença e perfeita harmonia as núpcias da criatura com o Criador. Não foi unicamente uma oferta cega, insensível, mas verdadeira resposta à participação, donde podia nascer unicamente verdadeira sintonia, acordes livres e perfeitos. Deus está em todas as coisas, como ordem, e como tal se manifesta. Não pode portanto falar-nos, nem poderemos su­bir até Ele, se a harmonia não for perfeita. Para que Fran­cisco pudesse sentir a presença de Deus, era preciso estar em harmonia com a natureza e ao contrário. Pois, qualquer dissonância nos afasta do íntimo das coisas, ao qual só po­deremos chegar com a perfeita harmonia.

O fenômeno só podia acontecer naquele lugar, naquela hora, com aquele homem. Isto está no intimo da criação. São estas as regras musicais da orquestração que origina tais acontecimentos. Era necessária a transparência matu­tina de sutil atmosfera que não obstaculasse ou absorvesse as radiações provenientes tanto da terra como do céu, radia­ções telúricas e estelares. Era necessária também a doce es­tação de setembro, quando o sol é oblíquo, o calor do estio calmo em suas primeiras quenturas outonais, quando se aquietou o fervor estivo da vida; estação em que a exaltação da parte física, ao contrário da espiritual, diminui de ritmo e se esvai. O princípio de harmonia e sintonia exigia ma­nhã tranqüila, límpida, diáfana. O perfeito equilíbrio das forças primordiais permitiria à natureza entoar a nota fun­damental da sinfonia, elevando ao redor do fenômeno, em perfeita consonância um fundo musical harmonioso, que a faria vibrar qual caixa de ressonância, a fim de nela apoiar e elevar a harmonia muito mais sutil do fenômeno místico.

Do mesmo modo, eram indispensáveis as condições par­ticulares em que se encontrava o sujeito, isto é, seu estado de completo esgotamento físico, a maceração orgânica que eleva o potencial de vida do espírito, estado de degradação do dinamismo vegetativo que ajuda sua transformação em dinamismo espiritual. Enfim, era preciso o elemento fun­damental, o homem, um homem que tivesse conseguido, por longa preparação, a maturidade; capaz de suportar e supe­rar diante de Deus, a hora critica da revolução biológica, lançado como um bólido no mundo do espírito, saindo para sempre da órbita das trajetórias terrestres. Era preciso que este homem, no extremo do sacrifício, no vértice do amor, abrisse os braços para Deus, e a ele se atirasse ardente de fé, e louco de paixão.

Era noite alta. Parecia que se tornara imóvel antes de se destruir no dia. Nos dois horizontes opostos, o crepús­culo e a aurora calavam-se. A luz solar que neste hemisfé­rio é quente, rósea, viva, direta, estava agora envolta em som­bras. Somente, difundido pelo céu, um pálido reflexo de mi­ríades de estrelas, luz tão diferente, fria, argêntea, sutil, ima­terial. A mais humilde e calma sinfonia noturna, sucedeu à grande sinfonia do dia. Harmonia inversa, em tom menor, quase viúva e melancólica, de expectativa e meditação. Eis que a vida não mais se lança ao exterior para se expandir e crescer, mas se recolhe em si para se compreender. Duran­te a noite, a vida renasce inversa, envolta em sonhos; toda nota de luz, de som, de forma, revive aveludada em vozes delicadas que refletem o dia, suavizada por transparências irreais, espiritualizada em contornos indefinidos, vaga, submissa, sutil como um eco de acordes distantes. É a hora em que o universo cessa de falar materialmente, do exterior, mas fala espiritualmente, de suas profundezas. Olha-nos então com seu olhar interior que não vê a forma mas o mis­tério de suas causas, observa nosso interior e nos convida à introspeção. Foi em meio a esta imprecisão de formas, nes­te supremo silêncio da ilusão humana, que o espírito pre­parado de Francisco podia, cantando as criaturas, recon­quistar a corrente de manifestação divina até chegar à sen­sação de Deus. Sua alma ouvia as infinitas vozes da cria­ção, abria-se como flor ao sol da manhã, ao mesmo tempo que ao redor começava, mais límpida e sutil, a sinfonia do universo, abriam-se os céus e do alto chovia luz espiritual. Na diáfana imensidão da noite desapareceram os horizontes. A terra não era mais terra. Do alto do Alverne parecia infinda vastidão, sem limites como o céu, e com ele tão idêntico, que era uma única e indivisível imensidade O céu e a terra eram então a imagem do infinito. No alto, na vertigem do azul, abriam-se os misteriosos abismos das estrelas, espaços sem limites, onde os olhos e a mente se perdem. Deus é ain­da mais profundo e distante mesmo estando tão perto; a alma o encontra quando está para se perder. A visão dos céus se mostra a nossos olhos como a visão de Deus: parece cair no nada e aí encontramos tudo.

Francisco, de pé sobre a rocha, de braços abertos, con­templava. Deixava-se acompanhar e guiar pela voz de todas as criaturas irmãs para o Criador comum. A maré imensa das radiações de todas as coisas parecia elevar-se como ele para Deus, harmonizando-se em uma orquestração cada vez mais doce e espiritual. Cada ser era uma nota falando-lhe de Deus. Tudo falava à sua alma sensível, e ele tudo ouvia e compreendia. A vibração mais profunda vinha da terra e subia como um trovão pelas rochas ásperas do monte. A relva emitia uma nota mais cheia, mais vizinha da vida, ma­jestosa, severa. Os pássaros, os insetos, os outros animais adormecidos, as ervas, ressonavam ao redor numa respira­ção tranqüila. Mais ao longe, na interminável descida, nos montes, nos vales e planuras, as forças da vida repousavam em paz. Em paz as criaturas abandonavam-se confiantes nos braços da sabedoria e providência da Lei de Deus. A tempestade do mundo, onde o homem se amedronta e se consome, estava longe, lá em baixo, nas cidades agitadas e cansadas. Sua voz não chegava ao pico, nem perturbava aquela paz divina. Mais longe ainda se perdia o ribombar seco da voz cavernosa do mal. Também ele, como toda cria­tura de acordo com sua natureza no equilíbrio entre as for­ças do universo, também ele estava em seu lugar, para con­firmar, não para violar a ordem divina. O mal lá em baixo revolvia-se num mar de trevas. Do alto, do ilimitado res­plandecer das estrelas chovia sobre a terra uma luz indeci­sa. Era uma radiação difusa e penetrante, tremor agudís­simo do éter acariciando os seres, por toda parte, transmitin­do seu ritmo a toda criatura; vibrando de alta freqüência, quase espiritual, trinado agudíssimo, igual, sutil. Paz: can­tavam as estrelas, obedecendo à ordem divina. Esta a orques­tração do universo que acompanhava o desenrolar-se do fe­nômeno. Viva em cada nota, feita de conceitos, de forças, de formas, feita do pensamento e poder de Deus que tudo movimenta e vivifica. Sobre esse fundo de tão imensa sin­fonia vibrava a alma do Santo, respondendo às notas graves das criaturas irmãs que com ele cantavam em coro. Por sua vez, elas respondiam numa única música que em sínte­se dizia: Deus. Assim, bem de longe, através da criação, teve começo o colóquio entre Francisco e o Criador.

Era o último dia da lunação; ia surgir a lua nova, que portanto nesse momento não aparecia no firmamento[25]. A noite navegava triunfante para o momento de sua mais in­tensa espiritualidade. A música universal seguia em diver­sas alturas a espiritualização da hora e a tensão cada vez mais crescente da alma de Francisco, num crescendo de har­monia e perfeição. Vibrações e acordes sucediam-se em pia­nos sempre mais elevados, cada vez mais claros e puros. Ele, o mais perfeito dos seres, o mais nobre, o mais vizinho a Deus, confortado pelo amor que espalhava e que agora lhe era restituído, rodeado pela natureza ajoelhada em veneração, entoava, seguido por toda a orquestra, seu mais sublime canto. Parecia guiar a marcha ascensional da vi­da. E tudo em perfeita harmonia progredia, em ritmo cada vez mais vivo e poderoso, para a aurora, o incêndio. Ao mes­mo tempo que o ritmo aumentava de potencial, a respiração tornava-se ofegante, suspensa de enorme tensão, temen­do um choque. Parecia que a terra se inflava e se erguia para seguir o Santo em seu arrojo divino, que parecia que­rer arrastar consigo todos os seres para Deus, ou abraçar em seus braços abertos, todas as criaturas irmãs, incendian­do-as em sua divina paixão de subir. Estas pareciam que­rer unir-se ao arauto da vida, seu mensageiro perante Deus, e impeli-lo a subir ainda mais alto, até o trono do Eterno, para levar até aí suas vozes e para que lá o Santo recebesse o último selo de sua missão. A vida parecia atirar-se ale­gremente à subida para matar sua sede de sublime. O fe­nômeno já havia começado e devia cumprir-se até o fim. Cada minuto acelera-lhe o ritmo. Francisco tem atrás de si o acordo universal das forças que o estimulam, e diante de si Deus que o atrai. Não pode mais voltar. Não é mais dono da situação. Deve aceitá-la humildemente de Deus. Cai­rá inevitavelmente no incêndio que se alastrará pelo monte.

A história dos Fioretti, como o Evangelho, não podia ser inventada. Os dois livros pressupõe e fazem sentir na simplicidade de sua história, um profundo conhecimento dos fatos espirituais, que não podem ser improvisados nem inventados pela alma do povo. O narrador dos Fioretti fica na ingênua simplicidade fora do fenômeno, limitando-se a contar os fatos exteriores. No entanto este modo de ver tão material, coincide com sua substância espiritual, com a profunda realidade do fenômeno. Ora, a experiência comum das coisas terrestres não é suficiente para fornecer-lhe elementos de semelhante história que não parece, mas deixa transparecer tanta sabedoria. O modo como é estabe­lecido e se desenvolve o fenômeno, a moldura que tão bem o cerca, a hora, o lugar, o homem, o comum, o prodigioso, o material e o espiritual, tudo está perfeitamente equilibrado e com os meios mais simples, com a espontaneidade das al­mas virgens, nos dá imediatamente o sentido da verdade. Francisco está suspenso no vértice de uma rocha entre a terra e o céu, ao mesmo tempo só e acompanhado por todos os seres, com a alma aberta a todas as vibrações do universo, diante de Deus que em alta voz, através de todas as criaturas, lhe diz: presente. Deus lhe fala por tudo que existe, pela organização funcional do universo, pelas harmo­nias da vida, pela alegria e pela dor, fala-lhe no fundo da alma, por toda a parte e sempre presente. Temos necessi­dade não só de um Deus que é causa transcendental e lon­gínqua, mas sobretudo deste Deus atual, imanente e pre­sente. Doutra forma ficaremos órfãos e sós, sem esperança de ver algum dia o que seja do rosto de Deus. Ele existe e é preciso senti-lo no meio de nós. Não é, nem pode ser, um pai inatingível, por si mesmo triunfante nos céus, colocado numa distância insuperável. Assim é para quem raciocina friamente, o que nos aproximaria muito pouco de Deus. Francisco o alcançou porque começou por olhar na terra seus reflexos, servindo-se deles para subir até Deus pelos caminhos íntimos da fé; porque para chegar ao Criador, pas­sou por todas as suas manifestações nas criaturas. Alcançou-O porque seguiu mais os caminhos do coração que os da inteligência, e preferiu a imolação e o amor ao raciocínio.

Eis que se aproxima o momento supremo. Francisco co­meça a rezar, voltado para o oriente. Sua querida Assis, tam­bém está desse lado, onde logo o primeiro pressentimento vago da aurora começava a delinear o horizonte. A noite atingia sua hora mais espiritual, hora de sonhos alados de luzes diáfanas e irreais, hora profunda de mistério e silêncio. Eis Francisco diante do fim supremo: Deus. Quantas etapas para aí chegar, quantas pequenas tentativas de sinto­nização em sua vida! Aproximações parciais foram conce­didas a S. Damião, em Greccio, na ilha de Trasimeno, em Porciúncula, na lagoa de Veneza, e em tantos outros luga­res de solidão e beleza. Tinha sido preparado por assaltos e contatos progressivos até a perfeita sintonização com Deus. O invólucro físico de sua alma se sutilizava gradativamente pela penitência, seu ser tornou-se mais sensível, e por sua vez preparado pelo jejum, pela oração, pela solidão e pelo sacrifício. Eis que as forças do universo rodam diante de Francisco. Subiu a tal ponto que as vê convergir para um único centro, e é capaz de ouvir a música paradisíaca de sua harmonia. É a ordem das coisas que canta os louvores de Deus. Francisco é arrebatado em êxtase, está fora de si de tanta alegria e tensão. A grande orquestração do mundo vibra anunciando a chegada da glória do Rei que vem ao encontro de seu servo. Abrem-se os céus, o monte se incen­deia inundando a terra de luz. As criaturas imóveis, olham reverentes, prostradas mais abaixo, ao redor, distantes, temendo tocar tão alta tensão diante da qual sentem que suas formas se desfazem. No alto ficam dois únicos seres: Deus e Francisco, o universo é um grão de areia, que se funde e some. Não mais se vê o sol em seus reflexos infindos, mas em seu real esplendor. A extrema alegria e tensão, de es­pírito, deve-se ter seguido na matéria terrível choque e so­frimento imenso. Mas, para o espírito, é felicidade naufragar e perder-se na infinita divindade. Tocamos o inexprimí­vel e as palavras faltam. Estamos no limite extremo do su­blime. O próprio Santo contou tudo isto da melhor manei­ra: calando-se.

Só nos é possível olhar de longe, como os muladeiros que iam à Romanha; olhar através da história, da lenda, da arte, da fé, porque nossas tentativas de reconstrução por intuições não vão além. Aquele incêndio projetou na visão interior de Francisco uma forma luminosa: Cristo. Mas o incêndio envolveu também o corpo do Santo, que ficou mar­cado em sua carne pelos sinais da Paixão. Pois é lei, que a união não se pode alcançar senão com a semelhança e a subida só é possível pela dor.

Tudo isto será por alguns relegado como lenda ou fan­tasia. Não podem admitir o fato. Procuramos demonstrar por meios científicos e racionais, a possibilidade e realidade do fenômeno que a mesma ciência e razão às vezes negam, pondo-o como conclusão deste trabalho que lhe serve de ba­se. Procuramos reconstruí-lo pelo método da inspiração, isto é por intuição e sintonização noúricas. Procuramos resti­tui-lo à vida para que nos alimente, nos guie, nos arrebate, como fenômeno biológico que interessa a nossa evolução hu­mana. Apresentamos S. Francisco no vértice da evolução humana, como um dos muitos modelos de nosso futuro, pa­ra que alguém tente imitá-lo na medida do possível. Temos necessidade de S. Francisco, especialmente hoje. Onde a ciência materialista nos iludiu prometendo-nos uma riqueza traiçoeira que nos empobreceu o espírito, S. Francisco nos oferece a riqueza espiritual e a alegria, mesmo numa vida pobre e simples. A ciência ainda não soube fazer tão gran­de descoberta: fazer os homens contentes com meios simplíssimos. Podem dizer: "enganando-os com ilusões". Mas a civilização o que fez para o tão esperado Paraíso na terra, que está sempre para se realizar, senão traições? S. Fran­cisco nos ensinou a libertação de tantas necessidades que nos escravizam, e que o progresso cria para explorar; ensi­nou-nos (e em que condições!) a alegria perfeita que o mun­do desconhece. Como se sentia rico com tão pouco; como nos sentimos pobres com tanta riqueza! A moderna ciência materialista jamais conseguirá invenção semelhante: dar sensação de riqueza a quem vive pobremente. Quem destrói as aparentes utopias da fé, pode destruir valores morais ines­timáveis, que são imenso poder de resistência. No céu e na terra existem tantas coisas que são impossíveis só aos igno­rantes. Intuições supremas que ultrapassam os limites de nossa miserável vida cotidiana, indispensáveis à vida de in­divíduos e de povos, cumprindo há séculos sua função, ape­sar de todas as negações.

CONCLUSÃO

O fecho deste livro representa novo trecho de caminho percorrido, mais uma pedra do edifício espiritual. Esta obra desenvolveu também como continuação e comentário de A Grande Síntese, a grande luta humana entre a luz e a som­bra, o presente e o passado. Cada passo nosso, no estudo do contraste entre a tese e a antítese, foi caracterizando a síntese. Este trabalho constitui novo desafio lançado ao mundo, não a esta ou àquela de suas pequenas divisões feitas à base de interesses, mas ao mundo todo e à sua psicologia, aos seus valores, como antítese do reino dos céus, da imponderá­vel realidade do espírito. É desafio que o mundo da justiça lança a todo o mundo da força. Longínqua e humilde ressonância do Evangelho, rebela-se, como ele, contra o mun­do e emprega na guerra as armas da paz. O Evangelho, a que nada podemos acrescentar ou tirar, constitui de fato o nosso farol; e Cristo, que com as armas do amor desafiou a força bruta, Cristo é para nós o modelo supremo. Roma não o entendeu, naturalmente; não o entenderam, também, as multidões apaixonadas que o seguiam e talvez preferissem aclamá-lo como rei de um reino terrestre; nem mesmo o compreenderam os apóstolos, que apenas esperavam vitórias materiais; não o compreende, finalmente, nossa época, di­vorciada do espírito. Desse modo, Cristo viveu no meio da incompreensão dos que mais próximos estavam d'Ele e do silêncio de seus contemporâneos, como ainda hoje, em meio da incompreensão e do silêncio dos nossos tempos. Ninguém Lhe ligou importância, enquanto vivo. Roma está plena­mente satisfeita do próprio esplendor. O cérebro que dirige o mundo todo nem de longe poderia suspeitar que um bár­baro obscuro, perdido lá nos confins de uma terra de escra­vos, estivesse lançando a semente, viva até hoje, da renova­ção do mundo. Quando Ele morre, pensam que Sua figura tenha desaparecido completamente e Sua instituição entrado em agonia. Mais tarde, de um golpe, inesperadamente, Seu pensamento se propaga e conquista o mundo todo até transformar-se em sinal de contradição na história da civilização humana. Hoje, como ontem, e como amanhã, o mundo ou é a favor de Cristo ou contra Cristo. Indiferente é que nin­guém. pode ficar. Ninguém pode ignorar-lhe ou destruir-lhe o pensamento. Está nas próprias raízes da vida, tem valor fundamental na realidade biológica. Quem se espelha nesse pensamento, quem a ele adere, por uma questão de simples reflexo se engaja na luta apocalíptica das ascensões huma­nas. Se a Grécia criou a Beleza e a Sabedoria e Roma o Di­reito, Cristo elevou o Amor ao papel de força de coesão social, introduzindo no mundo conceito novo, inédito e origi­nal, que se tornará a unidade de medida do progresso hu­mano. Quem, como nós se ocupa principalmente disso, não pode deixar de tomar conhecimento d'Ele e seguir o rastro luminoso de Seu exemplo...

Nossos tempos lembram os em que Ele viveu. Enquanto o mundo romano, em pleno fastígio da força, se desfazia no ceticismo, o suave e humilde mundo cristão, amparado no poder da fé, construía em silêncio. A História parece diver­tir-se com seus personagens, destruindo os mais poderosos, exaltando os mais humildes, demonstrando-nos obedecer a desígnios que não se identificam com os dos homens. Muitas vezes até mesmo os mais espertos e astutos denotam grande cegueira em face dos acontecimentos futuros e a História conduz governantes e governados a situações inesperadas. Acontece que os fortes tombam e os humildes triunfam o mínimo se torna máximo e ao contrário, as mais sólidas construções desabam e as mais débeis continuam de pé. En­quanto o homem arquiteta planos, a História, instável e re­pleta de surpresas, faz os acontecimentos se desenvolverem de acordo com o plano diretivo por ela elaborado e bem di­ferente do formulado pela razão humana. Não poderemos compreender esse plano interior, sem antes entender o fun­cionamento orgânico do universo. Nenhuma orientação po­lítica, nenhuma filosofia e nenhuma interpretação da His­tória atuam apenas em função desse conhecimento mais amplo.

Como existem dois planos históricos, um exterior e apa­rente, outro interior e real, a História se desenvolve através de duas espécies de acontecimentos: os exteriores, visíveis e ruidosos, que todos acompanham e a História registra, e os interiores, invisíveis silenciosos e subterrâneos, que as pes­soas e a História não vêem senão quando finalmente se ma­nifestam em frutos concretos e maduros. Assim, os perío­dos de incubação e de germinação, tão importantes quanto os de desenvolvimento e plenitude, passam despercebidos e permanecem secretos. A História é uma florescência de acon­tecimentos, dos quais não percebemos nem o intenso e íntimo trabalho preparatório, onde reside seu significado, nem a cal­ma subterrânea e que continuam a elaborar-se. E, desse modo, muitos fatos continuam sem explicação lógica Existe a con­quista bélica, material, das terras, dos corpos e dos haveres e a conquista pacífica, espiritual, das almas e dos valores morais. São estes os dois extremos da História seu aspecto visível e seu aspecto invisível. Não apenas as multidões, mas até mesmo os próprios apóstolos, ao invés da expansão inte­rior, no plano do espírito, conceberam a expansão exterior, no plano material. Cristo, porém, esclareceu e retificou e, mais tarde mostrou através de fatos que sabia vencer inte­riormente, apesar das aparências exteriores da derrota. Mostra-nos a História como podemos chegar à afirmação, sem as manifestações exteriores que a assinalam, como conseguimos criar e vencer em silêncio, conquistar também por meio de expansão interior e ir muito mais longe pelos caminhos pa­cíficos da convicção que satisfaz do que pelos caminhos béli­cos da ação que constrange. E, nisso ainda, obedecemos ao Evangelho.

Mas o presente volume, que estamos concluindo, não tem apenas significado espiritual, moral e social, mas também biológico. E, acima de tudo, construtivo; consegue explicar tu­do, sem negar coisa alguma; cria, relaciona e nada destrói; eis sua contribuição. Assim como respeitou a fé, respeita a ciência. Neste livro, a questão religiosa do progresso espiri­tual é também considerada como fase de evolução biológica e, por isso, o fenômeno moral continua verdadeiro, mesmo se enquadrado na ciência, que, assim, não fica destacada nem diferente do Evangelho, mas enquadrada nele. Por isso este livro faz o que a ciência não pode, isto é, conforta moralmen­te a dor, até mesmo em termos racionais.

Apesar das várias tentativas de nivelamento a que hoje nos inclinamos na busca da justiça social, os homens não são, não podem ser, jamais serão iguais. A justiça é necessária, mas, em razão da estrutura biológica do planeta não no-la pode dar a igualdade, pois na terra a igualdade não corresponde à realidade e, por isso, é absurda e imposta coativa­mente. A humanidade, no entanto compõe-se de seres de di­versíssimo grau evolutivo, que vão da besta ao anjo. Para o primeiro tipo o ambiente terrestre representa o máximo de evolução e de aperfeiçoamento biológico, de bem-estar e de fe­licidade; para o segundo, o mínimo de tudo isso, apenas pro­vações, verdadeiro inferno. Entre os dois extremos oscilam mil e um estados intermediários. Vivem materialmente lado a lado, confundidos, ajudando-se e alternando-se no labor evolutivo, mas inconfundíveis quanto à natureza, que perma­nece diferente de modo a permitir, mais tarde, a volta de cada um a seu lugar exato. Os indivíduos adiantados, embo­ra poucos, não estão nesta ou naquela raça, nesta ou naque­la nação, mas distribuem-se por toda parte e seus objetivos são, acima de tudo, superterrenos. Os indivíduos evoluídos não constituem casta com o objetivo de dominar neste mundo, nem raça nacional de finalidades imperialistas; pelo con­trário, reconhecem-se à primeira vista e confraternizam-se onde quer que se encontrem; e, finalmente, sua vida já se dirige para fora deste mundo, que eles superaram Na terra, o tipo besta goza; o tipo anjo, sofre; o primeiro destrói, o segundo cria; um ignora, o outro sabe; um pede, toma, pren­de-se, o outro dá e se desliga. São essas as verdadeiras dife­renças de substância, que distinguem e separam, as únicas que têm valor. Neste livro, partimos do involuído e chega­mos ao evoluído O problema coletivo ficou embaixo, nos pri­meiros degraus, porque, desenvolvendo-se em extensão, não pode desenvolver-se em altura. Já vimos que, como é justo, quando o evoluído acabou de sofrer no calvário do dever, de altruísmo e de dor, vai para sempre embora deste mundo. Este fim constitui o objetivo dos que têm longo caminho a percorrer e representa conforto para quem está ansioso por atingi-lo.

"Coragem!" Dizemos a quem sofre. Não superestimeis as liberdades e os programas humanos; libertai-vos indivi­dual e definitivamente. O caminho da libertação existe, sim. A condenação não é eterna. Vós mesmos podeis empregar, em vosso próprio benefício, as leis da vida e trans­formar-vos, evoluindo. O caminho livre, a única fuga pos­sível do inferno terrestre consiste precisamente na evolu­ção. Não há outro. Na verdade esse caminho subentende sofrimento e esforço, mortificação, purificação e imateriali­zação; é árduo e difícil, mas o único seguro e positivo. A evolução coletiva, em massa, é demasiado lenta para os de mais boa vontade e muito morosa para os mais adiantados. Quem quer conclui-la depressa deve abandonar a corrente e agir sozinho. Esse caminho é a redenção ensinada por Cristo. Por isso Ele disse:

"Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.

"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.

"Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.

"Alegrai-vos e exultai, porque a vossa recompensa e grande no reino dos céus..." (Mateus, 5).

O evoluído, que entende e sofre, compreende o valor destas palavras. Sabe que a ressurreição só é possível depois da paixão e que Cristo pôs em prática leis biológicas, de­monstrando-lhes a inexorabilidade. Não há outra porta para escapar à dor senão essa, estreita e difícil. O evoluído tem os olhos fixos no Getsêmani, fase de evolução biológica pa­ra todos.

O problema final deste livro, depois de todos os outros, é a salvação do evoluído. Há três tipos humanos predomi­nantes (cf. A Grande Síntese, cap. LXXVIII: "Os Caminhos da Evolução Humana"):

1) O tipo sensorial, que vive exteriormente nos sentidos: é o selvagem, que forma grande parte até mesmo de povos civilizados. Sua fé e sua vida baseiam-se na força.

2) O tipo racional, que vive mais internamente, no cé­rebro; é o cerebral, tipo que, embora muitas vezes constitua a classe culta e dirigente, ainda continua egoísta, isto é, isolado e, em geral, desorientado. Sua fé e sua vida baseiam­-se na astúcia.

3) O tipo intuitivo-espiritual, que vive ainda mais in­ternamente, no espírito; é o evoluído, exceção biológica, sábio, altruísta, irmanado a todos os outros seres do universo, enquadrado no seu funcionamento orgânico, em que repre­senta uma parte e tem uma missão. Sua fé e sua vida ba­seiam-se na honestidade (cf. cap. VI, deste volume: "A Lei da Honestidade e do Merecimento"). Esse tipo constitui o ponto nevrálgico deste nosso livro.

Cada tipo supera o outro pelo grau de evolução, como no progresso da vida interior, o que significa aumento gra­dual de potencial, vida cada vez mais intensa, criação de novas formas, maior enquadramento e fusão nas forças bio­lógicas e cósmicas. O evoluído representa o super-homem, o tipo ideal, o resultado de experimentações terrestres, a me­ta biológica do planeta. A ele, e não mais às massas de que falamos no início, dirigimos esta conclusão. Em favor dele, empreguemos de novo os seus meios de defesa, frente à agres­sividade dominante no meio em que, no entanto, tem de viver.

Toda sua defesa reside na evolução, ou seja:

1) Em sua sensibilidade que lhe tornou mais aguda a capacidade de percepção, permitindo-lhe sentir mesmo à dis­tância, no tempo e no espaço, prevenindo-o contra os perigos.

2) Em seu conhecimento e sabedoria, em seu enquadra­mento universal, que o defendem das ilusões comuns, erros e sofrimentos correspondentes.

3) Em sua comunhão com as forças cósmicas a que es­tá unido e que intervêm, defendendo-o e socorrendo-o segun­do for justo, isto é, de acordo com o merecimento e não por direito de conquista.

4) Na certeza de sua libertação da terra, por meio da morte; e, antes disso, no colocar o centro de sua vida e de seus tesouros fora da concepção normal ou, seja, do campo dos instintos e atrações comuns e, por isso, da zona das agressões.

Sem dúvida alguma, a luta do futuro se travará entre o involuído e o evoluído, porque é esta a mais substancial di­ferença entre os homens: o tipo biológico. Não esperemos, porém, que o evoluído empunhe armas. Sua estratégia con­siste precisamente na mudança radical dos métodos huma­nos. Seu campeão é Cristo, que vence com a bondade, a jus­tiça, o sacrifício e se impõe por merecimento intrínseco e não pela força das armas. A economia do evoluído não é a economia da posse ou do domínio, mas da renúncia, da pro­vidência divina. Se seu sistema não fosse completamente diverso dos sistemas terrenos, não representaria nenhuma vitória sobre eles. O evoluído quando é agredido por um in­ferior, não responde humanamente, com violência, mas an­gelicamente, com bondade. Distingue-se do involuído pre­cisamente por não usar arma alguma. Sua força é a lei, isto e, Deus. Esta se encarregará de fazê-lo triunfar e protegê-lo. A evolução é fatal. Está no plano da criação e é vonta­de expressa de Deus.

Portanto, o evoluído não deixa a seu irmão primitivo que quer prejudicá-lo e espoliá-lo, senão seu invólucro vazio, os tesouros humanos, isto é, os excrementos da vida. O invo­luído, que crê tê-lo subjugado, roubou-lhe apenas as pedras do cárcere para com elas construir sua prisão; é um ludibria­do, vítima de sua própria ignorância. O evoluído dando-lhe os excrementos de sua vida, com tanto esforço roubados, vai para mundos melhores, possuidor de bem diferentes rique­zas. A distância percorrida já é enorme e o abismo que divide os dois tipos não pode mais ser eliminado. Porque exis­te a justiça divina, se há gozo para o pecador, haverá feli­cidade para o justo. Lázaro e o rico avarento estarão eter­namente distantes:

"Abraão disse:(...) há entre nós e vós um grande abis­mo, de maneira que os que querem passar daqui para vós não podem, nem os dai passar para cá." (Lucas, 16:26).

Dirijamos ao evoluído, ápice biológico, estas palavras de conforto. A maior parte da humanidade ainda se encontra fora de seu campo e destas derradeiras conclusões. É fatal, por justiça divina, que cada ser volte a seu lugar, segundo o próprio merecimento e valor.

Fechamos assim este volume. Este novo trabalho, salvo da destruição da guerra, dos sofrimentos, das contrarieda­des, do abatimento físico e moral, está terminado. Se aprou­ver a Deus, amanhã recomeçaremos. Tudo está nas mãos de Deus, tudo a Ele pertence. Fazer sua vontade, nosso perfeito guia, é a felicidade máxima, porque nos leva pela alegria ou pelo sofrimento pela vida ou pela morte, ao nosso maior bem possível. Basta segui-lo, satisfeitos e felizes.

Amanhã, o esforço continuará ainda a traçar os aspec­tos infinitos do mutável e multíplice no relativo, continua­ra a narrar outros acontecimentos misteriosos, para cavar novos sulcos nas almas, em diferente clima histórico, com nova maturação de ambiente interior e exterior, de destino individual e universal. Estamos presos aos limites, algema­dos pelas dimensões desse nosso mundo; só nos resta cami­nhar no tempo. Amanhã! Este novo trabalho é concedido a todos, como semente jogada nos campos, para que esse futuro seja mais completo, mais elevado, mais feliz para todos.

GUBBIO, 6ª feira Santa, 1945.

CONCLUSÃO

(Da II Trilogia)

Com este volume, A Nova Civilização do III Milênio, encerra-se a segunda trilogia, isto é, o segundo ciclo, que é calmo, o da assimilação, seqüência do primeiro, que é ex­plosivo, fruto da inspiração. O primeiro ecoa e ressurge no segundo. Através dos seis momentos e dos dois ciclos, assisti á revelação progressiva de minha personalidade. Estas pá­ginas, no fundo, nada mais são que a história do apocalíp­tico drama por mim vivido. Que peregrinação longa e tempestuosa! Sem pretensões sistemáticas, narrei, com verdade psicológica, como se desenvolveu minha personalidade. Não vão dizer: este só sabe falar de si próprio. Porque o meu drama é o drama de todos, a vida é uma só e o meu cami­nho é também o vosso caminho, o mesmo de todos. Falan­do de mim, falo de vós, que, como eu, estais na mesma evo­lução do mundo. Creio haver vivido a suprema aventura, a aventura mais trágica e tremenda que o homem possa co­nhecer. Tive a força de dominá-la e contá-la a vós. Mas isso não é tudo. Estou num remoinho imenso, na imensa vora­gem da moderna vida humana. O meu drama fundiu-se no drama universal. Senti-lhe a imensa paixão, em meio de profundo sofrimento.

Meu espírito triunfa, mas o corpo está cansado. Tentei superar a vida animal, mas a vida se vinga no mesmo plano animal que eu quis negar. Talvez se aproxime a boa irmã morte, morte para o corpo, vida para o espírito. Talvez esta seja a condição para que eu possa agora ouvir e entoar um canto mais sublime. Levo apenas esta mágoa: eu poderia ter feito mais e não fiz; e não pude porque tive de despen­der as maiores energias de minha vida na luta pela vida, lu­ta imposta a todos neste inferno terrestre, luta impiedosa ao lado do involuído. Os auxílios foram raros; agradeço-os imensamente. Mas, em geral, devo bem pouco a meus se­melhantes, que só me deram desgostos e sofrimentos. Ago­ra, não está falando a Sua Voz, que tantas vezes guiou mi­nha mão nestes trabalhos, é a minha pobre humanidade abalada.

O motivo dominante nas duas trilogias é um único, o que para o leitor superficial parecerá repetição. O tema é uma alma que se aperfeiçoa3 é a humanidade que se redi­me pela dor. Tentei-o porque assim me estava determinado. os tempos modernos têm forma própria de martírio incru­ento. Só Deus sabe se a vitória me sorriu ou se fui vencido, se minha tentativa foi útil ou vã. Em Sua imensa piedade me julgará mais pelo que tentei ou esperei fazer que pelo que realmente fiz. Há somente três lustros, minha pobre pena escrevia sua primeira mensagem (Natal de 1931): "No silêncio da noite sagrada, ouve-me... Levanta-te e fala... "[26] Falei e aquela voz se espalhou pelo mundo.

Começou então a longa viagem de exploração no abismo interior, o abismo de todos, da vida, de Deus. E não retratei com minhas pobres palavras senão a sombra da vertigem experimentada. Em alguns momentos, o esforço titânico me arrebatou da órbita terrestre, para que depois eu aí tombas­se de novo e sofresse mais. Assim sou: apocalíptico contras­te de aspirações e misérias. Disse tudo sinceramente, dian­te de Deus e da morte. Não tenho culpa de que tudo isso possa parecer, à mentalidade moderna, megalomania ou forma patológica de elefantíase espiritual. Neste caso, a vi­da é assim mesmo. E eu, além de ator, também fui, como quem lê, espectador e, mais do que a causa, fui envolto pelo turbilhão do infinito. Vivi a agonia proveniente do tormen­to de necessitar do impossível e não saber alcançá-lo. Senti em mim um desespero cósmico: o do ser que quer subir, e não sabe. Meu lamento é tão grande como a terra, lamento do homem que procura na dor a sua redenção. É o lamento de Prometeu acorrentado, o lamento de quem traz no coração sublimes sonhos e verifica que a dura realidade cotidiana o desmente sempre. Por isso tudo, o conjunto da presente obra valerá mais pela tentativa que pelo que realmente foi feito. Isso de meu lado humano. Mas é certo que tal obra foi inspirada e querida pelo Céu. Deus, portanto, conhece-lhe os fins e aplicações futuras.

Algumas almas têm unicamente uma espécie de cobiça nostálgica da eternidade e não sabem viver senão fazendo vio­lência, senão obrigando os céus a fazerem um raio de sua luz iluminar a tenebrosa noite da terra. É a Divindade que clama neste inferno terrestre. Embora toda a vida física a desmin­ta, aquela voz continua a clamar; e mesmo que o ser caia ela ainda clama. Embora pareça loucura, ela nos convida a lançar-nos na voragem do mistério, irresistivelmente. É sempre Deus que clama. O absoluto já está e nos atrai; a ânsia de alcançá-lo nos devora e o sentimos inatingível. O contingente, porém, nos acabrunha, nos cerca, nos estorva, asfixia-nos. Eis o grande drama. A matéria é inerte e o es­pirito, que quer vivificá-la, desce luminoso a seus escuros antros, tão escuros que ai agoniza e parece extinguir-se. A alma ouve ainda cá do mundo o apelo divino e percebe de­sesperadamente a impossibilidade de responder. Daí nasce o drama da discórdia, mas também o contraste criador.

Hoje meu corpo cansado, ferido pela tempestade, chora sua catástrofe humana, contingente; o espírito a oferece a Deus em holocausto e, como senhor, espera com alegria o fu­turo. Em que forma de vida ressurgirá das espirais dessa morte já aceita? A que extremos chegará a grande batalha? Bem o sei, já o disse, mas pergunto-o a mim mesmo, para repeti-lo ainda; e o direi, se continuar a viver. Poder ver fi­nalmente o mal aprofundar-se no abismo da autodestruição e o bem vencer: eis a grande paixão.

Com este volume fecha-se o segundo ciclo de uma tra­gédia individual na tragédia universal. Enquanto o mundo emprega sua atividade em acumular meios materiais para ruína e destruição e a atividade teorética não cria, mas sim­plesmente varia de continuo a estéril disposição de meios já mortos, resíduos da criação dos gênios, este livro é uma pon­te lançada para o infinito. Substitui a atual cultura exte­rior que não condena, antes, serve os instintos inferiores e é utilizada como meio para revigorá-los, por uma cultura de substância, de reerguimento biológico, que só tem valor en­quanto apta para formar um homem melhor. Ao diabólico esforço das polêmicas corrosivas de palavras contra pala­vras, à tendência separatista de Satanás, representada pelo espírito de antítese de nossos tempos, pusemos em contra­posição um contato mais intimo com a essência da vida, um espírito construtivo de colaboração e amor. O mundo cien­tífico e politicamente fragmentado e dividido, dissecado até as raízes pelo separatismo, desorientado em face das gran­des finalidades do ser, tentamos reunificá-lo, levá-lo às fon­tes da vida, dando-lhe novamente seu verdadeiro significado. Que não haja mundos separados, unidades demográfi­cas ou circuitos econômicos, disciplinas científicas ou afir­mações várias de Deus, dadas pelas religiões, mundos rivais em que explode o ódio, mas unidade biológica de todos os seres avançando pelo mesmo caminho da evolução, irmana dos pelo esforço de redenção, seres amigos, intimamente uni­dos pelo amor; uma vida menos hostil, mais ampla, mais franca, mais comunicativa, entre seres que se compreendem. Isto quer dizer abolição de fronteiras, vitória, libertação, progresso, pois é a unificação que nos faz subir até Deus. Na atual época dos separatistas, isto é, dos filhos de Sata­nás, esta é a voz dos unificadores, isto é, dos filhos de Deus. Só assim a realidade fragmentada poderá reencontrar em nós sua unidade, os horizontes de nossa vida poderão dila­tar-se e descobrir novas praias longínquas e desconhecidas. A vida de hoje adquiriu a trágica sabedoria das grandes ho­ras em que reina a dor. O intelectualismo que hoje domina o pensamento é, diante desta realidade patente, vão e inú­til. Crentes ou não, estamos todos pregados à cruz de Cristo. Na caminhada sem fim, quisemos indicar o único caminho de salvação.

Concluamos, para aqueles que ainda não vêem, com as palavras de S. Paulo:"Ninguém se iluda: se algum dentre vós imagina possuir a sabedoria deste mundo, torne-se lou­co para se tornar sábio; porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus." Certamente muitos não entendem. Mas, antes de sorrir como céticos, é bom refletir que os fun­damentos da sociedade geralmente foram estabelecidos por homens de fé e não por homens apenas de ação. Estes vi­vem da vida alheia; fecundam, mas não criam; ajudam, mas não despertam a vida. Antes, os primeiros, que parecem utopistas e loucos é que a fazem surgir espalhando cente­lhas de luz; são os sábios sonhadores, e não os práticos, os que dão os maiores impulsos à humanidade. É bom refletir que o homem mais dinâmico e revolucionário não é o que grita e assalta, mas o que pensa, penetra a verdade e a anun­cia sem agredir; que o homem mais destruidor no presente é o que pacificamente cria no futuro, limitando-se, diante do mal, a suportá-lo com paciência, a denunciá-lo cândida e, se preciso, heroicamente a todos. É bom recordar que o ataque mais poderoso, o ataque final, é desfechado, sob for­ma mansa e persuasiva, pelos verdadeiros demolidores, que ferem as raízes, e não pelos que seguem os caminhos da força que agem externamente e excitam reações; o verdadeiro assalto é aquele que, através do amor e da verdade, leva á convicção.

PIETRO UBALDI

GUBBIO, Páscoa de 1945

Fim.


[1] O leitor, que conhece os outros volumes citados no prefácio, sabe da gênese inspiradora desse escrito e compreende, por isso, que o autor aqui não está se elogiando.

[2] Dou para que dês

[3] Direito romano

[4] Infinitamente

[5] Deusa grega da Vingança e da Justiça distributiva, que repro­vava todo excesso. (N da E.)

[6] A maior ordem nasce da integridade dos séculos.

[7] Os senadores são boas pessoas; o senado, entretanto é uma fera.

[8] Dou para que dês. (N. da E)

1 Deusa grega da Vingança e da Justiça distributiva, que reprovava todo excesso. (N. da E.)

[9] Se queres ser perfeito, vai e vende todas as coisas. (N. da E.)

[10] Aonde vais Senhor? (N. da E.)

[11] Direito de usar e abusar. (N. da E.)

[12] Eis o homem. (N. da E.)

[13] Trecho da "Vida de Jesus Cristo", de G. Ricciotti, seguimento 327. (N. do A.)

[14] O povo quer ser iludido; logo, seja iludido. (N, da E.)

[15] Sentido elevado. (N. da E.)

[16] Sustenta-se por si mesma. (N. da E.)

[17] Sem limites (N. da E.)

[18] Batei e abrirse-vos-á. (N. da E.)

[19] Seja feita a tua vontade. (N. da E.)

[20] Senhor, abrirás meus lábios. (N. da E.)

[21] Escrevi este capítulo em S. Sepulcro (Arezzo), em frente do Monte Alverne. (N. do A.)

[22] Assinalai, Senhor, este teu servo Francisco, com os sinais da nossa redenção.

[23] Deus te abençoe e te guarde:

Mostre a ti sua face e compadeça-se de ti

Incline para ti seu rosto e te dê paz:

O Senhor te abençoe Frei Leão.

[24] O Beato Francisco escreveu com sua própria mão esta benção para mim, Frei Leão.

[25] Tal fato foi depois confirmado por resposta do Observatório Astronômico de Capodimonte (Nápoles). (N. do A.)

[26] "Mensagem do Natal" do livro Grandes Mensagens. (N. da R.)

 

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