Índice do Blog – Parte 1- Parte 2
Neste capítulo, ao delinear o perfil do futuro tipo biológico, falamos principalmente a respeito de sensibilização nervosa, exatamente porque em especial sob o aspecto biológico foi que estudamos esse fenômeno evolutivo. Sabemos, porém, que essa via biológica de ascensão se relaciona com a via moral, é até mesmo condição desta e meio de atingi-la. Trata-se, na evolução biológica, de elaboração orgânica que caminha rumo ao imponderável. A sutilização e a desmaterialização do invólucro físico torna-o cada vez mais transparente e, por isso, evidencia mais a manifestação do espírito. E é no plano espiritual que o dinamismo da vida consegue esse refinamento, capaz de permitir-lhe o aparecimento em sua forma moral. Tudo isso que é evolução e sensibilização pode apenas conduzir, por isso, a evolução e sensibilização moral. A bondade e a sabedoria do futuro tipo biológico, por isso, podem também ser atingidas através do metabolismo orgânico, capaz de permitir transformação lenta da estrutura celular. Todos os aspectos da vida se relacionam reciprocamente e todas as suas maturações caminham lado a lado. A transformação evolutiva é orgânica, nervosa, psicológica, conceitual e ao mesmo tempo moral, refinamento de estrutura celular, sensibilização, bondade, compreensão. Essa passagem da fase involuída para a evoluída constitui, assim, profundo processo que se apossa de todas as qualidades humanas, da extremidade física à extremidade espiritual da vida, elabora completamente o ser e, por expansão interna, plasma de novo a forma, tornando-a cada vez mais apta a exprimir o espírito. Nisso se revela a organicidade da natureza e o princípio unitário, monístico, do universo. Parece que durante essa passagem todas as fibras da vida vibram e, em todos os graus evolutivos, ela responde ao novo apelo dos tempos e se move sintonizando seu ritmo com a harmonia do universo. Assim, a ordem biológica ascende ainda até Deus, que aí se revela ainda mais; assim, a vida exulta ao aproximar-se novamente do objetivo e as consciências ouvem o canto perene da fonte, cada vez mais claro. Nova revelação de Deus o atinge profundamente e o desperta, para criar, criar mais, formas cada vez mais próximas da perfeição. Ascender é ser feliz. Treme o grande ritmo do tempo, suspenso em solene espera. O homem novo vai nascer. A vida quer falar-nos de Deus cada dia mais claramente, pois ela é Sua glorificação.
XVI
VISÃO (1º TEMPO)
Todo capítulo deste livro, como todo capitulo da vida, é quadro diante do qual paramos contemplativos. Esses quadros, que estamos desenvolvendo, se poderiam também chamar contemplações. No último deles o universo apareceu-nos como floração de vidas. Seu transformismo evolutivo é desenvolvimento contínuo em que parece reproduzir-se em dimensões gigantescas a técnica expansionista da semente, a lei de desenvolvimento do indivíduo, o mecanismo da maturação da vida, como se no ciclo vital de toda criatura se repetisse em ponto pequeno o mesmo esquema do ciclo vital do universo, máximo organismo coletivo. De fato, até mesmo os universos nascem, crescem, envelhecem e morrem, para como todo ser vivo renascer e morrer de novo. Também eles passam por alegre juventude e cansada velhice, nascem de um germe e, ao morrer, deixam seus despojos mortos. Todos os fenômenos parecem desenvolver-se de acordo com um só esquema, cuja aplicação gasta todas as coisas, consome toda força, encerra todo ciclo, exaure e extingue toda vida.
Mas agora voltemos as vistas para outra contemplação, de índole diferente. Para que, depois da tensão conceitual prolongada até agora, o leitor descanse alguns momentos; para satisfazer outras exigências espirituais, diferentes das intelectivas e racionais, e também outras da fantasia e da paixão; para, finalmente, expor os mesmos problemas, não mais sob forma racional e abstrata como até agora, mas dramatizados em cena bem sintética, relatemos a visão que, em meio de emoções turbilhonantes e na profundidade de ensurdecedor silêncio, tivemos em luminosa manhã de maio. Aqui a reproduzimos com objetividade cinematográfica, tal qual, emergindo das profundidades da consciência, se nos revelou, na roupagem teatral com que o pensamento abstrato se concretizou no sonho, se ao menos em substância não lhe podemos chamar intuição ou pressentimento profético. Os fenômenos de visão interior examinamo-los no cap. XXVI, deste volume, a respeito da vida dupla. Vamos por algum tempo mudar a forma mental, a fim de podermos falar à inteligência e ao coração e alimentar também essa outra qualidade da alma humana. Todo tipo de leitor encontrará neste livro a linguagem que se lhe adapte. O tipo racional, mais capaz de pensar do que de chorar e amar, poderá escolher os capítulos racionais. No vasto complexo humano, além das ressonâncias do intelecto há outras, todavia, pelas quais podemos comunicar-nos. E todo leitor reage, segundo personalíssima capacidade de vibração, quando sente, tocarem na sua corda sensível, e isso mais por mera sintonia do que por atividade do raciocínio. Do contrário, mostra-se surdo não sendo tangido, permanece imóvel, não sabe responder e toda demonstração se mostra inútil. Que coisa é a convicção, além de espontânea e uníssona vibração? Essa vibração pode nascer mais facilmente de persuasão e da paixão pessoal do que do frio raciocínio. A convicção não é processo lógico, mas estado vibratório; não nasce, por isso, do raciocínio, mas da radiação psíquica; não resulta de argumentação cerrada, mas de acordo vibratório por sintonia do pensamento. O processo não deve ser coagido, mas espontâneo. Pelo contrário, nada, como a presença da vontade que tenda a impô-las, afasta tanto assim a compreensão e a convicção; e nada nos persuade e arrasta com tanta força como a existência, naquele que fala, de sentida e sincera convicção. Daí se depreende quanto o velho sistema da coação lógica se revela absurdo e ilusório, se com ele pretendermos resolver o problema da convicção das consciências. Esse método coativo mais ou menos se origina da luta, constitui a transferência, para o plano psicológico, do sistema do involuído, diante de quem a força significa vitória. Mas o pensamento está bem mais acima e seu valor escapa-lhe. Assim, o desejo de proselitismo, ao invés de atrair, costuma repelir, pois provoca desconfiança; o desejo de conquista excita resistência. Por isso, quando argumentarmos, convém limitarmo-nos sempre a expor, sem jamais pretender forçar a persuasão, simples ato de adesão espontânea sendo assim, toda atitude que lembre a força e a imposição tende a resultados absolutamente negativos. Não é a astúcia raciocinadora, nem a chicana sutil, nem o desejo de fazer prosélitos, que me fornece substância ao pensamento e me anima a palavra, mas a flama da fé e a profundeza, a evidência, a intensidade da própria visão. A guisa de disco fonográfico, as palavras registram-lhe escrupulosamente a radiação e assim a reproduzem ao leitor. A palavra falada ou escrita não passa de vibração fonética ou graficamente expressa, vibração dirigida à formação de outras vibrações. Se ela, embora brilhantemente vestida, é substancialmente falsa, apenas poderá gerar vibrações falsas. Por isso, o silogismo e a retórica constituem elementos negativos para o pensamento e traição contra o espírito.
Relatemos a visão, mas antes aqui ficam duas observações: 1) Este volume, como está mais bem especificado no cap. XXII "Tempestade", foi iniciado e continuado até este ponto na primavera de 1944. Essa visão eu a tive na manhã de 12 de maio de 1944. Sexta-feira, isto é, 33 dias após a manhã de Páscoa, coincidência percebida só mais tarde. Essa visão registrei-a imediatamente por escrito e vou reproduzi-la agora sem modificação alguma. É a pura verdade. 2) A visão pode assumir vários significados, superficiais ou profundos, conforme a capacidade de compreensão do leitor. Nela existe, afora o sentido superficial, de mera narração, o sentido espiritual, mais potente, simbólico, que à índole mais ou menos madura do leitor cabe saber discernir. Ou, mais claramente, o relato da visão podemos lê-lo conforme três níveis, três planos, correspondentes aos três planos evolutivos de nosso universo, quer dizer: matéria, energia e espirito. Em outras palavras: podemos "vê-la" como forma, na aparência exterior com que surge em cena, na periferia, como fato material, enfim; ou, então, "senti-la" como dinamismo motor dessa forma e dessa sucessão de cenas, mais internamente, como vibração animadora do fato material; e, finalmente, "intui-la" como princípio espiritual que do centro dirige os movimentos desse dinamismo e, reunindo-os na mesma trajetória, os guia de acordo com pensamento e finalidade bem determinados. Essa penetração progressiva, encaminhada da superfície à parte mais profunda e da periferia ao centro, exemplifica o modo por que, de conformidade com sua estrutura, podemos compreender o universo. Eis a visão que eu tive.
Na basílica de São Pedro em Roma, templo máximo da Cristandade, imensa multidão se reunira junto ao túmulo de seu fundador, o primeiro entre os apóstolos. Ninguém saberia dizer que pressentimento levara tanta gente a assistir a ritual por si mesmo tão comum. O instinto das massas, reconheçamo-lo, percebe a aproximação das horas apocalípticas da vida; fazia alguns dias que havia qualquer coisa no ar, angustiando as almas. Seria, talvez, a sensação confusa da extraordinária gravidade da hora; ou, quem sabe, a espera de novos acontecimentos, de algo decisivo naquela conjuntura histórica; ou, então, maus pressentimentos, que nenhum fato concreto poderia justificar racionalmente. Disso tudo nascera em tantas pessoas a necessidade de se aproximarem, de se encontrarem de novo, de se reunirem e de novo travarem conhecimento; e isso precisamente naquele templo, cujo poder de atração parecia dever-se à sua ligação com o estado apocalíptico das coisas. Naquele momento a basílica assumia particular significado, talvez mesmo único quanto ao sentido finalístico, significação sobre-humana capaz de permitir o restabelecimento dos contatos, há tanto tempo perdidos, entre o homem e Deus. Assim, em plena noite espiritual dos séculos o tempo surgia como luminosíssimo farol. Por isso, se era ordinária a forma ritual, aquele momento se revelava extraordinário para a vida do mundo. A guerra acabara, deixando-nos, após longos anos de tormento, comprida esteira de dores maiores ainda. Tantos sofrimentos haviam amadurecido os espíritos para novas atitudes, tornando-os dispostos a novos superamentos. E instintivamente a alma do mundo esperava, para renovar-se, que de Deus viesse a primeira centelha, como prova, exemplo e estimulo; esperava o sinal que indicasse e abrisse o novo caminho.
O templo estava repleto. Jamais se vira tanta afluência de povo. Irresistível impulso levara tanta gente a acorrer de todas as partes do mundo e, no entanto, poderíamos seguramente dizer que o templo máximo da Cristandade naquele momento abrigava os maiores e melhores expoentes de toda humanidade. Segundo parecia, a Cristandade, mais do que ao apelo formal, obedecera ao apelo apocalíptico da hora, à irresistível necessidade de naquele momento dar solene testemunho de fé, reunindo-se unanimemente em torno do Pontífice, aos pés de Cristo. A dor cavara tão fundos sulcos nos espíritos, a alma do mundo martirizado descera a desespero tão negro ao ponto de perceber-se em todos os espíritos a reação contra o absurdo, o insuportável, o impossível que era ter de empregar ainda o antiquado binômio, ao ponto de sentir-se a necessidade, a fatalidade e a iminência de total modificação do mundo atual. Mas, como? Aquela massa humana ignorava. Havia na multidão a confusa vontade de continuar a viver, mas de modo melhor, com mais elevação e mais lógica, mais bondade e mais rendimento, de reconstruir-se, de sair do abismo em que o mundo caíra, de reformar-se inteiramente, remontando às origens. Havia em toda aquela gente o instinto vital que cerca todo campo e, juntando-se em última análise ao erro e aos desastres do erro, retorna às grandes idéias-mães, com que durante séculos e séculos se alimentam, para nelas haurir nova força e nova luz e encontrar salvação. O espírito adormentado pelo bem-estar e pela ilusória filosofia do bem-estar agora despertara; o imponderável, antes repelido e negado, voltava de novo ao mundo, atendendo ao apelo do homem provado pela dor. Essa própria multidão já constituía manifestação desse imponderável. A voz de Cristo ecoara de novo nos corações e muitos, tendo-a ouvido, acudiram: os capazes de salvar-se, para salvar-se e salvar os capazes de salvar-se. O povo reunido no templo representava e simbolizava o homem cansado da vaidade de suas construções, conquistas e experiências filosóficas, sociais, políticas, econômicas e científicas, o homem que, depois de tantas tentativas, finalmente se afogara na imensa dor de guerra de extermínio total, traído pela força e pela riqueza em que acreditara. (Cf. A Grande Síntese, Cap. LXXV: "... vocês confiam apenas na riqueza e na força elas, porém, acabarão traindo-os.") As ilusões fáceis, a simplicidade pueril, as loucas esperanças, tudo se desvanecera diante da realidade. Agora, a humanidade se encontrava em posição diversa daquela antes da guerra: posição de quem, percorrida a fase de prova, percebe haver cometido erro e amargamente se volta para dentro de si mesmo, a fim de refletir e, em seguida, compreender, reconstruir, ascender. Aquela multidão, mesmo sem o saber, exprimia tudo isso e tinha vindo testemunhá-lo. Nova e desconhecida ânsia a constrangia a reaproximar-se das eternas fontes da vida, a retomar o perdido contato com o divino centro de todas as coisas, que, eternamente criando, nutre. A nota dominante na psicologia daquela massa de povo se constituía da invocação apaixonada e retumbante dirigida ao céu. Sob esse impulso maior e mais significativo, ondeavam na massa variegados impulsos menores, vórtices de terror, chamas de esperança, de fé e amor, zonas crepusculares de dúvida e desencorajamento, manchas lívidas de ódio ou de treva. Mas o dinamismo dominador se representava por abrasadora sede de bem e de justiça e se elevava como purpurino cálice de ofertório, projetado para o alto como resplendente cone, para dar e receber, arremessado contra as fechadas portas do céu, à procura da potência que as reabrisse dando para o inferno terrestre, e prometesse luz salvadora em meio das trevas acumuladas pelo mal. O grande número, a violência do desejo, a intensidade da aparição, a substituição do indivíduo pela massa, em que todo impulso individual se reforçava, combinando-se e somando-se com outros, tudo isso formava irresistível corrente de pensamento, de alta tensão, retilínea e ascensional, vibração sonora e penetrante, imensa e poderosa oração, que crescia e transbordava como se fosse maré montante, avançava tempestuosamente e em meio de relâmpagos subia, turbilhonando, em direção ao céu.
Nossa narração começa quando, nesse dinamismo central e dominante, inesperadamente se enxerta outro e ambos se combinam, excitando reações e encaminhando soluções. Esse novo dinamismo é o dinamismo particular do drama que agora começa. O momento, já de si grave, tornava-se cada vez mais grave. O Pontífice já devia ter descido há duas horas a fim de celebrar o rito na basílica. A multidão dava mostras de cansaço, depois de espera tão prolongada, e de apreensão por motivo do inexplicável acontecimento. A tensão crescia sempre mais; a preocupação continuamente se agravava. No seio daquela massa enorme se propagava ligeiro murmúrio, que, apesar do respeito devido ao local, se ia tornando mais extenso e profundo. Na psicologia coletiva começava a caracterizar-se e a fixar-se o pressentimento confuso, mas crescente, de perigo desconhecido (quem sabe que perigo!), mas grave e pendente sobre a cabeça de todos. A intuição popular percebia o imponderável, indicando a aproximação de Imenso perigo, de terrível ameaça que, embora invisível, advertia de sua presença.
Aonde vão as massas buscar intuições? Talvez à interpretação lógica de algum sintoma, embora exagerado pela imaginação, como, por exemplo, um atraso, um gesto, um passo nervoso, um diz-que-diz. O senso do perigo e do medo é o mais antigo e profundo do organismo humano, e corresponde a instinto dos mais ativos e arraigados por dura experiência. A maior atenção das defesas físicas dirige-se para a conservação. Nas multidões, talvez algum sensitivo funcione como antena receptora em relação à massa, que desempenha o papel de caixa de ressonância, de amplificador, aumentando desse modo o volume do dinamismo e reforçando, com a quantidade de energia representada por ela, a qualidade fornecida pelo sensitivo-antena. De fato, em dado momento da maturação do fenômeno, isto é, quando se atinge determinado potencial, a faísca incendiária explode e alguém, desempenhando o papel de faísca, e mais intérprete do que criador, encaminha os movimentos da massa; assim se desencadeiam correntes incontroláveis. Alguém percebe antecipadamente aquilo que mais tarde todos perceberão, demonstra-o sob forma sensível e então os demais o reconhecem. Se o pioneiro do movimento de fato não ouviu e compreendeu a voz do imponderável, a multidão por sua vez nada ouve e por isso ninguém o acompanha, se o pioneiro não revela o que todos já sabem existir, se a dele não é voz coletiva, mas individual, a multidão não o entende e abandona-o. Trata-se de registro e ampliação, de fenômeno de ressonância. Primeiro alguém vibra e em seguida sensibiliza a íntima e vaga intuição geral, revela-a e comunica-a; os demais recolhem essa voz; controlam-na, caso corresponda à sua íntima intuição; e só nesse caso a aceitam e perfilham, aderindo a ela e dando-lhe contribuição de forças. Numa cadeia de intuições, os indivíduos, inconsciente e instintivamente, se auscultam e controlam mutuamente; desse íntimo contacto intuitivo nasce o consenso coletivo. "Espontaneamente", dizem. Produzido por todos em geral, e não por alguém em particular, esse consenso resulta da lei do fenômeno que nesse momento revivemos e da vontade das forças que o dirigem. Na multidão como no povo, em todo fenômeno de psicologia coletiva toda célula componente contribui com sua ressonância, recebe e transmite, alimenta-se da vibração coletiva e nutre-a por sua vez, restituindo-a multiplicada por si mesma e reforçada pela própria energia. Desse modo serpenteiam, se formam, oscilam, se definem, se acentuam, se impõem correntes de pensamento e isso obedecendo inconscientemente à lei do fenômeno, nascendo de bagatela aparentemente sem importância, quando no íntimo todas as coisas estão maduras e saturadas e, finalmente, crescendo como avalancha que tudo altera e destrói com terrível potência.
Nisso se passou mais uma hora sem que o Pontífice aparecesse. A ansiedade e o desentendimento iam-se tornando cada vez mais profundos e começavam a manifestar-se por intenso murmúrio, por agitação confusa, pelo crescimento daquele bramido de oceano com que se parece a voz das massas, pelo crescimento daquelas ondas encapeladas que são os movimentos populares. Viam-se na superfície assim como que rodamoinhos e, em seguida, vácuos, correntes, ângulos remansosos e, nas passagens estreitas, corredeiras. Aquela multidão palpitante interrogava a si mesma. Queria sair, libertar-se, dilatar-se no espaço. Queria dispersar-se, visto como vinha a faltar-lhe o objetivo representativo da força de coesão que a mantinha unida. Assim, criara nojo de si mesma, de ser multidão, de ser unidade que não tinha mais razão de existir como tal; e, como acontece em organismo desfeito, todo elemento componente queria separar-se dos demais. Diminuía o impulso unificador e a multidão tendia a dispersar-se. Algo, porém, a impedia: algum obstáculo contra o qual o dinamismo dominante se erguia cada vez mais ameaçador. Ninguém abria as portas. Não se abriam nem podiam ser abertas. O tardio da hora tornava lógica e desejável a volta para casa. Por que as portas não se abriam? O desentendimento aumentava; a agitação das ondas fazia-se ameaçadora; o pânico alastrava-se; o ímpeto inconsciente da alma irracional da multidão convergia irrefreavelmente em direção das portas, erguia-se terrível contra aquela inexplicável clausura, aumentava, subia, chocava-se contra os muros, embolava-se, agigantava-se, concentrava-se na clausura e potenciava-se, preparada para o que desse e viesse, para subverter fosse lá o que fosse, desencadeando-se como furacão.
Em meio dessa tempestade, sozinho no meio de tanta gente, um homem.
Guiado até aquele lugar pelas sábias combinações de forças da Divina Providência, aparentemente fortuitas e a que nossa ignorância dá o nome de acaso, esse homem, indiferente e com a aparência de quem estava muito longe dali, mas de fato presente e ativo em plena tempestade, esse homem escutava. Ressoava nele o rugido psicológico da multidão; mais de perto, porém, o impressionava a voz interior que, acima do turbilhão e vencendo-o, lhe falava. Parecia-lhe estar no centro do turbilhão, que era superado pela voz. Debatia-se arrastado pelo poder dessa voz, a que sua razão, lutando desesperadamente, debalde tentava resistir. Eis ó colóquio íntimo em meio da tempestade:
A voz: "Vamos. Chegou a hora. Está na hora de cumprires tua missão. Vamos. Agora ou nunca".
O homem: "Senhor, não vão compreender. Já to disse várias vezes. Não me seguirão. É tolice tentar de novo. Seria o mesmo que semear nova desordem é imprudente excitar multidão agitada, não quero ser o causador de males. Além disso, sinto-me cansado, incapaz, ignorado e só. Não posso dominar forças tão gigantescas".
A voz: "Está na hora de cumprires tua missão. Agora ou nunca. Deixa-me ir na tua frente. Segue-me ou então vou sozinho ao encontro do inimigo".
Na multidão preocupada consigo mesma ninguém prestava atenção aquele homem; ninguém o notara ainda, ninguém o conhecia. O furor da luta íntima causava-lhe ansiedade. O deslocamento das pessoas tinha-o levado até quase ao centro do templo, perto do altar-mor. De repente, achou-se ele diante de espaço livre, voltado para o centro da balaustrada. Impulso proveniente da multidão o atirou aturdido naquele espaço e como que um relâmpago o cegou. A luz do relâmpago lhe apareceu a figura de Cristo. Estava à sua direita e na sua frente. O homem então exclamou: "Domine, quo vadis[10]?" E, dirigindo-se ao povo, gritou ainda: "Cristo, Cristo! Eu vi o Senhor!"
A multidão voltou-se estupefata, ouvindo o grito inesperado, e ficou suspensa. Então, em pé, diante do cancelo da balaustrada, com a mão direita bem levantada, o homem falou. A multidão voltou-se para ele, ouviu, entendeu, escutou. Pouco a pouco a calma se transmitiu até aos mais distantes. E ele disse-lhes com voz retumbante:
"Irmãos! O caráter excepcional da hora exige métodos excepcionais e nos impõe segui-los. Nos tempos normais a forma domina a substância nos momentos supremos a substância domina a forma. De fato, este momento é excepcional. Falo-vos em nome do Cristo. Ele me trouxe até aqui e vive em mim, mais forte que eu. Não consigo resistir-lhe. No instante em que eu saía do meio da turba, os meus olhos viram o Senhor e Lhe perguntaram, como Pedro quando fugia de Roma: "Domine, quo vadis?" E o Senhor me disse: "Segue-me ou eu então irei sozinho ao encontro do inimigo. Hoje é o dia de minha batalha e hei de vencê-la desarmado. Em verdade, só desarmados é que vencemos os inimigos, sejam quais forem". Cristo, aqui presente, é nosso guia. Esta hora não é a da forma, mas a da substância; é a hora de distinguir entre a fé criadora dos mártires e a fé cansada e aparente dos adormecidos. O momento exige essa distinção. Quem está do lado do Cristo, não importa qual seja a forma humana, desde que verdadeiramente cristão, quer dizer, para a vida e para a morte, esse dê agora testemunho. Saia da multidão, entre em fila no corredor central, que está livre, e prepare-se para seguir Cristo, nosso guia".
O homem respirou fundo; depois, continuou:
"Não sabeis. Mas em duas palavras vos direi o que está acontecendo. Estamos presos neste templo. Suas portas estão fechadas por fora. Não podemos sair. Os que nos sitiam nos crêem ignorantes do sitio e colhidos de surpresa. No entanto, percebo as forças que nos cercam. Executando hábil e rápido plano, queriam apanhar hoje aqui reunidos o Pontífice e os maiores representantes da Cristandade, dentro de seu maior templo, para de um só golpe destruírem o primeiro, o segundo e o terceiro. Destruição física, símbolo da destruição moral da Igreja, lábaro da revolta a ser entregue ao mundo, primeira fagulha da nova barbárie do III Milênio. As forças do mal uivam às portas do templo, querendo entrar e destruir o germe, aqui presente, da nova civilização do III Milênio. Lá fora a praça está cercada de carros-blindados, de canhões e de metralhadoras; os primeiros, prontos a avançar e adentrar pelas portas, esmagando-vos e ceifando-vos no interior mesmo da basílica; os segundos, em condições de derrubar a cúpula e os muros; as últimas, prontas para metralhar na praça qualquer sobrevivente".
Gritos de terror explodiram na turba. Calmo, o homem continuou:
"Não temais. Cristo aqui está para defender Sua Igreja. Percebo o ânimo dos agressores entranhado nas máquinas de guerra, sua única força. Percebo em vosso ânimo o turbilhão do terror e o incêndio que minhas palavras provocam em vós. Percebo o ânimo do Pontífice, que conhece esse perigo e gostaria de descer à Praça e afrontá-lo antes de mais ninguém, gostaria de vir para junto de nós a fim de morrer conosco; mas foi impedido pelo seu séquito que, por natural e acertada medida de prudência, deseja pôr-lhe a salvo a augusta pessoa. Percebo, enfim, o vórtice de potência que desce do céu e exerce pressão sobre mim e sobre vós. É verdadeiro exército de forças inteligentes chamadas anjos. Precedem-vos, circundam-vos, defendem-vos. Eis que o imponderável se manifesta. Percebo o milagre iminente de nossa vitória nesta nova guerra travada sem armas. É o resultado lógico, natural e fatal da natureza e poder dos elementos em choque. Venceremos".
"O Espírito está agora conosco no templo e a matéria esta às suas portas, para destruí-lo. A dor despertou o espírito. Nós, que sofremos, sabemos disso muito bem. A batalha vai começar. A matéria assalta o espírito por meio da força e da morte. O espírito afronta a matéria, através da justiça e do amor. Este é o momento da suprema decisão. Aqui dentro está o Cristo; lá fora, o Anticristo. Estão frente a frente, cada qual com suas armas. Vencer ou morrer. Civilização ou barbárie, durante milênios. Estamos em cima da hora e este momento vai decidir. Chegamos ao momento supremo em que a História vai iniciar nova época e a vida, nova fase evolutiva estamos no instante exato da passagem de uma civilização a outra. Nossa adesão, o impulso de nossa vontade livre constituirão a gota que fará transbordar o cálice e estabelecerá novo equilíbrio no mundo. Podemos escolher. Podemos aderir-lhe ou repeli-lo. Mas o nosso destino grita-nos: agora ou nunca. Se negarmo-nos a decidir, durante milhares e milhares de anos choraremos sobre nossas vidas fracassadas. O momento, supremo, nos exige essa oferta; o mundo espera esse impulso a fim de passar dos caminhos da matéria aos novos caminhos do espírito. Ai daqueles que agora desertarem, ai de nós e de nossos filhos, se recuarmos covardemente".
"Avante! Sigamos Cristo. Demos o primeiro passo no caminho da ascensão, demos o primeiro lance rumo à nova civilização. Este primeiro passo, porém, pode começar apenas aqui, no túmulo de Pedro, em Roma, na Idéia de Cristo, da universalidade e unicidade dessa idéia central no mundo. A primeira centelha não é civil, mas religiosa, nasce da maturidade e não do enquadramento; não se origina do homem, cujos caminhos são exteriores e coativos, mas de Deus, cujos caminhos são interiores e espontâneos. O primeiro momento, o do impulso inicial, só pode ser místico: é contato direto com o Alto. Assim, recebido o impulso, a idéia universal, que emanou do Cristo, irá depois materializando-se pelos caminhos do mundo, diferenciando-se segundo formas particulares adaptadas aos diversos povos, será confiada aos cuidados de administradores cuja tarefa consiste em, segundo o espírito, acompanhar, organizar, plasmar a matéria. Mas sem esse elevado princípio regulador e sem essa força moral, os Estados serão organismos sem alma; os povos, arcabouços de ossos e músculos, mas desprovido de cérebro; e a organicidade moderna não permanecerá íntima e vital, mas exterior e opressora".
"O velho mundo da força bruta encontra-se lá fora, com poderosas armas homicidas. Aqui dentro, o novo mundo com a dinamite do pensamento, o poder do exemplo, a superioridade do espírito. O bem e o mal, o espírito e a matéria, hoje vão travar batalha decisiva. Deus é o bem. Satanás, o mal; porém, não prevalecerá. Não passa de instrumento de Deus e, esgotada sua função, se destruirá nas mãos d'Ele. Eu grito: Venceremos. Deus está conosco. Eis que o espírito sai dos recintos fechados das igrejas do mundo, impregna todas as coisas, invade e conquista todas as expressões da vida. Finalmente, o ciclo da matéria encerrou-se. A matéria cansou-se de tanta destruição. De acordo com sua própria lógica, percebe que os desastrosos resultados obtidos a colocam do lado do erro. Já percebe, embora confusamente, a própria debilidade e sente a reação iminente. Percebe o desejo que a vida manifesta de reequilibrar-se, atingindo de novo as fontes do espírito, e agarra-se às suas máquinas de guerra, ao ouro, aos mais baixos sentimentos humanos. Tudo isso, porém, completa e impiedosamente trairá aqueles que impiedosamente não crêem senão no direito do mais forte. Quem semeou loucura colherá loucura. Esta é a hora apocalíptica de sua destruição. A alma do mundo está despertando. A lei de Deus hoje diz: Basta! E prende de novo a besta em seu inferno. Vamos. Com o espírito venceremos".
Assim falou o homem. A multidão, que escutara, sucessivamente atônita, comovida, conturbada e extática, a multidão calava. Por fora, calma absoluta, mas o fragor do tumulto das almas ensurdecia. A multidão hesitou um instante só; em seguida, com muita ordem, calma e segurança, começou a entrar em fila ao longo do corredor central. Os voluntários do sacrifício eram homens, mulheres, jovens e velhos, de todas as classes, de cultura, educação, posição social, nacionalidade e, até mesmo, de religião diferentes, O apelo fora feito a todos, sem outra exigência senão a de ser simplesmente discípulo de Cristo, e muitos o atenderam: doutos e ignorantes, homens de ciência e homens de fé, patrões e operários, humildes e poderosos. Muitos. Até mesmo religiosos e religiosas, de várias Ordens, militares de todos os postos hierárquicos, campeões de todas as modalidades. Mesmo das fileiras do clero oficial, agrupado na abside do templo, alguns haviam entusiasticamente acorrido. Enquanto o multiforme cortejo se ia formando, o homem que havia falado olhava-o, rezando.
Antes de mover-se do lugar, ajoelhou-se diante do altar, em seguida pediu uma cruz ao clero do templo, não metálica, mas de madeira como a de Cristo e, assim, o mais pobre possível. Não encontraram; por isso, com duas tábuas improvisaram uma. Abraçou-a, beijou-a e começou a andar. Enquanto ia atravessando as fileiras dos que haviam respondido ao apelo, estes se iam colocando atrás dele, em silêncio e em ordem. Assim se formou o cortejo dos voluntários, dispostos a enfrentar o perigo desarmados, em nome de Cristo e em defesa do espírito, com o ânimo heróico e pacífico dos primeiros mártires cristãos. Não se tratava de enquadra mento sob coação, mas de adesão livre e espontânea de homens convictos. Todos iam acompanhando o homem que carregava a cruz e, caminhando lentamente, já chegara ao fundo da igreja, de modo a ficar em frente da porta principal, fechada por fora. No momento as forças do bem eram prisioneiras das forças do mal. Aí o homem parou, voltou-se para o mais próximo dele e disse-lhe: "Ajuda-me, irmão, a carregar a cruz, pois me faltam forças físicas e vou acabar caindo ao longo do caminho. Vou na frente. Minha cruz não é de matéria, é a cruz invisível do espírito”. O irmão compreendeu e apertou a cruz de madeira. Então o homem caminhou até encostar a mão na grande porta principal, virou-se e encostou-se nela, abriu os braços e ficou como se crucificado. Fitou a multidão, fitou o templo, elevou os olhos até à cúpula, orando e invocando, à espera. Nada. A multidão esperava a ordem de abrir a porta, do lado de dentro. Nada. Suspensos, todos esperavam um sinal, uma ajuda, a realização do impossível. Nada. Inopinadamente, porém, dos olhos do homem saiu um relâmpago que se transmitiu à multidão como se fosse descarga elétrica. Seus olhos fixaram-se em determinado ponto, em frente e à sua direita; pareciam estar vendo alguém; e começou a falar-lhe lenta e submissamente. Disse, chorando, três frases, mas nem mesmo os mais próximos o escutaram. Em seguida, afastou-se da porta, ajoelhou-se, beijou o chão, levantou-se e com voz retumbante gritou, dirigindo-se à multidão: "Cristo está conosco. Guia-nos. Sigamo-lo". Em seguida, voltou-se de frente para a porta, abriu de novo os braços, levantando-os bem e olhou para cima. E a multidão, em resposta, vibrava, acentuava e, como caixa de ressonância, ampliava tudo quanto sentia, multiplicando-o e difundindo-o pelo imenso templo. Assim, a invocação, que o homem dirigira ao céu, se tornou potente e se agigantou até ao ponto de transformar-se em irresistível turbilhão de forças. A terra parecia tremer. Não mais, porém, por causa de impulso destrutivo, mas pelo ímpeto do mundo a caminho da ressurreição.
XVII
VISÃO (2º TEMPO)
A espera não se prolongou muito. As altas tensões ou se transformam ou se rompem. Golpeada violentamente pelo lado de fora, a porta abriu-se. Escancarou-se. Fortíssima ventania entrou pela basílica adentro, raivando, como se a mão do ódio percorresse aquele oceano de cabeças à procura de vítimas; algo explodiu do lado de fora e foi quebrar-se contra o arco de círculo que circunda a praça. Depois, opressivo silêncio.
O homem, de braços abertos em cruz, avançou lentamente e transpôs a porta. Os demais seguiram-no. Colocado à esquerda da cruz carregada pelo irmão, ele abria o cortejo. Exatamente as forças do mal, escravas das do bem, tinham escancarado as portas para o cortejo sair a céu aberto. Assim, o cortejo atravessou o átrio e desembocou na praça. Enquanto isso, vários homens de armas em pé de guerra recuavam, às tontas, para os lados do átrio. As portas tinham sido abertas por eles a fim de que se começasse a matança; para isso, fizeram avançar vários carros blindados, com a intenção de fazê-los penetrar no interior da basílica; pensavam que a multidão ignorasse o cerco da basílica e, assim, essa inesperada surtida de gente ordeira e desarmada os colhera de surpresa. Não compreendiam essa nova e estranha coragem de homens desarmados, que afrontavam calmamente indiscutível perigo. O medo de alguma oculta insídia os mantinha suspensos. O inimigo não esperava essa mudança tão imprevista de situação. Na grosseira máquina psicológica, que estava dirigindo os homens da matéria, tardou muito a acender-se o relâmpago do pensamento, que, ao contrário, profunda e velozmente, iluminava a mente do homem que estava perto da cruz. Houve um momento de hesitação. Bastou esse pequeno atraso da ação, essa momentânea incerteza de diretrizes para reforçar e firmar a corrente de pensamento oposta e representada pelos homens do cortejo; na praça espalhou-se no meio dos inimigos sensação de místico terror. Algo, a que obedeciam, embora desconhecessem, os imobilizou; e os petrechos de guerra, potentes, tecnicamente perfeitos e prontos para a ação, ficaram paralisados a partir da primeira mola: o espírito.
Avolumando-se à medida que saía do templo, o cortejo, progredindo pela direita de quem sai, ia-se escoando ao longo do pórtico. Na frente caminhava o homem, ao lado da cruz e de braços bem levantados. Da multidão muitos lhe imitavam o gesto, como invocação suprema. Ele havia entoado em voz alta um ritmo grave e solene, repetindo a palavra-síntese daquela cena e daquele momento, da espera e da defesa: "Cristo". Esse brado ecoava na multidão, que, repetindo-o em todos os tons e através de milhares e milhares de vozes o transformava em poderoso clamor, que investia contra as colunas da praça e os muros da basílica, se derramava pela cidade eterna a fora e, finalmente, parecia explodir bem lá em cima. Milhares de mãos se erguiam, suplicando. Algo, como risonha bênção de Deus, parecia relampejar nos céus, brotada do hino de intermináveis legiões de anjos. E as armas calavam.
Nesse meio tempo, os homens de armas, em sua lógica psicologia simplista, já haviam decidido sustar momentaneamente a ação, para melhor divertir-se à custa de inimigo inerme, sem necessidade de pressa porque a presa estava garantida ou, numa palavra, por grosseira curiosidade de saber qual seria o fim de tudo aquilo; o homem perto da cruz percebia tudo e mantinha completo controle sobre si mesmo, pois conhecia muito bem, e dirigia, o fenômeno espiritual de que era o centro. De cabeça alta, cabelos ao vento, braços abertos e levantados para cima, como antenas receptoras, auscultava as correntes de pensamento. Primeiro, registrava as ondas longas, extensas e lentas, das radiações diurnas da luz solar, da terra, dos tijolos dos edifícios, da exuberância puramente animal dos homens de armas, da vida vegetativa da multidão, tudo isso nas entonações. mais variadas. Não era, porém, essa a voz que ele procurava cuidadosamente sintonizar; de fato, concentrava toda a sua atenção nas ondas curtas e rápidas do pensamento, com elas sintonizando-se em alta freqüência. Abria-se-lhes, com grande receptividade, e elas lhe chegavam com voz sutil e clara, que se elevava, como luz nas trevas, acima dos tons baixos e profundos, escuros e densos das outras vibrações mais materiais. Podia, desse modo, ouvir a voz, não percebida pelos outros, da alma dos homens de guerra; e, como não era ouvido por ela, podia controlar o perigo, logo à sua primeira manifestação, — o pensamento, sem o qual nada se põe em movimento. Assim, percebera também a decisão do Pontífice, que impusera a seu séquito a sua firme vontade de descer para junto do povo. E percebera, além disso, que outro cortejo, o do papa, se pusera em movimento, convergindo em direção da porta do templo, onde os dois cortejos se encontrariam. Por isso, o homem se sentia profundamente comovido por aquele brado da multidão, que repetia em coro a sua invocação: "Cristo, Cristo, Cristo", só uma palavra, nada mais, uma palavra clara e abrasadora, repetida em ritmo forte e tenaz, uma palavra em que a vida parecia gritar sua vontade de progredir para o alto. Em plena na tempestade, acima dos séculos, ele perscrutava através do Tempo para, finalmente, exultar com a futura vitória de Cristo, aquela vitória pela qual, dando-se a si mesmo também lutava. Haviam afrontado a morte e agora Deus os salvava. Esse exemplo constituía apenas o primeiro passo da grande e pacífica revolução espiritual. Esse exemplo mais tarde se multiplicaria e a fé sairia do interior dos templos, da prisão dos claustros, do cárcere das formas. A conquista de cada nova fase evolutiva significa expansão de Deus nos corações, é primaveril desabrochar de flores. Diante do exemplo de Roma, outras igrejas abririam as portas e deixariam sair outras multidões. O homem compreendia as conseqüências e o imenso alcance de sua atitude. Julgava-se tudo e, ao mesmo tempo, nada; bem no centro do turbilhão e do drama e, no entanto, só; sentia-se perdido, mas vitorioso; exausto e, apesar de tudo, fortíssimo. A debilidade residia em sua pobre condição humana; e a força, na visão de Cristo, que, invisível, o guiava.
Assim, o cortejo chegou ao fim da praça e desfilou diante do grosso dos carros blindados e dos canhões. Então, o homem que lhe estava à frente escutou mais atentamente e pôs em jogo sua receptividade no sentido de melhor compreender a psicologia do inimigo. Percebia que até mesmo os homens da guarnição dos carros blindados e dos canhões pertenciam à vida, eram vida e sofriam o império de suas leis. Advertiu que a natureza desses homens de tal modo se saturara de vibrações maléficas que eles mesmos lhe sentiam a perturbação, como peso contra o qual, por força da lei de equilíbrio, a vida reagisse, como negação contra que instintivamente se rebelava o ser desejoso do próprio progresso e não de autodestruição. Percebia, no subconsciente daqueles homens, ferverem vibrações antagônicas, de onde subiam para a consciência idéias contraditórias. Naqueles ânimos duas correntes de pensamento se digladiavam. Queriam vencer, mas odiavam aquela vida de bestas-feras. Não agüentavam mais. Nem a insensibilidade nem o hábito os defendia mais. As forças maléficas empregadas por eles saturavam-nos ao ponto de envenená-los; e a vida até mesmo neles queria viver. Tantos males e tantas dores haviam eles semeado, lançando-os contra tanta gente, que agora se voltavam contra eles mesmos, agredindo-os e sufocando-os Por isso, naqueles ânimos a reação se estava elaborando. Ao mesmo tempo, o imponderável exercia pressão no sentido dessa mudança. O homem do cortejo ouvia esse tempestuoso choque de forças, essa trágica maturação de almas. Tinha a impressão nítida de que o fenômeno estava quase atingindo seu ponto crítico e, dentro de uma fração de segundo, esse sistema de forças estaria decomposto; percebia que para lá desse ponto crítico, o fenômeno assumiria nova forma, isto é, o dinamismo se inverteria e as forças componentes se aplicariam em direção oposta. Essa precipitação de equilíbrios era iminente. Num átimo se desencadeariam as conseqüências exteriores e materiais.
O fenômeno já estava maturado. E eis que de repente o imponderável pareceu explodir e a luz se fez nas almas dos inimigos. A corrente construtiva da vida e do bem reconquistara a superioridade sobre a corrente destrutiva da morte e do mal. Aqueles homens não puderam resistir por mais tempo e renderam-se ao cansaço de seu mau modo de agir, sentiram nojo de si mesmos, compreenderam a inutilidade do homicídio, a estupidez em que o ódio se transforma, se considerarmos os objetivos da vida e a alegria de existir e amar. Compreenderam, então, havê-los iludido e traído o mal em que haviam acreditado; terem sido vítimas de miragem; e que o mal muito mais depressa envenena quem o pratica do que a pessoa que o recebe; aí, perceberam como a vida por eles escolhida era a vida de demônios e só seria muito mais bela na proporção em que a paz substituísse a. guerra, o ódio se transformasse em amor e o mal em bem. Aquele singular cortejo, a desfilar-lhes diante dos olhos, lhes falava desse outro mundo mais belo, em que agora até eles mesmos se esforçavam por entrar, e, também, do tipo de conduta, mais civilizado, de que se sentiam expulsos. Comparavam-se com os fiéis, que, desarmados, mas possuídos de coragem inaudita, afrontavam a morte, em paz, rezando; comparavam sua férrea disciplina militar com a disciplina livre e consciente daqueles homens convictos; e procuravam saber qual a força capaz de, sem armas, mantê-los assim, unidos. Teriam podido exterminá-los. Então, por que não faziam funcionar as máquinas de guerra? Por que a inusitada estratégia daqueles homens inermes triunfava e a força armada se tornava inoperante? Alguma coisa os paralisava. Que era? Onde estava e em que consistia esse imponderável a bloqueá-los assim? Sentiam-se enojados de si mesmos e das máquinas; indefinível descontentamento os impelia a odiá-las e a odiar, não os homens inermes e pacíficos que confessavam aquele Deus de todos, tanto de vítimas como de agressores, mas os petrechos de guerra e os inventores dessa maldita técnica de destruição e da morte. Não mais se sentiam convencidos da força que não vence pelo livre convencimento, mas oprimindo e sujeitando, ao observarem o espetáculo de seres livres, mantidos espontaneamente em estreita união por força totalmente diferente. Os homens de armas e os homens do espírito representavam duas experiências humanas opostas; e os primeiros percebiam, face a face com os últimos, que iriam precipitar-se no mais trágico e absurdo fracasso. No entanto, mesmo sem armas, que coisas grandiosas não se poderiam fazer apenas com o poder da fé e do amor! Aquela mesma praça, onde se encontravam, servia de exemplo. Os dois sistemas opostos de conduta humana ali estavam em plena ação e se defrontavam, desafiadoramente. Esse não passava de simples episódio da grande luta entre o bem e o mal. Este sentia, em presença do bem, a intima contradição que o inferiorizava.
"Por que atirar contra homens inermes? Com que fim?" Os homens de armas diziam de si para consigo: "Não são mais corajosos do que nós? Não seríamos covardes, se os matássemos? Não temos a mesma coragem que eles nem somos capazes de fazer o que fazem. são, pois, mais fortes. Contudo, que força é, pois, essa sua que lhes permite não dar atenção à nossa, ao ponto de enfrentar-nos, completamente desarmados? Procuremos, pois, contato com eles e, se for possível, conquistemos essa nova força cujo segredo não sabemos. Esses homens não nos odeiam, não querem ser e nem mesmo são nossos inimigos. Mas, então, por que esse absurdo de odiar quem não nos odeia e agredir quem, sem arma alguma, se expõe a nossos golpes? Não! Basta. De agora em diante, não matemos mais, não odiemos mais. Como eles, também nós temos alma. Daqui por diante, não seremos mais apenas número, instrumento, máquina, escravos do terror!" Assaltou-os, então, irresistível necessidade de encontrar algo mais inteligente, mais vital e consciente, mais elevado, mais livre e adequado, irresistível necessidade de autonomia, de ouvir novamente a voz das grandes idéias que constituem a base da vida e o apelo de Deus. Novo desejo galvanizou-os, as forças do mal, que se derramavam na hora histórica, naquela multidão, no mundo, derramavam-se também sobre eles. O imponderável, que tudo movia, também a eles envolveu e arrastou. O instinto vital movimentou-os, impeliu-os. Saíram dos carros, abandonaram canhões e metralhadoras, aproximaram-se, incorporaram-se ao cortejo, acompanhando a cruz sob a universal invocação de Cristo.
Agora o fenômeno tendia lógica e espontaneamente para a conclusão. Engrossado cada vez mais por novos adeptos e depois de haver feito a volta completa do pórtico, o cortejo já se aproximava do átrio e da porta principal, a fim de reentrar na basílica. O homem, que estava à testa do cortejo, chegou primeiro. O Pontífice, tendo descido ao templo, esperava-o de pé, sozinho, destacado de seu séquito, na porta da basílica. Quando o homem, acompanhando a cruz, chegou bem perto, o Pontífice disse-lhe, estendendo-lhe os braços:
"Meu filho, você salvou a Igreja".
Pai, respondeu: "Cristo fundou hoje a nova e universal civilização do espírito. Trago-vos a legião dos que primeiro o afirmam, os voluntários do sacrifício, a fim de a conduzirdes ao túmulo de Pedro, ao altar de Cristo".
Disse e ajoelhou-se diante da soleira da porta e beijou-a perto dos pés do Pontífice, que o abençoou. Depois, pondo-se de lado, perto do estípite direito, assim falou:
"Irmãos! Antes de separar-me de vós, quero deixar-vos estas três idéias:
“1º) Minha missão está cumprida. Deixai-me desaparecer na sombra. Da sombra saí e para a sombra retorno. Não penseis em mim, que não passei de miserável instrumento. O importante é apenas que a semente atirada ao solo germine e frutifique.
“2º) Respeitai a autoridade, como superior principio orgânico e, por isso, elemento de vida e de evolução; dai exemplo dessa ordem em. que consiste o futuro do mundo. Respeitai, também, por isso, a autoridade da Igreja. Não julgueis. Deixai a Deus o encargo de julgar os homens. Não penseis neles, meros instrumentos, mas em Deus que tudo dirige, nem naquilo que dizem ou fazem, mas naquilo que Deus diz ou faz, por meio deles como por meio de toda a humanidade.
“3º) Ide pelo mundo, ó voluntários do sacrifício, homens da primeira hora, fundadores da nova civilização do III Milênio. Fostes escolhidos porque enfrentastes a prova e a vencestes. Sede sacerdotes do espírito. Não busqueis a força. O poder da justiça é poder que a supera; não há fraqueza maior do que a injustiça. Se fordes justos a. força irá ao vosso encontro; caso contrário, trair-vos-á. Vossas armas de conquista devem ser: retidão, bondade, sacrifício, amor. Os imponderáveis do espírito tornar-se-ão verdadeira potência dentro de vós, se, ao invés de pregá-las apenas com palavras, viverem em vosso exemplo, se seguirdes Cristo, vibrando apaixonadamente na vida ativa. Semeai com entusiasmo e não com incerteza e desânimo. Antes de dar torna-se necessário possuir e para possuir é preciso já ter conquistado vitórias dentro de si mesmo e através de esforço pessoal. Vivei no mundo, mas seguindo a Cristo. Falai como Ele, isto é, pelo exemplo. Hoje vencestes a matéria, pois desarmados enfrentastes a morte. Começastes pelo exemplo; continuai dando o exemplo. Não adianta parecer; é preciso ser. Se a consciência nos condena, de nada nos vale haver conquistado os aplausos do mundo. Não sejais ricos por fora e pobres por dentro; sede, isso sim, ricos por dentro e pobres por fora. O objetivo da vida é ascender. Conquistai qualidades, que constituem tesouros inalienáveis, e não bens materiais, que se perdem. Ascendei e ajudai a ascensão alheia. Sede sempre construtores, afirmando, e jamais destruidores, negando. Não é com máquinas de guerra nem com as armas da lógica e da polêmica que vencemos o inimigo, mas compreendendo-o e abraçando-o. Antes de exigi-los. dos demais, exigi de vós mesmos a fadiga, o dever e a prática das virtudes. Primeiro, reformai-vos; depois, isso, sim, podeis pensar na reforma de vossos semelhantes. Seja esse o segredo de vosso poder. Mantende-vos ágeis, ligeiros, vivos no espírito, bem próximos das fontes; temei as incrustações,. as cristalizações, as deformações, os acomodamentos, o farisaísmo que é moléstia psicológica de todos os tempos, a fossilização senil de todas as religiões. A forma não deixa de ser necessária, mas acomoda e adormece. Primeiro, buscai a substância, que é a alma de todas as coisas. Do contrário, sereis apenas cadáver, foco de infecção que propagará a morte. Só o espírito é vida. Lembrai-vos disto: jamais mentir manter-se vigilante; jamais pactuar com o mal; jamais acomodar-se. Quem mais possui mais sabe e mais autoridade tem e, em conseqüência, não tem mais direitos do que os outros, e sim mais deveres. O mundo tem fome de verdade: deveis nutri-lo, vivendo a verdade. Sede instrumentos da criação, operários de Deus, seus colaboradores na construção e no progresso. Semeai e a semente germinará, produzirá novas sementes e através delas nascerá de novo. Ide pelo mundo e semeai no tempo a nova civilização do espírito".
O homem calou-se e mostrou o Pontífice aos fiéis, a fim de que estes o seguissem. Em seguida, afastou-se e desapareceu no meio da multidão. O Pontífice recusou-se a sentar de novo na sede gestatória, em que chegara até à porta do templo, fê-la afastar-se juntamente com o seu séquito e a pé, mais triunfante ao lado da cruz de madeira, colocou-se à frente do cortejo, que voltou vitorioso à nave central. E. assim até ao altar-mor. Aí, o Pontífice mandou tirar a cruz de ouro e prata que brilhava no centro do altar e pôs no seu lugar a pobre cruz de madeira, vencedora da grande batalha. Depois, devagar, porém, com entusiasmo, executou até o fim o ritual sagrado, como estava previsto.
O cortejo dos voluntários vitoriosos havia-se enfileirado ao redor. Todos os que compunham tinham entrado no templo: homens, mulheres, jovens e velhos, de todas as classes, de educação, cultura e posição social diferentes: doutores e ignorantes, homens de ciência e de fé, patrões e empregados, humildes e poderosos. Havia também religiosos e religiosas de todas as Ordens, militares de todos os postos, expoentes de todas as castas. Aí estavam os voluntários do clero oficial, saídos das fileiras grupadas na abside da basílica. Estavam representadas as nacionalidades e as religiões mais diferentes. Havia também os adesistas da última hora, que aumentaram as fileiras e, finalmente, os homens de armas, saídos das máquinas de guerra e pelo exemplo convertidos ao amor de Cristo. O apelo fora universal e, assim, todos reentraram no templo, seguindo a Cristo e agora unidos sob a Sua cruz.
Essa concórdia do mundo, que após dois mil anos de luta, e quase no limiar do terceiro, mais uma vez reencontra a Cristo; o espetáculo dessa multidão, a princípio massa confusa, agora reconstituída de acordo com nova ordem e unidade mais vasta; esse triunfo final do anjo sobre a besta e do espírito sobre as armas embotadas da matéria; tudo isso constitui o último lampejo da luz em que, em gloriosa apoteose, esplende esta visão. No esplendor desse último lampejo, a visão deteve-se, imóvel, pequena fração de segundo. Depois, como cometa que riscou o firmamento, a luz se apagou lentamente e desapareceu, deixando atrás de si luminosa esteira.
XVIII
COMENTÁRIOS E PREVISÕES
Essa visão também podemos entendê-la como expressão do drama do imponderável. Mais do que pessoas, falam-vos forças ativas, mais sábias e capazes que as pessoas. Essas forças, de acordo com o pensamento da Lei, enquadram-se e movem-se disciplinadamente como soldados; influindo e por sua vez recebendo influência, como binômio de ações e reações, funcionam organicamente e dirigem-se ao objetivo determinado. Conforme a sua natureza e poder, coordenam-se como se fossem sinfonia orquestrada para numeroso conjunto musical. Também na luta guardam proporção; seus desequilíbrios desaparecem em novos equilíbrios, sua dissensão se resolve em harmonia. Essa circunstância dá sensação de musicalidade ao desenvolvimento do sistema. Toda força tem personalidade inconfundível; é fenômeno distinto, embora combinado com outros; entrelaça-se, sem misturar-se; reage de acordo com trajetória e lei de desenvolvimento próprias e obedientes à lógica fornecida por sua natureza, potência e objetivo. Aí estão a matéria e o espírito, a Igreja e o homem, Cristo e a multidão, o bem e o mal, as forças biológicas e o destino do mundo. E esse drama emerge do fundo da evolução humana e dos destinos da vida em hora histórica apocalíptica.
Dai se vê como o imponderável pode oferecer-nos novos motivos a explorar, desde que a arte queira apossar-se do imaterial, onde o espírito pode em qualquer terreno fornecer modelos de primeira plana, segundo o conceito de elevada estética. Poder-se-iam assim expressar os dramas do abstrato, em que as forças imponderáveis agiriam como seres vivos e funcionariam como realidade objetiva. Todo progresso, inclusive o artístico, apenas pode consistir em aproximarmo-nos cada vez mais das fontes da vida e, como o objetivo da arte consiste na expressão, em exprimir cada vez mais claramente o pensamento divino existente na intimidade das coisas. Nova arte, a do imponderável, poderia desse modo penetrar cada vez mais profundamente na realidade e revelar-lhe cada vez mais os íntimos mistérios. Exprimir, revelar, tornar perceptível tudo o que, na imaterialidade do espírito, escapa aos sentidos sempre constituiu função da arte. Portanto, tudo isso para ela não passa de conseqüência natural de seu desenvolvimento lógico. Compete-lhe dar expressão ao inexprimível, tangibilidade ao imponderável, tornar perceptível o evanescente mundo das forças e das idéias. A arte será tanto mais legítima quanto mais fielmente cumprir essa função de transportar o céu para a terra, de criar contatos com o divino. A isso se reduz todo o seu valor educativo no sentido mais elevado do termo isto é, evolutivo, instrumento de espiritualização Depois do atual período de iconoclastia artística, a nova arte do imponderável será a arte da nova civilização do espírito. O homem sensível poderá assim roubar aos céus novas belezas e trazê-las para o mundo, tornando mais compreensíveis as sutilezas das coisas espirituais. A gênese de tudo está na parte interna, no espírito, em Deus; as coisas excelentes e poderosas brotam das profundas nascentes da vida. A técnica está na periferia, na superfície, na forma. A inspiração vem do centro, da profundidade, da substância. A análise destrói, a síntese constrói, a forma causa a morte, o espírito vivifica.
Mas essa visão podemos entendê-la ainda sob outro aspecto, quer dizer, como plano de combate. O espírito não vence por acaso. O milagre de sua vitória aqui fica logicamente explicado, estudadas as forças em que essa vitória se baseia, a estrutura de seu sistema e a lei de seu desenvolvimento. Esse drama representa apenas um momento do imenso drama humano da luta entre o bem e o mal. Vemos o passado e o futuro, o involuído e o evoluído se defrontarem em batalha decisiva, que o evoluído ganha por força dos próprios princípios da Lei e da vida, tais como os expusemos nos capítulos precedentes. Isso constitui a nota dominante deste trabalho, de que essa visão pode considerar-se o ponto culminante. Também aqui se vê o mal posto a serviço do bem, isto é, funcionando como resistência excitadora de reações, que faz o triunfo nascer no campo oposto. Assim, a Lei, sem constranger-nos, nos induz a conquistar o nosso próprio bem à custa de nosso próprio esforço; assim, o mal, reabsorvido e anulado, se transforma finalmente em bem. Notemos por último, que a nova civilização do espírito não nasce sem defesa, mas armada com novas armas, pois a luta, elemento vital, subsiste, embora se tenha transformado ao transferir-se para plano mais elevado. Todos necessitam de armas e defesas; porém, como a nova técnica difere da atual! A que vimos vencer no momento crítico da primeira manifestação da nova civilização será a mesma a defendê-la, mais tarde, no decurso de seu desenvolvimento e execução. Trata-se de novo princípio defensivo, de método e estratégia diferentes dos que hoje seguimos; trata-se de novo modo de conceber a vida e guiar-lhe as energias. Assim centuplicamo-lhes o rendimento. A conversão dos homens de armas não significa apenas reação destrutiva por parte das forças protetoras da vida nem apenas a exaustão de uma fase a que se deve retornar depois de percorrido o período oposto; representa, isso sim, revolução biológica, degrau mais alto da conquista evolutiva; não é conversão momentânea de alguns homens, mas a conversão da força à justiça, da matéria ao espírito.
Observemos agora a posição e o significado dessa visão no desenvolvimento conceitual deste volume e em relação aos demais com que se relaciona. Aliás, já no prefácio foram todos reunidos em duas séries ou trilogias. A primeira compreende: 1) Grandes Mensagens e A Grande Síntese; 2) As Noúres; 3) Ascese Mística. A segunda: 1) História de um Homem; 2) Fragmentos de Pensamento e de Paixão; 3) A Nova Civilização do Terceiro Milênio. A primeira trilogia encerra-se nas últimas páginas de Ascese Mística com a previsão da guerra atual. Esse ciclo é, pois, de preparação e representa o prenúncio do cataclisma e o esquema da nova civilização. O segundo podemos chamá-lo executivo e reconstrutivo e aprofunda esse esquema no que diz respeito ao seu aspecto humano. Trata-se de dois pensamentos diversos, de duas perspectivas diferentes, a do "antes" e a do "depois", a de quem se prepara para a prova e a de quem já vai saindo dela. A guerra mundial de nossos dias se situa no meio das duas trilogias. Desse modo, para nós essa guerra tem valor mais profundo que o de simples acontecimento político, pois, vista em sua substância biológica, nos mostra seu verdadeiro significado e objetivo. É mais fácil intuir o atual conflito, em suas causas íntimas, do que compreendê-lo racionalmente, em seus aspectos exteriores; isto é, concebemo-lo no seu sentido moral e evolutivo, bem mais elevado do que os demais dizem e sabem. A guerra nos aparece, assim, como um assalto do mal a serviço do bem, desejada pela ignorância humana e permitida por Deus como útil prova; deve, assim, entender-se como destruição reconstrutiva, condição de renascimento e preparação da nova civilização do 3º milênio. O conflito permanece, pois, ambientado no desenvolvimento histórico da época de que forma o acontecimento culminante e decisivo. O próprio conceito de "vitória" assume aqui significação muito mais vasta do que a comum, devendo ser compreendida como vitória no espírito. Eis o significado da visão: a vitória final não dos homens, mas de Deus. Nos equilíbrios da vida apenas o resultado político não basta para justificar tantas dores dos povos, tantas perdas de bens para todos e tão violento esforço da humanidade. A vida nada faz sem finalidade e o objetivo que deve atingir deve ser proporcional ao trabalho por ela desenvolvido. Isso é conseqüência evidente na lógica da Lei. Esta nos diz que a vida não fracassa, não perde tempo e, de acordo com sua economia, proporciona os resultados o esforço necessário para atingi-los. O homem é ignaro e se guia pela eterna sabedoria de Deus. Já o demonstramos à saciedade. Todas as dissensões e lutas do homem são apenas fadigas evolutivas; suas dores, provas; suas vitórias e derrotas, provações para conquista de consciência; vencedores e vencidos não passam de colaboradores do progresso humano e lutam entre si apenas para criar na luta a atividade formadora, do mesmo modo que, bem ou mal, todos são, para felicidade geral, servos de Deus. Para o bem geral porque, no caso-limite do malvado incorrigível e por isso condenado à dor eterna, a Lei, movida por piedade suprema, inseriu a autodestruição na estrutura mesma do sistema; assim, o rebelde empedernido acaba como tal sendo reabsorvido por aniquilamento.
Dois conceitos predominam na primeira trilogia; ei-los: 1) a iminência de tremendo cataclisma mundial e de período de grande dor e destruição; 2) a preparação de nova civilização do espírito, à qual tanta ruína material dará nascimento. O primeiro acontecimento (anunciado quando ameaça alguma pendia sobre o mundo e as comodidades da vida serviam de fundamento à concepção materialista) verificou-se plenamente, com todas as tintas carregadas com que foi descrito. O segundo acontecimento, que parecia anacrônico quando anunciado como problema de vida e de morte e colocado como fundamento de A Grande Síntese, está hoje tornando-se atual, pois, convulsionadas as velhas diretrizes, o mundo procura outras. Hoje que o ciclo da espera foi superado por experiência viva, convém, porque estamos no limiar de nova civilização, reler o pensamento dos volumes da primeira trilogia, extraindo os trechos mais convincentes desse argumento. Ei-los. Foram extraídos de publicações impressas, com data conhecida e são documentados por elas.
Grandes Mensagens. Mensagem do Natal, 1931 "Grande revolução se aproxima na história do mundo... Vosso progresso científico... acumula energias, riqueza, meios para nova e terrível explosão..." — idem: "Observo lento, mas constante, aumento de tensão, como prelúdio da inevitável queda do raio... Já se foi o tempo em que, como os povos viviam isolados uns dos outros, os cataclismas da história podiam ficar circunscritos; hoje não." - Mensagem da Páscoa da Ressurreição, 1932: "A psicologia coletiva pressente confusamente grande mudança de diretrizes... — idem: "... Ousai, abandonando velhos atalhos, porém não ouseis às doidas e exatamente nos pontos em que não tendes motivo para ousar; ousai em direção dos céus e nunca tereis ousado demais. De vossa crise, crise dolorosa e profunda, nascerá o novo homem do 3º milênio... Neste resto de século se decide o 3º milênio. Ou vencer ou morrer . — Mensagem aos Cristãos, por ocasião do XIX centenário da morte de Cristo, ... Vossa união forme barreira contra o mal que está na iminência de desfechar tremendo assalto. Grandes lutas exigem grandes unidades..." — idem: "A humanidade caminha inexoravelmente para as grandes unidades políticas e espirituais".
Reportemo-nos agora A Grande Síntese, primeiramente publicada, em capítulos, na coleção de revistas de janeiro de 1933 a setembro de 1937. Cap. V: "A mente humana procura um conceito que a impressione vivamente, conceito elevado e mais profundamente sentido, capaz de orientá-la rumo à iminente nova civilização do 3º milênio..." — Cap. X: "Conseguireis produzir a energia necessária para a desintegração atômica, isto é, a transformar a matéria em energia. Vossa vontade conseguirá penetrar na individualidade atômica, alterando-lhe o sistema". — Cap. XLII: "A nova civilização do 3º milênio está iminente; urge, por isso, lançar-lhe as bases conceituais..." — idem: "Há um superamento imposto pela evolução da humanidade neste momento histórico de que está para nascer a nova civilização do 3º milênio..." — Cap. XCVII: "As leis da vida, adormecida em ritmo igual durante milênios, receberam repentino choque e estão hoje despertas para lançar-vos rumo à nova civilização do 3º milênio..."- Cap. "Despedida": “Este é desesperado apelo à sabedoria do mundo”... A civilização moderna lança a semente com vertiginosa velocidade e espera a fabricação intensiva de sua futura dor. Será a dor de todos. Poderá tornar-se maré' montante que destruirá a civilização. Os meios estão prontos para que hoje um incêndio se torne mundial... Se um princípio coordenador não organizar a sociedade humana esta se desagregará no choque de egoísmos. Falei em momento crítico, numa curva da história, na aurora de nova civilização... Enquanto na terra existir um só bárbaro, tentará rebaixar a civilização até ao seu próprio nível, invadir e destruir para aprender. As raças inferiores logo não se impressionarão mais com a superioridade técnica européia e. se apossarão dela para, em seguida, agarrar o velho patrão pelo pescoço... Que os justos não temam...
Estes conceitos se desenvolvem e afirmam no volume As Noúres, Cap. IV: “... O momento histórico é grave, solene, rico de valores em putrefação e de germes em febril desenvolvimento, como nos tempos messiânicos... percebo as correntes espirituais do mundo e tenho a nítida sensação de próximas e novas diretrizes do pensamento humano, que levarão de vencida as resistências de todos os misoneísmos...” — idem: “... Toda a Europa se arma e, todavia, treme diante do espectro de uma guerra que poderia, percebe-se, marcar-lhe o fim da civilização... Uma fronteira dividirá de ponta a ponta a Europa em duas partes, a da ordem e a da desordem, em cuja defesa lutarão de maneira concreta as forças cósmicas do bem e do mal. Se as forças desagregadoras do mal vencerem as forças construtivas do bem então as portas da Europa desorganizada ficarão escancaradas diante da ameaça imensa da Ásia, dragão gigantesco e terrível que já levanta a cabeça, espreitando a presa suculenta. ;Cega-o, porém, a. luz que vem de Roma, centro espiritual do mundo." — idem: "Percebo a iminência de grandes e tremendos acontecimentos mundiais, ouço longínquo fragor de tempestade, imensos vagalhões que ameaçam a grande civilização, embora pouquíssimas pessoas o vejam e saibam. Implorei que soubessem e vissem. Nesse ar pesado de ameaças em que o mundo se debate às tontas; meu espírito acabrunhado não encontra repouso..." — Cap. VI: “... O momento histórico é grave. Tempo algum jamais viu preparativos de maturações tão solenes como os dos dias atuais. Estamos numa curva da história do mundo. A humanidade está lançando as bases do novo milênio, está pondo na mesa a carta de sua salvação ou de sua ruína... É necessário dar de novo à Europa a consciência da unidade de civilização e de destino...".
No volume Ascese Mística, Cap. XIV (Primeira Parte): “... vejo as ameaças que pendem sobre esta hora; eles, porém, as ignoram..." — idem: “... Porque nova civilização deverá nascer e é necessário sacrifício para prepará-la; será novo ciclo histórico que formará nova raça..." — Cap. XIII (Segunda Parte): "Antigamente, em épocas de calma, de inércia espiritual, podíamos silenciar e viver de acomodamentos; mas, hoje não, com o inimigo às portas. Estamos em armas. A História prepara tremenda descarga de dor. Não é destruição, mas renovação. Não temamos..." — idem: "Espiritualmente o mundo já está em chamas. Nestes momentos não é licito cruzar os braços e permanecer como espectador, pois a tempestade atinge a todos. Os neutros acabara-o sendo envolvidos e terminarão como escravos..." — Cap. XVII (Segunda Parte): "Ouço a perseguição da hora, o iminente precipitar dos equilíbrios, a tempestade raivando as portas, ouço a voz de Deus que anuncia a maturidade do tempo. Gritam os sinais interiores... No céu da história aparecem as procelárias prenunciadoras, as sentinelas da vida acordam e dão o brado de alarma." — idem: "Ouço profundo rufar, cadenciado, incessante; ouço o passo do tempo que marcha com cadência fatal... Estamos atravessando momentos muito graves... Já passou o tempo de explicar e demonstrar. Esse trabalho já acabou. Chegou a hora do embate físico e tangível, que a todos atinge e a todos envolve... Torna-se necessário que o mundo aprenda novamente a pregar; se confraternize na humilhação e na desventura e reencontre seu Deus já esquecido... Aqueles que têm Cristo no coração não devem temer. A tempestade purificará." — idem: "É indispensável, pois, o infortúnio para que o espírito tire até o último véu e apareça nu diante de Deus?... Então, o destino bate às portas da história... Desfeita, a ordem ética levará à ruína..." — idem: "... não posso ficar quieto porque minha alma ouviu as notas do clarim, o grito de guerra!... Nas grandes curvas da história a terra deve ser dolorosa e profundamente revolvida, a fim de ficar preparada para nova sementeira..." idem: "... Hoje já esvoaça nos espíritos vago pressentimento da nova civilização do 3º milênio, em que a Igreja se tornará de fato poderosa e invencível, pois nessa ocasião será formada apenas de espírito".
A parte final daquele volume, Cap. XXVI (Segunda Parte), citado no prefácio do volume seguinte — História de um Homem, nos afirma cada vez com mais certeza: "Esta hora é de intensa atividade para todos. Não pode parar. Preparada há tempos, precipita-se agora. Tenho medo de olhar... Agora se desenrola diante de mim a visão da terra e do céu... a terra treme convulsa no pressentimento de indescritível tufão... Vejo um turbilhão de forças que se projeta em direção da terra e vejo, também, a terra dilacerada, descomposta, submersa em mar de sangue. E escura a hora da paixão do mundo... As forças estão prontas para desencadear-se no choque fatal. Aproxima-se a hora das trevas do mal triunfante, da provação suprema... O drama. aproxima-se, percebo-o... Nesse momento senti a terra tremer. Dentro de mim está a visão do real. Senti, mesmo, a. terra tremer".
Essa sucessão de visões e previsões cada vez mais angustiosas, inclusive esta última, escrita em fins de 1938, conclui com o testamento espiritual do protagonista de História de um Homem, concluída em começos de 1942. E a primeira parte da segunda trilogia, isto é, do ciclo da reconstrução. Naquele momento, tendo-se já desencadeado a tempestade prevista, a visão do autor sobe acima dela para, ao invés, contemplar a nova aurora, explicando seus primeiros sinais e dando-nos do drama a solução que hoje se prepara. Esse testamento espiritual diz (Cap. XXX): "Estudai no grande livro da dor; sabei sofrer se quiserdes progredir... É bom que o mundo sofra; assim, poderá aprender e avançar... fora da dor não há salvação. Ninguém escapa desta lei fundamental. Mas, depois, da paixão e da cruz vêm a ressurreição e a vitória do espírito. Deixo-vos o aviso de que a aurora da nova civilização do espírito está na indispensável paixão do mundo." - E assim conclui o prefácio acima referido: "Este volume (História de um Homem), escrito... em meio à tempestade prevista, se encerra, pois, com o prenúncio da aurora de novo dia. Depois da destruição, a reconstrução; depois da dor, a alegria de vida mais sublime; depois da indispensável paixão da guerra desponta a nova era do espírito. Este livro é, pois, o da ressurreição. Se é o livro da provação e do sofrimento, é também o da esperança, da vitória do espírito e do bem. O fatigante labor da ascensão neste livro toma grande impulso; transforma-se, para o indivíduo, na história do protagonista e, para o mundo, na consciência da atual situação apocalíptica. Ao contrário, na cena de terror e de paixão que encerra o livro Ascese Mística, este volume conclui invocando e chamando, das entranhas das maturações biológicas, o homem novo, de espírito consciente, e anunciando e saudando a aurora da nova civilização do 3º milênio. (Natal de 1941)". "Porque é fatal", conclui o volume, "que a ascensão se realize, não obstante toda a inconsciência e resistência do mundo; é da Lei de Deus que o espírito vença a matéria, a luz vença as trevas, a alegria vença a dor, o bem vença o mal, Deus triunfe de Satanás".
Aqui terminam as citações. Agora poderíamos observar: os acontecimentos históricos, desenvolvendo-se, se transformam de tal maneira que seus próprios artífices devem aos poucos afastar-se da orientação primitiva e acabam muitas vezes por chegar onde não imaginavam. Cada ato do drama suscita novos e inesperados fatos e aspectos, que desfazem os planos humanos, revelando-nos novos misteriosos fios da História, impossíveis de total entendimento senão quando o ciclo se completa. Podemos, então, perguntar-nos: o homem dirige a História? Muito bem. Como pode fazê-lo, porém, se ignora os futuros desenvolvimentos e seus planos muitas vezes não têm valor algum? Não. O homem não dirige, apenas tenta dirigir a História. Outras forças inteligentes dirigem-na; são os seus planos que atuam. Existem, naturalmente, diretriz e planos próprios; tanto assim que os vemos tão logo um acontecimento se processa. Acreditamos caminhar rumo a determinado objetivo e, no entanto, vamos em direção de outro, de cuja existência nem suspeitamos. Mas outros hão de sabê-los por nós. Em conseqüência: a História se desenrola e tem lógica, não pertence aos homens que acreditam elaborá-la. Então, se ignoram quais os objetivos que de fato buscam, não passam de simples instrumentos. Acontecimentos aparentemente contraditórios não têm esse caráter no plano divino tão cheio de finalidades que nos escapam à percepção. Ao lado da História aparente há outra, mais profunda, História substancial, que só muito tarde conseguimos ver, quando não acontece não a vermos jamais. No caso de nossos dias certo é haver a guerra, através da dor, provocando um processo de sofrimento espiritual condicionador de grandes renovações. Não é nesse sentido, porém, que estamos falando. É licito perguntar-se: Na complexidade de maturações que derivam de fenômeno tão profundo como o atual conflito, os homens, através do que acreditam estar fazendo, sabem o que de fato estão fazendo e aonde vão acabar chegando? Além do plano humano por eles dirigido, conhecem o plano divino que os dirige?
XIX
O SERMÃO DA MONTANHA
Antes de enfrentar novos argumentos e novas ampliações, ainda algumas observações a respeito de questões já tratadas. A precedente Visão parece comentário e reforço das palavras de A Grande Síntese, no cap. XLII ("Nosso Objetivo - A Nova Lei"): "Aí onde o mundo, com perspectivas cada vez mais desastrosas, se arma contra si mesmo, com instrumentos tão terríveis, em face dos modernos progressos científicos, que nova conflagração extinguirá na terra o homem e a civilização; aí onde o homem age desse modo, existe apenas esta possibilidade de defesa: o abandono de todas as armas. Mais tarde veremos como".
Neste livro vimos como. Não só neste, mas em qualquer campo de atividade humana, raciocinando objetivamente e, principalmente, observando os acontecimentos e descrevendo-os no que têm de essencial, sem apriorismo e sem outra referência senão a realidade intima das coisas, acabamos por chegar ao Evangelho. Quando atingimos a intimidade das coisas, a voz dos fenômenos coincide com a voz de Deus e surge a ordem universal que, num só sistema, os reúne a todos, desde a matéria até ao espírito. Vamos agora focar nossa atenção especialmente nesse sublime pensamento do Evangelho, de sabor sobre-humano e que, provindo embora de fontes completamente diferentes e sendo produto resultante de outras elaborações, todavia coincide de maneira tão surpreendente com a ciência e a sociologia sadias atingidas por quem saiba ler no grande livro da vida. Essa coincidência constitui confirmação e prova. Essa ressonância mostra como o pensamento aqui desenvolvido se sintoniza com ritmo espiritual dos mais profundos da vida, para o qual converge o consenso da maior e mais adiantada parte da humanidade. Assim, a ciência e a fé coincidem, significando em substância a mesma coisa; a ciência interpreta a fé e a fé interpreta a ciência: assim se mostra, mesmo ao homem prático, o valor utilitário do Evangelho.
Nos capítulos anteriores, ao analisarmos o fenômeno econômico, vimos como pequena riqueza, sadia e robusta porque honesta e justa, pode, por força da duração e do rendimento, valer muito mais do que enorme riqueza, doente e fraca porque desonesta e injusta. Assim, a análise das forças motoras do fenômeno nos permitiu introduzir na economia esse fator moral, que normalmente é expulso dela, isto é, estender a economia política até à economia moral do Evangelho. Trata-se de economia muito mais vasta, de que passam a participar numerosos elementos vitais, a que doutro modo não se daria importância. Só assim podemos atingir a essência do fenômeno econômico, que é também psicológico, biológico e moral; analisando-lhe o dinamismo podemos atingir o novo conceito de higiene econômica, de patologia e profilaxia econômicas. Estudando o sistema de forças do fenômeno, podemos determinar-lhe a anatomia e, reduzindo-a à substância de seu íntimo dinamismo, podemos descobrir-lhe defeitos estruturais, de modo a mostrar-se, na realidade, péssimo o que nos parecia ótimo, porque nos revela a devastação interior que o sistema clássico de economia não sabe revelar-nos. Assim também neste campo chegamos ao Evangelho e descobrimos novo utilitarismo, mais sólido e menos ilusório, mais evoluído, socialmente mais harmônico e profícuo. Então, o homem se torna verdadeiramente senhor do dinamismo do fenômeno, pois adquire consciência de seu funcionamento. Chegamos desse modo a muito mais completa e substancial disciplina das relações em que reside a ciência do futuro, disciplina necessária porquanto a convivência constitui fato insubstituível e cada vez mais ponderável e necessário. Assim, a ordem social se fortifica, penetrando até mesmo nos motivos, transformando-se de edifício exterior formal em edifício interior substancial. Chegará o dia em que o furto, a desonestidade, o arrivismo serão tidos na conta de ingenuidade de involuídos obtusos, que não compreenderam ainda a impossibilidade de algo verdadeiramente honesto nascer de fontes assim turvadas pelo mal, força destruidora por excelência.
O dia em que se compreender o Evangelho, se compreenderá também que o amor do próximo não constitui utopia ou sentimentalismo, mas é sólida e prática lei de vida, o modo mais lógico e utilitário relações humanas. É natural que, semeando desordem, apenas se possa colher desordem e para obtermos justiça tenhamos necessidade de ser justos.
São estas as descobertas que mais nos interessam fazer, porquanto são as mais certas, e, disciplinando organicamente a atividade humana, nos permite extrair-lhes rendimento imensamente maior. Representam a conquista de novos valores, mais preciosos para o homem que novas descobertas científicas, que nas mãos de inconscientes podem significar destruição, enquanto as descobertas morais significam construção de consciência. O espírito é o verdadeiro sal das coisas e representa princípio diretivo capaz de centuplicar o rendimento dos atuais meios humanos. Antes de por meio da ciência conquistar novos meios, importa é conquistar a sabedoria que nos ensine a empregar os já existentes. A ciência pode transformar a terra em inferno. Só a sabedoria pode transformá-la em paraíso. Quando o homem houver compreendido a economia da natureza e conquistado o senso da Divina Providência, então substituirá o terror da necessidade, a violência da conquista, a incerteza do dia de amanhã, e o aniquilamento de nosso próximo por um sistema de fé, paz, segurança e ajuda fraterna. A ciência não é capaz de consegui-lo. Quando o homem chegar a compreender que sofrimento significa conquista e a morte, ressurreição, então se tornará invulnerável. São estas as descobertas mais úteis, aí está o verdadeiro utilitarismo. A compreensão destas verdades, embora parceladamente, permite ao indivíduo evoluído refugiar-se, mesmo nos dias de hoje, na inviolável autarquia do espírito.
Em nosso século mecânico crêem que número signifique verdade e a maioria possa e saiba elaborar a lei. Cremos hoje que na vida se torne possível o agnosticismo, isto é, uma espécie de neutralidade espiritual, absenteísmo nas diretrizes. Assim, creram resolver o que não sabiam, acreditaram na possibilidade de fugirmos dos grandes problemas do ser. Desse modo, a imparcialidade se tornou ambigüidade e a amoralidade se transformou em imoralidade. Mas o agnosticismo significa não entender e não resolver nada, significa mentir a si mesmo. Não podemos viver sem ação e não podemos agir sem determinada orientação pessoal. Apenas em teoria agnosticismo pode significar imparcialidade. Na prática significa obediência aos próprios instintos. A vida está toda inteira em suas posições. É impossível permanecer neutro na luta entre o bem e o mal, não podemos deixar de atingir determinado grau de evolução, de existir sob forma definida. Em todo ato, em todo campo o espírito penetra e torna-se impossível não assumir uma posição moral qualquer.
A transformação biológica que conduz à nova civilização encontra sua lei no Evangelho; o evoluído é apenas o sábio que o aplica. Procuremos observar, ainda, de novos pontos de vista e sob diversos aspectos, essa revolução biológica que leva do atual mundo humano a futuro mundo super-humano. A este podemos chamar nova civilização, nova ordem ou, então, reino de Deus, aquele de que há dois mil anos o Evangelho nos fez a profecia e nos assinalou o inicio. O fenômeno enxertou-se na História e foi percebido pelo pensamento das sumidades. É nuclear em nossa vida. Assim, A Grande Síntese não é somente, como dissemos, o plano regulador de nova civilização, mas também comentário ao Evangelho, que há muito tempo lhe lançou as bases. De resto, a verdade é uma só. Compreende-se, por isso, que quanto mais profundas são as verdades humanas tanto mais se afastam da periferia do relativo, mais se aproximam do centro do absoluto e mais tendem a coincidir. Compreende-se que quanto mais nos avizinhamos de Deus tanto menos poderemos, logicamente, esperar novidades. A Grande Síntese, exatamente porque exprime a substância das coisas, não podia oferecer a novidade própria do mutável do relativo e da forma, mas apenas podia repetir a verdade eterna, que jamais muda. Esse livro, portanto, poderia apenas constituir o desenvolvimento e a demonstração de tudo quanto já se disse e revelou, de tudo quanto já pertence às religiões, à moral, à vida. As verdades eternas voltam e tornam a voltar perante nossos olhos, vestidas de acordo com as formas mentais do tempo; descendo, assim, até à psicologia do momento e acomodando-se com ele, tornam-se-nos cada vez mais acessíveis. Só as pessoas superficiais podem esperar continua novidade, uma das características de seu mundo relativo e efêmero. Ora, para nós o primeiro iniciador da grande revolução foi Cristo, que por sua vez, era, também Ele, continuador. Seja o que for que se descubra ou se invente, Cristo não muda. Suas palavras não passarão e nada podemos fazer se não segui-Lo. Ou o homem o compreende e segue ou deverá renunciar a seu progresso. Cristo é um centro. Só nos resta gravitar em torno d’Ele. Por mais que, através dos milênios, pensadores e líderes procurem lei que resolva e regule os problemas da vida humana, ninguém a encontrou nem jamais encontrará outra igual à lei selada com sangue na cruz. Por isso devemos examinar de perto o pensamento social de Cristo, porque esse pensamento constitui o fundamento da "Construção".
Certo dia Cristo sentiu a necessidade de expor com exatidão seu pensamento aos apóstolos e às turbas, mostrando-lhes completamente a sua doutrina, que até àquele momento apenas vagamente poderia penetrar-lhes na mente. Então, Cristo expôs a síntese de seu programa no Sermão da Montanha. Não podemos fazer outra coisa senão citar aqui, a propósito, a bela página da "Vida de Jesus Cristo" de Ricciotti (seguimento 318):
“Empregando terminologia musical, o Sermão da Montanha pode comparar-se a majestosa sinfonia que, desde o primeiro compasso e com o ataque simultâneo de todos os instrumentos, exponha com rigorosa clareza os temas fundamentais: e são os temas mais inesperados, mais inauditos deste mundo, totalmente diferentes de qualquer outro tema jamais executado por outras orquestras; no entanto, apresentam-se como se fossem os temas mais espontâneos e mais naturais para ouvido bem educado. E, realmente, até à época do Sermão da Montanha, todas as orquestras dos filhos do homem, embora com variações de outro gênero, haviam anunciado em uníssono que para o homem a beatitude consiste na felicidade, a saciedade depende da saturação, o prazer é efeito da satisfação, a honra é produto da estima; pelo contrário, e desde o primeiro compasso, o Sermão demonstra que para o homem a beatitude consiste na infelicidade; a saciedade, na fome; o prazer, na insatisfação; a honra, na desestima, mas tudo isso tendo em vista o prêmio futuro. Quem houve a sinfonia fica sem cor à exposição desses temas: mas a orquestra, prosseguindo imperturbável, volta aos temas fundamentais, separa-os, decompõe-nos, tece variações em torno deles: em seguida repete no clangor dos instrumentos metálicos outros temas timidamente expostos pelos instrumentos de corda, corrige-os, modifica-os, torna-os sublimes, levando-os a alturas vertiginosas: ao contrário; faz desaparecerem num fragor de sons algumas velhas ressonâncias, ecos de longínquas orquestras, excluindo-as da sinfonia; depois, funde tudo numa onda de sons, que, subindo muito acima da humanidade real, atinge uma humanidade não-humana e se derrama sobre ela e sobre um mundo imaterial e divino”.
"Os antigos estóicos chamavam paradoxo o enunciado contrário à opinião corrente: nesse sentido o Sermão da Montanha é o mais amplo e mais radical paradoxo jamais dito. Nenhum discurso proferido na terra foi mais perturbador ou, melhor, mais revolucionário do que este: o que antes todos chamavam branco já nem recebe o nome de pardo ou escuro, mas exatamente o de preto, enquanto o preto agora se chama alvo; o antigo bem passa para a categoria de mal e o antigo mal para a de bem; onde antigamente o vértice se erguia altaneiro agora está colocada a base; onde a base se alicerçava coloca-se agora o vértice. Em face da revolução implícita no Sermão da Montanha, as maiores revoluções operadas pelo homem na terra parecem infantis guerras de brinquedo..."
Como o mesmo autor diz mais adiante, "o Sermão da Montanha não quer apresentar-se como contraposição destrutiva, mas aperfeiçoadora, da lei mosaica". Efetivamente, Cristo não viera "abolir, mas cumprir". Essa continuação do passado, prossigamos, confirma tudo quanto dissemos antes, isto é, que a verdade é una e por isso não podemos renová-la, mas apenas aperfeiçoar e completar-lhe a expressão. Mas acrescentávamos ter sido Cristo o primeiro iniciador da grande revolução, no sentido de que quem aperfeiçoa e executa, se é um continuador em relação ao passado em que se apoia e se eleva, é sempre um iniciador, quanto ao novo trajeto evolutivo que nele se inicia. Cristo é marco miliário do eterno progresso da vida, pedra-de-toque do pensamento humano, é, na história da civilização, o "pomo de discórdia" em torno do qual, sob a forma de ódio ou de amor, para exaltar ou destruir, se concentram os esforços antagônicos do gênero humano. Para explicar esses fenômenos não basta a distinção simplista em "tipos" que a ciência estabelece segundo as três psicopatias dominantes: sadismo, masoquismo e fetichismo. Os dois primeiros, isto é, os sádicos e os masoquistas, são os violentos e as vítimas, os heróis da prepotência ou do sacrifício, em redor de quem se reagrupam os fetichistas, quer dizer, os neutros que, em face do dinamismo, funcionam como massa, vivem de motivos alheios e representações ideológicas, adorando ora uns ora outros. Não podemos compreender Cristo, se não houvermos entendido todo o mecanismo fenomênico, toda a trama do funcionamento universal, todo o plano evolutivo, através de que na realidade o pensamento de Deus se exprime progressivamente. O progresso do mundo liga-se ao progresso da idéia cristã e todos contribuem para ele, como estimulo ativo os que o afirmam e como desencorajamento negativo os que o negam; de fato, a evolução, já o dissemos, se processa por força desse contraste e avança, apoiando-se nas ações e reações produzidas entre esses dois extremos, e acaba sendo o resultado da íntima colaboração nascida dessa luta. A fase materialista não passou de simples impulso negativo, aspirante ao invés de premente, dirigida para a fase espiritualista. A negação constitui apenas o contrário da afirmação; liga-se-lhe, não pode viver sem ela, dela se nutre. E, gasto seu impulso e exaurida sua função de resistência estimulante de reação criadora, por força da lei de equilíbrio, se transforma em afirmação.
Cristo não é apenas fenômeno religioso, moral ou social. É fenômeno biológico. Entrosa-se com a vida, sua ação penetra-a profundamente. Inclui-se em seu dinamismo como força central, funde-se na expressão fundamental da Lei, quer dizer, do pensamento de Deus que nos manda evoluir e civilizar-nos. Quanto o Sermão da Montanha através dos séculos caminhou ao lado do homem! Embora ainda não se tenha transformado em realidade, todas as suas frases se tornaram proverbiais, todas as suas palavras constituem pedras angulares. Na Idade Média encontrou eco no sermão de S. Francisco a respeito da verdadeira alegria. Agora, a humanidade, ao findar-se o segundo milênio, atingiu um ponto em que o motivo de Cristo se apresenta de novo para novamente ser meditado. Estamos vivendo novo episódio da grande batalha do espírito para conquista do progresso. O atual momento histórico, apocalíptico e doloroso, não tem outro significado. Guardadas as proporções, o problema é substancialmente o mesmo, quer no tempo de Cristo, como hoje em dia: civilizar-se. Trata-se de dar ainda mais um passo no sentido do superamento da ferocidade e no abrandamento dos costumes. O progresso caminha em direção a Deus, cujas manifestações mais elevadas são a bondade e a justiça. Esse é o caminho do Cristianismo e o de toda a civilização. A lei dos homens deve aderir cada vez mais à lei de Deus, deve deixar transparecer sempre mais essa intima substância Ao mesmo tempo que, evoluindo, se torna mais fino e sensível e desse modo passa para fase mais adiantada, o homem percebe quão bárbara e feroz era a fase anterior, na qual no começo vivia satisfeito, nota dissonâncias irritantes e imperfeições inaceitáveis justamente onde tudo lhe parecia perfeito e aceitável. Quando nova compreensão desponta no homem, por força do processo evolutivo, nele também nasce nova insatisfação, que o constrange a procurar formas mais civilizadas e harmônicas da vida. Dizer quais são essas formas constituiu a tarefa do Evangelho. E é exatamente a isso que também A Grande Síntese se propõe. O quadro da velha estrutura biológica está tornando-se muito estreito para os espíritos renovadores, nele o homem se sente angustiado e se agita em meio de numerosas indagações, ao mesmo tempo que o passado transborda de seus velhos limites. Começaremos a compreender a utilidade e a alegria que podem advir-nos de maior liberdade, impossível de obter senão à custa de maior sinceridade, resultante por sua vez de consciência mais profunda. O impulso dos acontecimentos de nossa época consiste exatamente em conduzir o homem à compreensão da conveniência de executar esse esforço de bondade, sem o qual não se concebe o melhoramento da convivência social. Trata-se de tornar mais completa e espontânea a inclusão da lei de Deus na luta pela vida, Isto é, da bondade na bestialidade, do livre conhecimento na coação. Na prática, inclusive a lei do bem tinha de, no passado, revestir-se de sanções e utilizar a vingança (o Deus dos exércitos e das vinganças), pois o hábito da violência lhe era necessário para impor-se e ter eficácia. O progresso obriga essas duras necessidades a se civilizarem e a isso chegamos apenas a maturidade, uma vez atingida, possa permiti-lo sem prejuízo para o homem, isto é, quando este se civilizou ao ponto de a força não precisar mais obrigá-lo ao cumprimento da própria Lei. Só então pode a Lei abrir-nos os braços e o Deus da vingança tornar-se o Deus do amor. Isso aconteceu primeiro com Cristo e se repete agora. A Lei, achando-se praticamente na necessidade de enfrentar a luta, teve de tomar necessariamente formas adaptadas a esse grau de desenvolvimento, formas que, todavia, depois se foram tornando cada vez menos adequadas a graus mais elevados e atingidos pela consciência humana. Em face desse desenvolvimento, essas formas da Lei, para seres psiquicamente mais adiantados, acabava transformando-se em escola de astúcia para evitar-lhes as insídias, em velado ensino da arte de fugir-lhes. A Lei então, deixava pois de constituir auxilio para a vida e se tornava uma prisão a evitar, mais um inimigo contra quem devíamos aprender a lutar. Essa Lei, quando posta em prática, se absorvia na luta humana, reduzida a instrumento desta; assim, acabava sendo modificada. Isso significava inverter-se-lhe a função lógica, reduzindo-a a recrudescimento da luta pela vida, já de si dura. Porém, apenas em determinada fase de maturação se compreende que nos tornamos cruéis em nome de Deus, muitos males se cometeram por causa do bem e muitos crimes se praticaram em nome da verdade. Compreende-se, então, que no passado, sob o pretexto de aplicação da justiça, o povo assistia a exemplos de vingança e, assim, iludido pelo exemplo, se familiarizava com o espetáculo do ato sanguinário e educava-se. Compreende-se como a lei de seleção do mais forte diz respeito a um plano biológico inferior de que nos é lícito sair e como não constitui a única nem a última expressão das leis da vida. E, além disso: quando estas apenas sabem manifestar-se sob a forma do primitivo equilíbrio-justiça da lei de Talião e da força, então no indivíduo débil fazem desabrochar o astuto, o traidor, o cínico, isto é, o maligno em que a força se sub-roga. Está soando a hora de a Lei vir ao nosso encontro, dotada de maior bondade; de fato, a vida pertence a todos e o princípio da seleção do mais forte refere-se a fases evolutivas inferiores e está destinado a ser superado. Cada um de nós representa uma força e, em ordenamento social mais consciente, até mesmo uma utilidade. Ninguém, pois, deve ser esmagado, suprimido, eliminado, mas compreendido e valorizado. Eis-nos em pleno conceito cristão. Eis o conteúdo da Boa-Nova de Cristo. Porém, essa nova distribuição de bondade, liberdade e felicidade só será feita na Terra, se o permitir consciência mais desenvolvida, porque justamente essa consciência é que lhes traça o limite e estabelece a proporção.
Quando Cristo viveu e morreu há dois mil anos, o mundo, preso a problemas imediatos e presa de espetáculos de grandeza, de vício e de sangue, o mundo nem de leve imaginou a revolução apocalíptica que, em longínqua e obscura província romana, se iniciava em silêncio. Ninguém imaginou que, na ocasião, de fato na terra nascia novo reino e novo princípio começava a firmar-se. Isso mostra como os caminhos de Deus gostam de esconder-se nas formas de desenvolvimento normal (nas parábolas, a palavra de Deus cai e se desenvolve de modo natural como uma semente); como esses caminhos evitam a todo custo o caráter maravilhoso e excepcional que, em tais casos, desejado por nossa fantasia, constituiriam a violação mais gritante dos equilíbrios e harmonias de que se compõe a Lei. Os contemporâneos, deixando-se como sempre estar à superfície, naturalmente nada perceberam do movimento profundo, percebido apenas pelos videntes. Parece existir aí conexão, habitual na História, entre poder humano e embotamento espiritual. Os expoentes intelectuais daquela época manifestam a incompreensão mais completa. Coisa, de resto muito natural, pois viviam ao lado oposto da vida, no pólo-matéria, enquanto o fenômeno se processava no pólo-espírito. Para o mundo daquela época, a vida e os atos de Cristo se desenvolvem nas trevas e na indiferença e, quando acontece serem vistos, são mal compreendidos. Até mesmo o povo de Israel, destinado a receber o Messias, espera a vinda de rei poderoso e conquistador e se considera logrado quando, ao contrário, se encontra em face de um reino nascido na humildade e no silêncio, em meio de mil obstáculos, com a. morte ignominiosa de seu fundador. O povo ansiava por um líder de reivindicações nacionais e de expansão material e não conseguia acostumar-se à idéia de que, ao contrário se tratava de renovamento mundial e de expansão espiritual. Nem um pouco dessa exterioridade clamorosa que golpeia os sentidos. Nada. Na parábola se fala, isso sim, do grão de mostarda, exatamente como exemplo de pequenez material Aqui também parece haver intima ligação entre pequenez material e grandeza espiritual e ao contrário! A incompreensão judaica atinge o máximo no dia da entrada triunfal de Cristo em Jerusalém. Nesse dia o povo, que clamava "Hosana! Hosana!", pensava estar aclamando o fundador de um reino messiânico, mas terreno, e não o de um reino espiritual. Cristo permitiu e aceitou essa exaltação que o subestimava, como testemunho de quão diversa era sua missão; naquele momento os dois diferentes messianismos, o do Cristo e o da plebe como se por acaso se sobrepuseram e coincidiram. Cristo aceitou o mal-entendido como único testemunho possível de sua verdadeira realeza messiânica, de que Ele tão pouco falava por saber que ela não poderia ser compreendida e admitida por parte de pessoas desejosas de não fazê-lo. E, exatamente no ponto em que o povo acreditava começar o caminho do triunfo, aí Cristo já o havia percorrido e começava a palmilhar o da Paixão. Que exemplo de pobreza aquela exaltação de Cristo montado em pobre jumentinho, quando a comparamos com as esplêndidas entradas triunfais dos líderes vitoriosos através de todas as épocas! Ainda aqui se nota a ligação entre riqueza formal e material e pobreza substancial e espiritual e ao contrário! Instrutivos e invioláveis equilíbrios da vida, conseqüência da harmonia e justiça da Lei.
No meio de tanta incompreensão ninguém poderia imaginar que, sob aparências tão singelas, se estivesse iniciando tão catastrófica reviravolta no mundo daquela época, se desencadeasse ataque tão inesperado e sob a forma de pacifismo que, dirigindo-se contra aquele mundo de maneira imprevista e em "fronts" novos, e por isso indefesos, o teria encontrado desprevenido e, assim, facilmente vencido. Assim, por falta de compreensão, cai a sociedade israelita que, prisioneira da forma, acreditou assegurar, com a condenação de Cristo, sua mais enérgica defesa e decisiva vitória. E pensar que, para chegar a esse ponto, sua própria classe dirigente, os sumos-sacerdotes, embora sabedores de que Jeová tanto permanecia o único e inconteste rei de Israel que a contragosto toleravam em Saul o primeiro rei humano, foram os primeiros a declarar não existir outro rei senão César, isto é, um estrangeiro pagão. Assim, enquanto caiam no chão as despenadas águias romanas, o princípio da cruz conquistava o próprio coração do império. Hoje, depois de dois mil anos de luta, compreendemos a impossibilidade de enfrentar o problema social sem levar em consideração o humilde e simples Evangelho. Sempre vivo e atual, torna-se fundamental para quem, como nós, se proponha o problema de construir. Embora não contenha em particular tudo quanto em A Grande Síntese se expôs através de análise científica e demonstração racional, o Evangelho nos dá sempre os resultados finais dessa operação lógica, naquele livro decompostos em seus elementos. A concordância entre princípios e demonstração é prova que confirma e revalida.
O Evangelho pode chamar-se o livro das harmonias e dos equilíbrios. A novidade e a originalidade de seus princípios reside exatamente na justiça e no amor, em oposição ao princípio do mundo que é, como ainda hoje, força e egoísmo. A pouco empregada, mas poderosa arma do Evangelho, que é também a destes escritos, é a verdade simples e espontânea, que se impõe por si mesma porque persuade, e persuade porque satisfaz. Trata-se, em relação ao mundo, de substancial modificação de seus caminhos, da conquista de novas posições biológicas, da introdução de novo principio na vida. A verdadeira força não consiste, de fato, em saber subjugar para vencer, mas consiste em espontânea posição de equilíbrio. O Evangelho, colocando-nos em face dos dois princípios, ensina-nos a vencer com as armas deste último. Hoje, como naquela época, estamos diante do mesmo problema: a força não convence, a força não resolve, a força não vence. Dada a estrutura de nosso universo, fato objetivo que somos obrigados a admitir e não podemos alterar, o emprego da força significa o inicio de uma série de violências, impossível de controlar senão por meio de violências maiores e de acalmar senão destruindo o inimigo. A premissa desse sistema é o egoísmo, o método é a expansão desordenada e semeadora de desequilíbrios no ambiente, a conclusão é o estado de ruína. Ora, na realidade, a expansão ilimitada de egoísmo prejudicial aos demais não passa de ilusão, pois a vida tende, imparcialmente, a equilibrar todos os egoísmos. A realidade é, pois, intimamente regida por uma Lei, isto é, feita de ordem e, por isso, reage conforme a intensidade do estímulo, isto é, à desordem responde com a desordem, ao choque violento com a dor, ao egoísmo com o aniquilamento. Enfim, a destruição do inimigo, com a qual se esperava concluir, constitui um absurdo; em primeiro lugar, porque em um mundo de coexistência de todos os seres, mundo em que tudo é comunicante, nenhum estado de ruína pode isolar-se sem repercutir em tudo em torno; em segundo lugar, porque quem acredita residir na vitória a solução, ignora que o inimigo não é apenas destrutível forma exterior, mas vida, impulso, dinamismo e, desse modo, indestrutível como todas as coisas em substância. Apenas o obtuso involuído pode acreditar em que a destruição aparente, a da forma, também represente a destruição dessas forças imponderáveis. Elas não morrem de modo nenhum e são invencíveis; acontece, porém, que, por força da reação, acabam sendo impelidas, para reequilibrar-se, a se moverem em sentido contrário, isto é, contra o próprio ofensor, restituindo-lhe o equivalente de sua ação, mas em posição inversa. O impulso, que parece caminhar em direção da vitória, constitui, no entanto, verdadeira fábrica de inimigos, é o mesmo que cavar um abismo diante de si mesmo; e as adesões recebidas pelo dominador não significam convicções espontâneas e duradouras, mas mentira sob que se escondem o cálculo e o interesse. A traição, logo ao primeiro sinal de fraqueza, faz, pois, naturalmente parte do sistema. O homem pode escolher, mas, escolhido este ou aquele caminho, a lógica de seu percurso domina-o inteiramente.
Assim se compreende como, na prática, todas as vitórias humanas da força são instáveis e transitórias, terminam em ilusão, enquanto na realidade, por força da lei de equilíbrio, para descer é antes necessário subir e quem vence prepara a própria derrota. O Sermão da Montanha expõe esses equilíbrios. Por isso Cristo aconselhou a não resistir ao maligno, mas oferecer-lhe a outra face, contrapondo a bondade à ofensa. Semelhante concepção pareceu modificação e total reviravolta; no entanto, não passa de reordenamento e retificação de idéias, fazendo-as finalmente coincidir não com a ilusão, mas com a realidade. Os vencedores, pois, não passam de causas de desequilíbrio naturalmente destinados a sucumbir, mais cedo ou mais tarde, sob os escombros do edifício por eles construído. Á moral a que chegamos está, desse modo, nos antípodas da moral do mundo. Não é, pois, com a força que podemos construir. Esse é o princípio novo. O sistema humano, se atinge outros objetivos não vistos pelo homem, em relação ao objetivo que a si mesmo propõe é falso e a História o demonstra. Construção estável só se torna possível com o sistema evangélico e equilibrado da justiça. Assim, com lógica mais simples e realista, no Evangelho se resolveu o problema da guerra, do desequilíbrio econômico, da luta de classe, da justiça social. Não pode, pois, manter-se nada do que se constitui de intimo desequilíbrio, exatamente por ser desequilíbrio de forças e lhe faltarem elementos de estabilidade. Tudo quanto nasceu de abuso representa desequilíbrio, isto é, sistema de forças desequilibrado e incapaz de manter-se senão à custa de desequilíbrio progressivamente maior; representa, pois, sistema que no seu próprio princípio carrega o germe de sua ruína. Por isso, o homem é tão ávido de energias, único meio capaz de sustentá-lo; mas, por mais esforços que faça, a lei de equilíbrio o assedia e se lhe contrapõe para reconduzi-lo à posição exata, em correspondência com sua real função biológica. Já falamos disso tudo à propósito da lei do merecimento, a que retornaremos mais tarde, examinando-a de ângulo individualista relacionado com o próprio destino. Essas considerações escaparam a muitos líderes e fundadores de impérios. Na realidade, desempenharam eles função bem diferentes da imaginada grandeza. Muitas vezes a História atinge objetivos bem diferentes dos objetivos aparentes, que o homem se propõe e constituem simples meio de induzi-lo à ação. Esgotada a função e atingido o objetivo, grandes e pequenos atores são rapidamente liquidados.
Nesses simples princípios evangélicos reside a única solução honesta dos problemas sociais. A vida humana em sociedade é campo de forças em ebulição, em contínua rivalidade e luta. A insolubilidade de tantas posições nos induz a observar atentamente essas diretrizes tão disparatadas. Nas relações sociais as forças individuais mutuamente se reconhecem, se odeiam, se amam, ligadas pela interdependência dos vasos comunicantes, pela relação entre o "dar" e o "haver". Assim se formam equilíbrios provisórios em contínua evolução. Eles se desenvolvem de acordo com determinada medida (passo), que permite se alojem, nos interstícios do tempo, os aproveitadores, os parasitas do equilíbrio, os ladrões de felicidade usurpada, pois não foi nem merecida nem ganha. Os míopes egoístas apressam-se a gozar e morrem. Mas as forças, por eles postas em jogo, não morrem. E as gerações que morrem deixam às gerações que nascem e estas devem aceitar, com o nascimento, uma série de desequilíbrios ao longo dos séculos e dos milênios. No destino coletivo acontece com os povos o mesmo que, no destino individual, sucede aos indivíduos, isto é, nossas obras nos acompanham a toda parte. São desequilíbrios econômicos, sociais, morais, políticos, psíquicos, orgânicos. As novas gerações ou se reequilibram pagando, ou somente os mantém, suportando-os, ou aumentam-nos, arruinando ou deixando ruína. São ódios, desajustamentos, dores; por toda parte vácuos a preencher, equilíbrios a recompor. Nossos amados. filhos pagarão por aquilo que desnecessariamente gozamos, ou gozarão das forças por nós acumuladas. Quem aceita determinada posição deve suportar-lhe a responsabilidade. Os recém-nascidos são continuadores. Ai de nós, se já fomos impelidos no caminho da regressão. Então, o caminho, fácil por natureza, para a volta nos exige esforço tanto maior quanto mais nele já tivermos avançado; e quanto mais o declive aumenta e se torna perigoso, mais difícil é sabermos voltar atrás e recompormo-nos. Não há, então, solução possível e o homem, na realidade, não soube resolver essas posições senão à custa de sua ruína final.
Tal é, de fato, o sistema funcional da vida e não podemos mudá-lo. Nenhuma força ou astúcia humana pode impedir que apenas determinada força se forme, lhe nasça ao lado uma força contrária e inversamente proporcional. Apenas determinada autoridade se cria, ao mesmo tempo surge seu inimigo, do mesmo modo que, apenas se forma um organismo, lhe nasce o parasita, seu micróbio patogênico específico. Do mesmo modo, o oprimido, por força de natural lei de compensação, de geração em geração, espera através dos séculos o momento de debilidade do opressor. Todo indivíduo é mais ou menos uma mola comprimida e à espera de soltar-se, é um ódio em potencial ou uma vítima já destinada ao sacrifício. A força atrai a revolta; o império, a revolução. Os vencidos tanto esperarão que o destino do próprio vencedor lhes trará consolo. É sua a culpa de haver pretendido vencer. Na História não se dá o mesmo? Todo poder atrai resistências que lhe constituem não só verificação e prova, mas também ameaça e o próprio fim. Só o amor desarmado atrai e cria amigos. Di-lo o Evangelho. Isto é, somos senhores de constituir uma força e agir de acordo com ela; não podemos, porém, impedir o nascimento simultâneo de uma força contrária que a contrabalance e nos agrida. Por isso, se quisermos resolver o problema da guerra, o único caminho é o do perdão, e para resolver o do ódio só há este caminho: o do amor. Eis o significado das palavras de A Grande Síntese (Cap. XLLI): "Existe apenas esta defesa extrema: o desarmamento geral". Afirmações simplíssimas, de lógica elementar; no entanto, difíceis de entender! E com que desastrosas conseqüências!
O que não se pode perdoar ao nosso mundo racional e a irracionalidade de sua conduta, é esse erro basilar em seu cálculo utilitário, que todavia, lhe constitui o núcleo de todos os pensamentos. Contudo, verifica-se que, realmente, a construção levantada por Cristo, usando como força a simples verdade desarmada, supera em tamanho e duração muitas construções. Como assim? Sabedoria do engenheiro que traçou o plano bem equilibrado da construção. Sozinha, a força não pode fazer o mesmo, pois não possui essas qualidades. Apenas o que se edifica sobre a verdade consegue crescer em extensão e profundidade, pois está solidamente plantado no campo de forças da vida. Mas observemos o fenômeno mais um pouco. Apenas no dinamismo universal se caracteriza uma corrente, isto é, uma força, isolando-se e Individuando-se, se manifesta, logo se determina no próprio dinamismo universal, por força da lei de equilíbrio, uma corrente contrária; esta, embora isolando-se e individuando-se, torna-se evidente como força oposta a contrabalançar a primeira. (Eis o atrativo especial das coisas proibidas, exatamente porque proibidas). De acordo com esse princípio, nenhum fenômeno foge aos limites preestabelecidos e, embora sendo contínuo movimento de evolução, não se desenvolve senão de acordo com plano traçado pela Lei. Proíbe-se desse modo todo desenvolvimento hipertrófico e unilateral, todo excesso de desarmonia e desproporção no conjunto. Assim, toda manifestação pode processar-se apenas se enquadrada nos limites assinalados pelos princípios diretores. O desenvolvimento é, pois, dirigido harmonicamente, protegido contra a catástrofe de desproporção insuportável e permitido apenas na forma e na medida úteis às finalidades evolutivas da vida e do bem. A lei do dualismo, explica em A Grande Síntese e por nós mais adiante esmiuçada (cf. cap. XXV: "O dualismo fenomênico universal"), se em todas as coisas vê binômios, unidades compostas de duas metades inversas e complementares, mostra-nos também como todas as coisas têm o seu contrário. Como o contraste condiciona a percepção, assim a contradição temida pelos lógicos constituí, pelo contrário, a base da vida e até mesmo do pensamento. O termo oposto representa o controle necessário, o freio inibitório, o contra-impulso probante. A reação reforça a resistência, a oposição garante a verdade. Quem conquista autoridade cria inimigos, é certo, mas apenas no campo em que a exerce e na medida em que a possui. Trata-se de compensações automáticas verificáveis em qualquer campo, apenas uma força se manifesta, exatamente porque toda unidade se constitui de uma dupla de contrários. O forte é forte; mas, quanto mais forte mais inimigo atrai. O fraco é fraco; porém não cria inimigos, o inerme é benquisto O homem desarmado atrai, o homem armado causa repulsa.
Muitas vezes esses contra-impulsos se conservam em estado potencial, latente, à espera de condições adequadas à sua manifestação. A vida social está repleta dessas forças, às vezes comprimidas e concentradas como explosivo E é nos momentos de mudança de fase, de novas combinações, durante os quais transitoriamente a estabilidade dos equilíbrios precedentes se desloca à procura de novos, é nesses momentos que as forças latentes e comprimidas explodem. A evolução subentende e impõe esses deslocamentos. Então, esses impulsos, que em épocas normais (porque equilibradas) repousavam em equilíbrio, ao primeiro sinal de enfraquecimento de uma parte, despertam e se enfurecem; de fato, com o deslocamento daquela parte e tendo-se presente, como em toda balança, que essas forças têm posição relativa, elas conquistam nesse momento proporcionado aumento e valor. A calma, a paz é apenas o equilíbrio de forças opostas que se guerreiam. Em face dessa mecânica da vida, não podemos, se não o levarmos em consideração, conquistar nenhuma posição estável. Se apenas como fenômeno biológico podemos compreender o fenômeno social, o fenômeno biológico, por sua vez, só pode ser entendido como fenômeno dinâmico, isto é, como relação de forças. Para ter verdadeiro direito, torna-se necessário não haver pecado e abusado nesse campo durante séculos. Só então a bandeira, a roupagem, a classe que o representa poderá dizer: esse direito me pertence. Do contrário, assistiremos a intérmina sucessão de bandeiras, de classes dominantes e dominadas, pois todos pecaram por excesso. O segredo da estabilidade de uma posição é não alimentar, ao seu lado, o contra-impulso compensador e destrutivo; é cercarmo-nos não de força, nem de ódio, mas de benevolência e fé. Não há, pois, outro caminho: ou, de acordo com o sistema evangélico, abandonar a força ou saber mantê-la sempre em condições de defender-nos. Como, porém, não representa o equilíbrio espontâneo da Lei e deve lutar para manter-se, essa força com o tempo se gasta e esgota e não pode resistir por muito tempo Não nos resta senão prepararmo-nos para passar da parte dos vencedores para a dos vencidos. Defrontamos, pois, este dilema: perdoar ou, se queremos dominar, irmo-nos acostumando à idéia de que mais tarde pagaremos por isso. Eis o dinamismo íntimo que explica, com todo o rigor da lógica, as afirmações do Sermão da Montanha.
A vida tudo registra e conserva, para mais tarde reagir. Cuidado com a semente que plantamos. Em qualquer ato, educamos os outros e os outros nos educam. Uma posição social importante não pode manter-se pela força, mas apenas pelo exercício da função; a autoridade permanecerá de pé enquanto missão; a riqueza será tanto mais segura quanto mais amplas forem suas bases, isto é, quanto mais estender-se dos estreitos limites da utilidade individual para o campo da utilidade pública. Qualquer posição, para resistir mais do que na força deve fundar-se no merecimento, no valor intrínseco, na superioridade intrínseca de tipo, nas qualidades inscritas nos instintos, apenas lentamente formados por automatismo, por meio do método de educação das raças animais. Tão-somente o que resiste, por haver se fixado na personalidade, constitui força verdadeira, coisa própria e, por isso, direito pessoal. Ai dos que querem vitória esmagadora; cavam a própria sepultura. Ai dos improvisados distribuidores de justiça que vão além do necessário e invadem o lado oposto da linha mediana do equilíbrio. Pagarão por isso. A reação que preparam os atingirá também. A História mostra-nos quanto é fácil e humano passar, com prejuízo embora, da parte dos revolucionários da justiça para a parte dos revolucionários da injustiça. Todo excesso semeia ódio, que é contra-impulso reprimido, conta a ser paga. Em relação a quem não pratica excessos, permanecem espontaneamente indiferentes. Assim, a vingança nada resolve, mas agrava o mal e, obtida a satisfação, o credor passa à condição de devedor. A única solução verdadeira consiste na anulação do contraste, na neutralização da força, isto é, consiste no perdão.
O dinamismo da vida é corrente que capta todas as influências, em todas as coisas vai buscar elementos formadores, assimilando tudo quanto lhe age no ambiente em torno. Cada ato nosso dá e recebe, influencia e deixa-se influenciar e tudo volta às origens. Assim se explicam certos ódios instintivos, como o votado pelo homem à cobra, ao escorpião e outros animais venenosos, o do empregado pelo empregador e ao contrário; se explicam também certos ódios de classe e de raça, certos tipos biológicos feitos de traição e de mentira. Em verdade, para dominar não basta vencer. Torna-se necessário, outrossim, verificar que tipo biológico a ação do dominador cria. Para nós todos a vida constitui experiência, formação de qualidade. Quem acredita poder triunfar impunemente ou que o domínio pela força represente ilimitado poder não sabe que, ao contrário, aquece no próprio peito uma raça de víboras prontas para picá-lo e envenená-lo. Em última análise, nos ódios sociais há sempre razão determinada, erro a ser reparado, equilíbrio a recompor. Inútil disfarçar. A forma nada significa... Qualquer ato nosso é semente e, por isso, substancialmente se repete. Convivência significa reação e educação recíprocas. O mundo hoje é certamente, um turbilhão de forças descontroladas, uma tempestade que a todos nos arrasta. Porém, se o reequilíbrio é difícil, fatigante e remoto, isso não pode impedir que ele continue lógico e necessário, como única via de salvação.
XX
O PENSAMENTO SOCIAL DE CRISTO
O exame critico do fenômeno social, a observação de seus impulsos e efeitos conseqüentes, explica-nos e demonstra-nos logicamente as afirmações do Evangelho e alguns limites que novas concepções modernas, aplicando-o sem querer, impõem ao direito, antigamente ilimitado e sem disciplina, de uso e abuso, das pessoas e das coisas. A evolução social consiste exatamente nesse continuo e progressivo enquadramento das forças da vida, para na ordem coletiva transformá-las cada vez mais em concerto de harmonias e não em desencadeamento de vitórias e violências. Nesse campo, o pensamento social de Cristo antecipou de dois mil anos as tendências atuais e indicou tudo quanto, socialmente falando, apenas hoje começamos a compreender. Tais concordâncias corroboram estas nossas explicações, concordâncias, aliás, bem naturais porque o princípio da vida é um só e na verdade não pode mudar, embora expresso, ontem, hoje e amanhã, sob forma científica, religiosa ou social.
Nas páginas precedentes desenvolvemos o cap. XCI de A Grande Síntese ("A lei social do Evangelho"). Acrescentemos agora algumas observações aos dois capítulos seguintes (XCII - "O problema econômico" e XCIII "A distribuição da riqueza"). Este último lá o comentamos em parte, no que diz respeito a' propriedade, no cap. II deste volume: "O homem involuído e a propriedade". Vejamos como o Evangelho está de acordo com tantas aspirações modernas e antecipa os novos ordenamentos de nossos tempos. O advento da justiça social, grande realização a que o século XX aspira, o Evangelho anunciou-o e preparou-o do modo mais substancial. Comecemos pela distribuição da riqueza, o mais atual e angustioso problema, o problema prático e básico da vida coletiva de todos os tempos. Como Cristo reequilibra os desajustamentos econômicos tão debatidos? A solução do problema da distribuição equitativa Cristo no-la dá sob forma substancial, completa e definitiva, porque equilibrada, e não sob a moderna forma de luta de classe, que não resolve pois é desequilibrada. O método da luta não representa nada de novo e de resolutivo; não passa de comum e velho método de enriquecimento por substituição. Esse método não chega a solução alguma como sistema, pois se limita a substituir pessoas e classes sociais nas mesmas posições antigas. Por isso, desperta profundamente o interesse de pessoas a quem aproveita, dando-lhes vantagens pessoais; não interessa, porém, ao progresso social, a que importa a estrutura orgânica da sociedade e não a utilidade pessoal; renovar o ordenamento das posições e não as pessoas que as ocupam; eliminar os velhos erros e explorações ao invés de continuar repetindo-os em proveito alheio. A moderna luta de classe não passa da velhíssima luta biológica que, legitimando-se e assumindo funções de distribuidora de justiça, procura adquirir prestígio. Velho mimetismo que não subsiste em face das verdadeiras forças da vida. Isso não é equidade. A equidade nesse caso é apenas um pretexto. O método empregado pela violência e pela prepotência no fundo revela o mesmo abuso, fonte das costumeiras e intérminas reações. E o homem fascinado pela miragem do bem-estar, continua acreditando na possibilidade do absurdo, isto é, que a usurpação possa produzir frutos estáveis e baste disfarçar a força com as vestes da justiça para obter aqueles resultados definitivos que ela por natureza não pode dar. Assim, os homens mudam, más os erros continuam.
Apenas a equidade pode oferecer solução estável e conclusiva, com a adoção de um sistema de equilíbrios e não por meio de novas usurpações com que, em nosso proveito, acreditamos corrigir as anteriores. Isso não é justiça, mas egoísmo. E quando a verdadeira justiça não se faz presente, as mesmas razões que hoje nos autorizam a, no domínio e bem-estar, substituir os seus detentores, vão amanhã autorizar que outros nos substituam e assim por diante. Forma-se então a muito conhecida e resistente cadeia de ações e reações intermináveis. Se queremos chegar a alguma conclusão, essa equidade não deve ser apenas aparente, mas substancial, nem estar somente nas formas, mas também nas almas. Noutras palavras: torna-se necessário introduzir também no mundo econômico o conceito do equilíbrio, da ordem e da harmonia, fundamental em qualquer campo de forças e, por isso, inclusive no da riqueza, que não passa de caso particular. De acordo com ele, do mesmo modo que o ódio só termina se lhe contrapusermos o amor, e a ofensa se lhe opusermos o perdão, e a violência, se lhe antepusermos a paciência, assim também o desajustamento e a luta não findam senão contrapondo-lhes a verdadeira equidade e justiça.
Cristo não diz aos pobres: rebelai-vos. O sistema é radicalmente diferente do sistema do mundo. Todavia, a este, que não compreende coisa alguma senão à luz crepuscular da vitória-derrota, ele dá a entender que não vê no pobre um derrotado. Se não diz: "rebelai-vos", muito menos: "sofrei passivamente". Diz, pelo contrário: "Vós, vítimas da injustiça, tolerai, tende paciência". Por que isso?O que nos perguntamos. Como sempre, a filosofia de Cristo se completa num mundo ultra-terreno, na íntima realidade das coisas em que se completa e justifica toda aparência percebida por nós. A razão, diz-nos Ele, reside em que a injustiça que vos oprime é apenas humana e, por isso, temporária presa tão-somente a esta vida na Terra, não passa de pequena injustiça secundária, incapaz de violar, como de fato não viola, a bem maior justiça divina, a que transforma o oprimido em credor. Ficai, pois, tranqüilos, se ainda hoje sofreis, injustamente como pode parecer-vos. Deus é justo e a injustiça do momento será compensada, reequilibrada; vosso direito é verdadeiramente justo, vossa consciência não se engana e será ouvida. O sistema do universo é perfeito, lógico, equilibrado, absolutamente estável. Mas o tipo normal, isto é, o involuído não sabe enxergar tão longe e leva essas promessas em brincadeira. Culpa de sua miopia.
A nova afirmação irrompe gritante no início do Sermão da Montanha, enunciando-lhe de um só golpe os temas fundamentais. Em suas antíteses se percebe a inversão das posições, o jogo das forças opostas, o dualismo do binômio de que esses argumentos constituem os extremos e servem ao equilíbrio das forças. Eis o texto (Lucas, Cap. 6):
“... Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus.
“... Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis fartos. Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir.
“....Mas ai de vós, ricos! Porque já tendes a vossa consolação.
"... Ai de vós, que estais fartos! porque tereis fome. Ai de vós que agora rides, porque lamentareis e chorareis".
O problema resolve-se através das beatitudes. Quer dizer: os pobres, os famintos, os atribulados, além de fraternalmente lastimados e reconfortados como o reconhecer-se-lhes o direito a serem compensados, são considerados incontestavelmente bem-aventurados, isto é, vencedores, afortunados; por outro lado os que o mundo inveja como vencedores são tidos na conta de vencidos, de desgraçados. Esse é o juízo de Deus, que se coloca no lugar do juízo humano. É assim que Deus julga. Por isso, ó pobres, não vos arrogueis o direito, que só a Ele pertence, de fazer justiça. E justiça já vos foi feita. Querendo alcançá-la por vós mesmos, violentamente, perturbais o equilíbrio já existente. Tendes razão e ides colocar-vos ao lado do erro, das culminâncias dos vencedores vos precipitais na miséria dos vencidos, da harmonia dos planos divinos ides mergulhar no marasmo das baixas competições humanas. Perante Deus já tendes razão. Bem-aventurados sois. Que mais podeis desejar? Se não esperardes que a justiça venha de Deus, mas de vossa violência e de vossa revolta, então passareis da parte dos credores para o lado dos devedores. Não tenteis legitimar vosso roubo, dizendo que a propriedade é um roubo. De acordo com esses argumentos, que coisa seria vossa propriedade atual? Não vedes, porém, que exatamente o vosso furto presente legitima o furto passado e estais no mesmo plano e imitais exatamente aqueles a quem acusais? Por que razão apenas o vosso furto se justificaria e o dos outros não? E vós, improvisados distribuidores da justiça, é essa a justiça que distribuís? Não. A filosofia do interesse falta lógica; quando pretendeis passar por justos, mentis. Não. Jamais é lícito roubar, nem mesmo dos ladrões, como facilmente acreditamos. Então, ao invés de justiceiros, também sois ladrões e pagareis por isso. A culpa é mal infinitamente maior do que a, pobreza. Antes de mais nada, merecei, pois, sem merecerdes, nada podereis possuir com segurança e, por isso, gozar (cf. cap. VI deste volume: "A lei da honestidade e do merecimento").
Assim esclarecidos e confortados os pobres, depois de, colocando-os num pedestal de grandeza, havê-los protegido contra os juízos humanos, depois de exortá-los a conservar a vantagem dessa preciosa posição, Cristo dirige-se aos ricos, aos afortunados e, com relação a eles mudando completamente o tom do Sermão, mostra-lhes sua própria miséria não lhes concede nem salvação nem trégua, indicando-lhes as graves obrigações inerentes à sua posição e ameaçando-os os com as conseqüências de seu inadiplemento Desse modo, lógica e naturalmente, sem novos excessos e novas desordens, o mundo econômico se reequilibra comp1etamente confiando a solução do problema não a sistemas sociais exteriores e coativos, mas ao simples, real e espontâneo funcionamento das forças intimas da vida. E logicamente o reordenamento começa no indivíduo e em sua íntima convicção, ao invés de na coletividade e na coação; começa no ato generoso de dar e não no de tomar, que é furto e violência. Só o "dar" livre e convicto reequilibra e saneia; o “tirar” não; só mudando, antes de nada mais, as diretrizes psicológicas do caso particular conseguimos estável transformação coletiva. Os sistemas do mundo de hoje são muito variados e, se correspondem a forte necessidade de justiça e exprimem a tendência da evolução social na fase presente, estão muito longe de possuir os requisitos necessários para pode instaurar a sério a justiça social. Partindo da injustiça da violência, não podemos chegar à justiça, mas apenas a nova injustiça. Existe, pois, outra economia política, não baseada no "do ut des" das trocas do "homo oeconomicus" ou no princípio hedonístico, mas assentada nos equilíbrios das forças em ação no funcionamento da vida. Essa é a economia do Evangelho. Se sua base passar de simples relação de egoísmos humanos a relação muito mais vasta, de impulsos biológicos, conseguem-se resultados imensamente maiores, quer quanto à profundidade, como à excelência, e à estabilidade.
Observemos agora o pensamento de Cristo em relação à. propriedade. Ele não enfrenta e resolve os problemas social isoladamente, como muitas vezes fazemos, mas enquadrando-os em soluções mais vastas e profundas e, por isso mesmo, mais completas. O preceito "ama o teu próximo como a. ti mesmo" implicitamente contém e resolve todos os problemas sociais. Esse enquadramento, se copia a amplitude dos direitos da jurisprudência romana, coordena-os no plano social, freia o individualismo, em beneficio do coletivismo, traçando tendência precisamente à dos tempos modernos. Já existe, estabelecido no Evangelho, um princípio que se manifestará mais tarde com um lento movimento na forma de cerco do arbítrio, da liberdade incontrolada, do abuso, movimento que, iniciando-se com o Cristo, continuou e continuará até a sua completa realização". Assim, o absolutismo do poder público e o da propriedade privada se substituem por formas mais suaves e equilibradas. O "jus utendi et abutendi[11]" dos pagãos, egoisticamente ilimitado, racionalmente sofre cada dia maiores restrições em homenagem ao reconhecimento da utilidade pública, conceito que é conquista moderna na concepção orgânica do Estado. Mas o Evangelho, com dois mil anos de adiantamento, avançara muitíssimo, fazendo, por motivos de utilidade pública e como limitação, pesar sobre a propriedade até mesmo a pobreza do próximo, de que não é lícito desinteressarmo-nos. O conceito de utilidade pública estende-se assim até abranger, além dos interesses do Estado e da coletividade, também os interesses do indivíduo infeliz; chega, assim, a conquistar conteúdo biológico protetor, assume o caráter de função conservadora da vida, torna-se expressão de leis e forças universais. Que sentido e alcance diferentes agora tem o programa de igualdade econômica, isto é, o que visa à defesa do direito fundamental de todos à vida!
Desse modo, o interesse coletivo não se detém e, com utilidade geral, se avantaja sobre o interesse egoístico do indivíduo. A propriedade privada subsiste, cada vez menos como império arbitrário e cada vez mais como função social disciplinada, como serviço público. Mas é exatamente o fato de as bases da propriedade privada se espraiarem na coletividade e a sua completamente nova garantia de solidez, que antes, com a alternância de abusos e reações, ela não podia possuir. Quem jamais pensaria em atacar riqueza e propriedade de que todos tiram vantagem? O peso dessas limitações se compensa, em face dos equilíbrios da vida, com a estabilidade e o sossego; o não esquecer o próximo, para o rico, se transforma em força protetora; o sacrifício aparente fica bem pago com nova garantia de gozo. Assim, essa cessão à utilidade coletiva reduz-se à vantagem que recai também sobre o particular. O pensamento evangélico caminha muito à frente das incompletas reformas modernas, fazendo do rico, não mais simples proprietário, que trabalha em proveito próprio, mas administrador em proveito alheio. E o Evangelho não chega a soluções tão radicais através de sistemas distributivos artificiais e coativos, mas através do individualismo mais completo e livre. Cristo não apela para as coações estatais, mas se dirige, tão-somente, à pessoal íntima e convicta maturação e ao irresistível funcionamento das leis vitais. No Evangelho a palavra "verdade" suprime e substitui a palavra "sanção". O grande abismo entre os dois sistemas, o evangélico e o coletivista moderno, é o mesmo que vai de substância a forma. O primeiro emprega a paz, é equilibrado e resiste; o segundo utiliza a guerra, é desequilibrado e não resiste. Em todo o sistema de Cristo não se fala em guerra e, por isso, sendo equilibrado, é solidíssimo. O princípio dissolvente, o que prega a desordem e a luta, foi dele completamente evoluído, como terrível força desagregadora que, antes de tudo, deve ser a qualquer custo mantida bem longe, se quisermos construir com solidez. Por essa razão toda agressão, toda violência, todo ódio e todo choque, seja qual for a finalidade, deve sempre ser considerado como absolutamente negativo, destruidor e, por isso, anti-social. O verdadeiro inimigo, o que impede a solução de todo problema coletivo, está dentro de nós mesmos, em nossos sistemas nascidos de nossos instintos, em nossa posição de desequilibrados, no caminho que seguimos para resolvê-lo. As leis da vida são o que são. Não há outro caminho: ou cumprimo-las e gozamo-lhes das vantagens ou descuramo-nos delas e sofremo-lhe as conseqüências.
Daí se vê como a luta de classe constitui o meio menos adequado a esse objetivo. Menos danoso é o sistema de coação estatal. O único sistema perfeito é o socialismo convicto e espontâneo de Cristo, que não agrava a situação, pondo em choque os interesses egoístas, mas começa pela afirmação e tomada de consciência da unidade espiritual que não parte, como o socialismo humano, dos direitos e da luta, mas dos deveres e da paz. Não se nega, por isso, a dura necessidade dos sistemas humanos, pois parece que sem coação nada se possa conseguir de involuídos; verifica-se tão-somente constituírem eles péssimo sucedâneo, de que nada de bom e conclusivo se pode esperar senão na percentagem do produto genuíno contida no referido sucedâneo. O objetivo é sempre a justiça social; os métodos para consegui-lo é que diferem. Porém, aí onde predomina a intervenção do Estado, e ninguém pode desconhecer-lhe a necessidade e a utilidade, torna-se necessário não esquecer o individualismo cristão, de raízes profundamente mergulhadas nas leis da vida e apto a suavizar, contrabalançar e completar o trabalho do outro sistema De fato, individualismo e coletivismo são apenas os dois extremos do mesmo problema social e dois modos de resolvê-lo que não se podem reciprocamente ignorar; são, como homem e mulher, dois termos inversos e complementares e a sociedade pode desenvolver-se apenas à custa do concurso e da colaboração harmônica de ambos. De fato, ninguém é mais coletivista que o individualista cristão; em nenhum programa há tanto coletivismo como no programa social de Cristo. Por isso, é mais fácil chegar ao coletivismo verdadeiro através do individualismo que do próprio coletivismo. Ninguém discute a importância construtiva do senso orgânico representado pelo Estado moderno; porém, neste livro também se afirma que, sem a concomitante maturação intima do indivíduo, esses sistemas exteriores e coativos, e, por isso, desequilibrados, podem, abandonados a si mesmo, reduzir-se a asfixia, mentira, reação, instabilidade. Nada consegue durar, se não conseguirmos também persuadir e educar. O indivíduo, se não for persuadido, embora sofra e obedeça, poderá refugiar-se na inviolável liberdade do espírito. Ao contrário, todos os sistemas humanos fundados na coação, naturalmente produzem as reações já descritas. Torna-se necessário, quando nos dispomos a construir, levar em conta, não só no campo moral, como também no social e utilitário, aqueles equilíbrios de forças que o Evangelho demonstra conhecer profundamente. Se não for assim, o método humano ficará na situação de retardatário relativamente ao de Cristo e quem praticar este último, representativo de superamento da força, se tornará independente de tudo quanto dela se origina. A estratégia cristã, baseada na verdade e na justiça, pertence a um plano superior ao plano humano da força e do império e, por isso, é mais poderosa e vence o combate travado entre os dois planos, como acontece, na luta entre involuído e evoluído. Assim, os exércitos mostraram-se impotentes para defender Roma, enquanto a Cristandade, desarmada, se colocou a postos e venceu.
XXI
CRISTO PERANTE ROMA
Não podemos compreender bem a revolução social iniciada por Cristo e em seguida continuada lentamente através dos séculos, até ao decisivo e atual momento histórico, senão comparando rigorosamente a psicologia da romanidade imperial com a do programa evangélico. O problema continua atual porque o choque das forças contrárias é idêntico hoje em dia e o mundo se encontra nas mesmas condições: as duas concepções estão nitidamente em luta. Observemos a estrutura da concepção social romana, para em seguida verificar como o Cristianismo, desarmado desfecharia o assalto às bases mesmas dos princípios que regiam toda a estrutura do império e, justamente por ser, fase biológica mais evoluída, o poderia pacificamente superar e vencer. O choque se dá, essencialmente, entre força e justiça, entre duas diferentes estratégias, que não combatem no mesmo plano e com as mesmas armas e falam línguas mutuamente incompreensíveis. Cristo e Roma estão face a face. Simbolizam dois sistemas, vivos ainda hoje, ainda hoje face a face o problema continua atual. O estudo do dinamismo íntimo, já explicado, dos dois mundos representados respectivamente por Cristo e Roma, nos demonstrará sob forma racional o significado íntimo desse choque.
O império romano representava a máxima realização da força, plenamente triunfante. O direito romano é, sem dúvida, poderosa criação de gênio coordenador, admirável monumento de disciplina e organização; porém, permanece sempre ao nível da força. Na violência mergulham as raízes do direito que, ao invés de quebrá-la, condenando-a, intervém para discipliná-la. É sem dúvida um passo à frente, indispensável primeira tentativa no sentido de domesticá-las e reabsorvê-las; mas o princípio, tão distante do evangélico, é baixo, biologicamente adequado ao tipo involuído cuja inferioridade já examinamos. O direito romano não se rebela contra esse princípio, mas o aceita e, contentando-se com dignificá-lo, intervém para aprovar, tornar válido e legalizar o fato consumado. Da maturação evolutiva daqueles tempos não se poderia exigir mais. O Império nada mais era senão o método mais aguerrido, orgânico e legítimo de dominação. Mas se fez tudo quanto a evolução biológica do tipo majoritário permitia. Por isso, permanece de pé, embora em sentido relativo ao momento histórico, a indiscutível grandeza do Império e a função social de suas criações jurídicas. Os romanos, sem dúvida, introduziram ordem na força, que, assim, de impulso desagregador, se viu constrangida a tornar-se instrumento de construção social. Comparado com a indisciplinada violência do selvagem, esse fato constituiu sem dúvida grande progresso. As províncias anexadas foram, decerto, exploradas, esmagadas, submetidas a servidão e a pagamento de tributos com que se alimentava o tesouro de Roma; mas foram, também, incorporadas ao grande organismo, governadas e, por isso, impregnadas do conceito, para elas superior, de organicidade central que Roma lhes transmitia. A grandeza imperial desabou, fora de dúvida, como mão de ferro sobre o mundo daqueles dias; não havia, porém, outro modo de civilizá-lo. Por isso, tudo estava biologicamente proporcionado, correspondendo às necessidades da época.
Contudo, o vício originário de que resultava toda a estrutura do sistema, embora justificado e até mesmo enobrecido, constituía permanente acusação movida à Romanidade, comparado com os métodos mais evoluídos enunciados pelo Evangelho. O fato de Roma, máxima potência jurídica, ter sido a mãe do Direito, jamais pôde impedir que suas raízes se embebessem no espírito de dominação e nas violentas conquistas da guerra. A mancha era mais tarde considerar-se plena e legítima a propriedade filha do furto, obtida apenas com o emprego da força. Esse reconhecimento oficial do direito do mais forte, essa adesão incondicional a esse principio moralmente inferior revelam o baixo nível espiritual daquele povo e constituem acusação contra ele. Acusação de egoísmo que, num mundo de civilização mais adiantada, não lhe daria o direito de tornar-se nação senhora das gentes. A força transformada em justiça, eis as bases do Império Romano. O estudo que fizemos do valor da força do dinamismo dos fenômenos sociais nos mostra as razões da queda daquele Império e de sua substituição pelo Cristianismo. Isto é, mostra-nos que a violência gera contra seu autor reações inimigas e destrutivas e, como o Cristianismo representava princípio mais elevado, tinha o direito de viver no lugar do antigo princípio, sepultado nas próprias ruínas por ele buscadas e cujas funções já se encontravam esgotadas. Conceitos esses incompreensíveis para os romanos. O Evangelho estava acima de sua compreensão.
A Antiga Roma é grande, mas apenas no plano humano. Seu gênio conquistador é grande. Para criar e aumentar sua riqueza, Roma guerreou contra o mundo durante sete séculos. Acumula, depois se entrega aos prazeres e cai vítima de seu poder, é traída pela mesma riqueza em que acreditou. Erros no sistema, destruídos com poucas palavras de Cristo no Sermão da Montanha. Mas os positivistas da antigüidade não o entenderam e foram vítimas disso. Sua filosofia era superestrutura refinada, vã e fictícia, sem ligação com a vida; não passava de discussões acadêmicas, não interessadas em modificar-lhe as bases, que permaneciam firmes e significavam: dominar. Meio a empregar: a conquista guerreira. Resultado: o solo provincial, propriedade de Roma, os tributos pagos por aquelas terras ao proprietário. Os povos dominados são constituídos principalmente de vencidos, sujeitos a contribuição, escorchados pelo fisco, ajoelhados aos pés da "Urbs" administradora da justiça. O resto, o menos importante, não interessa e, por isso, é magnanimamente dado como presente; mas o poder judiciário supremo permanece em mãos do magistrado vindo de Roma.
Essa a situação com a qual Cristo se defrontou, esse o sistema enfrentado por Ele, sistema de função histórica já esgotada e próximo do aniquilamento. Ele compreendeu Roma; Roma, porém, não O entendeu. Ninguém, ou quase, notou Sua presença, que no entanto representava o futuro, o único futuro possível. Cristo se ergue diante de Roma e inaugura diferente sistema fundamental, que ataca o outro nas próprias origens e o vence e é de outra natureza e pertencente a nova fase biológica. Cristo coloca-se em plano mais elevado e dele é que olha todas as coisas Ele, embora impregnado de dignificante respeito pela autoridade, não desce jamais ao nível de Roma, não compete com o poder, não o trata de igual para igual; obedece-lhe por dever, mais como homenagem ao próprio dever, isto é, ao valor dessa figura moral, do que ao poder considerado em si mesmo, quer dizer, à superioridade do domínio alheio. O seu é respeito mais ao princípio do que ao homem, que vale o que vale. Dá, pois, ao poder tudo quanto lhe diz respeito, como se se tratasse de criança a quem não se tiram os brinquedos, tão pequeno valor se atribui ao que ele de fato é e reclama. Em substância, a atitude de Cristo perante a autoridade do mundo é a de respeitoso e dignificante desprezo porque, em relação ao céu, são desprezíveis o mundo e tudo quanto lhe pertence. Realmente, Ele despreza a realeza terrena oferecida pelas turbas, sentindo-se rei, mas de reino bem diferente. Sua atitude em relação às autoridades constituídas não poderia consistir na costumeira atitude humana que, filha da força, não passa de servilismo, ou, então, de rebelde tentativa de subverter as posições para, em seguida, ocupá-las; sua atitude, muito ao contrário, porque deriva de princípio mais elevado, é naturalmente superior e quase de indiferença. Os grandes valores não residem lá onde o homem pensa e os valores humanos não merecem tanta atenção. Considerados em si mesmos, causam-nos mais piedade que inveja, se não contiverem mais elevado conteúdo moral de função e emissão. Assim, a posição de Cristo em relação a tudo quanto é tido no maior apreço como afirmação do homem da força, é negativa, de respeitosa abstenção, tão longe deste mundo estão os maiores tesouros da vida, tão diferente da posição em que se crê é a realidade íntima das coisas, tão repleto de poder e riqueza está o outro reino, o do céu. Eis como o espiritual e o temporal se tocam, sem que, porém, um invada o campo do outro. Tudo quanto Cristo tem em grande apreço é desprezado pelo mundo; Cristo despreza tudo quanto pelo mundo é tido em grande consideração. Que pôde o império de Roma contra ele? A lei, filha da força, não possuí outra arma senão a força; poderá constrangê-lo; Ele, porém continua livre no espírito. E, ameaçado por Pilatos, autoridade humana, responde-lhe que o poder vem do alto e não somente de baixo, quer dizer, é bem diferente do simples resultado de uma conquista, do exercício do império pelo vencedor, do arbítrio, de simples vantagem; muito ao contrário: é função social enquadrada em uma hierarquia de forças e funções em direção a Deus; é comando em favor da obediência; consiste em dominar para servir, em impor-se, mas sob a orientação de princípio e apenas enquanto em relação com ele; constitui, pois, missão, dever, cumprimento da lei de Deus, a quem todos nós devemos prestar contas. Todo o sistema da força sobre que Roma se ergue acaba sendo tragado e naufragando aos pés desse sistema derivado de princípios tão diferentes. Ao afastar a pedra do sepulcro, o Ressurrecto abalou até os alicerces do mundo que o circundava.
A força constituía a base do império. Cristo substituiu-a pela justiça. O egoísmo e o interesse dominavam em Roma; Cristo substituiu-os pelo amor fraterno. Há vinte séculos já' se anunciou e teve início a atuação desses novos ordenamentos sociais, de que hoje o mundo tenta aproximar-se de novo. E, enquanto Roma fazia funcionar o plano da organicidade social, Cristo iniciava o da justiça social, que ainda hoje provoca tanta luta. Perante exército fundado na força, Ele vence com exército de pacíficos mártires. O sistema desarmado, porém mais elevado, vence ao sistema armado, porém menos evoluído. A estupefaciente e incrível subversão dos valores torna-se realidade. A Lei de Deus substitui a dos homens e os vencedores deixam de ser os mais fortes, juridicamente organizados, para serem os justos, os oprimidos, os vencidos, isto é, os credores, segundo o entendimento da Lei. Cristo proclama outras vitórias e exalta outro tipo de vencedor. O cidadão romano não podia entender nada disso. A solidariedade social não é garantida mais nem pelo direito, pela disciplina da força, nem pelos institutos jurídicos coordenadores, e sim pela reciprocidade do dever e do amor, a que livremente aderimos. Para o cidadão romano, essa nova e convicta liberdade era anarquia; o superamento, absenteísmo; a paciência, vileza; a obediência, debilidade; o sofrimento, derrota. Tão grande diferença impossibilitava a compreensão. A conceituação do direito é atingida em cheio e abalada em seus próprios fundamentos. O direito não é mais filho da força, o resultado de conquista, concessão ou pacto. O novo direito prescinde da força e, por constituir-se essencialmente de justiça, é até mesmo contrário à própria força. Baseia-se em princípio completamente diverso do jurídico romano, participa de outro sistema e de outro mundo. Não se trata mais do direito humano da força, mas do superdireito do merecimento. Não é mais o homem quem, como nos mercados, toma da balança e pesa o "deve" e o "haver" dos direitos e obrigações; as forças íntimas da vida é que, de acordo com o critério da Lei de Deus, distribuem ou não os bens, premiam ou castigam. Perante esse superdireito substancial, o velho conceito romano torna-se valor formal, relativo, de referência, coisa miserável e mais digna de piedade que de ser combatido. Os líderes e os imperadores são derrubados do trono e, se nele permanecem, isso acontece apenas enquanto são instrumentos de Deus.
Desse modo, toda a diretriz humana varia, o mundo não mais se conserva fechado em si mesmo nem apenas em si mesmo vê os seus objetivos, mas se abre para o céu e nele se completa. Entre a idéia romana e a de Cristo vai um abismo, o mesmo que vai do homem ao super-homem. Para o homem que atingiu o segundo, o primeiro perde naturalmente todo valor. O reino da força, habituado a enfrentar o inimigo tangível e concreto, não estava preparado para resistir a esse assalto negativo e foi vencido. Tudo isso constitui novo modo de conceber o mundo, nova corrente de pensamento, e, ao mesmo tempo, a indiferença, grau mais baixo da desvalorização, e a roedora traça, intima e invisível, que decompõe o velho mundo. As coisas humanas, a vida do império, tornam-se conseqüências secundárias; as bases da ação não se acham mais na terra, o centro de gravidade do universo deslocou-se, tudo gira em torno de outro eixo e, mesmo quando é necessário ocupar-se das coisas terrenas, tudo assume significado e função diversos. O mundo transforma-se por dentro e não por fora. A grande revolução se processa em silêncio na intimidade das almas. Tudo quanto era principal e preponderante acabou subordinando-se a algo novo, recém-nato, que, há pouco desconhecido, se tornou agora o mais importante. O velho mundo não mais encontra rebeldes a serem submetidos, e sim mártires que, perdoando, se deixam matar. E desnorteou-se. Como combater esse inimigo? A força, desprovida de inteligência, apressa-se a fazer a única coisa que sabe: destruir. Mas engana-se, porque na realidade não destrói. Pelo contrário, reforça o inimigo, pois sem dúvida as perseguições exaltam. Mata, porém cria heróis, causa morticínios, mas torna-se instrumento de propagação. Então, a força revela-se o desencadeamento cego que verdadeiramente é, ignorante do jogo delicado de reações por ele começado, sem de modo algum compreendê-lo e, por isso, incapaz de furtar-se às suas conseqüências. O pensamento romano é apanhado por novo mecanismo, sob a forma de pensamento inexplorado, cuja direção não pode assumir, por incompetência e falta de preparação. O povo, principalmente, sem responsabilidade nos crimes do poder e bem próximo das fontes da vida, é o primeiro a receber a semente e a intuir, em sua simplicidade nativa, despida dos preconceitos e artifícios do saber. O povo, por instinto vital, percebe a verdade nova; o povo que sofre tem, por isso mesmo, os olhos abertos e os ouvidos atentos, pois não dorme nas comodidades. Verdadeira campanha de reabsorção do ódio pelo amor, da violência pelo perdão. Não mais uma das costumeiras revoltas à base de desequilíbrios, revoluções aparentes e fora de época, o habitual vaivém da substituição de pessoas, porém nas mesmas posições; mas revolução à base de equilíbrios, de substância, de saneamento, lenta, mas de posição estável, colocada organicamente no dinamismo da Lei e da evolução, feita para durar, como vem durando através dos séculos. E, assim, o império que vencera as batalhas da força perde a batalha sem armas.
Observemos ainda mais de perto o encontro entre os dois princípios, na pessoa de seus representantes: Cristo e Pilatos. Este, homem interesseiro, vil e insignificante, passou à História apenas porque se encontrou com Cristo, de quem não entendeu coisa alguma. O representante oficial do império de Roma, o intérprete da Lei, a autoridade que deve dar o exemplo, embora tente assumir atitude formal, é vazio por dentro e por isso tem comportamento hesitante e equívoco, que deixa transparecer esse vazio interior e a insuficiência do sistema da força e da forma, isoladamente considerado. É inútil querermos, na vida, esconder-nos dessa maneira e justificar-nos, como se as aparências tivessem força de realidade e a forma valesse como substância. A verdade interior acaba, cedo ou tarde, revelando-se também no exterior, pois as reações dependem das convicções, que ao mesmo tempo lhes dão nascimento e lhes servem de guia. Esse homem típico de sua época e do seu mundo não possui nenhum senso interior que o guie e a letra da lei não basta para socorrê-lo no encontro supremo. Cristo fala-lhe de verdades eternas e ele pensa no imperador Tibério e na própria carreira; é um verme que rasteja no pó, algemado aos interesses pessoais e nem de leve suspeita do significado das palavras que ouve; sua alma é surda e Cristo, percebendo-o, não lhe responde. Apenas este argumento a comove: ser ou não ser amigo de César. "Se soltas este, não és amigo de César..." (João, 19:12). Confunde Cristo e seus acusadores na mesma raça inferior, pois um só direito e uma só grandeza podiam existir na sua mente: os do vencedor. Com a cabeça quadrada de romano e modelo de todos os homens práticos e positivos, Pilatos não entende nada. Do alto de sua grandeza moral, armado de poder mais elevado e de autoridade bem diferente da autoridade moral do representante da lei, Cristo perscruta-o intima e demoradamente; e cala. A grave, mas desprezível e distraída pergunta, atirada sem o desejo de receber resposta: "Que é a Verdade?" (João, 18:38), quando proposta, como o foi, por indigno cético, Cristo responde com o silêncio, Cristo despreza até mesmo a própria defesa, pois prefere abandonar-se à Lei e à vontade do Pai a render-se às razões humanas, que constituem a arma inaceitável do sistema humano de Pilatos. Cristo não desce até esse plano. Pilatos pergunta-lhe: "Nada respondes? Vê quantas coisas testificam contra ti. Mas Jesus nada mais respondeu, de maneira que Pilatos se maravilhava". (Marcos 15: 4-5). Não podia conceber o método de Cristo e seus objetivos sobre-humanos. Para ele, era absurda a psicologia do martírio. Cristo respondeu-lhe apenas para dizer-lhe que em verdade era rei e para colocar no devido lugar a autoridade deste mundo, traçando-lhe os limites exatos. Pilatos diz-lhe: "Não me falas a mim? Não sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar? Respondeu Jesus: Nenhum poder terias contra mim, se de cima te não fosse dado". (João, 19:10-11). Assim, outro poder se manifesta por detrás e acima do poder humano, transformando o árbitro vencedor em simples instrumento nas mãos de Deus.
Poderão objetar que Pilatos não era, certamente, tipo exemplar de magistrado romano e, por isso, não representava a romanidade toda. Porém, não se trata aqui apenas do caso de um homem que por baixeza traia um sistema perfeito; trata-se, isso sim, de sistema que põe a os seus pontos fracos, pois não corresponde aos objetivos da vida e do progresso, quando o confiam a um homem qualquer e o fazem defrontar problemas mais elevados e, no entanto, fundamentais para a sociedade humana. Quantas vezes, quem sabe, Pilatos não teria ouvido em Roma as vazias e tediosas discussões de gregos filosofantes, estabelecidas com propósito exclusivamente pecuniário, habituando-se desse modo à idéia de que não se chegava à conclusão alguma, discutindo-se a respeito da verdade, conceito que em seu espírito deveria ter adquirido o sentido negativo de vacuidade e de mentira. Mas esse ceticismo, incapaz de levar a sério qualquer filosofia ou teoria, não era a forma mental de Pilatos apenas. Em sua psicologia aflora a do século, de que ele não era senão um expoente. Pela boca de Pilatos falam os tempos já incapazes de acreditar seja lá no que for, fala o materialismo de Roma, que os alimentava e representava. E como a Roma imperial não dispunha dos elementos necessários para saber compreender e levar Cristo a sério, assim também Pilatos não o compreendeu nem o levou a sério isto é, não se mostrou capaz de fazer nem mais nem me nos do que seu mundo sabia fazer; de um lado, Cristo; de outro, um mundo repleto de incompetentes. Em Pilatos encontravam eco Roma e o seu tempo. Ele era filho e produto de ambos, como o efeito que, ligado à causa, não pode deixar de exprimi-lo e representá-lo. Não apenas substancial, mas até mesmo oficialmente, Pilatos era, como magistrado, o representante do povo e do pensamento de Roma, da autoridade imperial que, de fato, não o desaprovou e, assim, lhe subscreveu o ato. Concordou com ele; logo, tornou-se co-autora. A desonra do Gólgota não constituiu, pois, apenas erro e culpa do homem, mas também erro e culpa do sistema que fizera o homem assim, e o obrigava a comportar-se desse modo. O erro continuou, de fato, por séculos e séculos e sempre com novos mártires, exatamente porque esse sistema não era capaz de entender senão a autodefesa; encerrado no próprio egoísmo, não sabia elevar-se a visões de conjunto tão vastas ao ponto de abrangerem a evolução do mundo.
Para lutar é necessário ter afinidade e compreensão, ter algo em comum que una e divida. Cristo e Pilatos representam dois mundos diferentes. Estranhos um ao outro, senhores de dois campos diversos, encontram-se por acaso, sem se haverem procurado; cada qual raciocina com todo rigor lógico, mas o raciocínio de um e de outro são reciprocamente absurdos. Cristo compreende perfeitamente ao outro e por isso cala. Mas, ao contrário, a forma não compreende a substância, a força não compreende a justiça, mostra-se cega, apenas capaz de golpear e, assim mesmo, de golpear às cegas, sem compreensão, dando-se a espetáculo tão escandaloso que demolirá sutilmente, durante séculos e séculos, o principio de autoridade baseado na força. O poder humano condena e assim, em virtude de poder mais alto, atrai sobre si a condenação do mundo. A força, quando não guiada pelo espírito, comete enganos e fracassa; e a justiça mais perfeita do espírito triunfará apesar da injustiça humana. A batalha, sintetizada naquele primeiro encontro de Cristo e Pilatos, continuará a travar-se durante milênios, seguindo o desenvolvimento dos impulsos que ela representa. Se no drama Cristo e o Sinédrio estão frontalmente opostos, como verdadeiros antagonistas, no campo moral do bem e do mal, que lutam, porém, não se entendem; ao poder civil nem mesmo essa honra se concede. Judas e o Sinédrio vão direito aos seus objetivos. Pilatos é uma série de contradições, incertezas, mal-entendidos. A própria inscrição indicativa do titulo da condenação "Jesus Nazareno, rei dos judeus" não passa de mal-entendido. A mente de Pilatos girava em redor de centro totalmente diverso. Assim, para se esquivarem, procuram ridicularizar. Para livrar-se de Cristo, manda-o a Herodes. Declara duas vezes: “.... não acho nele crime algum). (João, 19:4) e: "nenhum crime acho nele". (João, 19:6). E pergunta: "Pois que mal fez este?" (Lucas, 23:22). Portanto, nenhuma culpa acha no acusado, reconhece-lhe a inocência e deixa executar-se uma condenação que podia e devia anular. Torna-se, desse modo, cúmplice do Sinédrio que, ao invés de promover um julgamento, tramava a morte já preconcebida e preordenada com propósito deliberado. "Então", diz Mateus (27:24-25): "Pilatos, (....), lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo: considerai-o vós. E, respondendo todo o povo, disse: O seu sangue seja sobre nós e sobre nossos filhos". Eis a figura "daquele que por vileza foi o autor da grande recusa". A recusa foi grande e vil. Pilatos se convencera da inocência de Cristo, pois o chama justo. Pergunta: "Pois que mal fez?" porque percebeu a falsidade da acusação, movida apenas pelo ódio. "Porque ele bem sabia que por inveja os principais dos sacerdotes o tinham entregado". (Marcos, 15: 10, 14). Repete: "Não acho culpa alguma neste homem" (Lucas, 23: 4, 22) e procura libertá-lo; no entanto, deixa-o caminhar para a morte. Poderia e, mesmo, deveria ser juiz e administrar justiça; porém, não soube nem mesmo resistir à injustiça e transformou-se-lhe em instrumento e em escravo. Todavia, percebeu a injustiça e tentou evitá-la, mas só enquanto pôde fazê-lo sem muito trabalho e sem dano.
No vão esforço de fugir à responsabilidade, Pilatos experimentou quatro expedientes. O primeiro foi mandá-lo de novo à presença de Herodes. O segundo, a flagelação, como simples castigo para, em seguida, pô-lo em liberdade. O terceiro, permitir ao povo escolher a libertação de Cristo ou a de Barrabás, ladrão e assassino. O quarto expediente, a tentativa de mover a multidão, à piedade, apresentando-lhe Cristo: "Ecce homo[12]! Miseráveis contemporizações, subterfúgios vãos, imperdoável incerteza! O destino impunha a Pilatos que, em tão grande momento, tomasse posição clara; não soube, porém, e calou-se para todo o sempre entre os vis e os irresolutos, "desagradável a Deus e a seus inimigos".
Na realidade, Pilatos tem medo da multidão, cede a suas intimações; a sentença que proferiu não resulta de julgamento regular, é uma farsa. Entre tantos julgamentos, não houve um só verdadeiro; no entanto, Cristo foi reconhecido réu de morte. Nesse momento, a justiça competente por direito humano, não funciona e cala. Pilatos abdica do poder, pactua com a turba, procura voltar as costas a essa responsabilidade que não tem a coragem de assumir; no entanto, sua obrigação era afirmar a inocência de que já se convencera, ao invés de deixar-se arrastar à condenação de Cristo. Serve de joguete para os Juizes que, conhecendo-lhe o lado fraco, o fazem decidir-se, ameaçando-o da maneira mais eficaz: "Se soltas este, não és amigo de César" (João, 19:12).
Assim a História julga os juizes e processa a autoridade processante. Esse foi o exemplo do representante do poder civil, do procurador Pilatos, modelo da justiça humana baseada no sistema da força, símbolo do involuído amoral, expressão do espírito daqueles tempos, do homem que cede às pressões humanas e permanece indiferente às superiores realidades do espírito. Permaneceu ainda por vários anos no seu ofício e não pagou por seu crime. Mas a justiça humana ficou manchada e há vinte séculos não sai da berlinda. Sua posição em fato histórico de tamanha importância será como um ferrete que ainda a seguirá através dos tempos. A justiça humana desonrou-se. A injustiça do Gólgota constituiu injustiça da justiça e descrédito permanente do resultado dos julgamentos humanos. Esse caso tornou-se o símbolo de todas as condenações do justo, tornou-se exemplo clássico que começou a tradição, o hábito quase, de erros judiciários providencialmente destinados à glória das vítimas e a transformar-se em instrumento de seu triunfo. Propagou-se desse modo o conceito de uma justiça superior, seguida por mártires e heróis, que devem pagar tributo à formal justiça humana, simples e honesta aplicação da lei do tempo. E, assim, começou a notar-se na História a presença desse fenômeno necessário de contínuo superamento das idéias e das leis, e compreender a função e a dar o devido valor aos revoltados contra o antigo estado de coisas, revolta manifestada na luta em prol de novo e mais elevado ordenamento. Em face dessa inexorável necessidade de evoluir, o respeito pela ordem existente caía do plano dos valores absolutos no dos relativos. E os habituais rebelados contra qualquer ordem, os habituais e interesseiros homens de partido; tomaram da nobre auréola dos mártires inovadores para com ela fingirem-se mártires também e, assim protegidos, satisfazerem-se com mais facilidade. Na terra tudo se utiliza. Porém, no coração humano permanece sempre inapagável o vestígio da iniquidade sofrida pelo grande afirmador da verdade e do fundador de novo reino na terra, que é promessa ainda viva e vital, mesmo depois de vinte séculos, e que constitui a única esperança no futuro.
Falamos de erro judiciário. O caso de Pilatos, porém, é muito mais grave do que quaisquer dos erros habituais imputáveis à imperfeição humana. Compreendeu exatamente a inocência de Cristo e, por isso, o defende, mas apenas enquanto pode fazê-lo sem prejudicar-se. Quando não pode, o interesse julga mais conveniente mudar de rumo, Então, Pilatos, homem da lei, aparentemente o homem talhado para o cargo, mas no intimo reles aproveitador, revelando o espírito egoísta de seu tempo, entrega à morte a vítima inocente. Todavia, mesmo a limitada e apenas esboçada defesa que Pilatos faz da inocência de Cristo funda-se em razões bem diferentes das capazes de conduzi-la valorosamente até ao fim. Se Pilatos compreendeu a inocência de Cristo, considera-o simples inocente por ele defendido em vista de relações jurídicas e por motivo de direito e não por causa de razão situada acima do direito. Comporta-se, desse modo, como qualquer materialista míope que, através da forma, não enxerga a profunda realidade das coisas. Da superioridade de Cristo em relação a todo o seu mundo, da transformação social, da Sua missão e do Seu pensamento, Pilatos não entende coisa alguma.
Não podemos, sem dúvida, dizer que Pilatos seja Roma, isto é, toda a Romanidade. Mas podemos afirmar que naquele momento e por causa de sua conduta, outro tribunal se ergueu diante do tribunal humano e lhe aplicou a indelével marca da infâmia; tudo isso se passou por obra e com os recursos da paz e da mansidão. Por isso, este é também um encontro de sistemas, em que o da força leva a pior e permanece condenado através dos séculos. A força, embora juridicamente organizada, demonstrou ser instrumento capaz, abandonado a si mesmo, sem o concurso e a orientação do espírito de constituir não auxílio, mas obstáculo ao progresso, não um meio para estabelecimento de ordem, mas de desordem. Naquele dia se fez ao mundo esta advertência: Cuidado, essa concepção é insuficiente, falta-lhe algo de essencial. Completai-a. Ela tem sua razão de ser, mas deve progredir ainda. A legalidade não basta, se representa traição, se em alguns casos, ao invés de função que impulsiona para a frente a evolução, pode transformar-se no freio que a detém. Ao homem não satisfaz mais justiça que torna possível, embora nem sempre aconteça, condenar inocente e benfeitor e libertar malfeitor. Algo protesta no fundo da alma humana, aí onde a Lei clama por justiça. A consciência sabe distinguir; por isso, condena o poder e a autoridade capazes de trabalhar pelo que não deveriam e de causar dano ao bem e à vida, ao invés de defendê-los. Pilatos não é Roma toda, mas sem dúvida significa um sistema jurídico que lhe revela as insuficiências, um estado humano involuído que lhe demonstra a cegueira. Quando o ponto de partida é a força, então a dura necessidade de defesa individual e social pesa sempre sobre a função judicante, que pode até tornar-se seu instrumento, transformando-se em injustiça. Apenas Cristo atingiu a essência do problema, dizendo: "Não julgueis". Quem, como o homem, está empenhado na luta, não pode conservar-se imparcial e, por isso, não pode julgar. Onde pode encontrar-se um juiz sem mácula? Só em Deus e é em Deus que o homem, insatisfeito com todos os demais, procura o verdadeiro juiz. Nas mãos da justiça humana, baseada na força, a espada é mais poderosa do que a balança e prevalece contra ela. A espada pesa e faz a balança pender do lado de quem a maneja, conquistou para si e a conserva para si. Não há outra solução; evoluir, evoluir, evoluir, para tornar cada vez mais leve o peso da espada, que sobre nossos ombros a involução atual coloca. Evoluir ao longo do caminho traçado por Cristo. A espada é a desordem pertencente ao passado, a balança constitui a ordem pertencente ao futuro. Trata-se de reequilibrar as forças desequilibradas durante a luta. A evolução caminha da espada para a balança. Do dilema não saímos: ou melhoramos nesse sentido e, por meio da bondade e da lógica, alcançamos a verdadeira justiça, superando a força e pacificando-nos com a não-reação ou, então, continuamos a sofrer, quem sabe quanto, as conseqüências do sistema em vigor. No primeiro momento, sem dúvida, todos se aproveitaram do justo e pacífico seguidor do Evangelho. Se, porém, a força dá vantagem imediata, a lei de justiça está inscrita no coração do homem que, por instinto, condena a força e se sente obrigado a eliminá-la. Inaugurar o novo método no mundo feroz de nossos dias é, por certo, trabalho de mártires; mas a verdade é que, sem martírio, não se inicia civilização nova.
Esse o significado daquele primeiro encontro da Romanidade com o Cristianismo, primeiro impulso de renovação biológica. Problema relativo ao passado, ao presente e ao futuro. Hoje, dois mil anos depois, a humanidade aí retorna, um pouco mais madura apenas, com ânimo e estilo diversos, sem a intuição e a paixão dos mártires, mas com atitude racional, armada de ciência e técnica, de planos orgânicos sociais, de vastos recursos de enquadramento, secundada por grandes massas, mais ágeis e unificadas. O esforço é tremendo; a tentativa, enérgica; o momento, decisivo. De duas uma: ou sobre essas bases criar nova civilização e melhorar a vida ou, então, suportar durante séculos as tristes conseqüências do bárbaro e atual sistema da força. Sem dúvida, o pensamento social de Cristo é elevado, mas muito elevado mesmo. Mas, exatamente por isso, pertence ao futuro. A vida impõe o progresso e necessita de ascender. O Evangelho é o cume, o objetivo máximo. Quem quer que suba, porém, tende a atingir o ponto mais alto. De tempestade em tempestade, de revolução em revolução, a humanidade não pode ir a outro lugar. De guerra em guerra não pode encontrar senão a paz. O pensamento de Cristo representa o ciclo biológico da humanidade. Ninguém lhe escapa. É o objetivo da vida e aguarda-nos. Isso constitui verdade sempre nova; o tempo passa e ela se torna cada vez mais verdadeira e atual, porque se aproxima cada vez mais da realização. O Evangelho é um programa. A humanidade futura será fruto de sua execução.
XXII
TEMPESTADE
Essa rápida sucessão de conceitos, até agora expostos; por alto, aconteceu em hora trágica para o mundo e move-se sobre o fundo apocalíptico da maior tempestade jamais conhecida pela História. Este livro, que é sofrimento, não poderia nascer senão em meio à grande dor de que suporta o peso e sintetiza o esforço. Iniciei o escrito em fins de março de 1944 e continuei-o ininterruptamente até o capitulo precedente, terminado nos começos de junho, quando a guerra, progredindo na Itália em direção ao norte, atingiu e ultrapassou Roma. Logo depois aconteceu na França o desembarque do Atlântico. A primeira parte do volume escrevi-a, pois, nos fins daquele inverno pleno de expectativa em que o "front" italiano permaneceu estacionário em Cassino, e, não tendo o desembarque das Nações Unidas em Anzio atingido proporções decisivas, em toda parte se esperava algum grande acontecimento resolutivo. No início deste capítulo o grande incêndio europeu reacende-se furioso e o terrível rolo compressor da guerra põe-se em movimento também na Itália, para avançar em direção ao Norte através das províncias do Centro, semeando também nestas o extermínio. Este manuscrito, bem assim a sua continuação, nele implícita, foram salvos graças apenas a milagre insistente e prolongado, isto é, por uma combinação de impulsos e movimentos de tal modo inteligentes e dotados de previsão, tão decididamente guiados e com tal tenacidade mantidos na mesma direção que justificava a presunção de por detrás delas estarem presentes um conceito e uma vontade diretivos e excluía a hipótese do acaso. A continuação do pensamento deste volume, neste ponto, é retomada nos fins de 1944, na devastada região umbro-toscana, depois de passado o ciclone da guerra, isto é, depois de período de esforço físico e tensão nervosa verdadeiramente excepcionais. Mas o espirito, sempre vigilante, tudo observara, julgara registrara.
Narremos agora alguns episódios da guerra, não por motivo de sua gravidade e importância exterior, que muitos terão experimentado de modo bem diferente, mas por causa do sentido interior com que foram vividos e pelo significado universal que podem assumir, vistos assim em profundidade. Analisando, assim, esses casos humildes, até no seu sentido mais oculto, colocamo-nos diante dos grandes problemas da vida; aprofundando o olhar até às raízes mesmas da realidade, damo-nos conta da gênese dos acontecimentos. O pequeno fato individual, de superfície, adquire assim ressonâncias universais. Veremos, então, aflorar no fato exterior aquela misteriosa realidade do imponderável que se esconde profundamente; esse fato, mais do que em sua aparência concreta, mostrar-se-nos-á no funcionamento dos princípios que o regem, das forças que o movimentam, isto é, na sua mais verdadeira realidade interior, aquela que, em todo acontecimento, quase sempre nos escapa à observação. Assim, observando profundamente, o longínquo e fugitivo imponderável é trazido aos primeiros planos como figura central e, arrebatado às suas misteriosas profundidades, obrigado a revelar-se, mostrando o mecanismo da orientação interior impressa nos fatos exteriores. Veremos, desse modo, o Deus recôndito, que se esconde de nós no superconcebível, aproximar-se em plena luz, vivo, presente na ação. Os episódios reduzem-se aqui à sua essência de desenvolvimento de forças cósmicas dominadas pela vontade da Lei e pela inteligência de seus princípios. Deus resplandece no fundo desses contrastes violentos. O bem e o mal se defrontam, eterna substância das coisas.
Era de madrugada, esplêndida madrugada de junho. Por um atalho que subia ao longo de uma torrente apertada entre os montes, um homem fugia: do homem, da cidade, da civilização destruidora. Já no limite do esforço que suas forças de pobre sexagenário lhe permitiam, carregava o indispensável, apanhado às pressas ao deixar a casa. Seguia-o a mulher, também carregada de coisas, e a filha com a criança no colo. No encanto da pura madrugada estival, a fuga era triste, plena de terror. Tinham sido violentamente arrancados do ninho. Sobre as casas vizinhas, na cidade, aviões haviam lançado bombas, semeando a morte e a ruína. Ribombos terríveis e abalo de terremoto, estilhaçar de vidraças e chuva de pedras; depois, por toda parte fumaça escura e densa. A morte por esmagamento e, vizinho, seu hálito ardente; o terror. Desse modo fugiam, sem saber para onde, por instinto de animal perseguido, daqueles golpes terríveis que poderiam cair-lhes sobre a cabeça. Não havia abrigos antiaéreos. Fugiam desesperadamente, no paroxismo de esforço nervoso. Tudo em redor, no campo, em todas as criaturas, na erva, na água, no ar, o eterno sorriso de Deus esplendia imutável.
Esgotada a reação ao primeiro choque, conjurado por momentos o perigo iminente, o fugitivo sentiu despertar dentro de si, ainda mais potente, o eu interior e voltou a observar e a pensar. Como a beleza da ordem divina era suave e permanecia intacta nas coisas! Apenas o homem, rebelde, tentava impor a destruição. Por que a guerra? Por que esses momentos trágicos? Que pretendia, assim de surpresa, a lógica do destino? Fora, talvez, colhido de surpresa, sem preparação alguma? Pode o caminho da vida apresentar curvas tão imprevistas e imprevisíveis que a razão fique inibida e se inutilize toda a nossa orientação? Não. O sábio deve conhecer todos os ataques possíveis, deve ter atingido filosofia completa que encare todas as possibilidades da vida, deve ter achado uma verdade universal e satisfatória, que lhe dê a razão de todo fato e o encaminhe à solução de todo problema. Queria e devia entender, possuir respostas que bem sabia não podiam ser obtidas senão por si mesmo. Há responsáveis? Quem são e onde encontrá-los nesse oceano de forças e de homens que é a sociedade? Podem os dirigentes impor sofrimento a povos inteiros ou os dirigentes não mandam senão na aparência e, realmente, obedecem, e todos os seus súditos também, a leis e forças de que são apenas os expoentes? As causas, agora, são diferentes das visíveis; outra é a hierarquia dos responsáveis; todos são golpeados por outras razões internas, totalmente diversas das que se mostram externamente; os poderosos constituem o instrumento de outra inteligência e executores de planos diferentes dos seus; e os verdadeiros responsáveis (quem os conhece!) apenas podem ser atingidos pela justiça de Deus. Só Ele sabe avaliar, nós não sabemos; só Ele conhece a trama: secreta da vida de cada um, por nós desconhecida; só Ele tem o poder de alcançar e golpear que não temos. A lógica do espírito faz-nos procurar justiça perfeita, que não existe na terra; onde encontrá-la? Até que ponto, caso por caso, o homem é livre e até que ponto chegam o poder e a extensão da fatalidade no destino? Qual o limite entre as duas zonas e o equilíbrio entre as duas forças? São as grandes massas responsáveis como massas, independentemente dos lideres, que são responsáveis perante a Lei? São inexoravelmente arrastadas pelo determinismo histórico?
O homem pensava. Os problemas, tão remotos para os demais, estavam-lhe muito próximos Encontrava-se em pleno turbilhão, a seu redor girava o "maelstrom" do mundo e o vórtice tentava agarrá-lo também a fim de arrastá-lo até ao fundo, em suas espirais. Tinha de defender-se. Mas, para defender-se, necessitava compreender. Um tipo normal não teria feito esforço maior que o necessário à defesa superficial, contentando-se com tentativa de defesa. Ele, porém, exigia de si mesmo uma defesa profunda, seguríssima, colocada muito além da ilusão costumeira. Esta sua reflexão mesmo nesse momento não era inútil. Sob a tensão nervosa e o esforço, em pleno desenvolvimento da reação ao choque recebido, seu espírito ferido expedia centelhas e seu cérebro clarões de relâmpagos. Como sua vida, assim toda a sua reação era preponderantemente psíquica, isto é, se dava no campo em que aquele homem mais se desenvolvera. Restringindo o problema aos elementos mais pessoais e urgentes, procurava saber que teria acontecido consigo. Para sabê-lo, interrogava a própria consciência, perguntava a si mesmo se era ou não culpado e se por isso devia ou não ser responsabilizado. A ele, conhecedor do funcionamento das forças da vida, parecia-lhe mais útil perscrutar a lógica interior dos fatos de preferência à sua aparência exterior. Apreender os acontecimentos nas fontes, nas causas, tal era o seu método. Que queriam as forças do destino nesse momento crucial? Esse era o problema e não podia ser outro em universo não sujeito ao acaso, mas dirigido por Lei justa, lógica e inteligente. No passado, dera por acaso nascimento a algum impulso e, por isso, a reação da Lei o ameaçava agora? A verdadeira ameaça residia nisso e não na materialidade da guerra. Será que essas forças, por ele mesmo colocadas em seu destino, o culpavam agora, se erguiam ameaçadoras no seu caminho e iam pedir-lhe conta do que fizera até então? Ou, quem sabe, era inocente e tudo quanto lhe acontecia em torno não passava de mero incidente de superfície e não lhe dizia respeito? Se não pendia sobre sua cabeça nenhuma sanção da parte de Deus, que coisa podia temer por parte dos homens? Rebuscando na sua consciência, procurava saber qual dentre as forças do passado estava tentando reaparecer e que natureza e potência possuía; queria descobrir que impulso queria agora manifestar-se exteriormente, dando vazão a seu dinamismo, completando sua oscilação desde a causa até o efeito. Não havia, porém, tempo para detidas análises. Nos momentos decisivos e terríveis desaba o edifício das realizações humanas, a razão se embaralha, uma síntese da verdade aparece completamente nua perante a consciência e a voz de Deus logo soa clara. Dali a pouco parou, com a rapidez do relâmpago seu espírito intuiu e, nisso, ouviu uma voz interior que lhe dizia: "Fuja; mas, vá para onde for, você não correrá perigo algum".
A pobre família, já bastante afastada da cidade e do perigo, diminuiu o passo, em silêncio. O homem, que ia na frente, sem voltar-se para trás percebia a dor e o medo dos dois seres queridos que o acompanhavam. Pareceu-lhe, então, estar suportando nos ombros o peso de imensa cruz, o peso da dor do mundo, que quase o esmagava. Irresistível impulso levava-lhe o espírito a gritar ao universo: "Sou inocente". Depois se surpreendeu a pensar: "Estranho, esse colóquio com Deus, logo nesse momento e nessas condições! Depois, percebeu como estava cansado e as forças o abandonavam. Então, pensou: "Quem defende a vida? Quem me defende? Quem está ao meu lado agora, no momento do perigo? O Estado, talvez?" Recordou as belas teorias que lhe foram ensinadas na escola, seguidas e acreditadas, e sorriu amargamente. Onde estava agora o Estado, esse ente gigantesco dos tempos presentes, todo-poderoso, que tudo exige, tudo recebe e, por outro lado, tudo deveria dar? Ausente. Agora o Estado tinha de pensar em si mesmo e abandonava os indivíduos a seu próprio destino. As construções sociais do homem estavam em ruínas; não ruíam apenas as construções divinas da vida. Esta, por suas reservas inesgotáveis, capacidade de adaptação e milenares experiências da raça, soube estar sempre preparada para tudo, especialmente nos povos que muito viveram e sofreram, pois ninguém vive sem aprender e pessoa alguma sofre inutilmente. A vida sabe muito bem passar sem a interferência do Estado. Então, as aquisições recentes evaporam-se e apenas permanecem as aquisições profundas e seculares. O homem pode fracassar, a vida não. Quando o homem se engana, a Lei, através de providencial lição de dor, o reconduz ao caminho reto da ordem e, assim, a vida se refaz e continua. Por ela continuamente vela e a protege a Divina Providência, que constitui efetiva proteção biológica, defesa automática e poder saneador, intima providência manifestada pela sabedoria do sistema. Se naquele momento o Estado, providência humana, desabava, a providência de Deus permaneceu firme.
A riqueza, potência do mundo, teria talvez defendido esse homem? Embora oferecesse milhões, na hora do perigo ninguém o ajudaria. Exatamente em momento de necessidade o dinheiro se tornava inútil. Se esse homem fosse um potentado, cercado de servos e dependentes, seriam eles agora seus inimigos mais ferozes, ocupados apenas em salvar a própria pele. No momento decisivo, a riqueza e o poder, se ele os houvesse possuído, tê-lo-iam traído; não caíra, porém, na ingenuidade de acreditar no contrário. Vitor Hugo, nos primeiros capítulos de Os Miseráveis, fala, a propósito da decadência de Napoleão, de marechais traidores, do senado que, depois de havê-lo endeusado, o insultava e escarrava no antigo ídolo. E tratava-se de Napoleão. Mas a lei, para fracos e poderosos, foi, é, e será sempre uma só.
Quem, pois, estendia a mão a esse homem, atirado à desgraça? Quem o acompanhava na fuga, ajudando-o a suportar o peso da desventura? Os amigos, os admiradores, quem o adulava nos bons tempos? Não, ninguém. As perfumadas nuvens de incenso, como fumaça inconsistente, haviam desaparecido no ar. Vaidades humanas. Agora estava sozinho. No momento da provação, verificava a imensa vantagem dele não acreditar na glória, como não acreditara no poder e na riqueza, a imensa vantagem de haver-se acostumado a sofrer e a renunciar e estar moralmente preparado. Em sua vida não houvera senão trabalho, obrigações, dor. Esta a sua bandeira, seu repto, sua força, sua vitória. Apegara-se a valores indestrutíveis, tomara-se indiferente aos golpes do mundo. Sua pobreza era a sua riqueza, sua nulidade a sua grandeza, sua inocência, constituía-lhe o poder e a salvação. Apenas a vida séria e dura e as pesadas fadigas da vida ascensional não lhe haviam mentido nem traído. No entanto, em que situação talvez se encontrassem agora todos quantos, epicuristas e materialistas, se haviam rido à sua custa, como se se tratasse de um louco? O apego deles às coisas materiais constituía-lhes agora a causa de grande dor. Na hora da destruição, porém, ele já se encontrava ligado ao indestrutível. Sua filosofia, e não a deles, é que no momento da provação resistia. Que triste espetáculo de avidez, de ferocidade, de loucura, de desespero, lhe apresentava esse mundo que só acreditara nos valores terrestres! Não. O cataclisma não o apanhava de surpresa, como a tantos. Acima de todos os sonhos de grandeza e de vitória, ele que já vira como a dor constitui a realidade da vida, agora verificava como a dor é também a realidade da guerra. E via que o mais desmoralizado de todos os mundos, e sem preparação moral para a dor, agora se encontrava diante de avalancha de sofrimentos como a humanidade jamais conhecera igual. Agora, podia finalmente comprovar, não desmentida, mas corroborada pelos fatos, quanto era profunda a sabedoria do superamento, através do desprezo das coisas humanas. Naquele momento gozava desta grande vantagem sobre seus semelhantes; a de haver compreendido a vida, de não haver caído no engano de suas miragens, que agora se desfaziam, de não haver construído na areia, de não haver empregado seu esforço e investido seu capital espiritual na obtenção de coisas efêmeras. A quantos iludidos, pensava., não lhes vai cair a venda dos olhos, quando assistirem ao desmoronamento de todas as suas construções! Ele tinha tido necessidade de desenvolver grande trabalho de concentração e sofrer muito para poder atingir mundo superior, e isso, aliás, sozinho, abandonado e escarnecido. O áspero caminho de sua maturação evolutiva estava juncado de lágrimas e sangue. Mas, agora, esse homem, tido na conta de imbecil porque inimigo do desonesto arrivismo que leva ao rápido sucesso, se achava na situação excepcional de quem conseguiria atingir mundo superior e nele encontrar a salvação pessoal, a mesma salvação negada aos outros, e por a, salvo os seus tesouros, intangíveis aí onde a guerra não pode chegar.
Há muito tempo ele aprendera a descrer do mundo e a viver isolado. Mas, embora assim pudesse parecer, não estava só, como bem o sabia. Ninguém pode estar sozinho em nosso universo. Jamais A ignorância do ateu, o poder negativo do mal, a revolta de Satanás contra a ordem reguladora de tudo não podem destruir Deus, que continua a existir e a operar não obstante a sua negação e acima de seus assaltos. Trata-se, sem dúvida, de imponderável que escapa aos grosseiros sentidos do involuído, mas nem por isso se torna menos, real. Em torno daquele homem turbilhonava solene e imenso o ritmo das leis da vida, inteligentes, poderosas, ativas. Aquele homem solitário estava imerso nessa divina atmosfera, aquele homem aparentemente abandonado estava próximo de Deus, e, portanto, menos solitário e menos abandonado que tantos poderosos ídolos das multidões. O imponderável não lhe voltava as costas, como aos outros, mas lhe abria os braços. Ao lado daquele homem estavam o seu passado, suas obras, pois nossas obras nos seguem e a substância da Lei de Deus, ao invés de força é antes de mais nada justiça, e não o contrário, como acontece no baixo mundo humano. Na hora fatal em que ruía o edifício social e seus valores se subvertiam, sua defesa residia agora exatamente em sua nulidade humana, por ele tão prezada. Em primeiro lugar, porque a nulidade, escapa mais facilmente às tempestades, não lhes oferecendo superfície de resistência e, em segundo, porque, como toda pobreza, significa principio de inocência, crédito perante a lei de equilíbrio, direito em relação à justiça divina. Ele procurara defender-se por meio da própria inocência, que encontrara em si mesmo, e não a poder de astúcia, de meios materiais ou de ajuda humana. Esta lhe parecera ajuda mais poderosa que todos os auxílios humanos. Procurara a força em Deus e na consciência a resposta E, em silêncio, gritara a sua inocência ao universo. Grito vindo do fundo da alma, trágico e profundo, que não pode mentir. E o universo, dirigido por Deus, isto é, pela justiça, não pudera deixar de responder, porque do contrário, negaria a si mesmo. Invocara a ajuda das forças ativas no seu plano espiritual, e geralmente, no plano material terreno, paralisadas e afastadas pela mal empregada liberdade humana. Sentiu-se, então, fortalecido, levantou a cabeça e de olhar tranqüilo encarou o futuro. Ele estava no lugar que o dever lhe apontava. Isso bastava. Essa verificação infundiu-lhe na consciência sensação de paz e o inundou internamente de nova energia. O horizonte escuro tornou-se límpido e permitiu-lhe enxergar claramente. A guerra, furacão humano, não o atingia. Essa dor participava do destino dos outros, não do seu. Aquelas armas não podiam matá-lo. Compreendeu, então, o sentido das palavras da voz: "Fuja; mas, para onde quer que você vá, estará sempre em segurança". A Lei de Deus quer que nossas penas sejam filhas de nossos crimes e não da má vontade e prepotência alheias e que nosso destino apenas possa ser construído por nós e só por nós. A grandeza e a justiça dessa Lei naquele trágico momento atingiram o homem com evidência tão viva que seu terror se transformou em confiança e em oração; em meio à dura provação, caiu de joelhos e agradeceu ao Pai que está nos céus, tão pronto a amar-nos e ajudar-nos, se nossa vontade espontaneamente lho permitir.
Pondo-nos de face à realidade mais crua da vida, pudemos observar, em momento crítico, a transformação evangélica dos valores da terra em valores do céu e atingimos o resultado prático ou, mais precisamente, utilitário da invulnerabilidade e salvação, através do superamento da dor. Esse modo de proceder pode ser incompreensível para o tipo humano normal de nossos dias que, quase sempre espiritualmente involuído, põe em jogo outras leis e outras forças e não sabe compreender aquelas que vemos aqui em plena ação. Torna-se necessária, pois, esta condição: a inocência; apenas ela permite visão clara, apenas quem a possui pode invocá-la perante Deus. Não se trata, por certo, de inocência universal, e absoluta, que nenhum homem, enquanto homem, pode possuir. Se a houvesse alcançado, já estaria bem longe deste lugar de sofrimento. Trata-se, isso sim, de inocência particular, relativa a determinadas culpas e às provações correspondentes. Mais do que isso as inocências humanas não podem ser, embora mais ou menos extensas. Um é inocente em relação a um fato; outro é inocente em relação a outro fato; a mesma coisa se diga relativamente à culpa. Por isso, são os destinos tão diferentes e todos se cumprem inexoravelmente. O destino daquele homem não continha reações de violência e de sangue; estava, pois, imune desse lado em que os outros eram vulneráveis; não precisava, por isso, de sofrer as provações a que Os outros seriam submetidos. Estava, ao contrário, exposto a provas espirituais de lenta maceração e desmaterialização, que os demais nem sequer podiam imaginar, a prolongadíssima5 agonias, à violência das tempestades psíquicas, ao choque contra as forças do imponderável completamente desconhecidas pela generalidade das pessoas. Ele, cônscio de seu destino, de seu passado e de seu futuro, compreendeu que a guerra não lhe dizia respeito e nenhum homem ou projétil poderia atingi-lo, se não o permitissem as leis da vida, aplicadas a seu caso particular.
Em geral, na defesa da vida e na luta pela vitória, a inteligência humana não vai além das causas e acontecimentos próximos Em geral, as verdades humanas condicionam-se ao tempo e ao espaço, são verdades de interesse e de partido. Trata-se de verdades que apenas interessam ao indivíduo ou ao grupo e, por isso, mutáveis e passageiras. Estamos procurando a verdade verdadeira que, longe de ser relativa e facciosa, tem de ser universal, interessar a todos os homens, estar acima do caso individual e do interesse particular. Acima da verdade superficial, procuramos a verdade profunda, superior a simples opinião, independente do espaço e do tempo, permanente, capaz de interessar a todos os homens indistintamente e válida para todos, fortes e fracos, poderosos e humildes, vencedores e vencidos, pois, nos maravilhosos equilíbrios da Lei de Deus e no funcionamento orgânico do universo, todo ser tem lugar certo e razão de ser.
Para quem compreendeu essa verdade, a concepção das coisas muda inteiramente. Quem compreendeu que a força humana não pode impedir a ação das forças cósmicas, senão momentaneamente e assumindo a responsabilidade pelos danos, não diz mais: "Ai dos fracos e dos vencidos", mas afirma: "Ai dos culpados, embora vencedores. O que tem valor permanente não é a posição material, e sim a posição moral. Exime-nos da responsabilidade a inocência e não a força, que na melhor das hipóteses poderá retardar, mas nunca impedir a reação primitiva da lei de justiça. De acordo com a lei de evolução, o futuro caminha em direção ao reino de Deus, que pertence somente aos justos. O poder militar, a superioridade técnica, o dinheiro e a astúcia não podem destruir a Lei de Deus, que participa essencialmente das coisas. Quem acredita que para vencer baste a força, representada por grande exército, grandes recursos e organização e dotada de férrea tenacidade, não compreendeu como, no funcionamento das leis da vida, exatamente nesse apelo à força e à conquista violenta, como na guerra reside o ponto fraco do sistema que, precisamente por isso, traz em si mesmo o germe da própria destruição. Então, o gigante de pés de barro desaba, seja qual for; o fato é verdadeiro para quem quer que se encontre na situação de aplicar essas leis, para quem quer que se encontre nessas condições. Não estamos expondo mera opinião, mas simplesmente verificando a existência de algumas leis da vida. O preceito evangélico “Quem com ferro fere com ferro será ferido” exprime racional e inviolável lei biológica. Não fizemos outra coisa senão estender a bem mais vasto campo o princípio da inocência acima exposto, mas tendo sempre em vista a guerra Em face da agitação da atividade humana, a sabedoria dessas leis íntimas, colocadas nas raízes dos acontecimentos, é que rege todas as coisas: por isso, a força mais poderosa, a que vence finalmente, é a justiça. As exceções não passam de momentâneos desvios, concessões mínimas à liberdade humana que, para aprender., deve experimentar o erro. Mas, cedo ou tarde, são retificadas e reconquistadas através do áspero caminho da dor. Para que o homem aprenda, a Lei deixa-se fraudar, mas depois os iludidos devedores caem em si e reconhecem nela o único árbitro da vida. Explicam-se desse modo as oscilações da História. Com isso, neste capítulo demos novos desenvolvimentos e aplicações aos conceitos por nós já considerados quando estudamos a lei do merecimento.
Continuemos seguindo as vicissitudes de nosso personagem. Ei-lo numa casa de colono, atopetada de outros fugitivos. A guerra, vindo do Sul, aproximava-se raivando, com rumor sinistro e cada vez mais intenso, mordendo a terra com feroz encarniçamento. Tudo, como se estivesse carregado de ódio, explodia à traição. As casas, as pontes, os aquedutos, as instalações elétricas, as oficinas, as estradas e as ferrovias voavam. A terra, sem exagero, tremia. Em plena noite, clarões sinistros iluminavam o céu escuro sobre a cidade em chamas. Contínuo ribombo de explosões e perigosos abalos sacudiam o ar. Nos campos, cada vez que apareciam aparelhos isolados ou em grupos, começava, em cadência acelerada, o canhoneio das baterias antiaéreas vizinhas e sobre as cabeças caia chuva sibilante dos estilhaços. Os grandes pássaros de prata, maravilha da técnica e tão belos no límpido azul do céu, desciam rápidos como falcões, semeando morte; ou, então, chegavam de surpresa, em vôo rasante, metralhando. Todos os flagelos da guerra se sucediam em aterrorizante crescendo. Nas casas não ha via nem água nem luz; faltavam as pontes e, por isso, nem se pensava em reabastecimento. Em compensação, a terra estava inteiramente minada, pronta a explodir sob o passo mais leve. Então, como se não bastasse esse inferno, os soldados começaram a entregar-se ao saque e à orgia. Embriagados com o vinho tirado às pobres mesas, roubavam as últimas provisões. A propriedade estava praticamente abolida. Tornava-se necessário expor-se a novos perigos para proteger, embora ameaçados de revólver miseráveis sobras de tantos anos de privações. E, finalmente, o canhoneio. Baterias colocadas bem próximo atraíam chuva de granadas A todo momento podia dar-se o inesperado impacto; e ouvia-se, às vezes isolado, às vezes em longas rajadas, mas todo tiro sempre perfeitamente decomposto em três tempos bem distintos: a explosão da partida do projetil, o sibilo do trajeto e o ruído do impacto. Prestava-se atenção ao sibilo, pois trazia a morte consigo. Onde? Podia chegar a qualquer momento, pelo próprio teto. A morte rondava permanentemente no ar. Ouviam-na sair dai; daí se esperava que ela chegasse. As vezes a morte passava ao longe, às vezes caía a poucos metros de distância.
Nosso personagem observava. Que força estava movimentando esse inferno? Sentia no rosto a respiração do mal, atormentada e cheia de cansaço. Era de certo a voz de Satanás. Quem a ouviu uma vez, não a esquece mais. É áspera, traidora, egoísta, homicida, destruidora. A explosão exprime essa voz, resume essa alma. É terrível ânsia de tudo despedaçar, esfacelar, aniquilar completamente. Tudo tem de ser reduzido a pedaços, emporcalhado, dilacerado, retorcido, queimado, cortante. É o estilo lançado pela guerra, estilo Kaput, estilo moderno, estilo destruição. Esse é o aspecto atual da Europa. É o estilo do mal. É psicologia, filosofia, método científico, loucura ajudada pela lógica, pela técnica, pela inteligência. É o destrucionismo, última fase do materialismo. É o último produto lógico da ânsia desesperada que a civilização moderna trocou por dinamismo criador, é o paroxismo da ação levado a grau de loucura, desequilíbrio não admitido pela natureza, precipitação fatal de um ciclo e prelúdio de fatal mudança de rumo, que está presente em toda regressão. O mal está encerrado no tempo e, por isso, tem pressa. Aí reside seu ponto fraco; ele não o ignora e, portanto, corre. O culpado foge. É desesperado, incerto, desordenado. O sábio trabalha com segurança e calma; assim trabalha melhor e com muito menos dificuldade. O erro representa grande diminuição de rendimento. Essa ansiedade do mundo não se poderia controlar senão por meio de aceleração contínua, constituía instabilidade que deveria necessariamente terminar na auto-destruição. Isso revela o mal, cuja essência é a negação. É raiva que quer ver tudo subvertido, despedaçado. Tudo deve explodir, tudo se destina a matar. É o reinado da fera. Seu sistema é a força; a vitória, mero pretexto, ilusão; a realidade, seu verdadeiro desejo é constituído pelo massacre. Eis aí o ponto a que chega e como termina o método da força.
Por isso Cristo ensinou no Sermão da Montanha[13]: "Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu vos digo, porém, que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te o vestido, larga-lhe também a capa;..." O mal sabe iludir-nos com suas miragens de grandeza e, assim, desafoga a sua raiva, e quem acredita na força e a emprega se torna instrumento da lei e se liga inteiramente à destruição, inclusive à própria. E, então, personifica o princípio destrutivo. O bem afirma e cria, e quem a ele se liga é obrigado à construção, inclusive à própria. Hoje, os construtores não podem senão esperar que a tempestade do mal se acalme e se canse. Isso é brutal, egoísta, desapiedado; mas, acima de tudo, é estúpido. Trata-se de força agitada e frenética, porque desequilibrada, de força cega e absurda, cujo desenvolvimento termina na loucura, no desespero, inclusive na própria loucura e no próprio desespero. Eis o clímax do método da força. Quão longe estamos das características do bem, que é equilibrado, calmo, confiante, esclarecido! Ninguém pode destruir essas leis e impedir que sua manifestação lhes revele a substância
Assim, a guerra avançava como gigantesco rolo compressor, trazendo morte e ruína, às cegas, ao acaso, até para civis inermes, crianças inocentes, mulheres inofensivas, doentes, velhos. E a loucura destruía com exatidão científica, método racional, lógica fria e sistemática, para obter o maior rendimento em morte e ruína, à custa de esforço mínimo, como acontece na fabricação das máquinas em série, na matança de reses. Mas essa ciranda é um vórtice que não se mantém senão a custa de massa e de velocidade, isto é, acelerando continuamente sua fúria macabra, escancarando cada vez mais as fauces e envolvendo em suas espirais número sempre crescente de vítimas. Tem avidez delas, atrai-as, prende-as e assim se alimenta e se robustece. Ai de quem pôs em movimento o "maelstrom" e se lhe confiou. Quem foi o apanhado por ele não lhe escapa mais. No fundo, o que há é desespero para todos, vencedores e vencidos. Estamos vivendo a última conseqüência da filosofia nietzschiana. Seu super-homem ideal arranca a máscara e mostra seu verdadeiro rosto de fera. Nietzsche morreu louco. Loucura, naufrágio final do espírito, satânica ruína de rebeldes à Lei, conclusão fatal inserida no sistema e que diz respeito a quem quer que o siga. Eis os resultados de ciência utilitária, amoral, de ciência sem consciência: as invenções do gênio prostituídas ao interesse e envenenadas ao ponto de se tornarem instrumento de morte. A primeira aplicação notável da conquista do ar foi o massacre da Europa. Não seria ótimo que os cientistas não comunicassem mais, a semelhante mundo, os resultados de suas descobertas?
De tarde, enquanto a infernal voz de Satanás dominava a planície, na miserável casa de colono, rezavam. É sublime falar com Deus, é reconfortante senti-lo bem perto, principalmente nas horas terríveis. Rezavam com simplicidade e fé, na velha cozinha do colono, enfumaçada, pequena, pobre. Rezavam, irmanados na mesma miséria, o camponês e o intelectual, o pobre e o rico, o rústico, morto de fadiga, e o homem fino, abatido e mal vestido. As grandes idéias da vida e da morte, do ódio e do amor da família e dos filhos, do dever do sacrifício, estavam ao alcance da compreensão de todos, formavam essa estrutura da vida, instintiva e essencial, comum a todos. A prece sabia falar ao coração de todos. Em sua fé milenária a raça, já longamente experimentada nas desventuras, reencontrava sua força. A visão das excelsas coisas do céu, de um mundo melhor no além, confortava a miséria do momento. Nas asas da prece aqueles desventurados se sentiam transportados da dor à paz do coração e à confiança na ajuda de Deus, e não ao brilhante e científico desespero do mundo. Em meio daquela pobreza fraterna se sentia vagar suave esplendor; era a figura de Cristo que estendia sobre todos as mãos protetoras, se inclinava sobre toda dor para aliviá-la e na soleira da porta da pobre cabana se erguia poderoso, desafiando a tempestade.
Assim ia o tempo correndo, entre forçados ócios empregados em meditação, perigos e aborrecimentos, terrores e esperanças. Por último, nova ameaça se juntou às demais: a caça ao homem. Militares armados entravam nas casas e requisitavam à forca a última mercadoria que restara: o homem. Certa tarde, chegaram de surpresa à referida casa de colono. Muitos, alertados, se esconderam ou fugiram, alguns foram presos. Nosso personagem estava na cama, cansado, e não fugiu nem se escondeu. Não tinha força para defender-se. Gastara todas as energias no cumprimento do dever, isto é, protegendo, prevendo, provando, encorajando. Não lhe restaram forças para pensar em si mesmo. Aquela hora era, pois, a da Providência, seu derradeiro auxílio. Além disso, causava-lhe invencível repugnância ter de defender-se sozinho, não confiar em Deus para confiar em si mesmo e nos métodos de defesa humanos. Não podia mudar seu sistema, que era o de chamar sobre si o cumprimento do dever, ajudar os outros e confiar na Providência. Sua defesa não era a do tipo comum, isto é, improvisada na última hora e superficial. Fugia da força como fugia da astúcia. Preferia a defesa longamente preparada na procura da invulnerabilidade que deriva do estado de inculpabilidade moral perante Deus, estado em que ele, há muito tempo, tinha procurado colocar-se. Mesmo na luta defensiva comum, empregava as forças de plano evolutivo mais elevado, submetendo-as mais uma vez à experimentação, mas sempre confiante nelas por havê-las visto funcionar tantas vezes. Ele percebia que compete a Deus defender a quem, tendo empregado tudo no cumprimento do próprio dever, não possuía mais meios e forças para prover-se do necessário. Assim, quis, até nesse momento crucial, manter-se coerente com os princípios que jamais o haviam traído. Pôs em prática, portanto, seu método; antes de mais nada, permanecer, com honestidade e plena consciência, tranqüilamente no seu posto de combate e de dever, até o último limite; depois, nada mais lhe restando, desinteressar-se por si mesmo, abandonando-se às mãos de Deus com a fé mais completa. Percebia o profundo funcionamento das leis da vida e que estas não podiam mentir-lhe nem traí-lo; sentia-se participe da imensa organicidade do todo e sabia que a mente diretora não podia permitir a dispersão de parte alguma, por menor que fosse; tinha a nítida impressão da indestrutibilidade fundamental do próprio ser. Posição, por certo, estranha e incomum. Mas é inegável que as forças da vida a percebiam, pois se adequavam a essa sua posição especial. Ele via, então, a Providência tomar corpo na realidade e manifestar-se-lhe aos sentidos, de modo a tornar-se auxilio concreto, via Deus avizinhar-se-lhe e a justiça de Sua Lei tirá-lo do perigo. Sua experiência não era impregnada de dúvida, desconfiada, analítica, mas confiante e embriagadora e cheia de alegria a que não era capaz de subtrair-se. Assim, de alma perfeitamente calma e visão absolutamente límpida, esperou o perigo.
Observemos o encontro entre as duas forças contrárias. Trata-se de dois princípios diversos, de dois métodos de luta, de dois mundos opostos. Espírito e matéria, bem e mal, se defrontam e desafiam, cada qual com suas armas. Quem vencerá? O homem isolado, inerme, mas justo e, por isso, ajudado por Deus? Ou o militar armado, sustentado pelo número, mas assistido apenas por um organismo defensivo humano? Os mesmos conceitos e as mesmas posições, aqui considerados em seu aspecto individualista, vimo-los na "Visão" (aspecto coletivo) referida neste volume (cap. XVI e XVII) e no encontro entre Cristo e Pilatos (cap. XXI). Também no Quo Vadis de Sienkievicz vemos S. Pedro e Nero olharem-se por um instante frente a frente. Em Os Miseráveis, de Vítor Hugo, Mons. Myriel permanece calmo diante da ameaça de Jean Valjean, deixando que apenas sua inocência o defenda e na noite do furto, vemo-lo permanecer ileso, invulnerável, nas mãos do assassino, que se torna impotente para feri-lo. A veracidade dessa lei do merecimento e o poder dessa força da justiça e da inocência foram, embora não demonstradas, percebidas pelos outros.
Nosso personagem, que estava na cama, vestiu-se e esperou. Avisaram-no: "fuja, senão eles o prendem" . Sentou-se calmo, escutando os passos dos militares que vasculhavam a casa. Ouviu-os aproximarem-se. Um oficial escancarou a porta de seu quarto e, apontando-lhe o revólver, avançou até o meio do cômodo. "Você vir conosco", disse-lhe. Levantou-se e respondeu tranqüilamente: "Não posso, estou muito cansado, vou cair ao cabo de poucos quilômetros, não tenho mais força física. Sofro há muitos anos. Não posso suportar novas fadigas, novos incômodos. Estou falando a verdade. Se não acreditarem, podem matar-me agora mesmo. Estou preparado". O militar, que lhe falara, olhou-o com seus olhos metálicos e acrescentou: "Você vir conosco, logo, ou eu disparar". Nosso personagem repetiu: "Matai-me. Estou preparado. Sempre estive. Peço apenas um minuto para falar com Deus. Ide até o fim nessa destruição. Estais armados até os dentes e podeis fazê-lo impunemente. Quem pode deter-vos? Apenas o vosso dano; não o vedes, porém. Minhas armas são outras. Não o entendeis. Quem, pois, vos detém?"
Em seguida, caminhou tranqüilamente em direção a um espaço vazio da parede, nele apoiou as costas, estendeu os braços em cruz, fechou os olhos para o mundo exterior, reabriu-os para o outro lado da vida, esperou, rezando deste modo: "Senhor, em tuas mãos encomendo o meu espírito. Não permita se manche este homem com um homicídio, pois é da lei que ele mais tarde o pagará com "sua" morte. Forças cósmicas do bem, acorrei contra as forças do mal que agora estão envolvendo este pobre cego, a fim de ligá-lo a nova dor, para incorporá-la a seu destino; assim, não será ele perseguido incansavelmente até que a reação do delito se esgote com sua morte violenta. Senhor, aqui está minha vida, para que o bem, e não o mal, triunfe". Daí, como supremo e concludente gesto, fez o sinal da cruz, isto e, o sinal da dor, o sinal do amor e das maiores forças colocadas nas raízes mesmas da vida, o sinal do Senhor, símbolo e síntese da gênese e da criação principalmente em relação ao espírito. Depois, pensou: "vem, ó morte, querida irmã, aceito-te alegremente das mãos de Deus, pois assim me livras deste inferno”.
Não tendo ouvido mais nada abriu os olhos. Seu olhar cruzou o do oficial que o fitava: o olhar metálico e o olhar ardente se defrontaram. O primeiro tentava compreender e não o conseguia. Extenso abismo abria-se entre os dois. Ele sentia atração e repulsão, fascínio e raiva, absoluto desejo de matar o rebelde, como havia ameaçado, aliás, e impossibilidade de fazê-lo. Invisível potência o detinha. Ficou ali parado, perplexo com essa hesitação incomum, para decifrar-lhe o sentido, procurando descobrir que coisa o paralisara, que coisa se interpunha entre si e o homem, ao ponto de impedir-lhe o passo. Por que essa inércia? O homem de ação e de ciência, habituado a tomar conhecimento dos fatos, queria saber o porquê e a razão; por isso, escrutava, olhando aquele homem enigmático que tranqüilamente esperava a morte. O homem de fé olhava o oficial e lia-lhe no coração, muito embora ele não estivesse percebendo nada do que se passava consigo.
Defrontavam-se os modelos de duas civilizações diferentes. O oficial era o produto de pseudo-civilização científico-mecânica, chegada às suas últimas conseqüências, civilização rica, armada, astuciosa, e potente, e, no entanto, pronta a desabar. Do outro lado estava o representante de nova civilização, no momento apenas embrionária, a única possível civilização verdadeira: um indivíduo desacompanhado, pobre, desarmado, sincero, justo. O oficial não podia, com os olhos da carne, ver através da matéria e penetrar no segredo, que o perturbava, daquele homem enigmático a quem, embora armado, não tinha coragem de matar. Este homem representava principio diferente, mas tinha coragem de matar. Este homem representava princípio diferente, mais sublime e poderoso: o espírito. E o militar a si mesmo perguntava por que essa invencível resistência que, embora ele não conseguisse compreender, lhe chegava do imponderável, e qual o mecanismo dessa energia desconcertante e capaz de inibi-lo desse modo. Nosso personagem fechou de novo os olhos, esperando o estampido do tiro: a morte. Silêncio. Quando os reabriu, o oficial desaparecera.
O homem esperou, mas ninguém se preocupou mais com ele. A morte passara bem perto de si e não o quisera. Deus passara bem junto dele. Atirou-se sobre o enxergão e adormeceu como o fazia toda noite, tranqüilo e agradecendo, humildemente, ao Pai que está nos céus e desejara continuasse a trabalheira toda de sua vida.
XXIII
VINGANÇA OU PERDÃO
A moral da narrativa feita no capítulo anterior tem alcance universal e representa modificação completa da psicologia corrente, quando afirma serem todas as situações de nossa vida, boas ou más, conseqüência de nossa conduta Pode ser que não nos recordemos de quando e onde semeamos na plantação de nosso destino, mas, sem dúvida alguma, semeamos. Sempre procuramos nos outros as causas de nosso infortúnio; elas, porém, residem em nós, dentro de nós. Procuramos sempre inculpar os demais, pois queremos encontrar um Cirineu que nos carregue a cruz. No entanto nós é que devemos carregá-la nos ombros. Isso tudo satisfaz a lógica, a lei de causalidade, a justiça e a liberdade humana. Os acontecimentos não nascem fora de nós, mas dentro; se algo nos golpeia, não é por motivo de alguém no ter querido infligir e, sim, porque nosso modo de vida, esse feixe de forças, o atrai ou, pelo menos, por ser vulnerável desse lado, lhe garante livre acesso, verdadeira porta aberta. Nas infeções microbianas, não é a esterilização do ambiente, impossível de conseguir, que decide de nossa saúde mas, acima de tudo, a resistência orgânica do indivíduo. Assim também, quanto às adversidades morais e materiais, não nos é possível viver em um mundo inócuo e, ao tempo, esperar continuamente sua não-agressão; devemos ao contrário, confiar apenas nas qualidades individuais de resistência, de reação defensiva; de recuperação, isto é, naquelas forças por todos nós possuídas porque as conquistamos e as incorporamos ao dinamismo de nosso próprio destino. A moral da precedente narrativa é que nós mesmos devemos construir-nos, cada qual por si e para si, e toda alegria ou dor, vitória e derrota constituem experimento que se registra indelevelmente no livro de nossa vida representam prova de que nos interessa sabermos sair mais esclarecidos. Ou nos construimos e robustecemos ou nos demolimos e enfraquecemos. Se, como tantos fazem, procurarmos a vida apenas fora de nós, nas outras pessoas e nas coisas, seremos escravos, seus escravos. Só seremos livres, se procurarmos a vida dentro de nós. A moral é que podemos ser senhores de nosso destino, mas se torna necessário querê-lo e sabê-lo. É preciso, porém, viver em profundidade, viver vida consciente. Não é a riqueza ou o poder, mas a vida interior, que nos dá a independência e o domínio. Podemos viver no meio da guerra e, no entanto, ter a paz no coração. A maior conquista consiste em chegarmos a ser, e conservarmo-nos donos de nossa casa interior. Essa é a única direção útil do expansionismo, o do novo homem, expansionismo que não acaba em carnificina. Em relação nossa alegria e à nossa força, vale nossa casa interior muito mais que a exterior; podemos fazê-la ampla e sólida e conservá-la a nosso modo, em completa independência, em plena autarquia do espírito. Essa casa, porém, não a recebemos por herança; cada um de nós tem de construí-la com as próprias mãos, pois é de fato nossa. Mas essa posse deve ser plenamente justa, isto é, constituir fruto de nosso trabalho. Essa casa é o verdadeiro refúgio na adversidade, o ninho de nossas alegrias, o cofre de nossos tesouros; mas e construção feita de forças, edifício entretecido de invisíveis fios em movimento e que necessita nutrir-se diariamente de nosso trabalho porque marcham para o futuro e são vivos e se desfazem, se não forem alimentados. Há homens que por fora vivem em palácios luxuosos e por dentro definham em casebres miseráveis, desleixados, tristes, em ruínas. Nos momentos de desventura, seu mesquinho eu não encontra refúgio, pois as grandezas terrestres não podem oferecê-lo. Percebem a miséria da casa interior de sua personalidade e, por isso, lhe fogem, temem a introspecção e, como percebem estarem nus, procuram avidamente cobrir-se com seus ouropéis. Mas os valores e as defesas estão dentro e não fora. Tudo quanto é externo se despedaça ao primeiro sopro da tempestade. Assim é a vida.
Por isso, podemos dizer com o Evangelho: "Ai dos ricos, ai dos vencedores, ai dos que gozam. Amanhã chorarão". São coisas ditas e reditas pelos sábios; todavia, nesta vida turbilhonante, não passa pela cabeça de ninguém que devam ser levadas a sério. No entanto, constituem a realidade mais profunda da vida. O encontradiço tipo involuído não sabe compreender como, para quem evolui, em dado momento a ilusão desapareça sem causar mágoa e como, sob o nome de ilusão, devamos entender exatamente as coisas que a maioria das pessoas considera mais preciosas. De fato o caminho evolutivo do sábio é juncado de descobertas muito mais maravilhosas do que as científicas, proclamadas aos quatro ventos. Trata-se de descobertas verdadeiramente utilitárias e substanciais, completas e decisivas. Eis o verdadeiro sentido da vida, sentido que escapa ao entendimento das massas estúpidas e escravas, abandonadas à deriva desejosas apenas de vegetar. Contudo, a realidade material e exterior, que todos alimenta, tem as raízes mergulhadas nessa realidade interior e dela não pode separar-se. E pretendemos dominar os efeitos, combatendo-os quando já plenamente desenvolvidos, ao invés de extirpá-los no nascedouro. Todavia, o sucesso material, tão ansiosamente desejado por nós, não podemos obtê-lo sem o concurso da força moral, que não levamos em conta e, no entanto, se lhe liga estreitamente. O imponderável, embora incompreendido e maltratado, permanece indestrutível entre nós; não se deixa dominar e reage maleficamente, pois o nosso mau tratamento para isso quis pô-lo em ação. Se as forças da Lei, agindo sabiamente, não nos reeducassem por meio da dor, nessa civilização não saberia fazer outra coisa senão conduzir-nos, por meio do bem-estar e do abuso, à decadência física e moral.
Procuramos neste livro observar essas verdades sob todos es pontos de vista, conforme as várias formas mentais, servindo-nos da lógica, narrando os resultados da experiência, apoiando-nos na analogia e em relações com fenômenos de outro tipo. O problema que estamos enfrentando é o do melhoramento humano e este coincide com o aperfeiçoamento do indivíduo. Podemos, para isso, utilizar as grandes vias das reformas sociais e dos sistemas orgânicos de massa. Se aqui, porém, a ação é muito extensa, é necessariamente pouco profunda. De modo que, se quisermos fazer a evolução humana avançar muito, temos de encaminhá-la pelo estreito caminho individual. Trata-se de mudar o sentido da vida. É preferível, pois, trabalhar no lado de dentro a trabalhar no lado de fora do indivíduo, mais por livre convencimento do que por imposição, mais por maturidade do que por organização. São múltiplas as estradas do progresso. Essa maturação deve ter o caráter de espontaneidade. Por isso, apela-se para mais perfeito entrosamento da vida humana com as leis biológicas. Da conquista de novo modo de conceber a vida, mais lógico e mais elevado, derivaria mudança no comportamento individual e nas relações entre as pessoas e as coisas, o que traria grande vantagem para todos Procuramos, aqui, fazer com que o homem moderno compreenda a enorme vantagem de ser honesto. A humanidade de hoje crê ter-se de súbito civilizado apenas porque descobriu alguma lei exterior da vida, que lhe permite mais cômodo desfrutamento dos recursos naturais. Trata-se de domínio alcançado sobre algumas forças tornadas em parte obedientes, para atingir bem-estar de que nos pomos a gozar, ignorando-lhe as conseqüências. Esse domínio também poderá servir para causar-nos a morte cientificamente, em larga escala, porém não nos torna mais adiantados. Isso não pode chamar-se civilização. De mudanças profundas de orientação, que interessem à motivação da atividade humana, nem se fala. Hoje em dia a vida se apresenta feroz e desapiedada como nos tempos pré-históricos. Não estar armado de pedras lascadas mas de metralhadoras, não estrangular o seu semelhante com as mãos, é sim com os Bancos, representa apenas progresso formal, substancialmente fictício. Civilização que deixa intactos os instintos bestiais do homem e, além disso, lhe oferece meios mais poderosos de satisfazê-los, não merece o nome da civilização. Hoje, ao invés de havermos progredido, descemos a tal ponto que perdemos o sentido do que seja civilização e mudamos o significado dessa e de outras palavras sublimes. A verdadeira civilização está mais dentro do que fora de nós; é mais um poder das qualidades da personalidade que um poder originado nos meios exteriores e no domínio material é progresso no espírito, implica em mudança do comportamento humano em profundidade e não apenas em superfície. Em meio dessa nossa barbárie, os raríssimos sábios caminham em silêncio, beneficiando e perdoando. O mundo ri-se deles. Mas neles apenas reside o futuro do mundo, o único futuro sem sangue.
As ações e as relações humanas podem ser estudadas como jogo de forças e, assim, descobrir-lhe-emos as leis. Aí esta o miolo da questão. Acreditamos que a lei do perdão significa pôr-se em situação de fraqueza e que o sistema de vingança e aniquilamento significa posição de forca. Não compreendemos como na realidade se dá o contrário, isto é, como o perdão nos liberta da reação e a vingança nos liga ao inimigo. Quando dois indivíduos estão em paz entre si, representam sistema de forças em equilíbrio. Mas, apenas um dos dois tenta superar o outro, procurando invadir e dominar, não só o legítimo campo de sua liberdade como o campo dos demais, esse sistema de forças não se mantém mais na posição natural e estável de justiça, mas se transforma em sistema desequilibrado que tende espontaneamente a voltar à primitiva posição de equilíbrio. Temos, agora, de um lado rarefação e vácuo e de outro concentração e pressão; de um lado derrota e danos, de outro vitória e vantagens. Tudo poderia processar-se de acordo com a vontade do homem, que gostaria estivessem a seu favor essas mudanças, se não existisse uma vontade superior, a dirigir e equilibrar, a vontade da Lei que guia todos os fenômenos de acordo com equânime princípio de justiça. O fato é que essa lei existe e um princípio impõe o equilíbrio, Acontece então, automática e irresistivelmente, que de um lado a atração exercida pelo vácuo e de outro a força de pressão tendem a estabelecer esse movimento de reação chamado vingança; esse movimento, se possui um fundo de justiça, pois tende a reequilibrar o sistema, lança-o em novo desequilíbrio constituído pela posição inversa, de que nasce nova reação, a contra-vingança e assim por diante. Estabelece-se, desse modo, cadeia de vinganças, interminável porque através delas o desequilíbrio se mantém, permanece sempre a provocação originária que não tem remédio. Assim, acontece que quando dois indivíduos pela prática de algum abuso se ligam a tal sistema de forças, este não sabe mais como resolver-se e os indivíduos permanecem, mesmo através de seus descendentes, indefinidamente emaranhados. Assim, até a consumação dos séculos, o fratricida Caim revive no homem.
Continuemos a observar. Por um lado, a concentração constitui riqueza, superabundância de bem-estar, euforia biológica causadora de engorda enervante, que desabitua da luta, diminui as capacidades, aniquila as defesas. De outro lado, a rarefação é pobreza, incômodo, tormento originador de excitamento que anima ao combate, apura as capacidades, prepara e apresta o ataque. De um lado, pois, a pressão tende naturalmente a diminuir; dentro a tensão tende a aumentar. Assim, as duas forcas do sistema, já ligadas tendem a combinar-se de novo, mas em posição inversa. E assim por diante. Tais são as vicissitudes de toda luta, de dois homens, famílias, facções ou povos. Existe, pois, enxertada no próprio sistema, uma tendência a compensar, corrigir e eliminar os abusos iniciais. Essa tendência à inversão das posições exprime tendência ainda mais profunda, isto é, a que leva ao restabelecimento do equilíbrio rompido. Ela se deve à presença de uma terceira vontade, que nada tem de comum com as verdades particularistas e relativas dos dois contendores, isto é, a vontade imparcial e justa da Lei, cuja tendência constante consiste em corrigir e reabsorver o erro humano.
Perguntamo-nos, agora: como se torna possível reequilibrar esse binário que, tendo perdido o equilíbrio, não sabe recompô-lo? O maior sonho do lutador consiste na vitória e conseqüente aniquilamento do inimigo. Na verdade, porém, não passa de ilusão, pois o inimigo que representa uma força, é substancialmente um imponderável, e participa de um organismo universal em que como já dissemos, nada se pode destruir e onde se torna impossível abrir-se o vácuo de sua destruição; representando, pelo contrário, tendência a preenchê-lo, irresistível vontade de compensação. O homem não pode de modo nenhum neutralizar essa tendência, paralisar essa vontade superior. Possui apenas este recurso: a sua força, a que, para vencer, se agarra de unhas e dentes. Mas a manutenção de artificial estado de equilíbrio, como o de seu domínio sobre o próximo, requer esforço contínuo, que se resolve, já o dissemos, em desgaste e, mais tarde, em inevitável cansaço. Desse modo, além de pelas razões precedentemente expostas, também por esta o sistema tende a inverter-se. A lei fundamental de justiça tende incansável e tenazmente à compensação e exerce insistente pressão nesse sentido, e apenas encontrará paz quando completamente corrigido o precedente desequilíbrio. Impossível, pois, resistir indefinidamente; de fato, para conservar de pé um sistema desequilibrado, seria necessário ampará-lo continuamente por meio de incessante dispêndio de energia De um lado, temos o princípio-lei, que é vontade inteligente armada de energia, calma, paciente, mas constante e inexaurível. De outro lado, o homem armado de energia violenta, mas inconstante e pouco duradoura, colocado perante lei de vontade diferente da sua e que não se deixa violar senão temporária e excepcionalmente e à custa de esforço persistente e cansativo. O indivíduo poderá resistir e, até mesmo, resistir vencendo por alguns momentos, mas cedo ou tarde chegará o momento de se inverterem as posições. Portanto, é fatal, como de fato se verifica, que cedo ou tarde o sistema se decomponha e o vencedor passe à condição de vencido e ao contrário. No reino da força, vitória significa vitória. Mas, perante lei equânime, imparcial, desejosa de que todos vivam, vitória significa débito do vencedor para com o vencido, débito a ser pago de qualquer modo um dia. Então, que adianta vencer? Se não nos contentamos com resultados efêmeros nem damos crédito à ilusão, não é verdade que vitória e derrota representam o mesmo fenômeno? Trata-se de posições instáveis, solapadas pelo tempo, de vantagens momentâneas, trabalhosas e arrancadas violentamente aos naturais e inexoráveis equilíbrios da Lei. E assim, em última análise, a vitória não passa de prelúdio da derrota e a derrota significa o prelúdio da vitória.
Se, pois, a vitória não resolve definitivamente o problema, visto como de fato não reequilibra o sistema das duas forças, se posição de estabilidade apenas pode ser garantida por espontâneo equilíbrio dos dois impulsos opostos, a que devemos recorrer, então? O sistema humano da vingança não atinge o objetivo previsto. Sem dúvida. Não se trata aqui de agravar, mas de reabsorver o desequilíbrio originário e isso apenas pode ser conseguido pelo perdão. Vimos que a primeira usurpação causara um primeiro desajustamento, que o sistema ativo-reativo em cadeia das vinganças não consegue eliminar. Para consegui-lo, torna-se necessário um ato igual e contrário, porque só um ato assim pode neutralizar o primeiro. É preciso, portanto, movimentar-se em sentido contrário; e só o perdão pode fazê-lo.
Dirão, agora: para que serve essa luta e, se constitui erro, porque as leis da vida a permitem? Serve para aprendermos o modo de não cometer mais erros e percorrermos o caminho da vingança a fim de aprendermos a lei do perdão. O homem necessita aprender; por isso, Deus deixou-o livre. Não se trata, pois de liberdade desenfreada e louca, mas de liberdade limitada e protegida. A lei cede no limite do necessário ao aprendizado do homem. Deixa-o errar e, depois, sofrer as dolorosas conseqüências do erro. Age, porém, paternalmente; de fato, ao mesmo tempo que parece abandoná-lo, a lei se mostra sabiamente previdente, próvida e protetora e, por meio de lenta, mas constante e tenaz pressão, se compromete antecipadamente a recolocar tudo em seu devido lugar; e, na realidade, vemos que, apesar de todas as desordens humanas, a Lei alcança esse objetivo. Desse modo, todo erro contém em si o germe de sua correção, a imperfeição se reduz a motivo de perfectibilidade contínua. O mundo constituí, assim, perene injustiça, que representa poderosíssima aspiração à justiça; a vida é desequilíbrio constantemente à procura de equilíbrio; é vingança avidamente desejosa de alcançar a fase superior de perdão; é ânsia de ódio que não sossegará enquanto não reencontrar o amor. A Lei existe, sem dúvida, porque nossa consciência sabe exatamente como as coisas deveriam., ser, perfeitas, embora não o sejam ainda, embora um abismo de dificuldades as impeçam de o serem. De fato, o mundo apresenta-se como oceano de desequilíbrios e por essa razão sofre, exatamente porque não consegue atingir o estado de equilíbrio, único, conforme o mundo mesmo percebe, em que encontraria a paz. Torna-se evidente que apenas o reequilíbrio poderá dar-nos a felicidade, mas esse reequilíbrio está bem longe de nós. O sofrimento do mundo não se deve a erros recentes, e sim milenários, a pavoroso amontoado de erros, acumulados através dos séculos, difícil de eliminar e impossível de reabsorver assim de um golpe. Hoje tudo está impregnado de erros; o ar, saturado de mentira; o mal que semeamos se transformou em nossa atmosfera. É preciso pôr-se a caminhar, lenta e tenazmente, pelo áspero caminho da regeneração. Os resultados do abuso não podem ser corrigidos senão movendo-nos em direção contrária, subindo de novo pelo caminho que havíamos descido. Na prática, o simples caso de duas forças contrárias, há pouco examinado, complica-se num interminável entrelaçamento de desequilíbrios, que nos submete ao jugo de nosso destino de indivíduos e de povos, pobres autocondenados, exatamente como por ignorância ou má-vontade queremos. Quanto mais perseverarmos no caminho da força e da vingança tanto mais pioraremos nossas condições, agravando o desequilíbrio. A única saída é esta: o caminho do perdão, o caminho do amor, o caminho do Evangelho. Quando encontrarmos um homem que emprega a violência e se vinga, diremos: este é um involuído que está começando o longo aprendizado da vida. Quando virmos um homem que repele a violência e perdoa, diremos: este é um evoluído que já viveu bastante e aprendeu a lição da vida. A tendência da evolução consiste em substituir a vontade ignara, egoísta, desagregante e usurpadora do indivíduo pela vontade consciente, altruísta, orgânica e pacífica do homem da lei.
Eis em que consiste e para que serve o civilizar-se. Não se trata apenas de idealismo ou de sentimento ou de bondade. Trata-se de atingir a fase do homem que já compreendeu. Este diz: "Perdôo-te, ó inimigo, porque só assim me livro do mal que quiseste lançar sobre mim. Não; conheço a Lei e não faço como muitos iludidos que caem na armadilha. Sei que sou livre. Não aceito ligar-me a ti por laços de ódio ou de vingança; não aceito, porque sou livre, o mal que quiseste infligir-me. Perdôo-te. Esse mal te pertence; tu o geraste, não eu. Perdoando-te, deixo-o recair sobre ti, não sobre mim. Se eu caísse na corriqueira ilusão do mais forte e reagisse, ofendendo-te também, e te causasse um mal que em mim se gerara contra ti, tornar-me-ia devedor e não mais credor teu e terias o direito de reter-me como escravo enquanto eu não te pagasse meu débito, de acordo com a divina lei de justiça. Com o meu perdão, tu continuas nessa triste posição, tu, pobre iludido que te ries de mim porque pensas ter-me vencido. Muitos preferem comprometer-se cada vez, disputam corrida em direção ao aumento da dívida. Quanto a mim, prefiro libertar-me por meio do perdão. Liga-te, isso sim, com quem responder aos teus ataques. Eu por meio do perdão me liberto. Nada podes contra mim. sem que eu o queira. Não tens o poder de infligir-me a dor que quiseres. Isso depende apenas de mim e de minhas culpas. E se eu tiver de sofrê-la, não a aceito de ti, que ignoras o porquê das coisas e ages como cego; aceito-a apenas das mãos de Deus, a titulo de expiação merecida, de salutar purificação e, por isso, de benefício para minha redenção. Não és mais do que instrumento inconsciente guiado pela Lei. ser ignorante do que faz, merecedor de piedade e por quem devo orar. És pobre irmão ainda ignaro, que devo esclarecer e ajudar, irmão que está ferindo a sua própria vida e ligando-se, sem sabê-lo, a nova dor, porque, acreditando golpear-me, está golpeando a si mesmo. Irmão! Devo socorrer-te no perigo por que estás passando. Mais tarde, depois de espontaneamente teres querido ligar-te, por mais que eu sofra e te perdoe, nada poderei fazer por ti contra as conseqüências fatais de tua conduta; assim, deverás pagar inexoravelmente e na proporção de teu erro. Tu, não eu, rompeste o equilíbrio. Tu, não eu, deverás, penando, reconstruí-lo. A redenção é demorada, complexa e se processa átomo por átomo. Meu perdão me interessa mais do que a ti. Cairás debaixo da força que tu mesmo libertaste. Ai de ti, se venceres. Tanto mais pagarás quanto mais injustamente houveres vencido. Acreditas trabalhar fora de ti, em mim, e, no entanto, trabalhas dentro de ti mesmo, em ti, para teu benefício. Tudo quanto fizeres recairá sobre ti, porque tu o fizeste; não recairá sobre mim, senão na proporção em que eu o houver feito".
A terra é morada infernal, de débito e de expiação, lugar em que os homens gostam de endividar-se até o pescoço, vivendo debaixo de chuva de fogo aceso por suas próprias mãos Todavia, como a Lei de Deus se mantém justa e boa! Somos livres, mas responsáveis. E, quando lhe compreendemos o significado, que poder regenerador o sofrimento adquire! Todos nós temos de responder apenas por nossas ações e não, também, pelas ações alheias; cabe-nos responsabilidade pelo esforço feito, não pelos resultados obtidos. A força máxima consiste em ser inocente. O ponto vulnerável à dor é apontado pela própria culpabilidade, quer dizer, não é a dor em si mesma que o determina, mas a própria debilidade, que oferece o peito aos golpes da lei de justiça. Tudo quanto fazemos perdura e quem deve não encontra salvação. Logo, nós mesmos criamos nossa vulnerabilidade, espontaneamente, por meio de nossas próprias ações. de acordo com nossa vontade mesma. A casa interior do culpado é indefesa, tem as portas escancaradas. Por qualquer lado a dor pode entrar nela. Cabe culpa às portas abertas e a quem as abriu. Então, as forças do nosso destino atraem as investidas dos malvados, que nas mãos de Deus se transformaram em instrumentos de justiça, embora, considerados em si mesmos, sejam injustos e incapazes de compreendê-lo. Os meios punitivos estão à solta, o mal conseguiu libertar-se das algemas e pode, porque Deus o permite, agir com plena liberdade. Na Lei, o mal é escravo do bem, tem limites que não pode ultrapassar senão a serviço do bem. Esses instrumentos não são constrangidos, mas utilizados. São, por isso, responsáveis na medida de sua compreensão e liberdade de agir e nessa medida, quando lhes couber a vez, hão de pagar pelo que fizerem. Mas, se sou inocente, que podem eles perante mim senão oferecer-me novas oportunidades de expiação e ascese? Meu inimigo pode atirar-me às costas todo mal que quiser; apenas o que eu merecer me atingirá. Não responderei por ele, mas por mim. E, se não respondo às ofensas, toda a culpa recairá apenas sobre o ofensor. A medida de nossa dor no-la dá nossa culpabilidade. Fato importante como o desenvolvimento de nosso destino, fato grave como o peso de nossa dor não pode ficar à mercê da vontade de um estranho, que muitas vezes nada sabe a nosso respeito. Sem nosso consentimento, não obstante os permanentes contatos humanos, entre destino e destino não se podem efetuar trocas de valores ou de forças. Nós é que fazemos nosso destino; este não passa de campo de forças cerrado e protegido, em cujo centro está o eu, dirigindo e controlando tudo. Um estranho poderá introduzir nesse campo apenas as forças que quisermos. As responsabilidades são graves; as sanções, inexoráveis. Nada mais justo do que liberdade completa e responsabilidades bem definidas. Nada mais justo do que cada um responsabilizar-se apenas por aquilo que livremente fez.
Já vimos alhures, a propósito da lei do merecimento e da Divina Providência, quem na luta pela vida defenderá ao homem que confiou sua defesa à Lei, às mãos de Deus. Não acreditem vá esse homem, segundo muita gente pensa, deixar de ser vingado. Renunciando a fazer justiça pelas próprias mãos, ele se confia a juiz muito mais poderoso; quem perdoa entrega o culpado à Lei de Deus que, invisível e paciente, é também inflexível e inviolável e muito mais temível do que as sanções humanas. Os resultados do jogo da força, embora efêmeros, iludem porque são imediatos. Esse jogo não se realiza a longo prazo. Com o andar do tempo o justo se revela o mais forte e é quem vence por último. Há, sem dúvida, conveniência imediata na exploração imediata das posições cuja honestidade lhes conquistou confiança. Quanto mais a retidão de uma verdade ou de uma instituição lhe houver conquistado a estima pública, tanto maior atração exerce sobre homens inescrupulosos que procuram apropriar-se dela em busca de vantagens pessoais. Quem mais fama tem de honesto esse é o ladrão. Mas a posição é instável e não se mantém. Cedo ou tarde tudo desaba. Para civilizar-se a sério o homem do futuro teria apenas de fazer este pequeno esforço de inteligência: compreender a vantagem utilitária de ser honesto, vantagem considerada apenas do ponto de vista do egoísmo (nem pretendemos mais do que isso); compreender que tudo quanto podemos obter, empregando a astúcia ou a violência, não passa de adiantamento, que mais tarde devemos devolver, e pagando muito caro; pretender fraudar lei invisível e onipresente é ilusão própria de ignorantes; entender que o mais forte não é o prepotente, mas o mais justo e que o caminho do sucesso verdadeiro, permanente e durável não é o dos arrivismos tão admirados e seguidos, mas o do próprio dever. Evoluindo, o homem atravessou, na arte de conquistar os bens necessários à vida, a fase representada pelo método da força e, em seguida, a fase do método de astúcia. Agora, se não quiser, com grande desvantagem para si, continuar na situação de involuído, deverá entrar na fase representada pelo método da honestidade. Sem essa premissa, todos os sistemas coletivos que buscam justiça social mais completa contêm apenas ilusão, mentira e pretexto para injustiças cada vez maiores. Sem esse fundamental progresso individual, é inútil acreditar em qualquer tentativa de progresso coletivo.
XXIV
NOSSO LIVRE DESTINO
A humanidade compreende exatamente duas raças bem distintas; a dos evoluídos e a dos involuídos. Insistamos mais um pouco nesse conceito, que aliás já desenvolvemos neste livro Não vã o leitor surpreender-se com o que pode parecer-lhe repetição. Nestes casos o pensamento retorna, mas diversamente orientado, enriquecido de novas considerações, associado a novas idéias, visto sob perspectivas mas amplas. Muitas vezes a repetição é apenas aparente e a volta ao mesmo conceito se deve ao fato de que todos os fenômenos obedecem ao mesmo princípio. Especialmente nestes últimos capítulos o pensamento gravita em torno do mesmo centro (a Lei e seus equilíbrios) e os problemas, inclusive os sociais e morais, são indistintamente propostos e resolvidos como cálculo de forças. Além disso, a repetição muitas vezes é útil, porque um prego não se prega com uma martelada só. Nem sempre é fácil fazer um conceito penetrar no cérebro humano duro como pau.
Enorme abismo separa as referidas raças. Os dois tipos se distinguem por dois modos diferentes de conceber a vida por dois diferentes métodos de luta, por diferente método de comportamento. Tudo isso no-los revela claramente. Cada qual escolhe o que mais se adapte a sua natureza e basta essa escolha para mostrar quem ele é. O involuído prefere a força, o evoluído a justiça, duas armas diferentes adaptadas exatamente às mãos que devem empunhá-las. Mas o primeiro ignora os complexos jogos do dinamismo da vida, é desarmônico em face da Lei, por isso fica isolado, não pode apoiar-se senão na própria força. O segundo tem consciência dos inúmeros recursos e da energia que escapam à percepção do primeiro; seu potencial nervoso é mais elevado e, por isso, mais poderoso e penetrante, mais apto a vencer as resistências; dessa superioridade nem faz idéia quem se acredita composto apenas de corpo e não, também e principalmente, de espírito. Mas, ao lado dessas suas capacidades intrínsecas, existe o fato de que o evoluído se harmoniza com a Lei, não está, pois, sozinho, sem outro apoio que o de suas pobres forças, mas tem, atrás de si, a Lei a sustentá-lo; não sendo rebelde, que nada contra a corrente da vida, mas abandonando-se-lhe inteiramente, tem à sua disposição as forças da vida, que o ajudam e o impulsionam. Temos, assim, de um lado a astúcia, oblíqua, complicada, torva, enovelada e, por isso, de movimentos embaraçados; do outro lado, a inocência retilínea, simples, cristalina e, portanto, ágil e rápida. A astúcia e a inocência digladiam-se. De acordo com a lógica dos homens, o evoluído deveria perder. Não obstante, muitas vezes vence; na realidade dos fatos, verificamos que vence. Vemos que, na prática, a forca e a astúcia, métodos do involuído, não oferecem garantia segura de vitória. Procuramos, neste livro, compreender-lhe a razão. Há nas armas do evoluído algo que não admitimos, pois, exatamente por ser muito sutil, nos escapa à primeira vista; e precisamente esse imponderável as torna mais poderosas; existe nelas previsão, logicidade, organicidade e sabedoria íntima que não incidem nos erros grosseiros da força bruta, e também equilíbrio espontâneo que não se perde nos artifícios nem se enreda nas malhas da astúcia. Na espada imaterial do arcanjo lampeja, todavia, desconhecido poder que lhe permite vencer a revolta bestial de Lúcifer. Em presença do homem do dever, do homem evangélico da paciência e do perdão, o homem da força ri-se sem dúvida e considera-o débil e maluco. Mas, envaidecido de sua força, iludido com sua astúcia, não compreende a estratégia do outro, estratégia muito mais completa e profunda. A força do evoluído reside na compreensão. A ameaça que pesa sobre o involuído consiste na sua incompreensão
No capitulo "Tempestade", descrevendo a dolorosa fuga de um homem, dissemos que na hora do abandono, quando a riqueza e o poder falharam, o homem não estava sozinho, como pensava, mas a seu lado estavam seu passado e suas obras, pois nossas obras nos acompanham. Estas, uma vez acabadas, representam impulso fatal que testemunha, fala e age por nós. Somos nós mesmos que, depois de havermos estado na posição de causa, reaparecemos agora na de efeito. Suas fases de desenvolvimento no tempo entrosam-se perfeitamente, pois representam o desenvolvimento de uma força e de um movimento. Dentro da fatalidade dessa lei é-nos concedida a liberdade de escolher, retificar e até mesmo de corrigir a trajetória. Mas, uma vez estabilizada, arrasta-nos. O involuído não o compreendeu ainda e acredita-se senhor de ilimitado arbítrio e da capacidade de, a seu talante, fazer e desfazer os acontecimentos de sua vida. Míope, vive apenas do efêmero presente. A estratégia do evoluído adere mais à realidade das coisas muito mais profunda, equilibra-se com as forças da vida e, no passado e no futuro, abrange muito mais vastos períodos de tempo. Dessa estratégia mais ampla participa a consciência pura, fator sem dúvida estranho à luta (se a tomarmos na acepção vulgar), luta em que a honestidade não serve de ajuda, mas de estorvo. O mundo de hoje confunde arbítrio com liberdade e, quando clama pela liberdade, intimamente deseja o arbítrio, o abuso a licença; nem compreende como, exista ou não autoridade humana, estamos, isso sim, permanentemente enquadrados nas invisíveis leis da vida; nem como a autoridade, o poder e a hierarquia dessas leis jamais diminuem. O mundo de hoje, infelizmente involuído ainda, não compreende como essa desordenada agitação chamada liberdade não atinja o objetivo previsto por quem a ela se entrega, isto é. libertar-se de encargos e sanções; não compreende como, através dessas sanções, a Lei cada vez mais fortemente o repele, fazendo-o mais tarde sofrer tanto mais amargamente quão mais loucamente tentou rebelar-se. A história é essa. Quem compreendeu as leis da vida, sabe que a retidão constitui elemento fundamental do sucesso verdadeiro e duradouro e que a desordem e o arbítrio podem conquistar-nos apenas escravidão e dor porque, dada a estrutura de nosso universo, só esta liberdade se torna possível: a liberdade segundo a lei. A liberdade em desacordo com a lei é impossível.
Observemo-lhe o mecanismo. As forças, que no passado foram postas em movimento por nossas ações, uma vez em jogo representam vontade, autônoma, impulso que por inércia tende, automaticamente, a continuar movendo-se e a levar-nos para a frente, segundo a direção inicial. Se, a princípio, movimentamos nossas obras, agora elas é que nos movimentam, arrastam-nos para onde ontem queríamos e não para onde queremos hoje. O passado não morre, mas revive sempre no presente. As nossas obras nos acompanham por toda parte. Em face dessa estrutura orgânica da vida (relação de causa e efeito a longo prazo), por força da qual o presente se preparou no passado e o futuro se prepara no presente, a filosofia do "carpe diem" é manifestação de inconsciência. A liberdade, que imaginamos sempre virgem e completa, é assim apenas na fase inicial de nossas ações. Não pode ela permanecer indefinidamente no terreno neutro da escolha, mas fixa-se, condensa-se no determinismo representativo do encadeamento, por continuação, ao impulso que, uma vez dado, constitui um impulso em nosso destino; esse impulso liga a liberdade às conseqüências do impulso cuja continuação já se torna impossível impedir, salvo novo impulso corretivo contrário. Assim, as obras que fizemos espontaneamente tornam-se vivas e, como se fossem animadas de vontade própria, são ativas e, na qualidade de criaturas nossas, agem por nós. Nossa personalidade é fenômeno contínuo, em que os momentos sucessivos de seu futuro se ligam estreitamente e cujas forças, por nós suscitadas, se determinam e se põem em ação e, em seguida, não podem ser anuladas enquanto não se desenvolverem e esgotarem completamente. Essas forças formam nossa força, tanto em qualidade como em quantidade; desse modo, o passado e o presente participam de nós. Representam essas forças a definição de nós mesmos, a coisa consumada difícil de mudar e vivem em nosso destino sob a forma de fato, fato de modo algum absoluto, mas, ao contrário, sempre susceptível de retoques e modificações, no incessante movimento da vida. Mas, vamos vivendo; e o novo fato que cada dia nos acontece, se não o vinculamos já, é livre e, vivendo, ligamo-lo por meio de nossas ações. Assim vivemos, vinculando nossa liberdade a isto ou àquilo, enquanto o impulso não se esgota e a trajetória não desaparece. Mas, desenovelando-se, o fio da vida sempre traz consigo nova liberdade virgem, que sucessivamente andamos vinculando e cristalizando no determinismo, enquanto não a abandonamos no passado assim cristalizada, depois de haver completado o ciclo experimental. A liberdade é interior, está no íntimo da personalidade, no reino das motivações e daí a atividade se dirige para a periferia e se expande no mundo exterior da manifestação, que constitui o reino do determinismo. Assim, vincular-se ao determinismo, ou extinguir-se nele, corresponde as características dos dois mundos, interior e exterior, que as forças motoras dos nossos atos percorrem, nascendo no primeiro, bem no íntimo da personalidade, e exaurindo-se no segundo, na periferia, no mundo exterior.
Do mesmo modo que, com a constante germinação de novas ações, nos aguarda liberdade intacta e permanentemente nova, assim na fase de sua maturação um fardo de fatalidade sempre nos acompanha. Envolve-nos como a atmosfera, formando uma espécie de casca dinâmica que nos aprisiona a personalidade. É a nêmese da vida. Pode aniquilar-nos ou exaltar-nos, exatamente como ontem queríamos que acontecesse hoje. Assim como os filhos refletem as qualidades dos pais, essas criaturas testemunham o passado, querem viver, mostrar-se e agir tais quais são; e não podemos destruí-las nem fazê-las calar. Gritam e querem como as queremos. Podem afirmar: este é inocente ou, então: este é culpado. Podem bendizer e maldizer, premiar ou exigir punição. Se foram acionadas pelo bem, tenderão a salvar-nos; se foram acionadas pelo mal, não se deterão enquanto não houverem conseguido nossa desgraça. Isso acontece porque representam causa que exige o correspondente efeito, impulso desejoso de esgotar-se na direção em que o lançaram. Seja qual for a sua natureza, boa ou má, tenderão sempre a seguir seu caminho até o fim e sossegarão apenas quando houverem consumido todo o impulso recebido. Na realidade, o bem e o mal existem personificados nessas forças. As do mal nos perseguirão como Fúrias enfurecidas, gritando aos quatro ventos as nossas culpas e pedindo vingança se atirarão contra nós, mordendo e dilacerando. A tragédia humana está repleta de exemplos disso. Como poderemos defender-nos de inimigo que está dentro de nós mesmos? Impossível fugir-lhe, impossível fazê-lo calar-se. Não há barreira de força ou de astúcia capaz de detê-lo. Eis que o armadíssimo involuído agora está desarmado, o lutador não sabe mais lutar, o forte está intimamente minado e gasto; eis que, através das vias sutis do imponderável, o involuído é vencido pelo fato. Amedrontado pelo impalpável inimigo que ele não consegue entender, sofre e, examinando-se, procura entender. Essas forças são inexoráveis, são o destino, representam a lei de Deus, a inviolável justiça que tentamos violar e fatalmente põe as coisas de novo em seu lugar. Os recursos humanos clamam contra esses poderes silenciosos do fato, que aniquilam toda defesa, transpõem qualquer porta, seja do rico, seja do pobre, ou do poderoso ou do humilde. Apenas uma coisa detêm esses poderes, uma coisa inofensiva como o dedo de uma criança, leve como a asa de um anjo, imponderável e suave como uma prece: a inocência. Ser inocente! Essa coisa tão pequena se ergue diante do esmagador poder da força e o detém, porque isto é o que a Lei quer: que o honesto encontre defesa e a justiça triunfe.
Se, ao contrário, em nosso passado não pomos o mal, mas o bem, as criaturas por nós geradas serão de natureza totalmente diversa. Com o passar do tempo, elas também crescerão, tornar-se-ão maduras para produzirem seu efeito no mundo exterior das manifestações causais e, em lugar de cercar nossa vida de inimigos que vomitam dor sobre nós, estarão a nosso lado, cariciando-nos, protegendo-nos, encorajando-nos, como bons amigos nossos. O involuído ignora que o presente não se improvisa nem se constrói à custa apenas do presente, mas se compõe em grande parte do passado, e que a vida, no seio de organismo complexo e perfeito como o universo, não é louca aventura, mas desenvolvimento lógico e orgânico. Nada se tira do nada, mas todas as coisas vão e voltam nas ondas do tempo, se ligam aos grandes ritmos da Lei, se entrosam em suas causas de que, aliás, não podemos prescindir; e não podem progredir senão por graus e por fases: germe, desenvolvimento, manifestação, exaustão. No universo tudo se entrosa e isso por força da lei de causalidade, que a tudo liga no decorrer do tempo. Nada vem à luz do sol senão através de filiação, isto é, através dessa derivação causal, por força da qual tudo revive sempre, indestrutível nas conseqüências em que necessariamente se continua. Como no filho se desenvolve o pai, na árvore a semente e na ação o motivo, assim também, por entrosamento individual, toda causa continua no seu efeito. Em seu movimento evolutivo através do tempo, todo fenômeno oscila entre estes dois extremos de um dualismo que não se isola numa forma impenetrável (princípio-fim), mas se articula continuamente, no termo final, com novo termo inicial e assim se prolonga até o infinito.
Portanto, se por lei de causalidade tudo é filho do passado, a vida nos mostra então como jogo amplo e complexo de prolongada preparação, a vitória é determinada por dinamismos acumulados que afloram de um depósito interior, repleto ou vazio, rico de provisões boas ou más, úteis ou venenosas, o misterioso depósito da alma que passa despercebido ao involuído. As posições terrenas são aparentes e enganam. Assim, o pigmeu pode, quanto à substância, ser um gigante e o gigante ser um pigmeu. Eis a força invisível de tantos inermes, a grandeza recôndita de tantos humildes. A posição humana exterior é fictícia. A casa interior pode ser habitada por amigos ou inimigos, pelo bem ou pelo mal, por anjos ou demônios. Eis a arma moral do evoluído: as boas obras, o cumprimento do dever. Isso o isentará das sanções e o inocentará das culpas. Nosso passado já está feito. Ele traçou a trajetória de nossa vida. Do mesmo modo que longa evolução biológica construiu nosso atual tipo biológico que, tal como é, resiste a toda deformação rápida e a toda mudança, assim também, depois de longa caminhada, se formou e definiu nossa constituição moral, reservatório de instintos alojados no subconsciente e radicados em passado remoto. A forma não é definitiva, mas definida, pois o transformismo continua e processa-se e nada pode jamais considerar-se imutável. Permanece sempre aberta a porta da expiação e da correção, porque a liberdade, embora presa às conseqüências do passado, se mantém inviolada e inviolável, sempre capaz de dar novos impulsos ao destino e, através de novos esforços, corrigir-lhes, a seu bel-prazer, a trajetória. O futuro é sempre livre, se lhe tiramos o peso do passado que nos inibe.
A característica principal desse mecanismo de forças consiste na possibilidade de isolarmos nosso destino do destino alheio. Ao lado de cada um de nós falam e agem nossas próprias obras e não as obras alheias. Cada qual pode semear no seu terreno o que quiser; e ninguém pode semear por nós. A semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória. Portanto, livres, mas responsáveis. Absoluta independência quanto a semear o bem ou o mal; absoluta obrigatoriedade de colher o fruto da semente que se lançou ao solo. Por isso, o sábio procura, em causas profundas e remotas, as raízes de sua situação atual e prepara, com grande antecedência, o seu futuro. Não tem importância que os outros ignorem essas leis. Quem erra paga na mesma moeda e pagando aprende. Mas a maravilhosa justiça da lei divina consiste em cada um de nós permanecer livre e, seja qual for o ambiente em que viva, poder, à sua vontade, perder-se ou salvar-se. A beleza de tudo isso consiste no fato de que essa liberdade permanece sempre garantida e o indivíduo independente, senhor absoluto, sempre, do próprio destino, senhor de, em qualquer tempo e lugar, construi-lo a seu modo. Assim, num mundo em que o ignorante involuído através de seus sistemas, impera e triunfa, ninguém pode impedir ao evoluído, que não é ignorante, de escolher seu caminho, segui-lo, e colher frutos copiosos. Conforme a ação praticada, assim a Lei dá a cada um a resposta adequada e funciona ao mesmo tempo, mas de modo diferente, em planos e formas diversos. Desse modo, a liberdade fundamental do indivíduo é a tal ponto respeitada, sem lesar o princípio de responsabilidade, que ele pode sempre separar seu destino do destino alheio, pode conservar completa autonomia de trajetória em meio do mais complexo entrelaçamento de forças, pode atingir os objetivos que quiser, goza da liberdade de perder-se em meio à salvação geral ou de salvar-se em meio da perdição universal. O resultado é garantido, quer o do bem, quer o do mal. O justo pode, portanto, avançar com seu binário, mesmo se for colocado num mundo de demônios. Perante Deus o que vale é o seu passado, suas obras, seu merecimento. A Lei responde no mesmo tom em que a chamarmos e é rica ao ponto de possuir qualquer tom. Ao justo se torna, assim, possível apelar não mais para a força ou a astúcia, sistemas de luta por ele superados, mas para a justiça divina e dela receber a resposta adequada, isolada em meio a vasto oceano de respostas diferentes; é-lhe possível receber tratamento de bondade e de salvação em meio de cataclisma universal. Assim, o evoluído pode caminhar de acordo com destino todo seu, independente do de seus semelhantes, independente até mesmo da sua própria humanidade. Enquanto os demais, considerados os seus métodos de luta, se destroem mutuamente, arrastados pelo turbilhão da força, pelo ódio recíproco ligados à própria destruição, o evoluído, isento das culpas do mundo, poderá seguir um destino todo seu, de alegria e de paz. As forças do imponderável terão formado em torno dele uma camada protetora, uma defesa salvadora, que o tornará invulnerável, porque inocente, em meio dos mais graves perigos que arrastam os outros.
Deixemos aos juristas o estudo das vias da justiça humana. Preferimos aqui nos ocupar do estudo da justiça divina, onde reside a gênese das adversidades que nos golpeiam. Que importa o instrumento que no-las inflige, se ele mesmo muitas vezes lhes ignora as causas? O importante é possuir a chave do mistério e resolver o problema de saber evitar o dano. O sistema da justiça divina é sumamente respeitador da liberdade individual, menos quanto a ser inflexível no campo das responsabilidades. Mas a liberdade inicial é inviolável. De acordo com a Lei, a base do fenômeno social é o individualismo, o fenômeno coletivo representa, pelo contrário, um agregado, um organismo de individualismos que, embora se combinem tendo em vista destino global mais vasto, permanecem separados e inconfundíveis. A necessidade de o indivíduo assumir determinada atitude em relação à sociedade não lhe tolhe, de fato, a autonomia mais completa. Por essa razão cada um de nós pode revelar-se e afirmar-se de acordo com a sua própria natureza. O rebanho tem plena liberdade de andar cegamente à deriva, à mercê dos seus elementares impulsos animais; o sábio, pode, se quiser, estabelecer-se no deserto e aí realizar sua vida independente Trata-se de independência interior e nela as construções humanas exteriores exercem influência relativa. Desse modo, entre indivíduo e massa podem abrir-se hiatos abissais que não se preenchem; e a evolução pode impelir o solitário hiper-evoluído e vidente para fora da órbita dos destinos normais ao ponto de fazê-lo transpor as fronteiras da raça humana e entrar no domínio de humanidades evolutivamente superiores à nossa. Esse tipo de ascensão é biologicamente possível. Que faz agora esse indivíduo? Já perfez o ciclo das provas terrestres que os demais estão apenas iniciando, já conquistou a sabedoria pela qual os outros ainda vivem, lutam, sofrem. A terra naturalmente não é mais o seu reino. Acabado o seu trabalho de expiação ou missão e cumpridos todos os seus deveres para com os seus irmãos menores, nada mais lhe resta senão partir. A terra não o interessa mais; aos outros, porém, interessa. Na terra ele se sente estrangeiro, e o é mesmo, e como tal é tratado. A vida humana, para ele agora inaceitável, expulsa-o de seu seio.
Já noutros trabalhos insistimos e jamais cansaremos de insistir nos deveres do irmão mais velho para com os irmãos mais novos; a toda superioridade são inerentes pesadas obrigações, fadigas que não assoberbam os inferiores, deveres que se cifram em obras, renúncia e exemplo. Tarefas pesadas pesam na vida do evoluído; ele o sabe e afronta o sacrifício. E, por força da lei de fraternidade, o involuído é admitido a usufruí-lo gratuitamente, é admitido a desfrutar de graça o sacrifício do mártir, que ele próprio muitas vezes é o primeiro a agredir e a sacrificar. Isso não deixa de ser justo. Essa lei de fraternidade participa da estrutura do universo, como conseqüência de sua organicidade e hierarquia e da unidade do todo. É, pois, fundamental e inextinguível. Mas a própria lei de justiça limita essa doação fraterna que ameaça transformar-se na destruição das mais importantes conquistas da vida, representadas pelo tipo biológico do evoluído A natureza protege os seus valores e estes, mais do que todos, devem ser protegidos por serem os mais custosos e preciosos. As vias do evoluído são diferentes das vias da maioria, a trajetória de seu destino projeta-se francamente para fora da órbita das experiências terrestres normais, as distâncias se acentuam, as formas mentais não se compreendem mais. O evoluído torna-se um bólido que, lançado no espaço, emigra do plano humano. O evoluído iniciou espontaneamente essa ascensão, que agora o envolve e arrasta. A estrutura desse jogo de forças leva-o agora ao ponto crítico que consiste nessa célula já madura destacar-se da massa imatura da humanidade. Considerados a constituição e o funcionamento desse dinamismo, em dado momento ninguém pode impedir a inexorável, a fatal separação dos destinos e dos trabalhos. Então, tendo cumprido a tarefa, o evoluído vira as costas para o mundo e vai embora, abandonando-o às suas próprias forças, para que ele, à custa do próprio esforço, como é justo, e não do alheio, continue o caminho da própria evolução. O individualismo, que constitui o substrato da organização social e a dirige, recobra a supremacia. A justiça divina exige e impõe a reafirmação dos direitos do solitário incompreendido e espezinhado. Então, o material biológico elaborado e complexo se destaca do material primitivo e rústico. Tendo-se tornado diferente, nos instintos e na raça, deseja ardentemente reencontrar indivíduos de seu tipo, inencontráveis na terra, suspira por mais elevadas e adequadas formas de vida. Deixa de lado todas as questões do mundo; não o interessam mais. Não se incomoda mais com os problemas das pessoas que o habitam não lhe dizem mais respeito. Os problemas mais torturantes, pelos quais a humanidade tanto sofre e luta, os sistemas sociais, econômicos, políticos, não mais lhe atingem o frágil invólucro corpóreo prestes a ser por ele abandonado. Então, se ainda quisermos seguir o indivíduo selecionado nessas ascensões biológicas, absolutamente excepcionais, extra-série e extra-massa, deveremos virar as costas para o mundo e aventurar-nos em terreno que o leitor comum achará irreal e desinteressante, em terreno que penetra no imponderável e no inconcebível. Chega-se desse modo, fora da órbita humana, a uma atmosfera rarefeita, de natureza diferente, em que se tornam atuais as atitudes remotas. Tudo quanto nos preocupou até agora permanece lá embaixo, nos pântanos da terra. A força de lutar, sofrer e ascender, o evoluído penetrou em nova forma de vida, que aos olhos dos demais surge como remoto e inatingível sonho. Para que pudéssemos continuar, depois de esgotado o exame dos problemas terrestres, precisaríamos de levar o leitor muito além do que lhe é possível conceber em relação aos problemas do céu.
O evoluído está sozinho. Gênio, herói ou santo, o super-homem, por mais humilde e humilhado que seja, tem consciência de sua verdadeira natureza de indivíduo maduro e do natural desequilíbrio que o leva a destacar-se da terra. Os inferiores ignaros gostariam de rebaixar-lhe o nível até eles, por força dos mal compreendidos princípios de igualdade. Poder-se-á humilhá-lo; mas fazê-lo retroceder, jamais. As classificações e os enquadramentos humanos não criam valores intrínsecos e, por isso, não podem mudá-los. Nem a vida nem a ascensão podem ser detidas. Poder-se-á rechaçá-lo e, até mesmo, matá-lo; porém, não se poderá destruí-lo. Nenhuma força pode mudar-lhe a natureza nem impedi-lo de continuar sendo o melhor. Em determinado ponto as amarras do mundo, dolorosas amarras, se rompem. Ele não tem mais o que dizer, dar ou fazer. O céu espera-o. Há muito tempo ele, embora devesse servir e sofrer preso ao mundo, pelo peso específico se distinguia da massa, incapaz de compactuar com a maioria e de integrar-se no rebanho. Finalmente, tudo chega ao fim, toda obrigação se esgota, o sacrifício se consuma: consumatum est. Com essa apoteose no terreno do super-humano fecharemos este livro.
Ao lado de seu modo especial de conceber a vida, exatamente a dor constitui uma das notas características do evoluído. Por que razão o super-homem é condenado a sofrer mais do que o homem comum? Exatamente por motivos inerentes à sua posição. Se as verificações precedentes tendem a reafirmar os direitos do individualismo em face da moderna tendência coletivista que tenta reabsorvê-lo, devemos reconhecer o esforço e a fadiga que isso representa. Os coletivismos oferecem à preguiça do homem normal a comodidade de confundir-se e esconder-se nas massas, de deixar-se guiar e arrastar pelos líderes, de encontrar proteção no número; tudo isso constitui o instinto supremo e a defesa da nulidade. Nada nos causa mais piedade do que ver essas almas pensando em série, vivendo de imitação, essas consciências nutrindo-se de produtos já confeccionados e anulando-se no número. Kant dizia: "É apenas máscara de homem pensando com o sistema alheio". A sociedade constitui-se em grande parte de máscaras, isto é, de rostos fictícios; por detrás deles não existe personalidade alguma. Os coletivismos protegem e encorajam essa nulidade. Podem tornar-se, até mesmo, via de acesso para a irresponsabilidade. E o indivíduo gostosamente abandona parte da liberdade, com o fito de eximir-se à correspondente porção de responsabilidade. Chega-se, desse modo, à exploração do progresso, ao parasitismo individual do coletivismo, em que o indivíduo inepto de bom grado se enquadra a fim de abandonar-se à indolência. No entanto, de quanta liberdade goza o indivíduo individualista! Por outro lado, quantas iniciativas e responsabilidade não lhe pesam nos ombros! Essa posição oposta constitui o antídoto apto a aniquilar os parasitas de todo sistema, sempre prontos a tirar proveito dele, escondendo-se em seus ângulos mortos. O individualismo, pelo contrário, ressalta, expõe às vistas porque isola e, isolando, define os responsáveis, quer dizer, os conscientes. O enquadramento orgânico das massas se, de um lado, consegue educá-las, oferece também o perigo de transformá-las em rebanhos de indivíduos mantidos pelo Estado, de escravos que obedecem para poderem viver como vagabundos; oferecem, outrossim, o perigo de suprimir ou abrandar a luta mestra da vida. No momento, o super-homem é o indivíduo menos enquadrado e mais isolado que possa existir e, por isso, o mais exposto, embora seja o mais livre e o mais consciente. Sua vida é tipicamente antiparasítária, completamente descoberta, bem afastada de agrupamentos protetores, de concessões cômodas e de cambalachos. É a vida mais nobre e gloriosa, mais seletiva e criadora, mas também a que mais fatiga. Sua vida significa alta tensão levada ao espasmo, bem-estar material sacrificado à idéia; significa aborrecimento, luta, paixão, intensíssimo trabalho de construção biológica. Não lhe é lícito abastardar-se no rebanho. Tudo isso, se enriquece a vida, também a torna difícil e dolorosa. O evoluído não pode furtar-se ao trabalho, vivendo de imitação, nem resolver os problemas sem esforço, sem pensamento, sem risco e sem iniciativa, à custa de atos coletivos em série, abandonando-se à direção alheia, deixando-se ir à deriva. Não faz parte do número e o número protege.
Consideremos agora outro fato. Seu utilitarismo é a longo prazo; o do involuído, pelo contrário, quer compensações próximas, imediatas. Por exemplo, observemo-lo em função de problema já tratado alhures, o problema da autoridade. O evoluído, orientando sua atividade segundo o plano orgânico do universo, concebe a autoridade como dever e como missão. O involuído, inorgânico, rebelde e egoísta, concebe-a tão-somente como prêmio concedido ao mais forte, a e vencedor na luta pela vida. Parece-lhe natural o desfrutamento de toda posição de comando, como também natural lhe parece o esmagamento do vencido. Na luta pela vida no plano do involuído, a autoridade constitui atributo do vencedor, como a submissão é atributo do vencido. Ainda desconhece o conceito de justiça. O dependente é inferior, escravo, que deve ser calcado aos pés e explorado, e não pode ser considerado como indivíduo irmanado no mesmo organismo e que deve, por isso, receber educação e auxilio Assim é que, através de compensação de equilíbrios, a autoridade raramente se apóia no amor de pai, mas se regula pelo temor; e o dependente, por isso, tem-na como inimiga natural. De fato, autoridade e subordinado, governo e súdito, são duas forças contrárias e complementares que reciprocamente se influenciam, se educam, se plasmam. Sem direitos, como o consideram, ao vencido não lhe resta senão sofrer e esperar a ocasião propícia para rebelar-se, rechaçar a autoridade, por-se em seu lugar, não para cumprir-lhe as obrigações, mas apenas desfrutar-lhe as vantagens. E assim por diante, cada um por sua vez. O evoluído não pensa desse modo. A sua psicologia, esses métodos e o desfrutamento dessas posições repugnam extremamente. Seu utilitarismo é bem mais amplo e consciente e paira sobre esses resultados efêmeros, imorais, mas imediatos. Para ele, todo encargo social não constitui afirmação e ampliação do eu, mas uma função, serviço. Manzoni demonstrou havê-lo entendido muito bem, quando escreveu: "Não é justa a autoridade de um homem sobre os demais, senão quando se exercita no interesse deles". Quando o evoluído respeita a autoridade, sem considerar-lhe o mérito, é porque a abrange em sua concepção de autoridade, embora ela não corresponda à realidade dos fatos e isso signifique, da parte dele, apreciação moral superior a que essa autoridade merece. O evoluído não julga, respeita; não discute, obedece. Em face de autoridade exercida com espírito involuído, o máximo que o evoluído faz é manter-se em respeitoso absenteísmo, pois a isso o constrangem. Ao contrário, o involuído subestima a autoridade, discute-a, julga-a, tenta condená-la e, ao primeiro sinal de fraqueza, agride-a a fim de apossar-se de suas vantagens. Estamos bem longe ainda do plano superior de estima e fé, de compreensão e justiça, do plano em que os dois termos (autoridade e súdito) não se encontram na posição de rivais, mas na de colaboradores. Essa atitude de obediência e respeito (aí onde seria necessário, isso sim, defender-se por causa da existência palpável de agressão e defesa) constitui no plano social um dos gravames da vida do evoluído. O poder humano possui recursos; o evoluído não. Todos aspiram ao comando; o evoluído obedece. Os outros se julgam cheios de direitos; o evoluído só tem obrigações. Os demais homens trabalham em grandes grupos, compensando-se com riquezas e honrarias o evoluído trabalha em silêncio ignorado e pobre. Num mundo assim o evoluído não pode ser senão mártir.
Na sua vida, porém, há bem mais profunda e substancial causa de sofrimento que não esses desacordos de relações e essas incompreensões. E também essa causa é inerente à sua posição. Pelo menos neste mundo a dor constitui, sem dúvida, a nota fundamental da gênese No pomar da vida os frutos mais nutrientes ficam ao lado da sombra, mas entendamos: sombra segundo a matéria, luz segundo o espírito. A alegria não alimenta; a dor, sim. Só ela corta, escava, plasma e torna maduro, transforma e renova. Em resumo: revela e cria. A alegria dura muito pouco, nos rouba as energias e nos deixa completamente vazios e adormentados. A alegria é dissipadora; a dor leva-nos de novo às fontes vitais, nos concentra e refaz as energias, eleva-nos o poder espiritual. A dor pode piorar os maus, mas sem dúvida melhora os bons. Nalgumas vidas, a dor é incidental, episódica, fenômeno. Trata-se de primitivos. Noutras, a dor apresenta-se como plano fundamental que lhes dá sentido e valor, é estável, é fenômeno em profundidade. Trata-se, agora, de indivíduos maduros. A alegria constituí a experimentação dos inexperientes na vida, e primeira experimentação elementar e juvenil. É ingênua, cheia de simplicidade, espontânea. Quando, porem, a taça da alegria está cheia até as bordas, agora a lei de evolução nos proporciona experimentação bem mais profunda a fim de fazer-nos descobrir verdades mais recônditas e remotas, que ainda não podem ser reveladas aos primitivos. Quando o destino do evoluído se destaca da terra e dos destinos dos demais homens, então a dor aparece, como experiência dos maduros, senil, complexa e profunda, dos fortes e dos justos, como verdadeiro campo de ação do evoluído. A alegria é atmosfera natural dos que há pouco começaram a viver, dos recém-chegados de graus inferiores de evolução. A dor é, por sua vez, o ambiente normal dos velhos que exauriram toda as experiências desta terra e, por isso, partem para mundos melhores. Os primeiros são inexpertos; os outros, sábios. Estes aprendem a lição, terminam o aprendizado. As posições inverteram-se; para aquele significa sujeição; para estes, desinteresse. Quem parte e quem chega, quem deve viver nesta fase e quem já viveu nela, o involuído e o evoluído, dois estilos de vida. Cada qual tem sua tarefa a cumprir.
Estamos agora em condições de compreender que a diferença de raça entre involuído e evoluído não passa, em última análise, de diferença de idade. E também se nos torna fácil compreender a razão de o involuído preferir o método de luta e o evoluído inclinar-se para o da justiça. O método da força revela o primitivo, que se a ele recorre é porque é exuberante e inexperto ou, melhor, rico de energia e pobre de sabedoria. O evoluído, por sua vez, já chegou ao fim da estrada, que o primitivo mal começa. a percorrer. Já está cansado, gasto; esgotou-se-lhe a carga dinâmica, agora transformada em experiência. Pobre de energia, rico de sabedoria. Permanece conscientemente sintonizado com os princípios da Lei. Noutros termos: no físico-dínamo-psiquismo, isto é, na evolução trifásica do universo, o involuído representa a fase dinâmica e o evoluído a fase psíquica ou espiritual. A vida da humanidade percorre o trajeto necessário a passagem de uma posição a outra, quer dizer, à transformação da força em consciência. O evoluído já transpôs a passagem; o involuído ainda não, pois não sabe pensar senão agindo, não concebe a idéia senão como fato, isto é, formalmente concreta. Trata-se de elaborar matéria, matéria prima rude, fornecida pelo impulso ou, seja, pela carga dinâmica necessária para levar a efeito a experimentação, em que essas forças paulatinamente se esgotam. O evoluído, por sua vez, apresenta-se com material já elaborado; quanto a ele, esse impulso já atingiu o objetivo desejado, superando a sua fase de transformismo. Nada se perde, nada se destrói. Os jovens valem tanto como os velhos e os velhos tanto como os jovens. Acontece apenas que as posições são diferentes e os valores de qualidade diversa. A quantidade transformou-se em qualidade: a obtusa e rude exuberância, em sabedoria consciente e refinada. Se o dinamismo biológico se degrada e esgota, vai mais tarde ressurgir, sob forma diversa, como poder espiritual. Apesar da equivalência substancial, os dois extremos são diferentes e não conseguem harmonizar-se. Cada um dos dois condena aquilo que não possui, exalta aquilo que possui, dá valor a tudo de que necessita e despreza tudo quanto não lhe serve. O sábio percorreu o ciclo, pois exatamente para isso é que a forca existe, serve e lhe foi dada. O sábio elaborou dentro de si um sucedâneo que, para quem como ele está desse modo transformado, a substitui com vantagem. Para o primitivo, forte mas ignorante, se reservam os duros golpes conseqüentes aos erros praticados durante a experimentação, golpes a que o sábio nenhum medo tem mais porque já aprendeu a evitar a prática desses erros. Que imenso dispêndio de energia para assimilar apenas algumas idéias! Isso nos mostra a importância e o poder da idéia. Não tivemos, para conquistá-la, de empregar e consumir tanto dinamismo, de que a idéia é o equivalente. Isso nos demonstra a necessidade da compreensão sobre que tanto insistimos. No plano do universo, portanto, a força reduz-se a instrumento de experimentações, a reserva de energias de cujo consumo depende a compreensão, isto é, a construção da consciência. De um lado, a força dos jovens; doutro, a experiência dos velhos. No organismo universal cada coisa tem função bem determinada e está no lugar exato. Os jovens valem pela posição que ocupam e os velhos também. A vida obriga-os a trabalho alternado e que mutuamente se compense; durante o período em que suas qualidades encontram campo para manifestar-se, eles trabalham ativamente de modo a imprimir um cunho especial à História e a impulsionar de algum modo o progresso. Todo ser pode sempre dar algo de útil. E o jovem audaz e batalhador, mas inexperto e inconsciente, vive para tornar-se o velho cansado e pacífico, mas sábio, às vezes por ele desprezado.
Dá-se com a força e a sabedoria o que se dá com a alegria e a dor. Estão ligadas estreitamente. A alegria juvenil, que nos vem de sermos fortes, leva-nos, através da ilusão da vitória, à realidade dolorosa de que nasce a sabedoria. Para o involuído espontaneamente desejoso de alegria e senhor natural da terra, que é o seu mundo, a dor terrena é sufocação, asfixia, mutilação da vida material que constitui para ele todo o bem desejável. E para o evoluído, que já se considera um desterrado na terra, essa dor constitui a última experiência amarga num mundo superado, experiência que lhe abre as portas para a expansão da vida em outros mundos mais adiantados, únicos em que doravante lhe é possível viver. Essa dor representa o meio de romper grilhões já por demais pesados e preparar futuro melhor. No céu o evoluído encontra alegria, a que o involuído procura e encontra na terra. A festa da vida está sempre no amanhã, nesse futuro melhor que, pelo menos relativamente, está na posição por nós ocupada. O involuído amaldiçoa e teme a dor. O evoluído, porém, ama-a e abençoa. O involuído tem a dor na conta de destrutiva, o evoluído considera-a construtiva. Tudo depende do sujeito. O sábio, que viveu e, portanto, sabe, não incide mais nas ilusões humanas e recebe a dor, utilizando-a na função criadora; ri-se dos primitivos e de suas alegrias, que não lhes deixam na consciência senão saciedade, cinzas do cansaço e náusea.
Eis aí várias causas da dor do evoluído. Se muitas vezes sua vida é trágica, a dor transforma-o em altar de oferendas em que se consuma o holocausto supremo. E, enquanto os primitivos se debatem entre a morte e a dor, o evoluído representa ardente chama de sacrifício a Deus. No incêndio, ele se consome feliz, pois sabe que, depois desta vida, vida muito mais sublime o espera.
XXV
O DUALISMO FENOMÊNICO UNIVERSAL
No capitulo anterior resolvemos o debatidíssimo e controvertido conflito entre determinismo e livre-arbítrio, descendo às raízes de problema filosófico e prático de que em A Grande Síntese apenas pudemos tratar por alto. Agora descemos às particularidades, cuidamos dos pormenores, entregamo-nos a exposição completa desse problema, impossível de fazer naquele livro, destinado principalmente, como dissemos, a dar o rumo geral e o quadro orgânico de nossa problemática. O leitor ali poderá encontrar-lhe apenas a exposição sistemática. Vamos, mas sempre de acordo com o esquema de A Grande Síntese, deter-nos no exame de alguns pontos mais controvertidos, enriquecendo-os cada vez mais e aproximando-os da realidade da nossa vida. Desenvolvemo-los e aprofundamo-los, mas também lhes damos aplicação prática, pois não objetivamos perder-nos em abstrações filosóficas, e sim tornar a vida mais clara. For essa razão, aos raciocínios complicados preferimos simplesmente a linguagem do bom senso e dos fatos; aliás Newman convenceu-nos de, que "a conclusão de um silogismo, sozinha, jamais convenceu alguém; jamais"
Até agora estivemos desenvolvendo argumentos que de preferência se relacionam com a terra e a vida coletiva (ou de relação) no plano biológico dominante ou, seja, no do involuído. São, portanto, argumentos referentes a tentativas, a lutas, a incertezas; entremeiam-nos o incessante e penoso trabalho de construir e de promover a demolição que possibilite reconstruir e a cansativa tarefa de plasmar mil e uma vezes a matéria a fim de, através de experimentos sucessivos, chegar à compreensão. Estamos em pleno reino da força e da ignorância humana, dos violentos desequilíbrios da injustiça,: no reino da traição e da mentira. O evoluído penetrou no espírito da Lei, aderiu a ele, repousa na paz de seus equilíbrios e na suave musicalidade de seu ordenamento; volta-se para trás horrorizado, suporta-o porque a isso é obrigado, mas deseja ardentemente fugir. Procuremos acompanhar-lhe a fuga para outros mundos, para outras realidades superiores que, embora para os deste mundo se afigurem sonhos, tão longe estão de nossa vida, no entanto a iluminam, mostrando-nos a ordem perfeita reinante aqui embaixo também, não porém na superfície, onde, em caótica desordem, tudo nos parece fora do lugar exato. Ao lado da vida exterior, que tantos vivem, existe outra, interior, mas igualmente real e poderosa Se a primeira se mostra mesquinha, podemos, ajudados pela segunda, torná-la intimamente grande. Embora não possamos mudar as condições de nossa existência, nossa conduta será capaz de enobrecê-la e, até mesmo, podemos com nossa flama interior tornar luminoso o ato mais simples e comum. O maravilhoso e o sublime podem a cada passo nascer dentro de nós, nas circunstâncias mais humildes. A própria vida de Cristo entreteceu-se exteriormente de pequenos episódios, comuns e vazios de sentido, se considerados em si mesmos, e determinados pela miséria espiritual de todos quantos o circundavam. E, todavia, sua vida continuou sendo sublime. Nossa vida é exatamente igual ao que somos. O ambiente e as circunstâncias influem apenas na vida dos débeis, que não as dominam e, além disso se deixam dominar por elas. Em face da miséria espiritual de tantas coisas mais importantes da vida passam despercebidas. Aí onde os indivíduos maduros vêem e fremem de entusiasmo, os outros passam despercebidos de tudo, correndo no encalço de futilidades. Apenas quando possuímos grande alma e nos anima grande paixão nos pomos no mesmo nível dos grandes acontecimentos da vida; aí, compreendemo-lhe o valor, respondemos às vozes sublimes que vêm das profundezas do universo ilimitado, onde cada qual vê e aprende conforme a própria acuidade visual. Assim, as verdades correspondem às vistas, às capacidades, à evolução, variam desde as mais grosseiras e materiais até às mais refinadas e espirituais. Onde um sussurra e chora porque percebe a mão de Deus, aí mesmo outro sorri e despreza porque não percebe, não compreende coisa alguma. Todos se abalançam a julgar; quem, no entanto, acredita estar julgando as coisas, acusa e julga a si mesmo. O caos de opiniões é ordenamento, equilíbrio, desordem que se harmoniza de novo num plano mais elevado onde encontra possibilidade de acordo. Há quem ouça e há os surdos também. Todos nós apenas podemos viver em nosso nível, de acordo com o que somos. A alma, a vida interior é que dá ao homem a medida das coisas. O eu assemelha-se a um vaso que não pode conter nada além de sua capacidade. Fiquemos tranqüilos. O sublime não contagia. Os grandes pensamentos, as grandes paixões, as grandes ações permanecem solitários. O mundo está sempre pronto a compreender e aplaudir o que se encontra no seu nível. O melhor não pode afirmar-se senão lentamente e à custa de martírio que não chega a interessar o mundo. Diz Schuré no Sonho de Minha Vida: "É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que uma idéia nova penetrar no cérebro dos homens". E Máximo Gorki acrescenta: "Quem nasceu para andar de rastros não pode conhecer a alegria do vôo". Pior ainda nos faria pensar em face dos heróicos pregoeiros da verdade, o rifão popular: "Vulgus vult decipi, ergo decipiatur[14]"
Em geral, o mundo interior fica entregue aos poetas, artistas, místicos, isto e, à classe considerada mais ou menos inútil pelos homens práticos. Desse mundo, no entanto, emanam a força propulsora do progresso e a única luz que nos ilumina e atenua a miséria da vida quotidiana, embora materialmente muito rica. O evoluído foge para esse mundo mais adiantado e aí se reencontra. Mundo espiritual, aí existe a única liberdade que não se chama abuso e torna possível distender-se a tensão das férreas necessidades da vida material. Nesta o elemento moral é menosprezado e apenas palidamente aparece nos últimos planos; nesse novo mundo, ao contrário, guinda-se aos primeiros planos, como fator fundamental. Trata-se de dois mundos inversos e complementares em que nossa existência se divide e se completa, de acordo com a grande lei de dualidade. Até agora os contrapusemos como duas posições antagônicas, que mutuamente se excluem na conquista do campo da vida. Mais atento exame desses mundos em relação a essa lei nos permitirá até mesmo nesse dualismo reencontrar a unidade, considerar os dois termos opostos como se fossem os dois aspectos do mesmo princípio. Veremos tratar-se de existência dúplice, de duas formas de vida, entre as quais o ser oscila em seu caminho evolutivo, de acordo com as possibilidades da fase alcançada. O exame confirmará a lei, revelando-nos dela aspectos novos.
Devemos reportar-nos ao cap. XXXIX de A Grande Síntese, "Principio de trindade e de dualidade", cujo conhecimento presumimos. Ai o leitor encontrará o mesmo problema agora exposto, mas intimamente relacionado com a cosmogonia universal. Ao invés, destas páginas poderão derivar algumas aplicações e desenvolvimentos particulares, como, por exemplo, essas duas vidas, exterior e interior, de que estamos falando agora. Na ordem universal todo fenômeno se apresenta como campo de forças fechado, fato que lhe caracteriza a individualidade e lhe limita a ação. O eu fenômenico está encerrado em seu ritmo interior, equilibrado em duplo e inverso movimento respiratório, em oscilação que constitui a base da íntima elaboração chamada evolução. Essa bipolaridade é universal. Toda unidade se nos apresenta como formada de duas partes iguais em que, contradizendo-se, ela se inverte e se compensa, mas também encontra sua estrutura simétrica e equilibrada. Esse vaivém de forças antitéticas em campo fechado, essa correspondência de antíteses e simetria, de inversão e complementariedade, esse íntimo ritmo dualístico compõem a fisionomia que o pensamento e a vontade da Lei imprimiram às individuações fenomênicas, quer dizer, significam estrutura orgânica e funcional. É o de que vamos tratar profundamente agora. O princípio de ordem, fundamental na Lei, transforma o universo, desde o fenômeno máximo ao fenômeno mínimo, em sistema equilibrado, orientado, ritmado e periódico. Faz-nos, por isso, compreender e sentir a Criação como fato fundamentalmente harmônico, rítmico, musical.
Embora tenhamos posto frente a frente as duas vidas, a exterior e a interior, a da matéria e a do espírito, a vida é una e oscila entre estes seus dois extremos inversos e complementares. Trata-se de duas formas comunicantes, de bipolaridade da vida. É perfeitamente possível e verifica-se continuamente a passagem do mundo da matéria ao do espírito e ao contrário, que se completam através de funções compensadoras, atraindo-se por força da lei de simpatia estabelecida entre os contrários. O conceito da musicalidade existente na ordem universal faz-nos pensar que ritmo caracteriza e distingue as duas formas de vida. O mundo exterior, o da matéria, da vida física e sensória, poderíamos imaginá-lo caracterizado por ondas longas; o mundo interior, o do espirito, da vida psíquica e intuitiva, caracterizado por ondas curtas. Essas duas ondas existem nos fatos, sem dúvida; mas é lógica a existência de onda típica individual, distintiva da personalidade, reveladora das notas fundamentais do caráter. Mais tarde esses ritmos pessoais se entrosam e se fundam em outros ritmos mais amplos: familiares, nacionais, mundiais etc. Neles a observação nos revela correspondências e oposições. Nos países meridionais, por exemplo, ricos de calor e luz solar, as forças vitais preferem revelar-se exteriormente através de manifestações sensórias. Essa espécie de expansão forma tipo humano fisicamente exuberante, expansivo, de inteligência vivaz e realista. Há, sem dúvida, entre raça e ambiente certa relação de ritmo, que neste caso se poderia chamar ritmo de ondas longas. Nos países nórdicos, onde, pelo contrário, domina o frio e a umidade e a luminosidade é menor, as forças vitais se expandem de preferência intimamente, sob formas reflexas. Isso determina a preponderância de tipo humano de inteligência dobrada sobre si mesma, introspectiva, menos viva, profunda, nebulosa. Mesmo o desenvolvimento físico é mais lento. Esse diferente ritmo vital poderíamos chama-lo ritmo de ondas curtas. É claro que com o passar do tempo os ritmos entre ambiente e indivíduos acabam por sintonizar-se, por viver simbioticamente; a coexistência (diríamos, mesmo, a coabitação) entrosa-os e harmoniza-os; a personalidade absorve e incorpora, fazendo-o seu, o tipo de vibração dominante, conserva-o e depois torna a irradiá-lo, como se o tivesse ela mesma produzido. A vida é sensível e tudo registra, assimila, devolve. Assim, as manifestações raciais são típicas e diferentes, de Verdi a Wagner, do catolicismo ao protestantismo, de Dante a Goethe. O ambiente concorre para dar seu tom característico à psique coletiva e aos líderes que a representam, de modo que as próprias atividades e funções se plasmam de maneira diferente. Mas em toda parte, mesmo nos campos mais disparatados, esse dualismo perdura. O pensamento da própria Igreja equilibrou-se entre a tese e a antítese, entre Pedro e Paulo, isto é, entre a corrente judaico-cristã de tipo particularista e a corrente greco-cristã de tipo universalista, como se equilibrou, mais tarde, entre Agostinho e Tomás, quer dizer, entre a corrente platônico-intuitiva e a corrente aristotélico-racional. O próprio mundo está dividido e, no entanto, unido entre os seus dois extremos ou, seja, entre a civilização ocidental, materialista, e a civilização oriental, preponderantemente espiritualista. Toda unidade fática se deve ao equilíbrio de duas metades, opostas e contrastantes. Por isso, não se pode falar que, de dois elementos postos em presença um do outro, este seja superior ou inferior àquele e ao contrário Como já dissemos, relativamente a jovens e a velhos, um tipo vale tanto quanto o outro. O dinamismo, em última análise o mesmo, assume formas diversas, mas substancialmente equivalentes. Enquanto num caso (ondas longas) se desenvolve como quantidade, noutro (ondas curtas) se desenvolve como qualidade, isto é, encontra-se sob a forma de potencial ou pressão. Já nos referimos neste volume (cap. IX – Das Trevas à Luz) à relação, aos efeitos dinâmicos entre amperagem e voltagem no campo da eletricidade, e entre volume e pressão, na mecânica dos líquidos. Reencontramos a inversão dos dois extremos no dualismo entre outras posições, como, por exemplo, luz e sombra, dia e noite, primavera e outono, equador e pólos, verdade e erro etc., pois não existe ser algum que não contenha essa oposição de ritmos contrários.
Continuando a observar, verificamos correspondências ainda mais remotas e relações novas. O tipo espiritual, de expansão interior, aparece-nos também como de sintonização noturna (cf. o volume As Noúres), azul, lunar, hipersensual e supersensória, inimigo da ação, da matéria, da vida física animal. Esse tipo é esquivo, solitário, silencioso, sofredor, sensitivo, pacífico e, em relação ao mundo, negativo. É um "não-ser", relativamente a este último. Ao contrário, é um "ser" em face do imponderável, que é um "não-ser" para os outros. Estes são constituídos pelo tipo material, de expansão exterior, de sintonização diurna, vermelha, solar, sensual e sensória, amiga da ação, da matéria, da vida física animal. Tipo audaz, sociável, bulhento, gozador, voluntarioso e agressivo, mostra-se positivo perante o mundo. Trata-se de atitudes relativas e opostas. Cada uma delas significa ou afirmação ou negação que se invertem relativamente à negação ou à afirmação do outro termo Trata-se de alta ou de baixa freqüência. Em meio dos jejuns, das renúncias e dos sofrimentos, os santos estavam sempre absortos em contemplação, que é apenas visão interior. A espiritualidade, vida sutil de alta freqüência e notas agudas, substitui a animalidade, vida vegetativa de baixa freqüência e notas graves; o baixo potencial transformou-se em alto potencial, amperagem em voltagem, o volume em pressão, a vida grosseira dos sentidos na hipersensibilidade refinada; o mundo físico desmaterializa-se no imponderável. Os dois lados da vida continuam sempre opostos e complementares. Reencontramos aqui a mesma razão inversa observada entre força e sabedoria, entre alegria e dor, entre jovens e velhos. A exuberância vital dos primeiros reside na força e na alegria, na expansão física; a dos outros está na sabedoria, na dor, na expansão espiritual. As lutas, as fadigas, as conquistas, tudo é diferente. Os sentidos das projeções dinâmicas são diametralmente opostos. A vida oferece dois lados, opostos, em cuja complementariedade se completa; desse equilíbrio lhe advém a unidade perfeita.
Todas as manifestações humanas adquirem essa colaboração diferente e passam de um para outro tipo. Uma pessoa gosta do que outra detesta; para uns é vida o que para outros representa morte. O próprio Sermão da Montanha exemplifica a mudança dos valores terrenos, considerados de ponto de vista material, em valores celestes, considerados de ponto de vista espiritual. A própria morte: para o homem material é morte apenas; para o espiritual, vida. É evidente o contraste. A vida oscila do extremo do sadismo (que afirma consistir a vitória na afirmação egoísta, no esmagamento do próximo) ao extremo oposto, o do masoquismo (que diz: a vitória consiste na altruísta negação do eu, no amor ao próximo, na tolerância, no sacrifício, na derrota). A evolução caminha amparada por ambos os impulsos. Perguntamo-nos, então: relativamente a esse dualismo, em que sentido caminha a evolução da vida? Para os indivíduos como para as famílias e os povos e, portanto, para a humanidade também, a vida caminha da juventude até à velhice, com todas as alterações de qualidade decorrentes dessa passagem. Essa passagem, aliás, significa inversão de características, exatamente porque é mudança de posição de um extremo a outro. Por isso, a evolução da vida oscila entre o ritmo de ondas longas e o de ondas curtas, o baixo e o alto potencial, a quantidade e a qualidade, a baixa e a alta freqüência. A evolução, portanto, nada muda à substância, mas somente à forma; e o que a torna possível é um ritmo interior, de freqüência vibratória. A vida dos velhos não significa destruição, mas apenas inversão formal da vida dos jovens. As duas vidas, a espiritual e a material, são inversas e, portanto, antagônicas; o enfraquecimento ou atrofia de uma condiciona o desenvolvimento da outra. No sistema compensado e equilibrado da natureza, não pode haver hipertrofia sem a correspondente atrofia. Assim, verificamos constantemente existir relação inversa entre saúde física e vida espiritual, tanto assim que, quando a vida orgânica tende a enfraquecer-se, também tende a sensibilizar-se e a manifestar-se sob formas mais refinadas, em planos mais elevados; por outro lado, em organismo fisicamente desenvolvido e exuberante, geralmente não cabe vida interior sutil e sublime A trajetória da atividade física, em seu desenvolvimento, maturidade e decadência, não coincide com a trajetória da atividade psíquica que, quando o indivíduo evoluir ao ponto de possuí-la, se atrasa, isto é, floresce e definha muito depois da atividade corporal, como se necessitasse, para melhor desenvolver-se, da atenção dos processos da vida vegetativa. A maioria das obras-primas surgiram quando os autores tinham de quarenta a sessenta anos. A morte seria, então, o caso-limite de máxima decadência física e de afirmação espiritual, a passagem completa de uma forma vital em ondas longas a outra em ondas curtas As duas vidas são inversas e opostas. Durante a permanência na terra verifica-se a oscilação entre uma e outra, conforme o poder adquirido pelo indivíduo em qualquer campo e de acordo, também, com o ritmo e o tipo de onda dominante em sua personalidade. Quanto ao involuído, em que prepondera o desenvolvimento físico, não pode haver, sem dúvida, enfraquecimento orgânico capaz de revelar-nos espiritualidade nele inexistente. Mas, se a evolução a houver suscitado, não podemos pôr em dúvida que o enfraquecimento físico progressivo, o desgaste da vida de ondas longas favoreça a vida de ondas curtas. A vitória de uma só se torna possível com o enfraquecimento correspondente da outra. Noutras palavras: o enfraquecimento orgânico pode funcionar como revelador da personalidade rica e profunda, mas preexistente. Quando, porém, nada existe, como lhe é possível revelá-lo? Quanto à dor, acontece isso mesmo. Se a sua função preponderantemente criadora, na sua forma mais imediata e evidente se nos mostra reveladora, o eu tende à expansão e a dor constitui prisão, asfixia, mutilação. Mas essa opressão que se exerce num plano pode resolver-se em compressão capaz de elevar o potencial, a pressão, de transformar a freqüência da onda; e isso tudo ao ponto de obrigar a personalidade, quando lhe possua os elementos, a expansão diferente, em plano de vida mais elevado, isto é, de fazer a vida do ser, desde que maduro, ascender da forma vegetativa animal à forma espiritual. A dor pode, assim, constituir instrumento de progresso, como quando, barrando a passagem às fáceis ressonâncias inferiores dos jogos materiais, abre as portas às sintonizações superiores dos gozos espirituais. Trabalho mais difícil, esforço para atingir tensões mais altas; elemento de progresso, porém, pois o ritmo vibratório do espírito, em alta freqüência, se reforça, se completa, se estabiliza na personalidade. A personalidade sofre, debate-se, mas acaba sendo controlada e assim, não consegue explodir; é até mesmo constrangida a fazer uma conquista que mais tarde será sua e a levará a bendizer a dor, transformada em instrumento de progresso.
Um esclarecimento se torna necessário agora. No leitor atento, que se lembra do cap. XLVIII (Série evolutiva das espécies dinâmicas) e o cap. LXXXV (Psiquismo e degradação biológica) ambos de A Grande Síntese, pode surgir certa dúvida, se confrontar esses capítulos com frases como estas deste livro: “O mundo da matéria podemos imaginá-lo caracterizado por ondas longas; o do espirito, por ondas curta.... Trata-se de alta e baixa freqüência... Animalidade, vida vegetativa, notas graves, baixa freqüência; espiritualidade, vida sutil, notas agudas, alta freqüência. A evolução da vida caminha, portanto, do ritmo em ondas longas ao ritmo em ondas curtas, do baixo ao alto potencial, da baixa à alta freqüência. Na evolução da vida é a onda longa que se funde na curta”. Nos referidos capítulos de A Grande Síntese se afirma, ao contrário, que, ao longo da série das espécies dinâmicas, a freqüência vibratória diminui enquanto a amplitude aumenta. Aí parece, portanto, que a evolução caminha para a diminuição de potencial, representada pelo decréscimo da freqüência vibratória e pelo aumento de amplitude de onda. Neste capítulo dizemos, pelo contrário, que a vida caminha das ondas longas para as curtas, da baixa para a alta freqüência, com elevação de potencial. Há contradição nisso? Não. Expliquemo-nos.
Cada uma das três fases evolutivas do nosso universo se resolve, finalmente, em decomposição final que relativamente à matéria se chama desintegração atômica; para a energia toma o nome de degradação dinâmica; e, quando se refere à vida, diz-se degradação biológica. E, de fato, a vida, considerada como dinamismo biológico, caminha para a baixa freqüência e o aumento do comprimento de onda e isso até ao esgotamento e à morte em seu caráter de vida vegetativa animal. Este é apenas um caso do fenômeno de entropia, isto é, da tendência dos fenômenos ao nivelamento dinâmico e à extinção na quietude. Essa entropia, se existe nos fenômenos, não é constante e perpétua; se fosse, já teria feito sentir sua ação e o universo já estaria morto; no entanto, vemo-lo em contínuo progresso. Deve existir nele, e é lógico que exista em sistema equilibrado como nosso universo, a parte inversa e compensadora do fenômeno da entropia, isto é, tendência paralela e complementar à construção, reconstrução de potencial e de freqüência, que equilibre e anule a tendência à destruição e à degradação de potencial e à diminuição de freqüência representada pela entropia. A forma de toda fase evolutiva também se sujeita, sem dúvida, a desgaste que termina em desagregação. Esta, porém, é apenas aparente e não se verifica, se tomarmos em sentido absoluto o termo. A destruição não incide na substância, mas apenas na forma, e reduz-se a renovamento, condicionador da evolução. Na realidade, se os fenômenos diminuem de intensidade e se esgotam em sua forma atual, se se desgastam, envelhecem e morrem, nem por isso se aniquilam e anulam. A substância de coisa alguma pode ser destruída; ressurge de outra maneira, e isso acontece exatamente como resultado da elaboração da fase precedente, em que a forma se degrada, mas a substância evolui, impregnando essa forma situada em plano mais elevado e igualmente real, embora ela escape aos nossos sentidos. Esta ressurreição, sob forma diversa, da substância imortal é que se encarrega da reconstituição do potencial, da alta freqüência em ondas curtas. Assim, na desintegração atômica a matéria não desaparece senão como matéria, mas renasce na qualidade de energia de alto potencial e freqüência em ondas curtas (gravitação); do mesmo modo, no caso da degradação dinâmica, essa energia vai-se degradando, de gravitação passa a eletricidade. Aniquila-se como potencial, freqüência e comprimento de onda, mas finalmente morre como energia e renasce sob a forma de vida. Se considerarmos a degradação biológica, veremos que por sua vez a vida se desgasta, enfraquecendo-se como potencial, freqüência e comprimento de onda, mas por fim não se extingue senão na qualidade de vida vegetativa animal e renasce, como espírito em fase mais adiantada, em nova e mais evoluída forma de existência, de alto potencial, alta freqüência e ondas curtas. E assim por diante.
O fenômeno da entropia não representa, pois, toda a evolução, mas apenas o período destrutivo da forma de uma fase evolutiva, período que constitui a aparência e o efeito de íntima elaboração a ele correspondente na intimidade do fenômeno, e representa correlato período reconstrutivo, cujo resultado é o nascimento da nova forma, mas em fase mais adiantada. Assim, a evolução recomeça a marcha e, em meio da destruição da forma, a substância progride desse aparentemente misterioso meio de recuperação de energia, que outra coisa não é senão a resultante dos equilíbrios das forças do sistema. A entropia, portanto, é apenas aparente, a aparência assumida pela realidade do transformismo evolutivo. De fato, não se trata de dispersão nem de nivelamento, mas de elaboração. O processo de reconstrução se desenvolve subterraneamente e nada tem de científico, mas o resultado aparece-nos como nova forma que, mais poderosa, renasce em plano mais adiantado. Chamamos entropia a destruição apenas da forma, condição de renovamento evolutivo. A parte inversa e complementar do fenômeno se encarrega de reconstruir, equilibrando-o em seus dois momentos inversos e complementares. Prova o fato de que o resultado final de toda degradação não é a morte, mas a ressurreição em plano mais elevado. A entropia constitui apenas a revelação do desgaste resultante do trabalho da elaboração evolutiva, desgaste que desempenha também a necessária função de destruir uma forma, que por força da lei de evolução sempre progride e se aperfeiçoa. Não é verdade que por toda parte, até mesmo em nós, em nossa vida como em cada um de nossos atos, encontramos sempre essa lei de morte e ressurreição? Doutro modo não poderia haver renovamento e evolução. A forma necessita de desfazer-se e refazer-se continuamente para prosseguir no caminho ascensional do ser, que vai assumindo-as sucessivamente, de acordo com suas necessidades. A morte condiciona a vida.
Agora se compreenderá mais facilmente o que neste capítulo estamos dizendo, isto é, como a destruição biológica conduz à construção espiritual. Agora podemos verificar como, apesar de toda forma tender a degradar-se na baixa freqüência e em ondas longas, ela se reconstitui mais tarde em uma forma superior, de alta freqüência e ondas curtas. Eis por que, embora a vida do indivíduo e a da humanidade se desgastem no curso da juventude à velhice, em progressiva diminuição de potencial biológico que caminha para a baixa freqüência e as ondas longas, desse desgaste nascem o espírito, a consciência, a sabedoria, resultado de experiências da vida, cujo fruto é o espírito, em elevado potencial, alta freqüência e ondas curtas. A vida, enquanto vida apenas, caminha para a baixa freqüência e as ondas longas; como espírito, porém, se reconstitui em ondas curtas, rápidas e poderosas. No plano da vida o processo de enfraquecimento de freqüência, alongamento de onda e degradação de potencial continua exatamente como dizem os referidos capítulos de A Grande Síntese e isso até à exaustão e à morte. Desse processo, porém, surge o espírito, como produto sintético dessa elaboração biológica. É o que se afirma neste capítulo. Parece que no fim de cada período evolutivo, do percurso de cada fase, desgastada a forma que lhe é própria, as forças do universo se contraem e concentram em uma forma sintética, de potencial mais elevado e filha da forma precedente, que morre. Assim, apesar de tudo, o ser se fortalece, se aperfeiçoa, cada vez mais se reaproxima de Deus. Isso porque a degradação não passa de processo negativo de anulação da forma, anulação aparente de que nada subsiste senão a forma renovada e outro trecho percorrido no caminho da evolução. A degradação é, na realidade, apenas íntima colaboração construtiva e seu resultado não é a extinção, mas a evolução. O desenvolvimento de determinada fase evolutiva é um percurso expansionista, caminhando do centro para a periferia; mas é também um caminho que, no fim de cada um desses períodos, importa em haver-se percorrido intimamente um caminho inverso, com que o fenômeno evolutivo se compensa, completa e reequilibra porque contemporaneamente percorreu no seu outro pólo um caminho da periferia ao centro. Assim, a manifestação jamais termina em dispersão, por causa de afastar-se de sua fonte; pelo contrário, é novamente atraída pelo poder divino que tudo rege e reconduzida ao contato com as forças diretivas de que o outro lado do processo tendia a afasta-la. Sem esses equilíbrios compensatórios, o universo se esgotaria por degradação. A própria lei de dualidade nos mostra a estrutura desse fenômeno de compensação Se de um lado há degradação, do lado oposto deve necessariamente existir reconstrução. Assim acontece, na verdade, e os resultados, que não significam morte, mas vida, põem-no em evidência. Trata-se apenas de dois momentos de processo evolutivo único. Por necessidade de equilíbrio devem ser inversamente proporcionais. O nascimento implica na morte; a morte, na vida. A degradação biológica constitui condição do processo genético do psiquismo, como a degradação dinâmica se revela condição do processo genético da vida e a desintegração atômica condiciona o processo genético da energia. Os dois momentos são pressupostos um do outro e reciprocamente se impõem. Cada fase acaba degradando-se. Nasce moça, de elevado potencial, ondas curtas e alta freqüência, e morre velha, de potencial baixo, ondas longas e baixa freqüência. E ao morrer gera fase de ascensão mais adiantada e mais próxima de Deus. Essa lei se estende a todas as coisas. Esclarecido esse ponto, continuemos.
Quem a experimentou sabe muito bem que a vida espiritual, em que reside o futuro biológico, se caracteriza pela alta tensão; sabe também que fadiga representa o ser constrangido a elevar o próprio potencial, a habituar-se a vibrar em ondas curtas e em alta freqüência. Exprimindo-se assim, procuramos dar a entender mais facilmente aquilo em que consiste a evolução, traduzindo em termos científicos o fenômeno de espiritualização que em geral não é entendido, lato sensu[15], como fenômeno biológico, mas apenas no caráter de fenômeno religioso. O ritmo vegetativo da animalidade mostra-se mais lento, menos fatigante, menos potente, é de ondas longas e baixa freqüência. O sofrimento, que matura e desmaterializa, exprime o esforço de habituar-se a viver em ritmo mais rápido e intenso, mais laborioso e fatigante, porém, mais potente. A evolução constitui, em substância, aceleramento de freqüência de vibração; a dor aí funciona como excitante, espécie de transformador de potencial. Através da evolução a substância permanece idêntica; a quantidade transforma-se em qualidade; a força, como vimos, muda-se em sabedoria; a ignorância do involuído passa a ser a sabedoria do evoluído; a violência torna-se justiça; e o caótico desequilíbrio da desordem e do abuso transforma-se nos harmônicos equilíbrios da ordem divina. Por força da evolução, o concreto caminha para o abstrato; a ação, através da experimentação, transforma-se em conceitos e qualidade, a atividade material em atividade espiritual, o trabalho em contemplação. No homem primário o pensamento é concreto, não se concebe a idéia senão revelada por fatos concretos, a palavra mostra-se mais como gesto (isto é, síntese inspirada na ação) do que como conceito; e o pensamento é mais expressão por meio de palavras e gestos do que meditação; toda manifestação espiritual permanece sepultada num invólucro material. Apenas o evoluído atinge a concepção abstrata, imaterial, que se mantém por força própria, sem ligações ou apoios físicos. Nele os membros de simples instrumentos de ação se transformam em antenas transmissoras e receptoras de radiações. O evoluído parece inerte, mas sua ação, que aparenta um "não-fazer", pois foge às formas e percepções comuns, desenvolve-se no imponderável. Ela desmaterializa-se em ritmo mais sutil, poderoso e penetrante. O futuro abrange a passagem da vida animal à espiritual; para que esta se desenvolva aquela tem de morrer, pois se torna impossível a coexistência de dois ritmos diversos. São antagônicos, mas reciprocamente se ligam e continuam. Na evolução da vida a onda longa é que acaba terminando em onda curta. Progredir significa conquistar onda curta. É a forma do futuro. Mas, superada a fadiga do aceleramento e a dor da asfixia em plano inferior, a vida, transformada e não destruída, continua mais intensa e alegre num plano mais elevado. Trata-se de ressurreição. Assim, a morte não é igual para todos. A noite não é trevas para os noctívagos. A morte só é morte para os tipos involuídos, animais e vegetativos, isto é, em ondas longas; para os tipos evoluídos, espirituais ou, seja, em ondas curtas, a morte significa vida. Todos nós somos relativos, limitados e estamos fechados numa das metades da vida. Mas sempre a experiência oposta, a outra metade, está pronta a compensar-nos e completar-nos. Tudo pode transformar-se. A vida em ondas curtas representa a morte da vida em ondas longas, mas constitui a vida dos tipos em ondas curtas. A vida deles não reside na terra, e sim no além, no reino da noite, enquanto que para os tipos em ondas longas ela está no mundo, no reinado do dia. Há, pois, temperamentos adequados a viver na vida e temperamentos adequados a viver na morte. Nossa própria vida cotidiana se divide em dois turnos diferentes: o dia, vida física, prática, concreta, sensória, à luz solar, em ondas longas; e a noite, vida espiritual, de sonho, incorpórea, no imponderável, à luz azul, lunar, em ondas curtas. A vida é contínua; de dia vivemos a vida dos vivos, de noite a vida dos mortos. As duas faces inversas do mesmo fenômeno se alternam. E enquanto uma forma prepondera, a outra se atenua e espera o seu despertar. De noite a vida física adormece e se afirma a vida interior, intuitiva, vidente. De dia, a vida interior permanece entorpecida, deixando o campo livre àquela. Trata-se como de duas linhas de visada diferentes, mas tomadas pelos olhos da mesma pessoa: um, míope, diurno, capaz de perceber todas as minúcias dos objetos próximos, precisa, concreta; outro, presbita, noturno, bom para distinguir os objetos afastados, as visões panorâmicas, mas vaga, sonambúlica, onírica. As horas da madrugada são as mais profundas, as melhores para a atividade espiritual e, por outro lado, as piores para o enfermo, o que sofre no plano físico; são as em que geralmente o homem morre, pois compreendem o período de maior depressão do dia todo, de ritmo vibratório mais curto, o mais afastado do ritmo longo, lento, vegetativo, diurno.
Todo o nosso ser está saturado desse dualismo inverso. A própria luta pela vida, fato fundamental, assume duas formas extremas: a positiva, de agressividade (conquista) e a negativa, de resistência (conservação), ambas válidas. Sobre esse dualismo também se apoia o básico fenômeno biológico da sexualidade, tanto assim que a encontramos, como oposição de termos, em nossa própria carne. De fato, os tecidos todos se compõem de células e a célula de dois elementos contrários e complementares, o núcleo e o protoplasma. Até mesmo a unidade celular, que está na base de nossa estrutura orgânica, é bipolar, conforme a lei de dualidade. O núcleo, originário do espermatozóide masculino, vibra em ondas curtas; é de radiações azuis, voluntarioso, dinâmico, como o próprio espírito. O protoplasma, oriundo da célula-ovo feminina, vibra em ondas longas; é de radiações vermelhas, sensual, pacífico, acumulador, como a vida vegetativa. O núcleo é eletricamente positivo; o protoplasma, negativo; eis os dois termos antitéticos que, da intimidade de nossa própria carne, do indivíduo ao desenvolvimento biológico e social, representam cisão e compensação de qualidade e divisão de trabalho, por força do qual o princípio masculino assume tarefa inversa e complementar da atribuída ao princípio feminino. Ao primeiro desses princípios, a virilidade, em ondas curtas, incumbe o dinamismo criador, a função de, por meio de estímulos revolucionários periódicos, reanimar, reativar a onda longa da feminilidade que, se tende a conservar, a proteger, acumular, tende também ao enfraquecimento e à estagnação. Essa atividade genética e conservadora equilibra-se na atividade oposta do princípio masculino, diretora e distributiva. A este se confia a iniciativa da evolução, ao feminino a elaboração da matéria-prima, o princípio masculino plasma, o feminino recebe. Mas o primeiro também é eminentemente destrutivo, enquanto o segundo domestica e civiliza. O fato de sua natureza inversa torna-os incompletos e leva-os a se atraírem reciprocamente. Assim, os dois princípios, na luta para se destruírem, se apertam no mesmo abraço. Ai de nós se, compensando-se e combinando-se, as duas funções não se equilibrassem. Então, reciprocamente expurgadas do excesso individual, a destruição do dinamismo positivo se transforma em construção e a passividade do dinamismo negativo se torna civilização. Da combinação dos dois princípios nasce a evolução; o masculino e o feminino são o pai e a mãe daquele filho chamado progresso.
Esse dualismo imprime-se em todo o nosso ser. Das alturas da personalidade desce até à intimidade de nossa carne, até à célula, onde, aliás, está insculpido e donde sobe de novo até à síntese máxima do ego, tornando-se antagonismo entre espírito e matéria. Esse contraste, que se verifica sem cessar e constitui a base da evolução, reencontramo-lo até mesmo no mais íntimo de nossa estrutura orgânica, na divisão e união dos dois sexos. Pode acontecer que as correntes de consciência, que se manifestam em nossa personalidade e a caracterizam, se relacionem com essa bipolaridade das células e nesta se encontre a chave do mistério do subconsciente, dos instintos, das idéias inatas, da hereditariedade; pode acontecer que a recordação atávica se acumule e transmita através dessas células eternamente reproduzidas por filiação direta, das células destacadas dos progenitores, isto é, o espermatozóide e a célula-ovo. Não podemos, agora, perder-nos em divagações a respeito da gênese e da estrutura da personalidade de que mais adiante falaremos. Mas, sem dúvida, o problema espiritual não pode isolar-se do fisiológico; os dois se ligam estreitamente. É verdade que as correntes espirituais nos penetram o organismo até ao interior da célula cuja estrutura é bipolar, quer dizer, contém, o germe das duas vidas, das duas vibrações e radiações, dos dois ritmos fundamentais da existência. Também é verdade que a vida é um fenômeno elétrico, não da eletricidade por nós usada em vários aparelhos. Trata-se de quantidades enormes de energia de posicionamento alveolar e de baixo potencial; trata-se de um grande número de elementos (vários milhões de células), cada um com capacidade energética mínima; poderíamos, mesmo, dizer numero infinito de causas infinitesimais. Num extremo da vida há como que uma pulverização dinâmica; noutro, uma espécie de concentração sintética e unitária em torno do ego. Também neste sentido se verifica uma oscilação entre os dois extremos opostos e complementares. As raízes do psiquismo mergulham profundamente nos misteriosos meandros da estrutura orgânica. Pensam que o material dessa construção é, como primeiro elemento, o átomo, e as moléculas as primeiras construções atômicas em que os átomos se ordenam sistematicamente. Para chegarmos até à célula, precisamos antes considerar a formação dos corpúsculos chamados micelas, compostos de um grânulo recoberto por uma espécie de casca (substância peri-granular). Água circula entre o grânulo e essa espécie de casca. A micela é dotada de movimento contínuo, chamado movimento Browniano. A micela é, pois, constituída de moléculas que, por sua vez, se constituem de átomos, em dois grupos de matéria, um positivo e outro negativo, como, por exemplo, a célula. Essa bipolaridade corresponde, do átomo e da célula aos organismos extremamente complexos, a um esquema geral da criação, estabelecido de acordo com a lei de dualidade. O esquema fundamental dos fenômenos universais é simples e válido para quaisquer grandezas e planos evolutivos. O próprio átomo compõe-se de um núcleo central positivo e de elétrons (ou cargas elétricas negativas) que gravitam em torno dele, à semelhança do sistema solar e seus satélites. O princípio dualístico manifesta-se em toda parte. Encontramo-lo impresso no desenvolvimento da trajetória típica dos movimentos fenomênicos examinada na 1ª parte de A Grande Síntese, desenvolvimento resultante da alternância de períodos inversos, evolutivos e involutivos, de progresso e retrocesso.
É natural que esse dualismo permaneça até mesmo na síntese máxima da personalidade. E assistimos não somente à pulverização de seu dinamismo causal como também à de sua estrutura material que, se de um lado, o máximo, se desfaz na espiritualidade da alma, de outro desaparece na imaterialidade dos últimos de seus elementos constitutivos. Não deve, pois, causar estranheza, o imaginarmos que essa imaterialidade se resolva no dinamismo de uma polaridade elétrica e de um ritmo vibratório radiante, em maravilhosa orquestração de harmonias equilibradas e compensadas com as dissonâncias relativas. A vida, portanto, se elaborou através de atividades mínimas, mas gastou nisso imensos períodos de tempo. Não é demais imaginar que a evolução consiste em lenta aceleração do ritmo vibratório, em transformação do potencial elétrico no sentido de freqüências mais altas, de ondas cada vez mais curtas; nem é fora do comum pensarmos que isso aconteça no processo chamado desmaterialização e espiritualização. A matéria viva de nosso organismo, sensível a todos os choques externos, de que registra os recentes e lembra os antigos, palpitante ao impulso de forças internas e externas, sofre continuamente a ação das vicissitudes da vida social, as asperezas da luta, a hostilidade ambiente. Deve, por isso, elaborar-se e mudar por força. O homem, os povos, a humanidade significam vida e a vida é como um projétil que percorresse trajetória pré-determinada. Tudo se transforma, nada pode deter-se. A carga elétrica, impulso inicial que acompanha o nascimento do ser e anima o percurso do projétil, tende ao esgotamento e então começa o ramo descendente da trajetória. O dinamismo acaba cedendo, primeiro no campo orgânico e em seguida no campo psíquico, exatamente porque neste campo se desenvolveu tardiamente. O último destes dinamismos parece filho do dinamismo orgânico, de que representa a resultante e o objetivo, o efeito residual mais bem elaborado da causa. Isso faz pensar que, como se verifica em relação ao indivíduo, as funções espirituais representam o futuro da raça, sua futura fase de evolução, e também na humanidade se desenvolvem mais tarde. Tanto assim que esse psiquismo corresponde a complexidade orgânica cada vez maior, necessidades de defesa cada vez mais difíceis, pois o drama se torna sempre mais inçado de problemas e requer, por isso, estratégia cada vez mais sábia e rica de mil e uma qualidades. Do contrário, o indivíduo não triunfa. E tudo nos faz pensar em que, analogamente, a evolução deve alcançar, também nos seus mais altos graus, a coordenação atingida nos mais baixos, como, por exemplo, na estabilização atômica e celular. Como o passado criou formas hoje estáveis assim o, futuro estabilizará formas bem mais complexas. Por que razão o princípio protetor da vida não deveria presidir também à defesa das construções biológicas do futuro, mais sublimes e delicadas? A criação é fatigante, laboriosa, lenta, mas contínua.
Baseados nessas considerações, agora podemos definir mais precisamente a lei de dualidade, até mesmo relativa mente à evolução. Assim:
"Todo indivíduo constitui unidade dupla, isto é, equilibrado paralelismo de forças emparelhadas, mas antitéticas. Ou melhor; a unidade compõem-se de metades inversas e complementares, em contraste e em equilíbrio. Desse contraste nasce a elaboração íntima que se chama evolução"...
A evolução, portanto, resulta de processo bipolar, destrutivo-construtivo. Já vimos de que modo o mal se torna necessário às finalidades do bem. Dessa lei se infere que, se toda unidade é um binômio, tudo é necessariamente luta e guerra, mas também paz; tudo é ódio, mas amor também. Poderemos até mesmo dizer que, por força da íntima estrutura dualística dos fenômenos e, portanto, do fenômeno biológico também, e em virtude do dinamismo de duas forças opostas, a positiva e a negativa, a masculina e a feminina, se produz uma auto-elaboração interior, também chamada evolução, que faz a vida humana progredir do tipo animal, vegetativo, espiritualmente involuído, sensual, sensório, físico, em ondas longas, para o tipo super-humano, psíquico, evoluído, sensitivo, espiritual, em ondas curtas. Em suma: transforme-se de besta em super-homem. Se essa elaboração íntima conduz a vida humana a um ritmo que vai das ondas longas às curtas, leva-a também a caminhar do dia para a noite, afasta-a da luz e do calor de um sol poente, desmaterializa-a por força de maturação íntima, do mesmo modo que, na desintegração atômica, a matéria se transforma em energia; a vida humana extingue-se como forma física, a fim de, em outros ambientes, ressuscitar sob nova forma espiritual.
Estamos discutindo estes problemas e, ao mesmo tempo, aplicando a lei acima exposta. De fato, também a idéia constitui um binômio de forças (isto é, inversas e complementares); e, por isso, como todo debate representa uma oscilação entre os dois extremos opostos do mesmo conceito, conduz àquela íntima auto-elaboração que é a maturação do pensamento, isto é, sua evolução. O leitor pode encontrar por si mesmo muitas outras aplicações dos princípios aqui expostos. Mesmo a radiestesia se baseia em dois tipos de movimentos pendulares inversos e correspondentes ao bem e ao mal, isto é, capazes de, seja qual for o objeto, revelar-lhe as radiações favoráveis ou nocivas. Se o movimento é circular, pode ser no sentido horário (sentido do movimento dos ponteiros do relógio) e no sentido anti-horário; se é retilíneo, falamos em sentido longitudinal e sentido transversal.
A tudo isso se poderia objetar que o princípio de causalidade não basta para explicar a fase superior de evolução que, representando estado mais complexo, significaria "mais" obtido de "menos", isto é, efeito superior à causa. A objeção se justificaria, se o funcionamento do universo dependesse apenas de relação causal. Não se concebe, aliás, desproporção entre causa e efeito nem desenvolvimento maior do que o conteúdo do germe poderia dar. Na realidade, porém, o fenômeno não se desenvolve como as aparências nos fazem supor. O funcionamento do universo não pára, mas, além de orgânico, e contínuo, é evolutivo, quer dizer, é intérmina florada de vida; a mecânica, representada pelo princípio de causalidade, constitui apenas o processo de elaboração dessa florescência. Em resumo: na evolução, mais do que simples relação entre antecedente e conseqüente, verifica-se o desenvolvimento de algo latente na intimidade do ser e a sua manifestação no mundo exterior. Os dois momentos, causa e efeito, não surgem, portanto, ligados por uma relação de igualdade, porque no centro, na causa no germe das coisas, se concentra o invisível poder do pensamento de Deus, poder que se expande e desenvolve na manifestação exterior, por nós mais claramente perceptível. Todavia, se observarmos mais atentamente, verificamos a existência dessa relação de igualdade entre causa e efeito, não na forma, mas apenas na substância. Os nossos sentidos, porém, só percebem a relação formal. A igualdade foge, pois, à apreciação dos sentidos. Se existe na substância, onde o equilíbrio tem de ser perfeito, não existe na forma, que é tudo quanto o homem percebe e, efetivamente, dá a sensação de disparidade entre causa e efeito.
XXVI
A MÚSICA - A VIDA DUPLA
O capítulo anterior deu-nos apenas ligeira idéia da maravilhosa simetria de impulsos e da correspondência de ritmos orientadores da ordem de que se compõem o funcionamento orgânico do universo. Nossa vida é força que navega em oceano de forças; toda força é vontade que a anima, pensamento que inteligentemente a dirige, é tipo de vibração, é radiação. Tudo se move, ouve, registra, recorda e responde. Apesar de algumas cacofonias, tudo se harmoniza em maravilhosa sinfonia, tudo se articula em grandiosa arquitetura de ritmos. A ciência deixa-nos tão-somente entrevê-la. O homem para percebê-la apenas dispõe de sentidos embotados e dela tem idéia muito vaga. O tato, sentido totalitário fundamental, nos dá sensação ampla, mas genérica e elementar Os outros sentidos, derivação específica e especialização do tato, permitem contatos mais íntimos e perfeitos com o ambiente. Assim: o gosto constitui aperfeiçoamento do tato, o olfato é especialização do gosto, o ouvido deriva do olfato, a percepção da luz origina-se da percepção do som. Na ascensão há ordem, progressão evolutiva. Ao progressivo aperfeiçoamento do sentido corresponde, quanto ao dinamismo, a transformação da quantidade em qualidade: o comprimento da onda diminui à proporção que a freqüência aumenta. Por essas poucas portas abertas penetra vasto mar de ondas, mas o restante nos escapa à percepção. Quem sabe quantas irradiações mais estão vibrando no ar, chamando-nos, e não sabemos captá-las! O resto parece-nos silêncio e trevas! Quanta vida e quanta beleza nos passa despercebida! A ciência, descobrindo novos métodos de registrar vibrações, oferece-nos uma espécie de sentidos artificiais que nos abrem novas vias sensórias. Rasgam-se novas clareiras iluminadas; depois, trevas, o inexplorado, como antes, interminável. A matéria se evapora; diríamos mesmo, espiritualiza-se em nossas mãos. Sua composição química não basta para esgotar o conhecimento de sua natureza. No universo tudo está animado de vida, de inteligência, de relações e de trocas. Toda individuação tende a sintonizar com o ambiente e a reagir, impondo ao ambiente essa sintonia. Modificando e modificando-se, tende-se à concordância, a recíproca mimetização rítmica. Por-se de acordo com a ordem é o caminho que oferece menor resistência. E dá maior rendimento, é a tendência constante e a resultante final que a estrutura do sistema de forças necessariamente impõe. Por maiores que sejam os antagonismos, tudo não passa de coexistência, de sensações recíprocas, de vibrações em comum. A coexistência no mesmo ambiente implica a inevitabilidade das trocas e, por isso, a reciprocidade das influências exercidas. A relatividade de cada qual implica a necessidade de procurar nos outros, para alimentá-la, o próprio complemento. Assim, antes ou depois, tudo se adapta por força de concordância recíproca; por maior que seja o desacordo, acaba sempre por dissolver-se, harmonizando-se no consenso. De fato, embora dividido pelo individualismo, está ligado por essa complementariedade; embora afastado e separado pela antipatia e repulsão existente entre semelhantes, é reaproximado e reunificado pela simpatia e atração que se estabelece entre contrários.
A estes contatos cada qual corresponde conforme sua sensibilidade; e evolução é sensibilização, isto é, dilatação contínua das vias da percepção bem como do poder e da alegria de perceber. Cada um reage conforme suas particulares capacidades seletivas e de sintonização; assim, o musicista para as ondas sonoras; o pintor para as ondas luminosas, o pensador para as ondas psíquicas, o romântico poeta para as ondas vitais do amor. Quanto mais a vida é espiritualmente profunda mais nos dá o senso do ritmo e nos transforma o ser em concerto de harmonias. No gênio triunfa exuberante riqueza de percepção, a hipersensibilidade abre tantas portas à ressonância, as irradiações penetram e os seus registros se amontoam febrilmente. Onde o homem comum percebe poucas sensações e duas ou três idéias com que enfeita o simplíssimo esquema de sua vida, o gênio deve saber movimentar-se, orientar-se, cair e levantar-se, em meio da vertiginosa complexidade de sua imensa orquestração perceptiva.
Todo esse movimento origina-se de desequilíbrio que procura, e enquanto procura, o seu reequilíbrio. Se aquele constitui o impulso motor, significa também transitória mudança de fase, instrumento de evolução, e acaba sendo, naturalmente, reabsorvida no equilíbrio. Embora haja desordem na superfície, na camada mais profunda reina a harmonia a que todas as coisas tendem; e o ser mais evolui, mais se lhe aproxima e mais a sente. A sintonização rítmica é o estágio final de todas as alterações dinâmicas. Encontrado o equilíbrio, o objetivo foi atingido, o problema está resolvido, o ser fica saciado e o movimento cessa, para recomeçar em plano mais elevado e em desequilíbrio mais complexo e, por isso, em movimento. E assim por diante. Se o dinamismo é conseqüência do desequilíbrio, este por sua vez deriva do dualismo existente em cada ser e implica unilateralidade, isto é, carência que o torna incompleto e por isso o incita ao movimento em busca de complemento. Mas se a natureza nos onera com a necessidade para que ela nos constranja ao movimento e, assim, façamos experimentos e evoluamos, propicia-nos também os meios de satisfazê-la. Há sempre outro termo apto a dar-nos riqueza necessária para realizarmos troca e conseguirmos satisfação, apenas tenhamos tido o trabalho de encontrá-la. Assim, os seres estão fraternalmente unidos e o universo pode organizar suas construções de relações, seus edifícios de forças; assim, tudo se move e se renova, foge à cristalização e no movimento se torna possível a evolução.
Todas as coisas são movidas por essa combinação de altos e baixos, de qualidades inversas e complementares. Cada termo vai procurando reequilibrar-se no seu contrário e, assim, encontrar repouso. Desse modo, todo elemento se liga a seu oposto e por isso, até mesmo no árduo trabalho de auto-elaboração é arrastado rumo à evolução. O progresso está implícito no sistema, como resultante, e o estado de equilíbrio representa evolução acabada, estado de paz que é a fase final de todas as guerras da luta pela vida. Na natureza, os objetivos existem para serem atingidos. O universo atual está em fase de desequilíbrio, base do dinamismo criador, e isso significa que está em fase criadora e evolutiva. Para as forças e os fenômenos que o conseguem, o equilíbrio representa a fase de chegada, de satisfação, de repouso final em terreno que jamais permanece inoperante e sossegado; por isso é também fase de morte e, em seguida, de superamento. O equilíbrio entre os dois contrários pode, com efeito, ser perturbado pelo menor choque, porque as forças do universo estão perfeitamente entrosadas. Então, os equilíbrios se rompem para se porem de novo em movimento, como desequilíbrios, até recuperarem novos equilíbrios de paz. Mas, a cada união e a cada troca, também corresponde nova prova e nova experimentação; a volta ao trabalho, após o repouso, significa superamento do passado e trabalho mais produtivo, mais sábio, mais profundo. Assim, toda necessidade, desequilíbrio, esforço e criação se relacionam estreitamente; desse modo, a luta e a dor constituem instrumentos de evolução, isto é, construtores de equilíbrio, de ordem, de harmonia. Trata-se de cadeia de momentos necessariamente ligados em série até que atinjam seu objetivo. O estado de determinismo é, portanto, apenas a parte conclusiva, o ponto de chegada em que o livre arbítrio deixa de oscilar, cristalizando-se nas qualidades adquiridas e em conseqüência perde, em dado campo, a sua função e razão de existir. Agora as qualidades estão bem caracterizadas e fixadas e já funcionam por simples automatismo, como se fossem instintos.
Concebido dessa maneira, o funcionamento do universo adquire significado musical. Quanto mais profundamente observamos mais evidente nos parece a sinfonia dos ritmos. Podemos exprimi-la de muitas formas: geométrica, matemática, artística, poética, musical, filosófica, heróica, moral Mas é sempre a mesma ordem que se revela como ritmo no tempo e simetria no espaço, ordem que, dinamicamente, é equilíbrio; moralmente, justiça; artisticamente, beleza; humanamente, bondade. Arquitetura, poesia, música, a própria bondade, tudo são ritmos. Há pensamentos musicais; sistemas morais que, como o Evangelho, sintonizam com os mais sublimes ritmos do universo, isto é, mais próximos da ordem. divina. A palavra de Cristo está saturada de vibrações construtivas e vitais. O gênio, porque sabe encontrar relações novas entre as coisas, revela-nos novas harmonias e nos aproximam do pensamento de Deus. A música dá-nos alegria porque nos patenteia a ordem que constituí a essência mesma da divindade e condiciona a felicidade suprema. Tudo quanto é harmônico nos eleva, melhora, dá-nos a paz que consiste no equilíbrio. Há tanto ritmo num teorema de geometria como no cálculo matemático, nos processos dinâmicos e nos químicos, nas leis físicas e nas leis morais, em astronomia como em estética e em filosofia, tanto num raciocínio como num destino. No universo um tipo fundamental de vibração ressoa e multiplica-se em mil tonalidades, alturas e dimensões; os esquemas basilares são simples e, repetindo-se, vão-se diferenciando e multiplicando ao infinito Por isso, todas as coisas guardam estreita analogia entre si; não é por mero acaso que, para descobrimento do desconhecido, tanto se recorre em A Grande Síntese, como também fazemos aqui, ao princípio da analogia. O espírito adere instintivamente à alegria do ritmo em que percebe terminadas as asperezas da luta e as dolorosas dissecações do caos. Toda harmonia é uma festa, pois nos eleva, nos aproxima de Deus, centro irradiador de todas as harmonias. O paraíso deve consistir em no sintonizarmos com ritmos sublimes do universo. O problema da felicidade talvez seja apenas questão de sintonia ou, seja, de colocar-se em fase com radiações superiormente harmônicas.
Esses conceitos podem lançar nova luz sobre o problemas da evolução da arte e, especialmente, da música. Podemos, assim, tecer agora considerações mais profundas a respeito de alguns de seus aspectos, de que, aliás, já falamos no último capítulo de A Grande Síntese: "A Arte". Nele dissemos o seguinte em relação à música: "Nossa atual fase artística consiste no aniquilamento, no abandono da forma. Estais na última fase de queda... O progresso artístico não passa, em substância, de processo de harmonização... Como todas as coisas, a música moderna evolui em profundidade... em sua 3ª dimensão de sinfonia... O futuro consiste em continuar tornando cada vez mais ampla a estrutura sinfônica..."
Aprofundemo-nos. Se observarmos a música de nossos dias, principalmente se a relacionarmos com a que a precedeu, verificamos separação, diversidade e desacordo fundamentais. A música de ontem nos aparece como música resolutiva, estágio final de pacificação; a de hoje, no entanto, surge como música revolucionária, estágio inicial de luta. Hoje, na música, predomina a dissonância, o desequilíbrio dos ritmos e dos tons. No campo artístico, isso tudo exprime o atual ciclo biológico, como manifestação viva de destrucionismo, de decadência moral, de queda evolutiva no materialismo, de que nos afastamos dos superiores ritmos divinos, de espiritual estridor humano. É revolução, ruína, destruição que, contudo, também pode transformar-se em reconstrução, com elementos novos e, por isso, de bases mais largas e objetivas e dirigida para fins mais elevados. É, sem dúvida, luta e esforço, desordem; mas representa, no caos, abundância de novas relações, de que surgem novas possibilidades. Essa a característica de nossa época, ao mesmo tempo infernal, perigosa e notável.
Até há poucos anos a música constituía processo harmônico, em que o choque sonoro tendia a composição amigável, a solução pacífica. A música moderna, expressionista, tende pelo contrário a estado em que predominam a inimizade e a luta. Modernamente, a fadiga de colocarmo-nos acima do acordo fundamental, resolutivo, pacífico, calmo, não é mais descontínua, entremeada de contínuas pausas para descanso; é, isso sim, desesperado impulso que não consegue mais resolver-se e aclamar-se num acordo. A dissonância se transforma de exceção em regra. Os choques continuam, acumulam-se, perseguem-se numa luta sem tréguas. Daí nasce um estado de tensão permanente, de irredutível hostilidade que, se de um lado desenvolve ao máximo o dinamismo das correntes sonoras, se reduz a simples paroxismo de instabilidade tonal que dá o sentido revolucionário da desordem caótica. Isso está agravado pela instabilidade rítmica (mudança de ritmo), hoje muito em moda. Existe aí, sem dúvida, abundância de elementos novos, mas ainda no informe eruptivo, no estado caótico de desequilíbrio, isto é, na posição mais afastada daquela harmonização que constitui elemento evolutivo e representa o grau de evolução artística. Verificamos, pois, a existência de duas tendências contrárias (outra manifestação da lei do dualismo), luta acerada e mais viva; e a luta, sem dúvida, serve de base à criação. Verificamos inegável intromissão de fatores novos na moderna arte musical, em que surgem novos recursos, e se manifesta ampliação de bases construtivas; e isso constituí benefício, germe de progresso. Mas aí verificamos também existência de estado de desequilíbrio que, se pode ser dinamizante e, por isso, genético, é desordem também e a desordem significa involução, ao passo que a ordem quer dizer evolução. Eis a grande questão: saberemos dominar essa desordem, transformando-a em ordem? Esse dinamismo terminará em construção ou em destruição? O gênio humano terá o poder de torná-lo genético, disciplinando-o em construções superiores? Saberá reequilibrar esse ameaçador desequilíbrio no plano de harmonias mais sublimes e complexas? Ou, então, a corrente modernista nos prenderá os pulsos e arruinará completamente a arte?
Hoje, sem dúvida, vivemos como se fôssemos vulcão ativo e a música atual constitui apenas um momento da psicologia de nossa época que, em qualquer ramo de atividade, se apresenta como desesperada tentativa para encontrar valores novos. Atualmente, ao invés de próximos, estamos muito afastados da sistematização e da alegria da harmonização; estamos hoje em pleno período de retrocesso e destruição que nos lembra o descrito no Cap. XXII - "Tempestade", deste volume. Esse estilo musical pode ser tolerado apenas como fase preparatória e de transição. O futuro da música não reside na desarmonia, mas na complexidade e profundeza. Ao contrário! Se não voltarmos a percorrer esse caminho, o único aberto à evolução musical, também do ponto de vista musical afundaremos na barbárie. Essa liberdade exagerada de ritmos significa ruína da ordem, decadência e destruição. Depois dos grandes clássicos não houve mais boa música. Não temos, freqüentemente, senão cerebralismo, e lucubração, artifício intelectual sem inspiração alguma, virtuosismo técnico, isto é, paródias, sucedâneos, degeneração. Talvez estejamos agora na parte mais baixa da onda, na noite escura que precede a aurora. Assim cremos e esperamos. Ouvido acostumado às velhas arquiteturas musicais, que, embora mais simples, alcançaram alto grau de equilíbrio, suporta com dificuldade, sem dúvida, essa espasmódica e caótica mudança de fase dos ritmos e o choque dessa dolorosa ruína estética. E o espírito, para aderir e aceitar, espera que tudo se reordene nos novos equilíbrios. Não somente a música, mas a arte em geral, corre perigo. E, infelizmente, isso não acontece apenas com a arte. Esses desequilíbrios significam a intromissão de novas forças; mas, se não soubermos dominá-las, arriscamo-nos ao esfacelamento completo. Saberemos, sob o fardo dessa riqueza nova, subirmos em direção ao objetivo final da vida e da arte, que é a harmonização? As revoluções devem saber resolver-se em novos ordenamentos; e exatamente para conquistá-los é que elas surgem. Apenas isso pode justificá-las. Tudo quanto hoje fazemos está condicionado, depende de que se conquiste esse domínio da ordem sobre a desordem e a violência revolucionária se enquadre, a tentativa dê resultado, a inspiração retorne e o espírito nos sintonize de novo com os grandes ritmos da vida. Nossos antepassados, mais simples do que nós, haviam-no alcançado; somos mais ricos e complexos, mas devemos saber ganhar a luta e realizar o imenso trabalho de progredir e consegui-lo também.
Até mesmo o problema da arte se nos apresentou sob a forma de antagonismo de forças em que atua o universal. dualismo da Lei. Equilíbrio e desequilíbrio, luta, harmonização, presumem sempre esse dualismo, binômio de forças, princípio que está sempre nas raízes da gênese e da evolução. Para onde quer que nos voltemos, sempre os dois termos opostos, que se atraem e se repelem, que se amam e se odeiam. Duas vidas, a interior e a exterior; dois tipos humanos, o involuído e o evoluído; dois ritmos, um longo e lento, outro breve e rápido. No começo deste capítulo falamos ligeiramente das diferentes vias sensoriais por onde os ritmos do ambiente penetram na personalidade humana. Mais uma vez dois termos, dois mundos, o íntimo e o exterior, o eu e o universo. Qual dos dois o maior? Ninguém pode negar que, assim como o mundo exterior, o mundo interior seja imenso, infinito abismo. Os dois impulsos se chocam e se combinam e daí nasce a vida. Luta criadora. O universo irradia e exerce pressão para, através dos sentidos, penetrar no eu. O eu recebe, experimenta, adapta-se, assimila; irradia, reage para, por sua vez, penetrar e, assim, domina e plasma o ambiente à sua imagem e semelhança. Dupla irradiação, portanto, do mundo exterior para o interior e ao contrário. A lei de dualidade, a coexistência dos dois mundos e sua atividade, enfim, essa dupla irradiação deles faz-nos pensar na existência de partes inversas e complementares das vias sensoriais já referidas, de canais de saída que lhe correspondam e fiquem em sentido contrário ao dos canais de entrada; faz-nos pensar, também, na possibilidade de inversão das vias sensórias que passem a percorrer o caminho sensorial também do interior para o exterior. Até agora vimos o movimento dessas irradiações apenas em uma direção, do exterior para o interior. É lógico que, por necessidade de equilíbrio, deva também existir o movimento em sentido contrário. Paralelamente, a natureza material dos canais de entrada deveria, nos de saída, assumir forma espiritual. A sinfonia dos ritmos complica-se. Examinemos o problema, agora. Veremos, então, novos aspectos do funcionamento da lei de dualidade. Isso diz respeito inclusive à arte que, através da inspiração, vai até às fontes íntimas para vivificar-se.
Beethoven era completamente surdo quando escreveu a Nona Sinfonia. Morreu com 57 anos (1827) e com 29 começou a ficar surdo... No entanto, a impossibilidade de ouvir não interrompeu a produção genial; parece, mesmo, haver cooperado para sublimá-la, tanto assim que seus trabalhos vão mostrando-se mais inspirados à proporção que a surdez aumenta. Contudo, tinha ele de ouvi-las. Se não, como poderia concebê-las, valorá-las, trabalhá-las? Beethoven as ouvia, embora simples sensações, com a mesma nitidez e exatidão que a percepção exterior permite. Sua percepção era, pois, diferente, mas de igual poder, canalizada por outras vias, as vias interiores. A atividade do musicista, que era a maior possível exatamente no campo de ação do órgão deficiente, mostra-se independente dele. A concepção, é claro, vinha inspirada de dentro de sua personalidade. Mas, como é que essa concepção se transformava em percepção e, através da sensação, conseguia o controle? Este caso faz-nos pensar no daquele homem que, para degustar qualquer prato, apenas se limitava a ler um tratado de culinária. Podem as vibrações que excitam os órgãos dos sentidos provirem de dentro e não de fora? Parece que os próprios sentidos podem ser impressionados por dois lados (dualismo), isto é, por vibrações vindas de fora e por vibrações oriundas de dentro; e mais ainda: que o fato de não funcionar o órgão externo de modo algum isola a consciência do indivíduo, mas antes pelo contrário o estimula a compensar-se, buscando outros meios de comunicação. Parece, outrossim, que nessa troca, o sentido ganhe em refinamento tudo quanto perde em objetivismo e materialidade e, finalmente, que as vibrações podem usar vias imateriais de comunicação. Embora continuem sendo do tipo correspondente aos vários sentidos, assumem elas forma bem mais sutil, espiritualizam-se e, concomitantemente, a produção do gênio se sublima e espiritualiza. Além do mais, parece que a compressão ocasionada pelo fechamento das janelas dos sentidos, abertas do lado físico para fora, aumente correspondente capacidade receptiva, por motivo da abertura de janelas sensórias do lado psíquico para dentro. Já observamos esse fenômeno de compensação na dor como instrumento de evolução, no enfraquecimento físico agindo como elemento de sensibilização, compensação, aliás, que facilmente se observa no desenvolvimento orgânico e psíquico (o braço ou a perna remanescentes são sempre mais fortes e os infelizes quase sempre mais inteligentes). A natureza, de estrutura bipolar, equilibrada, consegue desse modo compensar-se, remediando as suas imperfeições com o reforço que leva ao lado correspondente ao de sua debilidade. A vida, se se lhe fecham as portas da expansão, retrai-se, volta-se para si mesma e, ao invés de crescer horizontalmente, cresce em profundidade, em outra direção e segundo outra dimensão. Realiza, desse modo, outros experimentos, adquire qualidades diferentes; a duplicidade de sua estrutura permite-lhes afirmar-se igualmente, realizando-se de acordo com desenvolvimento diferente.
Nosso corpo, isto é, a parte que vemos, é apenas a metade do organismo humano. Como decorrência da aplicação da lei de dualidade e dos princípios acima expostos e dela derivada, a outra metade deve possuir características inversas e complementares. Uma das metades é matéria; a outra, espírito. Comunica-se com dois mundos e podem-se perceber suas vibrações inversas, recebendo de dois lados e por duas vias, isto é, por percepção fisiológica direta e percepção espiritual inversa. Trata-se de duas vidas que disputam entre si o predomínio sobre a personalidade. Porque são complementares se completam; mas, sendo contrárias, reciprocamente se excluem. Assim, quando a vida física sensória adormece no sono, no transe, ou se debilita em razão de moléstia ou velhice, como já observamos, então a vida psíquica pode revelar-se e surgir com mais nitidez na tela da consciência. Observemos o duplo funcionamento dos sentidos. Os dois mundos vibram e irradiam nas duas direções opostas em que a vida se desenrola. Examinemos, primeiro, a percepção visual (ou a acústica, olfativa, táctil e assim por diante). É bem conhecido o processo óptico por força do qual a imagem se reproduz na retina, mas invertida, e depois é transmitida ao cérebro pelo nervo óptico e, finalmente, percebida na posição normal. Onde o mundo físico termina, o mundo psíquico principia. O órgão central é o cérebro, suspenso entre dois mundos, como diafragma sensível capaz de registrar as vibrações provenientes de um e de outro. Esse órgão, porém, não basta para realizar a síntese visual. Mas, afinal, com que é que vemos? Não vemos com os olhos; de fato, percebemos, já na posição normal, a imagem que, invertida, se forma na retina. Não vemos apenas com o cérebro porque, se causarmos alteração no nervo óptico, não percebemos coisa alguma, embora a imagem continue a formar-se na retina do olho intacto. E se os órgãos permanecem intactos e livre o caminho até o cérebro, isso basta para que o fenômeno da visão se realize? Mas, e se o espírito está distraído, com a atenção voltada para outro objeto, preocupado, é colhido de surpresa, não se interessa em ver ou não quer ver ou a vibração, por ser habitual, não lhe atrai mais a atenção, nesses casos, a visão não se verifica. E, no entanto, o fenômeno óptico é mecânico, consiste na transmissão de vibrações que, se encontram caminho livre, chegam automaticamente ao cérebro. A vibração atingiu o cérebro, foi registrada e, no entanto, não se realizou a visão. Quantos atos automáticos, secundários, desse modo continuamente escapam à nossa consciência! A visão, a que o eu percebe e sente, não se dá, então, no cérebro, mas além do diafragma, bem mais longe, do outro lado da vida, o lado imaterial, isto é, no espírito. Durante esse trajeto é que deve dar-se alguma transformação nas vibrações; dessa transformação derivaria o fato, doutro modo inexplicável, de que a imagem readquira a posição normal. A ciência não vai além das células nervosas cerebrais; mas, além dos órgãos de recepção (olho), de transmissão (nervo óptico) e registro (cérebro), o caminho deve continuar até ao objetivo final, a sensação. Só o espírito sente. Através de todos esses transformadores intermediários, a vibração é filtrada, destilada, cada vez mais desmaterializada, porém não pára. Quem a apreende e a faz sua é, no espírito, a consciência. Quando, porém, se chega ao cérebro, o organismo físico termina; de que modo se pode, partindo daí, prosseguir a caminhada até ao espírito? Como e através de que vias pode estabelecer-se comunicação? Chegadas ao diafragma que está suspenso entre os dois mundos, dá-se nas vibrações a transformação própria da passagem de um mundo material para um mundo imaterial. Depois que o cérebro é ultrapassado, a telegrafia-com-fio se transforma em telegrafia-sem-fio; a vibração, como acontece na transmissão radiofônica, liberta-se do suporte de seu condutor e, apoiando-se apenas no éter, torna-se livre, radiante. De modo que o cérebro se relaciona com duas formas de vida, a material e a espiritual; a primeira o atinge através de vibrações canalizadas pela rede do sistema nervoso; com a segunda ele se comunica por meio de radiações em liberdade no espaço. O cérebro não é, portanto, apenas a central nervosa em que se coletam, em síntese, as correntes elétricas do organismo físico, mas é também estação transmissora, parecida com estação de rádio ou de televisão. Eis como o cérebro se liga ao termo final de todo o percurso, o espírito. Só agora está completo o caminho que vai do objeto exterior ao eu cognoscente. Aqui estão os vários pontos do trajeto completo; objeto exterior, cristalino, retina, nervo óptico, cérebro, espírito. A proporção que progride, a corrente dinâmica sofre várias transformações até atingir o cérebro para poder continuar progredindo, já agora no reino espiritual, desmaterializa-se, adquire forma radiante, isto é, a forma característica do espírito, pois, para que possamos comunicar-nos com os outros, temos de falar a mesma linguagem. Qualquer um pode facilmente imaginar e fazer o gráfico representativo desse percurso.
Assim é que, por esse caminho e através dessas transformações, a percepção sensória pode chegar ao espírito. A verdadeira visão não se realiza, portanto, no cérebro, mero diafragma intermediário e transformador de energia, mas acima dele, do outro lado do binômio vital. De fato, a síntese óptica final é muito mais do que simples registro cerebral. Enquanto no particular existe a forma receptiva da vida, no outro lado, no da matéria, do organismo físico e dos seus vários órgãos, inclusive o cérebro, o estágio final é processo sintético, unitário, é juízo, confronto, coordenação e reação. O cérebro apenas registra e, desempenhando o papel de secretário ou escrivão, se encarrega da conservação mnemônica. Só no espírito, a que o cérebro é órgão subordinado, é que se realiza esse trabalho complexíssimo e laborioso, se movem as forças imateriais, inteligentes e conscientes, que tudo sabem, querem e dirigem. O cérebro está para o espírito assim como o olho está para o cérebro. Só o espírito diz: eu. O cérebro não pode dizê-lo porque não passa de um órgão. Através dos condutores elétricos do organismo, dá-se, certamente, a confluência de suas correntes dinâmicas, sua concentração na periferia capilar, em contato com as células, e a mistura dessas correntes todas. Mas a síntese totalitária depende do ego e não do órgão. Há muitos órgãos e funções, mas o eu é único; não é instrumento guiado, mas centro que guia. Apenas ele é consciente; todo o trajeto precedente não passa de inconscientes movimentos automáticos. No espírito, a vibração, que se tornou radiante, atingiu o termo final, depois de, para atingi-lo, haver passado por vários graus de transformação, através de vários órgãos especializados, de capacidades e funções diferentes; e depois, também, de haver percorrido o caminho de que um trecho está num mundo e outro trecho está no outro, embora os órgãos se relacionem estreitamente e as fases sejam contíguas e sucessivas, de modo a formar um caminho desembaraçado e contínuo de um extremo a outro. Com isso, a primeira metade do trajeto foi percorrido e o período de ida está completo e acabado. Nada mais nos resta senão examinar a segunda metade do circuito, isto é, o período de volta, a parte inversa e complementar em que a primeira se completa e cuja existência é indicada e imposta pela universal lei de dualidade. Portanto, observemos agora como a corrente se move em sentido contrário, desse modo completando o ciclo.
Gerador de vibrações não o é somente o mundo exterior, mas também o mundo interior. O mundo imponderável da personalidade é muito mais vasto e rico que o dos fenômenos tangíveis. Não o vemos, muito embora lhe saibamos da existência. Representamo-lo por imagens que no-lo revelam no campo das sensações e nos mantêm unidos em torno do mesmo modo de sentir. Se essas imagens fossem vazias de significado, não subsistiriam; se subsistem, é porque são animadas por uma realidade interior per se stante[16], que de algum modo percebemos e com que instintivamente concordamos. Ouvimos dentro de nós a voz do imponderável, exprimimo-la por meio de símbolos; através deles, exprimimos nossa sensação e, assim, entendemo-nos uns aos outros. Esses símbolos continuam vivendo entre nós e evoluem conosco. Conhecemo-los e somos capazes de reconhecê-los. Por detrás deles palpita a realidade que sentimos e eles nos manifestam. Não importa que essa realidade se situe no imponderável. Continua sendo realidade assim mesmo. Os símbolos desempenham, precisamente, a função de materializá-la no campo do sensível, isto é, de torná-la capaz de impressionar-nos os sentidos, através da via normal de percepção sensória de que já falamos. As imagens não constituem, portanto, simples imaginação e forma inútil, mas têm alma e ela é que nos fala; são projeções tiradas do mundo espiritual sobre o nosso, formas materiais que revestem as figuras imateriais. Trata-se de percepções que, por via contrária da normal, e a ela oposta, derivam daquele mundo interior que ninguém pode ver com os olhos da carne, mas é visto perfeitamente pelos do espírito.
Como é que podem, no entanto, a vibração e a sensação descer do mundo espiritual até este mundo material? Que caminhos percorrem para atingirem nossos órgãos sensórios? A posição inversa, que os dois mundos guardam entre si, contém implicitamente e nos mostra, ao lado de um caminho, o que segue direção contrária. Já examinamos a estrada de volta, a fim de constituir a indispensável segunda metade do circuito completo. Também já tivemos ocasião de examinar o percurso que vai do exterior para o interior; consideremos, agora, o percurso contrário, isto é, o que caminha de dentro para fora. Neste caso, o trajeto por nós já considerado em sua posição normal, se inverte, assume posição inversa e passa a percorrer, nesta ordem, os seguintes pontos: espírito, cérebro, nervo óptico, retina. Aí, a fonte da corrente dinâmica não se situa mais no ambiente material externo, mas sim no ambiente espiritual interno; não emana do objeto, mas do sujeito. O processo se inverte totalmente e as transformações não se realizam no sentido da desmaterialização, e sim no da materialização. A corrente que provém do espírito é, em princípio, radiante e o cérebro não é mais aparelho transmissor, mas apenas receptor, exatamente como se fosse um aparelho de rádio, ou de televisão, que capta essa energia radiante para que, em seguida, percorrendo a rede nervosa, possa, através do nervo óptico, atingir a retina. Desse modo, a imagem, passando através de vários órgãos transformadores, pode chegar ao mundo material e assumir-lhe as características. Portanto, os dois mundos, o do espírito e o da matéria, o imponderável e o tangível, se comunicam; ao primeiro chega, como representação imaterial, o equivalente da forma material; ao segundo chega, como representação material, o equivalente da forma imaterial. Assim, através de uma série de trocas, o conteúdo de cada um dos mundos se derrama no outro, no qual, embora transformado, o encontramos sempre.
A estrutura desses dois mundos contíguos e comunicantes não é idêntica. De um lado, temos um meio sensório-analítico; de outro, uma forma sintético-unitária. De um lado, o cérebro se ramifica por todo o corpo, através da rede nervosa, como se o quisesse polvilhar de células nervosas sensitivas para captar todas as vibrações do ambiente; de um lado, temos os canais especializados das vias sensoriais, a captação analítica, particular, definida, concreta, enquadrada nas dimensões do espaço e do tempo, canalizada e dirigida para vias cada vez mais centrais. De outro lado, o espírito sintetiza e unifica no eu todas as sensações; os canais cedem o lugar a livres radiações - sem-fio; a captação torna-se sintética, geral, imaterial, em dimensões super-espaciais e super-temporais, tendo como resultado final, elaborado e destilado ao longo do trajeto, da recepção sensória analítica do plano material. A vibração pode percorrer a estrada nos dois sentidos, com resultados diametralmente opostos. Naturalmente, percorre a via fisiológica comum, que transmite ao espírito os estímulos do ambiente. A outra via é menos conhecida, menos comum, mas existe. Quando a vibração percorre o caminho em sentido inverso, transmite ao ambiente os estímulos do espírito e nasce de movimentos da alma que todos nós conhecemos muito bem pois, embora não possamos vê-los, sentimo-los profundamente. Se, porém, a inversão do circuito sensório é excepcional, todas as nossas manifestações vitais não provêm do interior? E em que consiste nossa vida senão em contínua manifestação de nosso espírito? Ao lado de cada uma de nossas atividades exteriores existe a correspondente atividade interior que a dirige e guia, lhe condiciona de modo absoluto a atividade. Assim, ao lado de cada ação nossa existe a correspondente reação interior; o movimento exterior penetra na parte de dentro, imprimindo-lhe e gravando nela as suas características, assim como o movimento interno passa para o lado de fora, manifestando-se em infinidade de expressões.
Voltemos, porém, ao caso particular do fenômeno óptico e observemo-lhe como funciona em sentido inverso. A vibração originária constitui, desta vez, um estado do espirito, um fenômeno do imponderável. O primeiro trecho do percurso não se faz através de condutores, mas funciona por via radiante. Desse modo é que são atingidas as células cerebrais, nada mais nada menos do que aparelhos rádio-receptores. Aqui as radiações, além de serem captadas, se transformam ao primeiro contato com a realidade concreta, isto é, revestem-se de imagens, assumem o aspecto de representação do mundo material. O abstrato dramatiza-se, o genérico especifica-se, exemplificando-se como um de seus casos particulares, pois, enquanto o período inverso representa processo de espiritualização, este representa processo de materialização. Do cérebro até à retina a vibração se define e concretiza ainda mais, até chegar à sua forma óptica, que corresponde à forma física; assim se chega à formação da verdadeira imagem na retina. O olho realmente registra projeção que não provém do exterior, mas do interior, embora com idênticos resultados visuais. Tendo a corrente percorrido o percurso todo, de um pólo a outro, o período, não importa se positivo ou negativo nem em que direção se desenvolve, está completo e o sujeito sente sensação semelhante à normal, de modo que ele acredita estar vendo no espaço, sob forma concreta e vinda do ambiente exterior, aquilo que não passa da projeção materializada de uma forma imaterial, impossível de encontrar naquele ambiente. Tudo isso é levado à conta de alucinação, isto é, algo de irreal, produto de estados patológicos; no entanto, nada se tira à normalidade do fenômeno, à sua qualidade de fato natural e à veracidade da sensação que, em lugar de constituir expressão do mundo exterior, como acontece nos casos mais comuns, é tão-somente expressão do mundo interior. Assim, nas visões a imagem efetivamente se forma na retina (como no caso de Bernadette de Lourdes), do mesmo modo que, em relação às vozes (caso, por exemplo, de Joana D'Arc), a vibração acústica se forma no ouvido, a mesma coisa se diga quanto aos outros sentidos. A única diferença consiste em que não vem de fora a excitação, mas de dentro, o que, aliás, pode-se compreender facilmente porque ambos os mundos estão repletos de energias em plena atividade. Como o mundo interior não é, como o mundo exterior, igual para todos, visto que são muito diferentes as capacidades espirituais e o grau evolutivo, explica-se desse modo por que, nesses casos, a sensação visual, auditiva etc., é absolutamente pessoal e incomunicável, isto é, seja capaz de captá-la apenas o sujeito que se encontre em condições adequadas. Desse fato deriva a desconfiança que ele provoca, e a pecha de patológico que gratuitamente lhe atiram.
Tudo isso pode completar as observações do volume As Noúres, estudo critico da técnica receptiva com que se escreveu A Grande Síntese. Agora podemos explicar melhor o fenômeno da inspiração. Trata-se da captação de noúres ou correntes de pensamento que emanam de centros espirituais e ficam vibrando no espaço. Ainda neste caso, o fenômeno se dá por via radiante; mas o receptor não é mais o cérebro, mas o espírito do indivíduo que recebe e, exatamente para pôr-se em condições de captar essas correntes, deve antes de mais nada colocar-se em estado de vibração harmônica ou sintonização. O mesmo fenômeno pode dar-se entre os espíritos de dois ou mais homens vivos; ao invés de se comunicarem pelo meio mais demorado, projetando o pensamento através do cérebro, nervos, órgãos vocais, da palavra inclusive, preferem transmitir e receber diretamente por via radiante, muito mais rápida (telepatia). Assim, o impulso psíquico pode partir de outros eu, não importa de encarnados ou desencarnados. Nessa primeira fase, o pensamento está em estado radiante puro. Assim determinada, por causas próprias ou alheias, a vibração que se faz sentir num espírito, deste centro e da maneira já explicada, se transmite ela ao cérebro e aos outros órgãos sensitivos. Nem todas as percepções, porém, especialmente as de ordem superior, devem percorrer, para serem sentidas, todo o período de retorno até chegar ao órgão sensório; pelo contrário, podem deter-se nos primeiros estágios da transformação, se se mostrarem suficientes. No caso de tratar-se de conceitos, basta, para serem percebidos, que o cérebro os capte; especialmente quanto aos intelectuais, torna-se desnecessário, em absoluto, que entrem em jogo as vias sensoriais. Assim, na captação noúrica, o pensamento desce do mundo espiritual, onde se encontram tanto a fonte transmissora como o eu receptor, que primeiro funciona como antena e, depois, como transformador, isto é, canal em que se realiza o processo de materialização da idéia, processo diametralmente oposto ao normal, que consiste na espiritualização da percepção sensitiva. O primeiro desses fenômenos encontramo-lo na fé, na arte, na intuição, na inspiração, nas revelações.
O cérebro, portanto, é órgão bipolar e diafragma central que, suspenso entre duas vidas, pode ser percutido pelas duas opostas aparências da realidade. Observemos mais um pouco. De acordo com a capacidade do ser, as correntes podem mover-se numa ou noutra direção. Geralmente, por serem os indivíduos mais desenvolvidos física do que espiritualmente, a vibração vai da matéria ao espírito. Excepcionalmente, porém, as correntes podem movimentar-se ao ponto de provocar em sentido inverso a projeção sensorial, quando o indivíduo é espiritualmente forte e, em compensação, fisicamente fraco. Esse fato, aliás, já foi por nós devidamente frisado. Para inverter a direção da corrente, torna-se necessário que também seja inversa a potência dos dois termos extremos. O gênio, o artista, o santo, na qualidade de seres inspirados, são espiritualmente fortes e nisso superiores à média; pertencem ao tipo evoluído. Na vida vegetativa do involuído, não é possível nem concebível essa reversão de sensibilidade. O indivíduo normal geralmente conhece e vive apenas a primeira metade do fenômeno, pois é limitado, atrófico e, por isso, funciona muito mal no que diz respeito ao espírito. Os tipos desenvolvidos, porém, conseguem perceber em ambas as direções e tomar consciência não só da vida material projetada no espírito, mas também da íntima vida espiritual, percebida como projeção sensorial. Podem, desse modo, viver não apenas uma vida, a vida vegetativa, que é a mais comum, mas duas vidas, a vida normal e concreta da matéria e a vida do espírito, feita de imponderáveis e inversa. Esse é outro mundo, imenso como o mundo físico; no entanto, muita gente não o vê, não o compreende, não lhe admite a existência. E realidade negada por muitos. Por aí se vê que abismo de incompreensão divide os seres diversamente desenvolvidos. Muitas das coisas aqui narradas se referem exatamente a essa vida para tantos inacessível; dos conceitos aqui registrados muitos baixaram, nas asas da inspiração, do mundo íntimo do espírito, isto é, graças a inversão do sentido normal da corrente vibratória. A "Visão", narrada em dois dos capítulos precedentes deste volume, formou-se opticamente na retina, mas de olhos fechados, graças à projeção interior, com a mesma sensação causada pela visão óptica normal. Estas páginas constituem viva aplicação dos princípios já expostos; são estas afirmações nada mais nada menos que resultado experimental.
Cada uma das duas vias, consideradas de per si, representa a metade da dupla vida total. A verdadeira vida completa é binômio bipolar e bifronte. Eis nova aplicação da universal lei de dualidade. E até mesmo neste caso o binômio se equilibra em dois termos inversos e complementares. Observemos mais ainda. Temos espírito e corpo, o imponderável e a matéria, consciência e fenômeno, o eu e o ambiente, a vida interior e a exterior, contemplativa e ativa, a percepção espiritual e a percepção fisiológica, a impressão subjetiva proveniente do mundo interior e a impressão objetiva proveniente do mundo exterior. O primeiro termo eletricamente positivo; o segundo, negativo; o primeiro é em ondas curtas; o segundo, em ondas longas; um é de alta; o outro, de baixa freqüência; e, na passagem de um a outro extremo e ao contrário, deve dar-se mudança de sinal, de comprimento de onda e de freqüência (muito mais notável que a simples normalização das imagens ópticas). Entramos ao nascer, no segundo tipo de vida e dele saímos ao morrer; ao morrer, entramos no primeiro e dele saímos ao nascer. A própria lógica da arquitetura do universo impõe esses equilíbrios todos. A verdadeira vida, completa e íntegra, oscila continuamente de um a outro de seus pólos. Só assim, percorrendo alternativamente uma e outra metade, o ser incompleto pode viver a vida integral. O tipo comum está na terra do lado que parece vida, mas é morte, se visto do lado oposto. Para os do além, ele parece indivíduo entorpecido, à mercê da ilusão dos sentidos. O evoluído não sabe viver apenas a vida dos vivos, mas vive também a vida dos mortos. De um lado é dia; do outro, noite; de um lado, luz; do outro, trevas. Tudo conforme, é claro, com a posição em que nos encontramos. Na terra, para os vivos a via direta e normal da percepção é a fisiológica; a inversa e excepcional é a via espiritual. Para os mortos ou, melhor, para os vivos de além-túmulo, a via direta e normal da percepção é a espiritual; a via inversa e excepcional é a via fisiológica. Entre as duas formas de sensibilidade existe a mesma relação que entre vigília e sono; a primeira caracteriza-se por percepção límpida e exata; a segunda oferece-nos percepção vaga, sonambúlica. Quando o estado ativo se manifesta num lado da vida, as qualidades do lado oposto permanecem latentes, em estado de espera e em repouso Assim, funcionando cada uma por sua vez desenvolvem-se graças a essa atividade alternada, enquanto a outra parte, a antítese do binômio, permanece por sua vez à espera. Essa oscilação entre atividade e repouso, entre ausência e presença, entre vida e morte, constituí o ritmo do fenômeno vida, em relação a cujos ritmos se fazem as harmonias universais. O fenômeno vida não pode constituir exceção dessa lei de simetria, de justiça compensadora. Em nosso universo, tal como está construído, não passa de absurda qualquer posição de desequilíbrio, não compensada pelo correspondente impulso contrário. Uma única exceção faria desabar todo o edifício.
A percepção inversa, espiritual, pode dar-nos idéia do tipo de sensações dominantes do além-túmulo. Além disso, se aparecem também neste mundo e, portanto, existem como fato objetivo e experimental (clarividência, inspiração, visões, profecia), é-nos lícito perguntar para que servem, tendo em vista as finalidades biológicas, as qualidades super-normais. E não nos esqueçamos de que, na natureza, todas as coisas existentes, pelo simples fato de existirem devem ter objetivo determinado. Trata-se de qualidades que esperam sua vez de entrar em atividade; estão adormecidas agora, mas viverão na outra vida, que chamamos morte. Por isso, enquanto a sensação terrena resulta da vibração específica de uma série de células enfileiradas à maneira de canais condutores, no além-túmulo a sensação é causada por um estado vibratório sutil (de ondas curtas e alta freqüência), que, todavia, abrange todo ser imaterial. Teremos sensações de grande extensão e alcance, se comparadas com as sensações limitadas, mas precisas, da vida terrena; no entanto, para nós que estamos chumbados às vias limitadas dos sentidos, pareceriam evanescentes, imateriais, indefinidas, flutuantes e sonambúlicas. A sensibilidade do desencarnado é difusa, não possui órgãos específicos aptos a captar vibrações particulares e definidas; sensibilidade, para nós estranha e fantástica, como que adormecida, em transe, sensibilidade de conjunto e não de minúcias como a nossa, mais sintética que analítica. Assistimos neste caso a uma espécie de vaporização da sensibilidade (entendida de acordo com o sentido terreno), que em compensação aumenta de intensidade relativamente às qualidades opostas àquelas qualidades materiais em que se lhe torna maior a debilidade, isto é, como generalização e abstração. Assim, a verdadeira solução dos problemas reside mais na intuição do que na razão, a centelha reveladora brilha no espírito intuitivo e não no cérebro raciocinante, que não cria, mas apenas explica e aplica. Da parte do corpo temos o espaço e o tempo, quer dizer o limite. Da parte do espírito, o infinito e a eternidade. A extinção dos limites importa na ubiqüidade e na presciência do futuro. O eu espiritual vê longe, vê o conjunto, é bem orientado, sábio, olimpicamente calmo. O eu vegetativo está encerrado no espaço e no tempo, isto é, na prisão do limite, está sujeito a fatigante corrida para superá-lo, anseia pela evasão, é analítico e desorientado, vive e percebe apenas as particularidades, entre coisas insignificantes e transitórias. O mundo de além-túmulo é o dos valores morais; o mundo de aquém-túmúlo é o dos valores materiais, da luta, do trabalho, da riqueza. O senso moral emana do espírito. Tudo isso naturalmente presume adequado desenvolvimento até mesmo em relação ao lado, espiritual, da vida; sem ele não podemos alimentar a esperança de encontrar as qualidades que lhe são inerentes. Do lado de lá, atividade especulativa e abstrata; deste atividade utilitária e concreta. Duas formas de vida, duas linguagens completamente diferentes: contemplação e ação. Todo mundo tem virtudes e qualidades próprias e uma escala de valores exclusiva. No topo da escala de valores terrestres coloca-se o interesse egoísta; no da escala de valores espirituais estão a bondade e a justiça. O Evangelho, o reino dos céus pertencem ao mundo do lado de lá; são luzes que dele promanam, revelando-no-lo. Cada um de nós imagina o paraíso a seu modo e luta para conquistá-lo, ou do lado de cá ou do lado de lá. Quem hoje goza na terra amanhã sofrerá na outra vida; quem hoje sofre no mundo, amanhã gozará no céu. O Sermão da Montanha, quando diz "Bem-aventurados os que sofrem; amanhã gozarão", exprime a lei de dualismo e equilíbrio e mostra uma das aplicações de sua lógica e justiça supremas. Quem executa bem suas tarefas neste mundo, executa mal suas tarefas do lado de lá e ao contrário. Os valores se invertem. Assim a sublime loucura da nobreza se explica como condição necessária de grande riqueza espiritual.
A qualidade do espírito é a sensibilidade e todo espiritual é um sensitivo. O evoluído é o tipo biológico que conhece essa outra vida também e os seus valores. Tudo isso o involuído ignora. Aquele tipo biológico é o canal por onde estes valores descem na terra e fator da fecundação espiritual da matéria. A tarefa do artista consiste em plasmar a forma que nos revele o imponderável, representando-o a nossos olhos; deve, pois, inspirar-se em valores eternos; se, no entanto, vai buscar inspiração a coisas rasteiras, representando os valores terrenos, o artista trai e deixa de cumprir a própria missão. Dos equilíbrios da vida participam também as atividades supranormais, que outra coisa não representam senão legítima função biológica. Por aí se vê que a sociedade humana precisa também do artista, do inspirado, do gênio, do santo; embora quase sempre incompreendidos e maltratados são indispensáveis, cabe-lhes a tarefa de, enfrentando sozinho todo risco e canseira, mergulhar nos abismos do mistério, apoderar-se-lhe dos valores e trazê-los até ao plano humano, a fim de dinamizá-lo, orientá-lo, dirigi-lo. A matéria não é auto-suficiente, sabe viver e progredir apenas se animada pela divina centelha do espírito. Aqueles seres, ainda raros, representam na sociedade as células especializadas na função evolutiva. O involuído mostra-se incapaz de progredir sozinho e fortalecer-se; por isso, necessita dessas antenas reveladoras e desses canais dinâmicos. Os sábios equilíbrios da Lei suprem-lhe essa incapacidade, fornecendo-lhe esses apoios. Ele, então, crê. Quem se revela incapaz de por si mesmo ver é constrangido a acreditar piamente em quem vê por ele. Quem não sabe, à custa dos próprios meios, subir o áspero caminho espiritual se vê obrigado a apoiar-se em quem o sabe e a depositar confiança em quem, tendo visto, dá testemunho de tudo quanto viu. Por isso, quem sabe assume o compromisso de testemunhar a verdade; se cala, trai sua função biológica de célula evolutiva, mesmo que proclamar a verdade possa às vezes levar ao martírio. Na divisão do trabalho da vida a parte que lhe toca é essa. Se não puder oferecer a todos a prova direta do que, por transcender as capacidades e experiência comuns, se mostra inconcebível, sua vida de evoluído, orientada de modo bem diverso, deve ser tão sublime que constitua prova bastante. Desce, desse modo, até nós a evanescente realidade do espírito, que, embora lhe constitua a própria alma, nossa vida concreta sempre nega; a estranha e longínqua realidade que gostaríamos de esquecer e, no entanto, estamos continuamente seguindo, invocando-a nas preces, representando-a nos ritos, materializando-a nas criações artísticas. A humanidade concorda de tal modo com a existência do invisível que, com fundamento nesse acordo, se tornou possível o aparecimento das religiões. Se estas existem, possuem tanta importância histórica e social e exercem poderosa influência na vida dos povos, daí se conclui que elas satisfazem uma necessidade, um instinto e, por isso, desempenham uma função. De fato, na natureza todo apelo que exige resposta possui significado bem determinado. Normalmente, somos incapazes de, sozinhos, chegar até ao espírito; não o vemos, embora nos chame e nos atraia; foge-nos e, no entanto, está entre nós; comove-nos e nutre-nos; a realidade quotidiana, colocada bem no outro extremo da vida, nega-o, embora lhe presuma a existência. Assim, através dessa via sensorial inversa por nós examinada, o espírito desce até nós e se comunica conosco. Eis o que acontece quando o crucifixo de S. Damiano fala a S. Francisco, Joana D'Arc ouve as vozes de Donremy, Teresa Neumann vê a paixão de Cristo, a beata Angela de Foligno escreve movida por inspiração, S. João vê na Ilha de Patmos o drama do Apocalipse. Tanto na visão como na audição super-normais a percepção vem do mundo interior e não do mundo externo. Isso levou muita gente a acreditar se tratasse de tipos de alucinações, patológicas apenas porque anormais, de projeções subjetivas e, só por isso, irreais. No entanto, a subjetividade constitui-lhe exatamente a característica lógica e natural. A sensação se origina de vibração que não provém do mundo exterior, mas do mundo interno, não deriva de fonte objetiva dotada de existência própria, independentemente do sujeito, per se stante, em si mesma igual para todos, embora ainda neste caso o modo de percebê-la não seja o mesmo para todos. Assim se explica e justifica a subjetividade da percepção, isto é, por que a luz e o som apenas possam ser percebidos pelo sujeito. Os homens normais não percebem coisíssima alguma. Embora presentes, não vêem nem ouvem. Para que tivessem idêntica sensação, igual capacidade de ver e ouvir, deveriam encontrar-se nas mesmas condições, particulares e excepcionais, do sujeito. Como isso se torna muito difícil, não lhes resta senão tentar reconstruir, deduzindo-a do estado do sujeito, essa fugacíssima realidade íntima. Quando a ciência estuda esses fenômenos, o germe da incompreensão já se encontra nas suas premissas, isto é, na dúvida, no seu método de investigação, quer dizer, na experimentação objetiva, e na sua atitude sensória, cerebral e racional. Mas, no êxtase como na prece, não nos armamos de instrumentos de análise, de aparelhos de laboratório, para aumentar nossa capacidade de observação, mas abandonamo-nos inteiramente à visão introspectiva, fechamos os olhos e concentramo-nos, olhamos para dentro de nós mesmos, do lado do espírito, isto é, exatamente na direção contrária à seguida pela ciência. O antagonismo entre ciência e fé (embora não se apoie em razão substancial, visto como constituem ambos apenas os dois extremos opostos da verdade e dois aspectos da realidade) nasceu precisamente do fato de que a fé diz respeito ao mundo interior, ao espírito, e a ciência se refere ao mundo externo, à matéria. Todas essas afirmações nossas parecem fantasia aos olhos da ciência justamente porque não resultam da observação, e sim da introspecção, exames orientados para direções diametralmente opostas. A realidade do positivismo científico constitui uma das metades da realidade completa. A outra é a dos artistas, poetas, santos, pensadores, místicos, inspirados, é a de todos os homens do espírito
XXVII
A PERSONALIDADE HUMANA (1ª PARTE)
Agora que percorremos caminho tão comprido podemos finalmente enfrentar o problema da personalidade humana. Mas, antes de mais nada, observemos mais uma vez os problemas precedentes. O estudo da lei de dualidade conduziu-nos a visão da vida total e completa, mais ampla que a unilateral vida física. Nada mais lógico que, como todas as individualidades, também essa unidade da vida se divida em metades justapostas. A vida completa, como um pêndulo a oscilar continuamente, vai de um a outro de seus extremos e percorrendo esse caminho oscilante, evolui, não como vulgarmente se pensa, isto é, através de simples evolução biológica terrestre, mas sim através de evolução dupla, inversa e complementar, a material terrena e a espiritual ultra-terrena, a do corpo e a do espírito. Uma vez que tudo é bipolar, é lógico que também o homem deva passar por duas experiências opostas, a da vida ativa e da vida contemplativa. Para conceber a existência no além-túmulo, basta-nos imaginá-la como o inverso da existência terrena. Dissemos que a psique apenas contém os resultados conseqüentes das experiências possíveis no ambiente que a cerca, isto é, não pode ser impressionada senão por elementos oriundos do mundo exterior. Essa crença, se podemos explicá-la como resultante da concepção comum que se faz da vida ou, seja, da meia-vida e não da vida completa, todavia não corresponde à realidade. Quem possui a vida terrena e a vida espiritual sabe muito bem que a psique contém, em quantidade e variedade, muito mais do que o ambiente externo pode oferecer e que grande parte de nossos conhecimentos podem, por vias interiores, provir de outras realidades. Os sonhos, a intuição, a inspiração proporcionam-nos sensações e resultados diferentes dos sensoriais, filhos da experiência terrena, oferecem-nos concepções diversas das comuns concepções racionais, demonstrando conhecimentos que a terra não pode dar. A sensibilidade do evoluído fica na fronteira de dois mundos e sua psique se enriquece com as experiências nascidas de duas realidades diversas. Muitas vezes o mundo interior lhe oferece muito mais do que o mundo externo. Mas, seja quem for o indivíduo, por mais rudimentar e inerte que se mostre seu espírito, a percepção interior sempre dá sinal de si, embora fraco; não existe quem, em algum momento da vida, não a tenha experimentado, mesmo embrionariamente. Quem viveu o fenômeno inspiração sabe como é lábil e pronto a evanescer-se qualquer conceito espiritual, cuja radiação ainda não alcançou o cérebro e como só então o sujeito adquire consciência desse conceito e se torna senhor dele. Sabe como a solução dos problemas percorre vias absolutamente independentes dos processos lógicos e racionais e como o relâmpago, que ilumina uma zona de pensamento, de improviso o apreende. Poincaré, no seu livro Invention Mathématique registra nestes termos o fato: "O que nos fere a atenção desde logo são as aparências de súbita iluminação, reveladoras de longo e prévio trabalho anterior". O autor observa, à custa de experiência própria, que nesses casos o pensamento se caracteriza pela rapidez, subitaneidade e certeza imediata. Quando menos se espera, apresenta-se à nossa mente a solução de problemas já de há muito propostos. Poderíamos citar inúmeros trabalhadores intelectuais, como, por exemplo, Goethe, para quem a criação artística não passava de revelação. Isso nos mostra como grande parte de nós mesmos opera fora do campo da consciência lúcida, onde se manifestam apenas os resultados de numerosos processos de elaboração e maturação. Nesses casos como influem pouco nossa vontade e nosso esforço! Nossos conceitos podem ficar adormecidos dentro de nós, bem recalcados e invisíveis nos planos mais profundos da consciência. Não obstante, desenvolvem-se e se aperfeiçoam, como se, aí nessas profundidades, reencontrassem a ordem divina, e se fortalecessem graças à retomada de contato com a essência e as origens das coisas. Mais cedo ou mais tarde, porém, uma vibração afim os desperta e por sintonia (as outras vibrações não o conseguem) os faz reaparecerem, como um relâmpago, no campo da consciência. Percebe-se facilmente que se trata de criação pura e simples; constitui conquista de espírito, que exulta por desse modo aproximar-se de Deus. A meditação prepara o fenômeno, coloca a matéria-prima no abismo do espírito, propõe o problema e lança a interrogação. Silêncio. A mente debate-se no redemoinho do pensamento, não consegue escapar-lhe, logo se cansa e esquece. Mas pôs em liberdade uma força que continuará agindo. Onde? Como? Esquecemo-la, chegamos quase a ignorá-la. E eis que de repente ressurge, transformada, fortalecida, luminosa. E antes se nos mostrava obscura e cansada! A alma, então, grita, como Arquimedes pelas ruas de Siracusa: "Eureka, eureka". Quem viveu o fenômeno inspiração sabe que a concepção mais profunda corresponde a uma posição psiquicamente inerte, de desatenção passiva, de distração relativamente ao assunto ou, mais exatamente, num estado de inexistência do pensamento ativo normal; sabe que, quanto mais rápido e percuciente for do ponto de vista sensorial, quanto mais, em relação à vontade, tende para a pesquisa e a observação, tanto mais esse pensamento serve de obstáculo à intuição. Sabe também, por experiência, que toda atividade reflexa de atenção e controle, toda tentativa consciente no sentido de passar do estado passivo de contemplação ao estado ativo de apreensão (recordação, controle, raciocínio, escrita etc.), destrói a miragem e faz as idéias se desvanecerem.
Isso tudo nos mostra esta grande verdade: a criação inspirada constitui fenômeno de colaboração entre o homem e Deus, isto é, a construção, como se poderia crer, não resulta apenas da vontade e da ação, mas também no cumprimento da Lei, na obediência a Deus, a quem devemos entregar-nos sem reservas. Mostra-nos também que a finalidade criadora se atinge ativa e passivamente, não só se impondo às sábias forcas vitais, mas também deixando-se arrastar por elas. A sabedoria egípcia resumiu num aforisma esse conceito: "o arqueiro atira ao alvo, esticando e soltando o arco; o nadador chega à praia, nadando e ao mesmo tempo deixando-se levar pelas ondas". Em conseqüência da lei universal de dualidade, também esse fenômeno resulta do equilíbrio de duas partes inversas e complementares. Portanto, queremos e fazemos tudo quanto for necessário; somos, porém, tão ignorantes, limitados e imperfeitos que necessitamos de ser guiados por uma sabedoria que nos supra a ignorância e por uma força capaz de trabalhar onde a nossa não o consiga mais. E além de nossas possibilidades está a Lei que satura a corrente das coisas com o pensamento de Deus e plena de natural sabedoria. Assim, parte de nossa melhor atividade pode consistir em obedecer à vontade de Deus. Assim, depois que fizemos nossa parte do trabalho, nossa obrigação cessa e convém abandonarmo-nos à Providência. Por isso o mundo consegue, em caótico estado de inconsciência, falar sobre assuntos de que não entende absolutamente nada. Do ponto de vista racional isso se chama inconsciência, pois o homem não prepara e, além do mais, ignora o seu futuro. Mas, do ponto de vista da intuição, no instinto em que a Lei se faz ouvir, essa atitude representa, em essência, maravilhosa fé na sua sabedoria e na proteção divina. E a vida, que se sabe protegida, vai progredindo. Apenas desse modo se justifica o fato de querermos continuar a viver e a reproduzir-nos para irmos ao encontro de futuro pleno de espantosas incógnitas, embora saibamos que a vida nos oferece apenas canseira e dor.
A intuição constitui fenômeno espiritual e, por isso, revela e cria. A razão, ao contrário, é função cerebral e, pois, mais do que à concepção de grandes idéias reveladoras, orientadoras e sintéticas, se destina às pequenas idéias da vida terrestre, práticas e analíticas. Algumas aplicações. A ciência moderna tem desvantagem em ignorar a vida do espírito e não dispensar-lhe cuidado algum. Esta ciência, porém, é filha de fase materialista do pensamento humano, quer dizer, racional, em antítese com a fase intuitiva; limita-se, em conseqüência, ao lado terrestre, prático, utilitário e material da vida. Pelo menos, enquanto essa fase não for superada, a ciência moderna não pode conhecer-lhe senão a referida parte. Enquanto isso, permanece na zona constituída de experimentos, análises, afastada da que se constitui de intuições e sínteses. Isso a torna incompleta, mutilada pela orientação, pela visão de conjunto necessárias para dirigir as pesquisas e chegar a uma conclusão. De fato, a ciência moderna tem finalidades utilitárias e não sabe pô-las de lado. Essa unilateralidade representa lacuna e defeito graves. Mas também a síntese é necessária, mas a síntese não se consegue senão através da intuição, isto é, trabalhando no pólo oposto ao em que trabalha a ciência ou, seja, no pólo espiritual. Ativa ao lado material, a ciência acumula conhecimentos, porém não fecunda. Falta-lhe a centelha do espírito. É necessário, sem dúvida, acumular conhecimentos materiais; mas é necessário também, como acontece no binômio sexual, que mais tarde o outro termo intervenha e os fecunde. Se isso não se der, coisa alguma pode nascer. Quem afirma ser verdadeiro apenas o que possa ser demonstrado experimentalmente não exprime senão parte da verdade e ignora a outra metade, que afirma serem fruto de inspiração, fruto mais do espírito que experimental, de laboratório, todas aquelas verdades fautoras do progresso científico. Como conseqüência das observações até aqui feitas assinalamos, para o bem da ciência, o perigo constituído pela exasperação analítica de nossos dias, limitados a acumular experiências ao invés de se estenderem à descoberta de relações remotas, o perigo da especialização divergente devida ao predomínio desse método analítico. Se não ocorrer mudança de direção, que inteligentemente nos impulsione para direção convergente e conclusiva, esse caminho nos conduzirá à pulverização da consciência. Membros não nos faltam; o que nos falta é cabeça. Os fatos acumularam-se demais; falta-lhes o senso unitário da coordenação. Há cento e poucos anos Augusto Comte escrevia em seu curso de Filosofia Positiva, anunciando o advento do período atual: "O presente período é a idade de especialização, graças a universal preponderância do particular sobre o espírito de conjunto". A observação muito minuciosa nos tornou míopes. G. B. Shaw chega a dizer: "Ninguém pode ser puro especialista sem ser perfeito idiota, no mais rigoroso sentido do termo". Leonardi na introdução de seu livro A Unidade da Natureza (1933), acrescenta: "Seria necessária uma classe de cientistas que, sem entregar-se inteiramente à cultura especializada, se ocupasse unicamente da determinação do espírito das diversas ciências, descobrindo-lhes o nexo, a fim de determinar-lhes os princípios comuns". Henri Poincaré, no seu livro A Hipótese e a Ciência, afirma que "também as ciências, inclusive as mais exatas, necessitam de certa inspiração e devem seus progressos ao fatigante trabalho das faculdades subconscientes". Em seguida acrescenta: "É quase infinito o número de fenômenos; por isso, não podemos submetê-los todos a experiências". "A menos que não se queira conseguir simples acumulação de fatos... pois a experimentação nos dá apenas certo número de pontos isolados, torna-se necessário ligá-los". Não basta, portanto, que a observação registre e a experiência controle; não caminhamos de modo algum senão à luz da intuição. Esta, naturalmente, deve submeter-se ao controle da experimentação, que, sozinha, jamais abandona os atalhos experimentais para percorrer a estrada real do conhecimento. Ao lado das pequeninas experiências particulares, espalhadas pelo infinito mundo fenomênico, é necessária também a experiência unitária do ego, único a quem se torna possível aproximar-se do pensamento divino. Para subirmos pelos caminhos do espírito, necessitamos de uma atitude de fé e de prece. Os caminhos da dúvida e do controle sensório nos levam para o lado da matéria, para a periferia, afastando-nos cada vez mais do centro. Os primitivos, que em lugar de senso de análise, como nós, possuíam senso de síntese, enfrentavam de modo diferente o mesmo enigma que nos assoberba. Enquanto enfrentamos o mistério, como a um verdadeiro inimigo, armados de todos os recursos e todas as astúcias, para derrotá-lo, dominá-lo e submetê-lo a nós, os antigos se aproximavam dele com palavras sagradas e solenes que suscitavam no coração dos homens o silêncio e a veneração. Hoje em dia, porém, não queremos tanto contemplar, compreender e harmonizar-nos como intervir na natureza, operar, influindo nos ritmos da vida para submetê-los ao nosso desejo. Este mais parece um assalto à Divindade. Nossa época tenta-o de novo. Semelhante experimentação se conduz por tentativas, com movimentos completamente desorientados, na completa ignorância das conseqüências e reações que possam desencadear. Isso é extremamente perigoso em universo tão orgânico e interdependente, num campo de forças tão sensíveis e equilibradas. Ninguém desconhece a importância da contribuição do método positivo experimental. Afirmamos, isso sim, a necessidade de completá-la com a contribuição oferecida pelo método intuitivo. Do mesmo modo que a vida, a ciência é bipolar; e, assim como estivemos à procura da vida total e completa, procuramos agora a ciência completa nos seus dois ramos: razão-análise e intuição-síntese. A intuição não é considerada como caso excepcional e pouco apreciável, mas elevada a verdadeiro sistema de pesquisa. Os resultados do objetivismo, que vêm de baixo, deveriam fundir-se com os resultados do subjetivismo, vindos do alto. Deveriam dividir entre si as duas fases do trabalho, uma consistente em encontrar, a outra em analisar e demonstrar. Por que motivo, então, nos é tão difícil encontrar na prática conceitos assim fáceis de compreender, tão lógicos e persuasivos? A razão é esta: a intuição apenas pode ser exercida por tipo biologicamente selecionado, isto é, pelo evoluído, de que há poucos exemplares e esses mesmos acabam sendo, cedo ou tarde, eliminados pela sociedade na luta pela vida.
A sede dessas fontes particulares, a que agora lançamos um apelo, se encontra na personalidade humana, imenso problema cujo resumo procuraremos fazer nestas últimas páginas, a título de coroamento desta obra. Não poderíamos enfrentá-lo antes de propormos a solução de tantos outros problemas até agora tratados, que lhe servem de orientação e dos quais o problema da personalidade serve de fecho. Começamos a falar da personalidade nos fins do capitulo XXVI. Mas era necessário percorrer outro caminho e antepor outras demonstrações para que agora possamos continuar elaborando a conclusão. Na parte final daquele capítulo, definimos a lei de dualidade. Não pode fugir à lei universal o problema que agora nos preocupa. Até mesmo essa individuação constitui, por isso, unidade dupla, isto é, formada de metades inversas e complementares, em choque e em equilíbrio. Também nesse caso nasce desse choque aquela elaboração intima que lhe constitui a evolução. Vimos as características dos dois termos da unidade e agora retomamos o contato com eles. Portanto, a personalidade humana é bipolar: espírito e matéria, alma e corpo. Quer dizer: equilíbrio e desequilíbrio. Do movimento das duas partes, que se entrechocam, nasce a elaboração evolutiva. As duas partes são amigas e rivais, atraem-se e repelem-se, procuram-se e evitam-se; estão ligadas uma a outra, para que assim possam viver, mas, apenas uma delas se mostra mais fraca, a mais forte predomina e invade o campo da outra. Dissemos que as raízes do psiquismo mergulham profundamente nos meandros misteriosos da estrutura orgânica. Acrescentemos agora que as causas e as razões da estrutura orgânica estão sediadas na parte mais elevada do campo do psiquismo. O mistério do espírito estende-se até à intimidade da célula, cuja complexa estrutura já estudamos. A vida palpita num e noutro pólo, desde a inconfundível individualidade sintética e unitária à extrema ramificação sensorial, à infinita multiplicação celular, à analítica pulverização fenomênica ambiental. O eu é duplo, não fica no centro apenas, mas também na periferia, ora analítico, para captar e absorver experiências, ora sintético, para resumi-las e destilar-lhes as qualidades; no centro, permanece idêntico a si mesmo, como eu inconfundível; na periferia, flutua em meio a experiências mutáveis. A corrente move-se em duplo sentido: o mundo interior nutre-se das vibrações provenientes do mundo exterior, mas acaba dominando-o e plasmando-o à sua vontade. A atividade celular repercute na atividade psíquica e ao contrário. O eu pode ser concebido como centro apenas enquanto pudermos relacionar-lhe a idéia complementar de periferia. Assim, a personalidade espiritual pode significar a síntese de inteligência celulares; e o oceano dos microorganismos celulares, inclusive o átomo e seus elétrons, representará o veículo dessa personalidade, como corpo, roupagem da alma. O espírito, uma vez que é o centro, pertence a todos os pontos da periferia: é o centro e, ao mesmo tempo, a periferia.
No homem se repete, em ponto pequeno, o plano construtivo do universo; o microcosmo é feito à imagem e semelhança do macrocosmo. A natureza obedece a esquemas únicos e simples, repetidos em todos os estágios evolutivos, em todas as dimensões e presentes em todas as complexidades, de maneira que, para dirigir e animar tudo, basta um único princípio, método e dinamismo. As infinitas manifestações fenomênicas obedecem a um só motor e a um só tipo diretivos. E isso de um extremo a outro, dos mais complexos agregados às unidades mais elementares, (por exemplo: do sistema solar ao átomo). Assim, todo fenômeno não passa, em substância, de uma espécie do mesmo modelo; todas as formas se calcam no esquema originário de que derivam os demais. Torna-se fácil, portanto, compreender a analogia entre todos os fenômenos e justificar-lhes o parentesco. Daí a possibilidade de reduzi-los a tipo único; assim se explicam as comparações, a que tantas vezes recorremos, entre os fenômenos morais e físicos e a relação unitária dos campos mais díspares. Como a personalidade humana, também o universo é bipolar e construído segundo o mesmo princípio. A unidade máxima, ao invés de constituir-se exceção, confirma a lei de dualidade. Essa bipolaridade é a estrutura interna do monismo, que é dualístico. As observações, que até agora fizemos e culminaram no estudo da personalidade humana, corroboram esse conceito e resultam nesta conclusão. Os dois termos do binômio, embora extremos opostos e distintos do fenômeno, estão indissoluvelmente unidos, funcionam conjugados, condicionam-se reciprocamente, podem ser considerados como luz e sombra um do outro. São, portanto, distintos e distinguíveis, Criador e criação, alma e corpo; princípios diferentes, porém, pelo fato de serem complementares, de funcionamento único, indivisível, reciprocamente condicionado e, portanto, equilibrado, de modo que a queda de um termo importa na do outro. No esquema de nosso universo, pelo menos tal qual se nos revela hoje, não tem sentido a sobrevivência de um termo só. O equilíbrio de impulsos que o rege impõe não se possam os dois termos separar sem ruína total. Isso não é simples hipótese ou teoria filosófica, mas verificação objetiva do estado atual das coisas. Portanto, o eu central, no universo e na personalidade humana, está presente na intimidade até mesmo do último átomo de seu organismo físico; como já dissemos, é ao mesmo tempo centro e periferia. Deus encontra-se no centro e em toda parte. Como poderia, doutro modo, estar em toda parte? A causa está no efeito e o efeito na causa. Transcendência e imanência constituem os dois pólos do mesmo binômio. O hipersensível evoluído, que como S. Francisco sente e, por isso, não pode negar essa presença de Deus em todas as coisas, não é panteísta. E não constitui panteísmo afirmar que o binômio Deus-universo, o espírito-matéria, é inseparável e igualmente relacionados em recíproco funcionamento; não o constitui, também, dizer que os dois termos, embora opostos, se acham tão impregnados um do outro ao ponto de qualquer um, deles, presente e ativo, penetrar profundamente no campo do outro. Tal o significado, em A Grande Síntese, de: "Monismo, quer dizer, o conceito de um Deus que, ao mesmo tempo, é a criação" (Cap. VI); "Em todas as suas manifestações, Deus é onipresente" (Cap. XI); "Tudo deve reentrar na Divindade" (Cap. LXIII); "Não temais diminuir-lhe a grandeza, dizendo que Deus é também o universo físico" (idem). Esses conceitos vamos aprofundá-los e esclarecê-los mais no próximo volume: Problemas do Futuro.
Voltemos ao problema da personalidade humana. Já dissemos resultar a evolução biológica de evolução dupla e inversa, a material, terrena, e a espiritual, ultra-terrena; ela realiza-se através de duas experiências opostas, isto é, de vida ativa e de vida contemplativa. Quem realiza esse trabalho? E como se divide ele? O espírito, de sinal positivo, masculino, dinamiza e dirige a evolução. Preside às experiências da vida. Emprega-as para elaborar-se e, por conseguinte, elaborar também o seu corpo, aperfeiçoá-lo, desmaterializá-lo. O espírito evolui em direção a planos cada vez mais elevados, arrastando-se atrás de seu veículo material, quer dizer, utiliza corpos cada vez mais sutis, adaptados à sua fase evolutiva e a formas relativas de vida. Compreende-se que, para poder fazer experiências, o espírito sempre necessita de um corpo, na função de outro extremo do binômio; para isso, não importa esteja o corpo desmaterializado ao ponto de parecer incorpóreo. Ele sempre constitui veículo adequado, quanto à finura e à sensibilidade, ao grau de evolução atingido pelo indivíduo, que, graças ao seu peso especifico, se equilibra, escolhendo um ambiente onde as provas sejam proporcionadas às qualidades adquiridas por ele.
O organismo corpóreo, de ondas longas e baixa freqüência, segue, portanto, o espírito que caminha para a evolução, isto é, aproxima-se, morrendo e ao mesmo tempo renascendo, do extremo oposto, de ondas curtas e alta freqüência, transformando sua vibração em vibrações deste último tipo; em uma palavra: espiritualiza-se. A corrente de vibrações, que sobem das múltiplas experiências sensoriais e convergem para a síntese espiritual, fornece as forças a elaborar; ao mesmo tempo, porém, uma corrente paralela desce do espirito ao organismo, invade-o com tipos de energia cada vez mais bem elaborada, quer dizer, de ondas cada vez mais curtas e freqüência cada vez mais alta; desse modo, lentamente o potencial de toda a personalidade se eleva de um extremo a outro, inclusive na parte física. Dessa oscilação de atividade, conexão e repercussão de forças deriva a evolução. Embora a evolução se opere graças ao princípio ativo, o negativo também colabora; não fora ele, e faltaria ao primeiro a matéria a ser plasmada, a substância com que construir. Observamos nesse caso a mesma divisão de trabalho existente entre homem e mulher. O organismo físico coleta e acumula; o espírito dinâmico elabora e progride. O primeiro engorda, preguiçoso e vegetativo, e se sacia apenas satisfaz os instintos de conservação e de reprodução; o segundo gasta a vida vegetativa na consecução de fins mais elevados, bate-se e atormenta-se na ânsia de evoluir. Esse é o duplo aspecto da vida.
No entanto, esse dualismo espírito-matéria não basta para esgotar o problema da personalidade. Não é a única bipolaridade da vida essa antítese entre periferia e centro, entre as correntes de ascese e descensão pelas quais se distribui, entre os dois termos, o positivo e o negativo, a atividade evolutiva. A esta bipolaridade, que poderíamos figurar como bipolaridade vertical em que, do ponto de vista evolutivo, a matéria está em baixo e o espírito em cima, imaginaríamos superposta uma bipolaridade horizontal em que o princípio biológico positivo, derivado do núcleo do espermatozóide paterno, e o princípio biológico negativo, derivado da célula-ovo materna, se situam à direita e à esquerda da bipolaridade vertical. A consciência humana, portanto, é o ponto de convergência da orquestra de vibrações provenientes dessas quatro grandes vias determinadas pelo cruzamento dos dois binômios. Disso é que somos constituídos, somos filhos e parentes, isto é, desse conjunto orgânico de forças e correntes, quer dizer, de algo muito mais complexo e extenso que a carne dos nossos pais, por mais que essa carne tenha vivido e traga inscrita em si mesma a sua história. A personalidade humana abrange os dois binômios, isto é, encerra em si quatro elementos que necessitam de fundir-se, embora lutem para se destruírem, dois desequilíbrios de forças à procura de reequilíbrio, isto é, duas fontes de movimento, de contraste, de sensação. Conforme concordem, forte ou fracamente, deles derivará estado de maior ou menor entrosamento ou de maior ou menor contraste e poder criador e, desde as notas graves até as mais agudas, mais ou menos profunda e extensa gama de ressonâncias e riqueza de sentimentos A personalidade serve de campo de batalha a essas forças, que se encontram dentro dela e podem ser calmas e concordantes ou impetuosas e discordantes ao ponto de transformá-la em violento explosivo. Pode a personalidade, pois, manifestar-se sob tantos aspectos quantas são as posições por ela assumidas e variáveis de um extremo a outro, isto é, de um estado de passividade inerte a outro de intenso dinamismo criador, derivante de desequilíbrio que se não o sabem dominar, pode precipitar-se na loucura. Procuraram identificar o gênio com a loucura, não porque ambos possuam algo de comum, como estado e resultados, pois a diferença entre os dois termos jamais foi tão profunda, mas porque o desequilíbrio originário do dinamismo criador do gênio fica a um passo apenas da anarquia espiritual da loucura. A superioridade do gênio, porém, reside exatamente na capacidade de domínio e de coordenação das próprias forças, de que jamais perde o controle. Domínio e coordenação muito mais fáceis para o homem normal, dotado de recursos bem mais escassos. Em todo caso, porém, em face desses elementos fundamentais que constituem a personalidade, o segredo da vida consiste em saber encontrar a harmonia.
As correntes vibratórias que nos percorrem a personalidade, fluem, portanto, de quatro fontes, representantes de quatro mundos, quatro sínteses, fruto de longo passado. São: 1) o eterno eu espiritual; 2) o ambiente terrestre; 3) o elemento paterno; 4) o elemento materno. Se grafarmos a reta da bipolaridade vertical sobre a reta da bipolaridade horizontal, obteremos o desenho de uma cruz, em que os quatro termos correspondem aos quatro braços. Na cabeça da cruz teremos o espírito, nos pés o ambiente-matéria, no braço esquerdo o elemento paterno e no direito o materno. As experiências ambientais, se quiserem atingir o espírito, devem atravessar o organismo físico. As correntes vibratórias oscilam de cima para baixo e de baixo para cima, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita; em todas as direções se trava luta. A personalidade representa o resultado dessa luta, a síntese desses elementos; por isso, pode ser múltipla, como se oscilasse entre os diferentes pólos extremos. No plano orgânico-psíquico (já vimos que o espírito não reside no cérebro) a luta se trava entre a personalidade paterna e a materna e explode na puberdade. Uma das duas personalidades vence, firma-se e constitui a dominante, em que prevalece o tipo de um dos dois progenitores. Como acontece na coexistência, o mais fraco cede o passo no ponto em que o mais forte conquista e, desse modo, se estabelece a harmonia. Vencida, nem por isso a personalidade morre; continua, modestamente como força subordinada, a gravitar em torno da principal, como os planetas em torno do sol do sistema a que pertencem. A natureza não a abandona nem despreza; utiliza-a, porém, confiando-lhe funções mais modestas, mas necessárias, como, por exemplo: o controle representado pela oposição, pelas minorias; a tarefa de equilibrar, refreando-o, o domínio exclusivo e a manifestação repentina e irrefletida da personalidade dominante. Reflexão significa controle recíproco entre duas tendências; quando elas entram em conflito, a hesitação aparece. Daí as diferenças de vontade, a tragédia dos impulsos opostos da consciência. Quando uma das forças vence, a vencida se retira para a sombra, contentando-se com viver vida apagada, à espera da desforra, mas assumindo, enquanto isso não acontece, a direção de funções modestas, a fim de assumir a direção geral, apenas a força vencedora se canse e baqueie.
Entre os dois elementos há vários graus de fusão. Há indivíduos, os chamados impulsivos, em que uma das personalidades venceu tão nitidamente ao ponto de dominar pacificamente, sem resistência, todo o campo da ação, pois a parte oposta o abandonou inteiramente e nenhum controle exerce mais sobre ele. A decisão, assim, torna-se fácil, simples, automática, retilínea, sem lutas, oscilações e dúvidas. São poucas as forças empenhadas na luta; por isso, encontra-se rapidamente a solução. Parece até rapidez o que, no entanto, não passa de simplicidade e pobreza de meios. Outros, ao contrário, aparecem tarde e, apesar disso, são ricos e complexos; neles o desequilíbrio não se resolveu pela pacificação estática e continua alimentando a contradição. Neles as duas personalidades, ambas prepotentes, concorrem contemporaneamente em todos os atos, levando-lhes tal riqueza de forças propulsoras e contraditórias que as divisões se tornam muito mais laboriosas. Daí deriva completa gradação de manifestações volitivas e de capacidade decisória, gradação que varia desde a ação imediata até à irresolução, da ausência de controle observável no impulsivo até o controle tão rigoroso ao ponto de paralisar a ação (Hamlet), da ação desorientada até à orientação inativa, isto é, a reflexão paralisante. Tudo isso depende das características dos dois elementos: paterno e materno. Não se fundem ou se fundem mal, se muito dissemelhantes do ponto de vista biológico. Desse fato resultam todas as anormalidades descritas na fenomenologia psiquiátrica; as conformações mentais em que se predominam a dissonância e a instabilidade; o desequilíbrio dinamizante, mas perigoso, que, se controlado e reconduzido a ordem superior, pode constituir o gênio e, se abandonado a si mesmo, se desfará na loucura Geralmente, porém, os dois estímulos, paterno e materno, acabam por harmonizar-se Se a diferença for demasiado grande, nascerá um caráter mais ou menos estável e equilibrado, verdadeiro mosaico de tendências. Se pensarmos em como, na reprodução, os elementos determinantes podem grupar-se em combinações infinitas, compreenderemos que inexaurível quantidade de tipos pode a natureza produzir. Na realidade, não existe o tipo normal, isto é, o tipo médio perfeito e absolutamente equilibrado. Portanto, não existe o completamente anormal, o tipo patológico absoluto. A vida a cada passo nos oferece exemplos de compensação! Quem não vence hoje amanhã talvez vença! Ao contrário, novidades, coisas originais, personalidade brilhante podem nascer desses desequilíbrios, se soubermos dominá-los, coordená-los e discipliná-los, desequilíbrios que, assim, se tornam qualidade preciosa, capaz, só ela, de oferecer contribuição inédita ao pensamento e ao progresso. A natureza, embora pareça proceder por tentativas, sabe errar e corrigir-se; de qualquer modo sempre nos compensa do que nos manda; deixa-nos cair para ensinar-nos a levantar-nos; expõe-nos aos assaltos, mas guia-nos à vitória e, por ela, à aquisição de novas qualidades, ao enriquecimento do nosso patrimônio de capacidade e defesa Todos os golpes recebidos são registrados no livro da vida, onde tudo fica escrito, de modo a poder ser lido em qualquer tempo. A moléstia tende a imunizar-nos, o erro a instruir-nos, a queda a reequilibrar-nos, a fraqueza a fortalecer-nos Tudo acaba sendo utilizado e transmitido e a vida imortal, desse modo, enriquece e acumula grande acervo de complexas heranças, através de prolongadíssimas experiências milenares que o nosso organismo incorpora e possui como riqueza oriunda da imensa sabedoria biológica, que, aliás, cada um de nós carrega consigo, sem sequer imaginá-lo. Desse modo, na batalha entre as duas forças contrárias, a natureza surge como grande harmonizadora, demonstra ser potência benfazeja, sábia, previdente e protetora, que transforma os desequilíbrios em elementos dinâmicos e criadores, as dissonâncias em harmonias, o dinamismo contraditório em personalidade original e potente.
Essas observações são válidas apenas no campo estritamente biológico; não bastam para resolver o problema da responsabilidade moral e esgotar o da hereditariedade. A personalidade humana também resulta de outras forças e de outras posições. Já analisamos a luta no interior do binômio horizontal; não observamos ainda a que se trava na intimidade do binômio vertical, com que a primeira se harmoniza. Acima dessas incompatibilidades biológicas se situa o mundo moral do espírito; e abaixo, o mundo exterior, com todos os seus golpes e resistências. A personalidade resultante dos dois elementos (pai e mãe) cruza-se e combina-se com a constituída pelo binômio espírito-matéria, eu interno e ambiente externo. A personalidade completa resulta de todos esses elementos e movimentos. Que riqueza! Porém, como nos desgasta essa luta! A natureza, tão amiga de definir as suas construções sob forma concreta e precisa, não tolera ócio e preguiça, mas exige permanente colaboração mútua dos valores e correspondência rigorosa entre a forma e a substância. Se chega a completar-se, a harmonia derivada da fusão dos elementos herdados da linha paterna e materna, deve por sua vez lutar contra o ambiente para, também nessa outra dimensão, conseguir harmonizar-se. E a isso que, nos casos mais comuns, se limitam as fadigas da vida, no seio da natureza que também se revela economizadora de energias. Verdade que, embora limitada a esses elementos, embora utilize o patrimônio hereditário constituído das numerosíssimas experiências adquiridas e atinja os dois reservatórios, paterno e materno, continuamente cruzados, a personalidade deve, à custa do próprio esforço, fazer novas aquisições; deve, outrossim, aumentar aquele capital, investindo-o em novas combinações, empregando-o na atividade que lhe é própria, completando-o com novas aquisições, obtidas experimentalmente no meio ambiente. Assim aumentado, a personalidade deve por sua vez devolvê-lo à circulação, gratuitamente como o recebeu. Se, porém, são estas as fadigas comuns da vida, podem existir outras bem diferentes, a que o homem normal escapa. A existência torna-se muito mais complexa, a luta áspera e difícil a harmonização; mas, em compensação, torna-se mais rica de desequilíbrios dinamizantes e criadores, quando surge e atua com forças preponderantes o elemento espiritual, por sua vez servido de uma bagagem de experiências pessoais, extensamente desenvolvida e, por isso, tão desejosa de viver vida própria e de afirmar-se perante os outros elementos da personalidade que chega a desafiá-los e a combater contra eles. Então, a personalidade, se mais extensa e mais rica, representa concerto de ressonâncias mais complexo, transforma-se também em campo de batalha bem mais vasto; neste a harmonização é muito difícil de obter, pois a síntese unitária do ego não se verifica somente no plano orgânico-psíquico, mas também no plano espiritual, mais elevado. É o caso do tipo evoluído. Portanto, todo o extenuante trabalho que deriva do desacordo entre as forças da personalidade, da concordância ou discordância dos ritmos, não se limita ao binômio horizontal pai-mãe e ao ambiente, mas se estende para as zonas elevadas do espirito; aí, e não no plano biológico, é que vai procurar a sua solução. As correntes dinâmicas, então, navegam e se cruzam em todos os sentidos, a luta biológica do homem contra a mulher (pai-mãe) e a da mulher contra o homem (mãe-pai) se cruza com a luta moral, do espírito contra a matéria (espírito-ambiente), e com a luta material, da matéria contra o espírito (ambiente-espírito), então os antagonismos do binômio vertical martelam o corpo físico e dão nascimento ao processo de maceração, que amadurece e evolui. Já observamos essa elaboração evolutiva, que estamos continuando a examinar. Desse trabalho intenso nascem indivíduos cada vez mais especializados. Mas, se por um lado parece que a natureza caminha para o individualismo, isto é, para o separatismo que do corpo social isola e afasta o indivíduo, doutro lado vemo-la mais tarde procurar o reequilíbrio dessa tendência, apoderando-se do indivíduo e engendrando-o nas múltiplas unidades sociais constitutivas dos coletivismos modernos. Isto porque a célula-indivíduo se diferencia, não em proveito próprio, não para isolar-se da ordem da natureza, mas para ser empregada numa ordem social muito mais vasta, com funções adequadas às qualidades características adquiridas.
Já dissemos que a visão estritamente biológica não basta para esgotar o problema da hereditariedade. A ciência limita-se a levar em conta os dois elementos do binômio horizontal e o elemento inferior do binômio vertical; não leva em consideração o elemento superior deste último. Os instintos, as idéias inatas, as qualidades adquiridas mediante a experiência ambiental e, graças a infinitas repetições, transformadas em automatismos, não seriam conquistadas pela eterna personalidade espiritual, capaz de conservá-las e restitui-las em qualquer momento em que forem úteis, através de prolongada série evolutiva de vidas corpóreas, menos significativas e encerradas na oscilação nascimento-morte; mas seriam adquiridas em virtude de uma espécie de memória biológica, celular, e nela depositadas e conservadas.
Em A Grande Síntese, cap. LXIX ("A Sabedoria do Psiquismo"), entre os coleópteros citamos o ceramyx miles, como exemplo de sabedoria imensamente superior à organização e aos meios que possui. Acrescentemos, agora, o caso, ali apenas esboçado, de um himenóptero, o sphex, cuja fêmea, ao lado dos ovos, que põe na areia, coloca um inseto por ela previamente paralisado com um golpe de ferrão, para que sirva de alimento à futura larva. Ora, o sphex atinge a vítima exatamente no ponto onde, no dorso, se encontra o gânglio nervoso que preside ao movimento. Desse modo, obtém a provisão representada pelo inseto, que, por estar paralisado, não pode sair do lugar e se conserva em boas condições porque continua vivendo. Como é que o sphex conhece anatomia e anestesia? Quem lhe ensinou esse fato anátomo-fisiológico? Dirão: a experiência. Mas os insetos vivem poucos meses e as larvas, quando nascem, já os pais e toda a geração precedente desapareceram. Onde, pois, o ensino e a imitação? Ou esse inseto possui, talvez, sensibilidade bastante para perceber as radiações transmitidas pelo gânglio nervoso e poder desse modo encontrá-lo? Se fosse assim, quem o mandou atacá-lo e o informou das conseqüências? Quem responde pelo raciocínio que relaciona todas as fases do processo lógico? Ninguém pode negar a existência de princípio inteligente nesse inseto e, se não é possível que ele o tenha criado, então lhe foi transmitido. Por que caminho, porém? Porventura, as células é que conservam a memória atávica? Mas basta esse caminho? São as células capazes de semelhante síntese racional? Isso quer dizer psiquismo. Deposita-se ele nas células? Existe outro psiquismo? Este conserva a memória de todas as experiências vividas durante milênios e, no presente caso, até mesmo as inerentes ao estado de simples inseto. A conservação desse tão precioso patrimônio hereditário, e do novo patrimônio que a experiência continuamente lhe acrescente, é confiada à memória celular ou a um organismo imaterial em que se registram e fixam definitivamente, sob a forma de qualidades adquiridas, as correntes vibratórias oriundas do ambiente?
De acordo com a ciência, a memória biológica residiria na célula que traz inscrita em si mesma sua prolongadíssima história, cujo conteúdo lhe foi transmitido através da filiação e da derivação dirigida pela célula germinativa hereditária. A essa história do passado cada vida acrescenta a própria experiência, soma-a à precedente e com esta, assim completada e corrigida, a transmite. Tratar-se-ia de uma espécie de reencarnação celular; a continuidade das vidas sucessivas não seria confiada à sobrevivência de um princípio espiritual supercorpóreo, mas à persistência das impressões celulares. É verdade que o ambiente atua e continuamente nos impressiona o ser, a repetição fixa nele hábitos ou automatismos, tendentes a radicar-se sob a forma de instintos (cf. A Grande Síntese, cap. LXV: "Instinto e Consciência Técnica dos Automatismos"). Também é verdade que todas as nossas experiências se registram e transmitem por hereditariedade. Mas o problema consiste em saber como, por que via e por que mecanismo a célula se impressiona e conserva as impressões.
Para compreender, torna-se necessário reduzir o fenômeno à pura substância cinética. Trata-se, agora, de várias correntes de vibrações, de ritmos, de movimentos ondulatórios que se transmitem e se imprimem. Já os examinamos nos capítulos precedentes. Os movimentos vibratórios do ambiente externo penetram no organismo através das vias nervosas e sensoriais. Essa penetração contínua constitui fato indiscutível. E essas vias, portas escancaradas. Nosso organismo é também uma orquestração de ritmos. Os movimentos vibratórios entram, avançam, invadem a estrutura orgânica cada vez mais intimamente, percorrem-lhe e saturam-lhe as vias, penetram-na sempre mais. Têm de parar no último termo que nossa decomposição analítica nos dá a conhecer, isto é, imprimir-se-ão, sob a forma de desvios de trajetórias já existentes nos movimentos atômicos (cf. A Grande Síntese, cap. LV: "Teoria dos Movimentos"), movimentos atômicos dos quais resulta, em grau de complexidade progressiva, o sistema cinético-dinâmico molecular, micelar, celular, orgânico, psíquico. O fato de a repetição funcionar como determinante de automatismos, confirma de um lado a referida atividade cinética e de outro a impressionabilidade cinética. Trata-se, talvez, de atividade electromagnética. Daí derivaria a memória celular. Se os vários elementos componentes forem reagrupados de conformidade com a lei das unidades coletivas (cf. A Grande Síntese, cap. XXVII) e os movimentos atômicos fundamentais estiverem presentes a todos os organismos mais complexos, existirá a possibilidade de conseguir sínteses progressivas, até chegar-se à síntese máxima, que se nos revela sob a forma de consciência. Os resultados cinéticos da experiência, desse modo, se imprimiriam em todas as células do corpo e, graças à hereditariedade, se transmitiria e receberia essa sabedoria adquirida pela raça, comum a todos, de que cada indivíduo seria depositário, para usá-la em benefício próprio, conservá-la, enriquecê-la e, enfim, transmiti-la aos descendentes, em benefício deles, e assim por diante. Essa sabedoria, percorrendo os órgãos nervosos e cerebrais, se concentraria, de acordo com o princípio das unidades coletivas, na síntese máxima do psiquismo, derradeira resultante das experiências da vida.
Já o dissemos: sabedoria a ser aumentada e transmitida. O trabalho, portanto, é duplo: de nova experimentação, tendo em vista o aumento, de conservação do velho e do novo, tendo em vista a transmissão. Temos, pois, dois tipos de registro cinético: o recente e o atávico, o novo e o velho, o que nós fazemos e o feito pelos nossos antepassados. O primeiro conduz à captação e fixação dos movimentos de variação da espécie; o segundo representa, na raça, as qualidades mais íntimas e mais estáveis, fixadas em todas as células, não por via de aquisição, mas de hereditariedade. As duas diferentes funções, isto é, o desvio e a conservação das trajetórias, seriam confiadas a dois sistemas celulares: de um lado os conjuntivos, ou seja, os tecidos de nova formação embrionária e de outro o sistema de todas as demais células. Dois sistemas, portanto, que culminariam em duas sínteses psíquicas: a primeira, temporária, individual, representante da porção de vida pessoal do indivíduo; segunda, coletiva, eterna, representando a espécie e a continuidade da vida. Dois psiquismos, pois: o psiquismo ativo, trabalhando por armazenar novas qualidades, construtor do ego através das experimentações, registrador, receptivo, assimilador e fixador de novas experiências biológicas a serem transmitidas ao outro sistema; e o psiquismo atávico, conservador, que, sob a forma de qualidades hereditárias e de instintos, de idéias inatas e capacidades adquiridas, faz ressurgir e restitui as referidas experiências. Os dois sistemas giram em torno um do outro, de acordo com o costumeiro esquema do binômio de forças contrárias e complementares de que resulta a composição do binômio de toda unidade, de conformidade com a lei universal de dualidade.
Tudo isso não deixa de ser persuasivo, mas permanece insolúvel o problema da conservação das impressões, isto é, das novas características cinéticas que se vão continuamente formando nos movimentos atômicos. Como conciliar a permanente identidade do ego, não obstante a mudança de suas qualidades, e a renovação completa e contínua do material constitutivo do organismo? E, então, não é possível que, ao invés de a memória celular, a conservação das impressões seja confiada à memória espiritual sediada no organismo imaterial que chamamos alma? Se a vida é metabolismo, é uma corrente, que é que lhe impede a dispersão e mantém a unidade? Ao nascer, já trazemos conosco, sem dúvida, os resultados de um passado. Mas onde foi esse passado inscrito: na intimidade da célula, ou na do espírito? É difícil, sem sombra de dúvida, conceber uma transmissão hereditária através apenas da célula genital e a sua capacidade de conter-lhe todos os desenvolvimentos futuros e, depois, guiá-los na reconstrução do ser completo. Não o é menos imaginar uma transmissão hereditária fundada na reflexão de vibrações produzida por um organismo espiritual que, introduzindo-se no organismo físico, através das vias imateriais visíveis da percepção interior, lhe guie o desenvolvimento (ideoplástica). Tanto mais que o primeiro sistema não pode ser suficiente para transmitir todas as impressões registradas pela espécie, pois as melhores experiências, as da maturidade, adquiridas depois da idade da reprodução, que é fenômeno juvenil, não seriam transmitidas, permaneceriam incomunicáveis. Perder-se-iam, então, as melhores aquisições; e a vida dos solteiros, por não haver sido utilizada, não teria utilidade alguma para a raça. Ora, como é que a natureza, em ponto dessa importância vital, pode deixar que lhe roubem os resultados mais preciosos e custosos? Como é que ela, previdente e econômica, pode abandonar as experiências mais importantes da vida, as experiências espirituais, que se adquirem até mesmo em plena senilidade? Como é possível tão flagrante contradição com a habitual economia da natureza? As melhores conquistas se dispersariam tantas fadigas se tornariam vãs e seu resultado ficaria destruído; isso tudo constituiria mais uma gritante contradição do mundo em que nada pode ser destruído e também essas forças, como tudo, aliás, devem ressurgir. E como poderia progredir uma raça incapaz de acumular senão experiências elementares e juvenis? De que se alimentaria o progresso, fato espiritual e de realidade inegável? Não. Não é possível que a vida seja mutilada desse modo, exatamente no centro do seu sistema, tão perfeito, aliás, sistema que se tornaria imperfeito precisamente no ponto mais substancial, ao ponto de, com o desaparecimento das experiências mais sublimes da raça, fechar-se o caminho do progresso.
A herança fisiológica, portanto, não basta. Se os filhos se parecem com os pais, muitas vezes não se parecem e, até mesmo, os superam. O gênio não é hereditário. O fenômeno, sem dúvida, deve ser bipolar; não pode constituir exceção da lei universal de dualidade. Na realidade, se tudo é dúplice, a hereditariedade também deve sê-lo, quer dizer, deve processar-se pelos dois caminhos possíveis, em posições e com funções complementares. Dois são os eixos constitutivos da personalidade (pai-mãe e eu-ambiente), duas as suas formas de luta, dois os sistemas de forças e duas as evoluções (material e espiritual); assim, nada mais lógico que também sejam duas as formas de hereditariedade correspondentes aos dois eixos, cada forma de luta tenha objetivo determinado e todo tipo de evolução, como todo sistema de forças, possua canal de transmissão privativo, As forças não param e as experiências acumuladas devem dar algum resultado. Quem se limita exclusivamente à hereditariedade fisiológica, esquece o imenso mundo do espírito, dos valores morais, onde, em atmosfera de plena responsabilidade, nosso destino se cumpre.
Percorremos os caminhos da ciência, para permanecermos positivos, e chegamos aos movimentos atômicos, a desvios de trajetória, a ações e reações cinéticas, à absorção de ritmos, a movimentos de correntes vibratórias. E eis que tudo se desmaterializa em nossas mãos e se traduz no imponderável, característico do espírito. Quando chegamos ao fim do caminho, percebemos que o fenômeno como que se desfez e dele não resta senão o jogo de forças, a estrutura de vibrações, o dinamismo imaterial, que possui muitas das características do espírito e das suas invisíveis atividades. Mas, então, o contraste, na aparência verdadeiro, entre materialismo e espiritualismo, não passa de simples questão de palavras, pois afinal tudo termina no mesmo ponto, descobrindo a mesma verdade e dizendo em substância, a mesma coisa. Quando acabamos de percorrer os caminhos da ciência e da matéria, exclamamos: Mas isso é o espírito! E, de fato, é o espírito mesmo. Já vimos que, no binômio espírito-matéria, ele se encontra até mesmo no pólo oposto e que o mistério do psiquismo se estende até à intimidade da célula. Dissemos que o eu é dúplice, não está apenas no centro, mas também na periferia; que o espírito, central, também está em qualquer ponto da periferia; é, ao mesmo tempo, o centro e a periferia. Dissemos também que a memória atávica, a sabedoria adquirida pela raça, está confiada a todas as células do corpo e nelas se difunde. Mas, então, falar desse sistema é, em última análise, o mesmo que falar do espírito, se sua substância pode traduzir-se cientificamente numa orientação de cinética atômica e se dessa maneira o psiquismo se manifesta até mesmo na intimidade da célula. Surge, então, esta pergunta: O espírito constitui a causa ou o efeito do sistema? Ou, melhor, o espírito representa o motor determinante das correntes de consciência que dirigem o funcionamento do organismo ou, então, é a síntese das correntes de consciência derivadas dos sistemas celulares?
Para Renan "a alma resulta das forças do corpo". Podemos, no entanto, observar: se é natural que a síntese de correntes de consciência derivadas dos sistemas celulares atinja o plano biológico, como poderá ele, no entanto, elevar-se até ao mundo moral, tão absolutamente diverso, do ponto de vista qualitativo? Harmonizemos o antagonismo. Geralmente, o homem, por motivo da luta que sua natureza bipolar lhe impõe, apesar de dividido se conserva unido. O materialismo e o espiritualismo, ambos unilaterais, manifestam apenas a parte que possuem da verdade. Se nos perguntarem se o espírito constitui causa ou efeito do sistema, respondemos com as mesmas palavras por nós já empregadas: a causa está no efeito e o efeito na causa. Trata-se apenas de dois termos da mesma unidade bipolar, de um caso particular da lei universal de dualidade. Atingimos o limite em que se supera o binômio e se resolve a contradição. Tocamos, agora, o limiar do mundo superior em que desaparece a grande ilusão da forma e tudo se unifica na mesma verdade.
XXVIII
A PERSONALIDADE HUMANA (2.a PARTE)
O desenvolvimento dos últimos capítulos permite-nos imaginar o jogo de forças e o entrelaçamento de ritmos que constituem o íntimo dinamismo de nossa vida. Só penetrando assim na intimidade do imponderável, poderemos compreender tudo quanto escapa ao homem que vive na superfície. Este ignora o maravilhoso mundo circundante de que, aliás, ele mesmo se compõe. Esse mundo escapa em grande parte à própria ciência que, em virtude da orientação positivista e do método objetivo-experimental, em lugar do intuitivo, não pode atingi-lo. Desse modo, a opinião científica em voga a respeito do problema da personalidade é incompleta, apesar de haver estabelecido diversas verdades no campo biológico e psicológico. Para compreensão geral do fenômeno, torna-se necessário seguir-lhe a oscilação completa, de um a outro extremo do ser, de conformidade com o mesmo esquema da construção e funcionamento do universo. O homem, de fato, encontra projetadas, na sua estrutura e na sua vida, as linhas essenciais do fenômeno cósmico. A oscilação vai do espírito à matéria e volta, com sinal contrário, da matéria ao espírito, reproduzindo a cada momento os dois grandes períodos da criação: involução e evolução. No homem e na criação, o pensamento se materializa na ação até encontrar a forma concreta que o revista e o exprima, e isso através da fase intermediária do dinamismo volitivo; e, ao contrário, a ação se desmaterializa no pensamento, destilando-se sob a forma de experimentação realizada, a fim de, na consciência, fixar-se como qualidade adquirida ou instinto. A cada oscilação o eu aumenta e se dilata, para retomá-la e continuá-la cada vez com mais intensidade. O físio-dínamo-psiquismo, íntima trindade do monismo universal, no cosmo e no homem, não é apenas estrutura orgânica, mas também funcionamento. Na oscilação, um dos extremos, embora transformando-se, transporta-se inteiramente para a posição do outro extremo e ao contrário e, assim, o ser vai e vem, vem e vai, sem cessar, de um a outro de seus dois pólos. O princípio trinitário, sua fórmula estrutural, não passa de conseqüência do principio de dualidade. Apenas o binômio é animado pelo dinamismo vital e a contradição, não mais estática, se põe em movimento e na oscilação de um termo a outro se formam as correntes de ida e de retorno, do antagonismo e da fusão nasce terceiro termo, que constitui fase intermediária, traço de união e resultado das trocas. É novo ser, terceiro elemento, filho do binômio pai-mãe e da íntima oscilação dessa unidade dualística, que descarrega uma na outra as suas metades inversas. Estando completo o desenvolvimento das forças do sistema, essa nova individualidade se destaca do binômio e permanece autônoma e independente, mas incompleta e à procura de sua metade complementar, para juntas formarem novo binômio e, através da troca de correntes, novo ser intermediário, e assim por diante. Assim, da estrutura dualista do universo, do principio fundamental de dualidade, deriva o principio trinitário, que representa o esquema da técnica genética.
O movimento dessa troca é dinamismo interior da unidade formada de duas partes iguais; por isso, apenas influi na estrutura íntima dessa unidade. Mudança só acontece em sentido relativo; a substância permanece invariável e o monismo intacto. O movimento volta sempre sobre si mesmo; cada uma das duas formas extremas do ser constitui apenas posição diferente no seio da mesma unidade, não representa senão a metade do mesmo ciclo. O ponto de chegada é ao mesmo tempo ponto de partida; do mesmo modo, o ponto de partida é ponto de chegada. Os extremos se tocam.
Todos esses conceitos já foram expostos no cap. VIII ("A Lei") de A Grande Síntese. Mas, enquanto, nesse livro, os aplicamos ao fenômeno universal, aqui os consideramos especialmente em relação ao fenômeno da personalidade humana. Entre as duas fases extremas ou posições limites da oscilação entre espírito e matéria, pensamento e ação, princípio e forma, há uma fase intermediária de passagem: energia, vontade ou movimento. Tanto no homem, como no universo, de que é imagem, a transição do primeiro momento para o terceiro, dá-se através do segundo que, na ida (subindo), tem sinal positivo e na volta (descendo) se inverte com sinal negativo. Em outras palavras, o espírito ou pensamento (1º momento) como iniciador ativo da transformação do princípio na forma material (2º momento), para chegar à sua ação plasmadora, se ativa como vontade vestindo-se de energia (3º momento). Portanto, cada ato nosso é uma exteriorização do espírito, um conceito (1º) que se manifesta (2º) em dinamismo e conclui (3º) numa realidade exterior. No caminho de volta, porém, a atividade do momento intermediário muda-se em passividade a vontade em receptividade o homem de ação em homem contemplativo, justamente porque não estamos mais em fase de emanação mas de reabsorção; as portas do ego estão abertas para o interior, não para o exterior e a direção do dinamismo fenomenal invertida. Por isso as funções afirmativas e positivas da vontade, tão úteis à ação são um estorvo, representando impulsos negativos no caminho da volta, onde por sua vez age o sensitivo, o espiritual, o místico.
No período atual, descobrindo uma lei qualquer da natureza, o homem conquistou maior domínio sobre a energia, meios de maior manifestação de si mesmo, através da ação no mundo da matéria. Tais meios deram força ao dinamismo positivo de ida, fase por que atravessa atualmente a humanidade. O espírito, porém, motor e dirigente destes meios, permaneceu o mesmo; a sabedoria não recebeu um impulso proporcional. Com a mentalidade de um primitivo, o homem atualmente se encontra em poder de meios poderosos como nunca esteve. Por isso o terceiro termo do ciclo, do qual se está avizinhando, nada mais é que erro (resultado de tentativas inexperientes) e, portanto, sofrimento (compreensão involutiva). Somente no segundo tempo, quando o movimento de vida se inverte em movimento de volta, a expansão ativa, em concentração reflexiva, é que o resultado trará vantagem (como premissa de nova expansão evolutiva). Eis o que acontece. O primeiro impulso da ciência nasce no espírito, amadurecido por precedentes experiências, resultando daí maior conhecimento. A este trabalho do último século, sucede o atual trabalho de atuação experimental. O espírito, achando-se ainda em fase primitiva, encontra-se em face de experiência desconhecida que, feita por inexperientes (como acontece nas crianças), produz, como já dissemos, dor e erro. Chegamos então ao fim da terceira fase que conclui o ciclo da jornada. A dor abre o ciclo de retorno, marca a nova direção a seguir, o início da subida, a nova gênese. Não mais agindo ou desenvolvendo-se ma meditando em dolorosa reflexão sob os golpes recebidos pela reação das forças da Lei, dados em conseqüência de esforços improfícuos. Completa-se, portanto, lentamente o ciclo inverso da assimilação, resultado doloroso mas benéfico da experiência humana neste período. A meta final é compreender. O ponto de chegada está no espírito, na conquista de maior sabedoria, que representa maior base para início de novas experiências. Com o ciclo experimental, feito de dinamismo centrífugo de descentralização, e com o ciclo inverso de assimilação, constituído por um dinamismo centrípeto de centralização, o ar de que se nutre a evolução biológica completou sua oscilação e se prepara, firmando-se em tal base, para nova e mais vasta oscilação. Assim até o infinito. As verdades relativas do homem, por ele expressas, uma a uma de forma absoluta, serão as etapas deste caminho, o mesmo caminho da única verdade progressiva. A história dos acontecimentos sociais nada mais é que a história do desenvolvimento da personalidade humana cujos movimentos observamos.
Movamos o prisma de observação. No ciclo de assimilação que finaliza o dinamismo centrípeto da concentração, onde e como os frutos da experiência se depositam na personalidade? Confrontemos as teses acima acenadas com a teoria do subconsciente. Fala-se tanto disso nos nossos tempos! Trata-se, porém, de um conceito que, se verdadeiro, não está completo. A natureza unilateral dos métodos de pesquisa hoje adotados, só podia revelar a metade racional e material do fenômeno, deixando de lado a parte intuitiva e espiritual. Esta é representada pelo superconsciente. Desenvolvamos aqui tudo o que já dissemos, completando o pensamento de A Grande Síntese no cap. XX: "O Subconsciente", do volume: Ascese Mística (citado no prefácio). A personalidade humana não é um ponto, mas uma zona onde se distinguem três partes: o subconsciente, o consciente e o superconsciente. Portanto, os resultados da experiência não se transmitem a um único ponto mas se depositam e registam diversamente pelas várias partes da zona. Enquanto o subconsciente representa a assimilação completa de velhas experiências em estratificações antigas donde emergem como instintos, ou, em outros termos, o núcleo conquistado pela consciência biológica confirmada pela vida prática, o superconsciente, no extremo oposto, representa a zona de espera, onde se registam as experiências de vanguarda, pela quais se antecipa o futuro, zona que não está, como a outra, no fim mas na frente da evolução. Estes são os dois termos da personalidade humana. Em baixo, sob a escada da evolução está a zona da animalidade, o que é próprio da besta; no alto está a zona do espírito, o que é próprio do super-homem. Num extremo, a sólida, estável, mas primitiva e elementar experiência do passado, firmada como patrimônio aquisitivo representando um material de uso continuamente aprovado pelas condições ambientes; no outro extremo, as experiências em formação, novas, incertas, instáveis, mas audazes, elevadas, complexas, desenvolvidas, representando não o patrimônio adquirido, mas o novo patrimônio em vias de aquisição, não a evolução conseguida, alcançada, mas a continuação, não a personalidade já constituída, mas o seu complemento. A primeira experiência está escrita na carne, a segunda, no espírito. A personalidade é, portanto, não um ponto, mas uma zona em movimento, alcançando assim o dinamismo íntimo que a amadurece, fazendo-o subir na escada da evolução. Neste sentido, a personalidade não é imóvel, mas se desloca da terra para o alto, caminhando com os pés (subconsciente) no passado e garantindo com os braços levantados (superconsciente) o futuro.
Entre tais extremos, porém, há um terceiro termo, uma zona intermediária: o consciente. Qual a sua função? Que acontece ao centro do sistema? Nas partes inferiores, onde está finda a assimilação, dispensa-se novo trabalho de registro, estando tudo, salvo adaptações e modificações, confiado ao automatismo de instintos já conquistados. Esta parte acha-se sepultada no inconsciente, sem participação da consciência, não sendo mais zona de desequilíbrios, de formações, de trabalho, mas zona de equilíbrio e êxtase Para o tipo normal, não sendo a manifestação na parte superior nem contínua, nem ativa, o esforço é apenas exceção. Esta parte, onde ainda não se formaram desequilíbrios e atividades com o impulso das forças do ambiente, geralmente fica sepultada no inconsciente. Se a personalidade estende suas raízes às profundezas do subconsciente e eleva suas ramificações às alturas do superconsciente, a vida ferve no tronco: a zona do trabalho intenso de novas formações está normalmente no centro. Sendo esta uma zona de trabalho, desequilíbrio, contrastes, e, portanto, ativa e criativa, ela é lúcida e consciente. A personalidade brilha na luz máxima da consciência em sua zona central. A luz se dilui gradativamente nas duas zonas limítrofes, a inferior e a superior, até se extinguir completamente além dos dois extremos, onde se encontram traços das evoluções, situadas fora do campo da personalidade. É uma luz entre dois riscos de trevas, onde o que está latente, seja memória ou pressentimento, dormem e despertam aos poucos.Depois disso o nada em relação à personalidade, quando está além de qualquer capacidade corresponder, por ressonância, às vibrações do ambiente E tudo em posição relativa à evolução do indivíduo, caminhando da besta ao super-homem, do subconsciente ao superconsciente, da carne ao espírito.
O que para o consciente constitui trabalho atual, para o subconsciente é passado vivido, não morto, cuja síntese sobrevive sepultada em seu íntimo como resultado da operação que atualmente é desenvolvida pelo consciente. A síntese resultante, chama-se instinto, estando, ainda, no plano do consciente, na fase de formação de análise. Aqui o equilíbrio ainda não estabilizado, ainda indefinidas as resultantes dos contrastes, permitem o trabalho de criação que no subconsciente terminou suas aquisições. O instinto é superior como maturidade formativa, mas inferior como nível evolutivo. A razão pertence a um plano superior, é a forma mais complexa, mais criança do instinto. Este, síntese da análise feita pelo subconsciente, é mais velho e perfeito, em seu nível, que a razão. Esta é um processo em formação, de análise, de experiência incompleta, mas em vias de sê-lo, é fase inicial de assimilação de qualidades novas mas em grau mais elevado de evolução Os resultados da análise, amanhã serão síntese; os da razão que procura e escolhe, instinto que já sabe e conhece. A intuição pertence a um plano ainda mais alto; é a forma ainda mais complexa, porém mais primitiva da razão. Elevando-se pela evolução, o que se ganha em agudeza e perfeição, se perde em estabilidade de equilíbrio e solidez. No alto voa-se; em baixo, anda-se. No alto, o domínio dos espaços, mas os riscos e incertezas das tentativas; em baixo, o passo lento e pesado, mas o controle, a segurança, a certeza. Por isso o raio intuitivo do gênio, é controlado pela razão. E como os resultados desta serão o instinto de amanhã, assim as funções excepcionais da intuição se regularão como funções normais, como as atuais funções da razão. Como esta é um instinto em formação; trata-se no primeiro caso de um instinto que se elevará à altura evolutiva da razão, e no segundo, de uma razão que chegará à altura evolutiva da intuição Enfim, entre instinto, razão e intuição a diferença está no grau de trabalho para a captação e assimilação das experiências. A intuição atua no superconsciente que é uma antena estendida como antecipação em direção aos mais altos e inexplorados graus de evolução, para captar o novo, o inédito, o futuro. A razão atua no consciente Não funciona por raios, como a intuição, é menos rápida, porém, mais contínua, mais ordenada, mais segura. Precisamente porque se projeta para menos alto, é mais equilibrada, porém, mais curta e limitada. O instinto é obra terminada, cujos resultados perdem-se no subconsciente, depositando-se nesse magazin de reservas, como patrimônio da personalidade que aí se pode reabastecer segundo as necessidades. A medida que se avança, a fase evolutiva, inicialmente conseguida somente pelos raios da intuição, torna-se domínio normal e controlado da razão, cumprindo a função de assimilação que encontramos terminada no instinto.
Portanto, três fases: captação pela intuição, assimilação pela razão, depósito pelo instinto. Conquistam-se assim, aos poucos, os graus de evolução, parecendo que descem para o homem quando é o homem que sobe a eles. Assim a experimentação avança pela escala evolutiva, eleva-se em complexidade e dificuldade para o alto. O inédito, o superior, antes compreendido pela intuição, atividade do superconsciente, é fixado pela razão, atividade do consciente, no instinto, produto do subconsciente. Trata-se de experiência progressiva que se ativa para o alto dominando-o. É este o trabalho da personalidade humana, o conteúdo, o escopo da existência. A vida é conquista e adição contínuas. O ego lança-se ao inexplorado, agarra-o, assimila-o e não descansa enquanto não o transforma em qualidade própria, carne de sua carne. Assimilação espiritual paralela à orgânica. Tudo é adição e desenvolvimento evolutivo, quer se trate do corpo, quer da alma, quer se trate de conquista individual como espiritual, material, econômica ou moral. Na frente está o super-homem, ameaçado por todos os perigos: depois vem o homem que controla e confirma com sua análise na prática da vida; enfim, a besta feita de instintos e imitação, pronta a se apoderar dos úteis resultados do esforço total. Assim a conquista se adianta, o homem se eleva e o patrimônio dos instintos se avoluma. O subconsciente nada mais é que um consciente decaído, um raciocínio escrito em sangue, um resultado selado pela experiência e fixado a fogo no instinto. O consciente não é nada mais que o superconsciente coordenado, disciplinado, equilibrado, intuição trazida à razão e submetida ao seu controle, elemento incerto e transitório, embora sublime, enquadrado transitoriamente à realidade da vida. Do mesmo modo, o subconsciente foi, há um tempo, consciente, isto é, campo ativo das formações atualmente cristalizadas no instinto que, a seu tempo, foi raciocínio, outrora intuição. É ao contrário: o atual consciente amanhã será subconsciente; a luta atual de formação individual e social, que é raciocínio com a vida, fixar-se-á em seu produto feito de qualidades assimiladas (instintos). O atual superconsciente amanhã será consciente, isto é, a intuição incompreendida será normalmente sotoposta aos processos racionais. O involuído e o normal tornar-se-ão, portanto, conscientes na zona atualmente coberta pelo superconsciente, no campo onde hoje é consciente a única exceção biológica representada pelo evoluído. Completa-se, assim, por sucessivas estratificações o processo de aperfeiçoamento da personalidade.
Ainda uma observação. A personalidade, como dissemos, não é ponto, mas zona em que se distinguem três partes: subconsciente, consciente e superconsciente. A estas correspondem, segundo o próprio grau de desenvolvimento e plano de atividades, três tipos biológicos: a besta, o homem e o super-homem, e três formas de ação: instinto, razão e intuição funções diretivas alcançadas pelo indivíduo segundo seu grau de evolução. A estas correlacionam-se três formas de trabalho (em sucessão inversa): captação, assimilação e armazenamento. (Como o universo, a personalidade humana é uma trindade em caminho pela escada da evolução. No homem encontramos o físio-dínamo-psiquismo do cosmos. O pensamento, na forma humana, se materializa, passando do superconsciente ao subconsciente, através do dinamismo do consciente. Temos, também, aqui, portanto, não uma simples estrutura, mas um funcionamento. No ciclo experimental, que acabamos de ver, o dinamismo vem do subconsciente em direção ao superconsciente, tentando a experiência e conquista do alto; no ciclo de assimilação, o dinamismo desce do superconsciente ao subconsciente, operando o armazenamento, a fixação dos resultados da experiência. A descentralização segue-se a concentração no ego. Este dinamismo dúplice e inverso, é o passo segundo o qual a personalidade progride.
Antes de notar novos paralelos e correspondências, antes de observar o reencontro das correntes ascendentes e descendentes na zona lúcida da consciência, reassumamos e completemos os dois conceitos fundamentais desenvolvidos até agora neste capitulo: 1) a natureza não puntiforme mas trifásica, da personalidade humana; 2) o movimento ascensional desta zona trifásica. Temos, portanto, três zonas na: personalidade das ações consumadas, das ações atuais e das tentativas e explorações. Representam o trabalho feito, o que se faz e o que se fará, isto é, a atividade passada, presente e futura, ou ainda, a lembrança, a ação e o pressentimento. Somente a zona do trabalho é consciente. Para o alto e para baixo este clarão nítido se perde gradativamente nas trevas e o dinamismo desaparece na inércia. Acima e abaixo, imersas na inconsciência, estão as zonas crepusculares onde a consciência sente as sombras vagarem incertas, embrião de futuros motivos ou restos de motivos destruídos ainda sonolentos no marasmo da indiferença ou do esquecimento. O passado sobrevive no consciente como síntese, o futuro aí nasce como antecipação. A consciência está repleta e se nutre do presente em construção. No subconsciente está escrita nossa história, no consciente está o esforço da subida, no superconsciente, o futuro. O primeiro representa o patrimônio acumulado, o segundo a atividade com que se fazem as provisões, o terceiro a zona das expectativas e possibilidades, das tentativas e formações futuras. As três zonas estão ante a experimentação nestas posições: de quem já recebeu o depósito, de quem o está recebendo e de quem o espera. O eu sente no campo onde está ativo e não onde está latente. O sistema esta em movimento evolutivo, e o consciente, isto é, a zona ativa do registro, não é o mesmo para todos. Os três tipos biológicos: a besta, o homem e o super-homem, têm seu centro consciente em três alturas diversas: a besta, no subconsciente (instinto), o homem, no consciente (razão), o super-homem no superconsciente (intuição). Com a evolução o centro consciente tende a passar do nível inferior ao superior. Na escala da evolução uns são conscientes, poder-se-ia dizer, à altura da cabeça, outros à altura do ventre e outros à altura dos pés. Uns têm a cabeça abaixo do nível dos pés de outros; outros têm os pés acima do nível da cabeça de outros. Do involuído ao evoluído os tipos se escalonam em todos os níveis, mas a compreensão só é possível entre os que se acham à mesma altura, tendo portanto, partes comuns de ressonância, isto é, que vibram, como já dissemos em capítulos precedentes, com o mesmo comprimento de onda, velocidade e freqüência vibratória, que é o que justamente diferencia o grau de evolução. A evolução caminha do subconsciente ao superconsciente, da besta ao super-homem, como das ondas longas e baixa freqüência às ondas curtas e alta freqüência. Há portanto correspondência entre subconsciente, instinto, animalidade, ondas longas e baixa freqüência de um lado, e superconsciente, intuição, espiritualidade, ondas curtas e alta freqüência do outro. Também a personalidade é um binômio que vai do extremo do subconsciente ao extremo do superconsciente, gerando, na oscilação entre estes dois termos, o terceiro componente da trindade: o consciente. Dissemos que esta é a zona do trabalho. Isto significa que representa a zona de vibração, enquanto as outras duas representam, relativamente à posição do indivíduo, as zonas de descanso. Portanto, dizer que o consciente com a evolução tende a passar do nível inferior a um superior, é o mesmo que dizer que o estado cinético se desloca para estados evolutivos mais elevados, isto é, que o movimento toma ritmo vibratório cada vez em mais alta freqüência e ondas cada vez mais curtas. O mesmo fenômeno aqui observado com terminologia e de um ponto de vista psicológico, pode ser observado, como nos últimos capítulos antecedentes, como vibração e fenômeno dinâmico, de um ponto de vista cinético. A mesma verdade pode ser traduzida em várias formas segundo a posição e perspectiva escolhida pelo observador. Se, para comodidade de estudo, é necessário isolar os vários aspetos, na realidade eles coexistem unidos.
Encontramos, portanto, os vários tipos humanos, do extremo involuído ao extremo hiper-evoluído, distribuídos por todas as alturas na escala da evolução em tantas posições, onde altura, profundidade e os vários estados psicológicos e vibratórios que lhes correspondem são relativos a cada personalidade. O que para alguns é superconsciente, personalidade futura, embrional, ainda a ser acabada, para outros é consciente em formação ou mesmo subconsciente, isto é, personalidade instintiva já construída. O que para o involuído é futuro, para o evoluído é passado. Todo indivíduo caminha, seja qual for sua posição, para um plano relativamente superior ao que ocupa. As zonas de subconsciente, consciente e superconsciente são, portanto, relativas ao desenvolvimento do indivíduo e podem ocupar diferentes graus ria escala da evolução. Todo o sistema trifásico da personalidade se movimenta e avança pelo condutor de suas várias zonas, tendo à frente o superconsciente, no centro o consciente e no fim o subconsciente. O sistema é único, igual para todos, mas a sua posição é, para todos, relativa, isto é, em graus evolutivos diversos de tal modo que não possa dar a estes termos senão valor relativo. O que, comumente, lhe damos aqui, é em relação a um tipo médio situado com o consciente no plano da razão, com o subconsciente no plano dos instintos e com o superconsciente no plano da intuição e do espírito. Expomos aqui o sistema, a estrutura da personalidade, e não sua posição evolutiva que muda para cada caso em particular. Neste sistema o ego consciente é dado por uma zona lúcida, de operações, situada no centro de duas zonas obscuras, e o todo não fica estático, mas em movimento ascensional. O ego percebe a própria existência unicamente na zona consciente do sistema que tem alturas evolutivas diversas, segundo o desenvolvimento individual. Segundo o mesmo, cada um explora, torna, elabora e assimila e, assim, segundo sua posição e natureza, agindo através do esquema geral do fenômeno, constrói a própria individualidade segundo particularidades especiais. A captação, o registro e o armazenamento das experiências pode ser feito em alturas diversas segundo a escala evolutiva, mas o processo, o método, é idêntico para todos, o resultado é sempre ascensão, autoconstrução, progresso da fase evolutiva subconsciente, à fase consciente e superconsciente.
Terminado este conceito da relatividade das posições e do movimento do sistema, completemos agora o exame de seu aspecto estático com outras comparações. Terminado o problema da conquista voltemos ao da estrutura da personalidade. Estabelecemos, até aqui, as seguintes relações do subconsciente, consciente e superconsciente com a besta, o homem e o super-homem; com o instinto, a razão e a intuição; com o armazenamento, a assimilação e a captação; com o ato terminado, o atual, e o futuro; com a recordação, a ação, e o pressentimento; com o passado, o presente e o porvir; com a cauda, o centro e a cabeça no caminho da evolução. Tudo isto ainda não é suficiente. Como e onde se localizam as sedes destas diversas funções? Onde são depositadas, elaboradas, captadas as respectivas anotações? Ligamo-nos aqui aos conceitos dos últimos capítulos. A sede do subconsciente, seus paralelos e atividades está na estrutura celular, nos tecidos, na carne da raça, zona de animalidades, de instintos, de memória biológica. As experiências primordiais e fundamentais da vida, fixaram-se em automatismos nestas profundas e antigas estratificações biológicas, comuns ao homem e ao animal. Freqüentemente, para o homem, este é o seu passado, a zona mais profunda, situada no extremo da evolução. A sede do consciente está no sistema celular escolhido, selecionado, no ápice da evolução animal, aperfeiçoada até às portas do espírito, com funções psíquicas: o sistema nervo-cerebral, zona humana, da razão, zona dos mais recentes feitos biológicos ainda não fixados em automatismos, ainda em processo de formação, fase central da evolução do ego, fase de elaboração e livre escolha. Obedece-se a instintos inconscientes da carne, mas raciocina-se com o cérebro. Freqüentemente este é o presente do homem. A sede do superconsciente está além da parte material, sensitiva, do organismo físico, situada no imponderável, no espírito. Vimos no cap. XXVI (“A Música – A Vida Dupla), deste volume, suas relações com o sistema cerebral e que aqui a vibração, separando-se de seu nervo transmissor torna-se radiante, livre, de ondas curtas e alta freqüência Estas qualidades ainda não conseguidas no plano inferior, permitem ao superconsciente a transmissão telepática, a captação noúrica, a visão sintética da verdade, isto é, o uso natural e normal do método intuitivo, próprio do superconsciente. Tudo isto representa a zona super-humana, o mundo do evoluído, o reino do espírito, a fase mais elevada da vida humana, que o homem laboriosamente vai conquistando, formando sua estrutura espiritual, fase situada acima de nossa evolução humana. Para a maioria, isto é futuro, exceção Raciocina-se com o cérebro, mas unicamente o espírito é capaz de intuição.
Para o homem comum a zona lúcida, a fase atual, é a cerebral. Normalmente esta é a sede consciente do ego. Este se estende pelas duas outras zonas, inconscientemente porém. O ego cerebral e consciente acha-se no centro da personalidade, entre seus dois extremos contíguos, o subconsciente e o superconsciente; está em contato, em comunicação recíproca, beneficiando-se pelo instinto e intuição, relativamente ao seu desenvolvimento e potência. Todas as correntes da personalidade trifásica, de qualquer plano em que estejam, reencontram-se no ego cerebral, central, consciente, unindo-se no campo da consciência às duas zonas laterais extremas, fazendo convergir para aí as próprias aquisições por que são representadas. Conhecemos suas vozes, distinguimos três fontes e três correntes: a voz do instinto, a voz da razão e a voz da consciência. A primeira e a última vêm de longe, são produtos-sínteses; a segunda é presente, atual, analítica.
A razão apreende, controla, discute. Torna-se, às vezes, campo de batalha entre as diversas correntes, quando divergem entre si ou da razão e se revela difícil a harmonização. Nasce, então, a interferência das vibrações e a luta se estabelece entre os vários impulsos. São por demais conhecidas essas tempestades íntimas. Porém, especialmente no evoluído, de superconsciente mais desenvolvido, se desencadeia com mais violência a guerra entre o superconsciente e o subconsciente, entre o passado e o futuro e ao contrário, entre espírito e matéria; entre os dois extremos da evolução que se batem pela posse da consciência, como campo de realizações.
O subconsciente contém o patrimônio adquirido, coletivo, as reservas da raça, o decálogo da vida animal, inscrito na carne e no sangue. A célula conhece-o muito bem, graças à repetição milenar que ratificou as experiências originárias. Esse é o alicerce do edifício biológico, o ponto de partida da evolução humana. A célula, na orientação a que obedecem seus íntimos movimentos atômicos traz inscrita a sua longa experiência; e, por inércia, não deixa esgotarem-se os impulsos recebidos do ambiente e agora transformados em conhecimento por si mesma adquirido. E desse modo continua a emitir correntes de ordem, aviso, consentimento, proibição. A razão apreende, procura tomar consciência e quase sempre, embora não compreenda, obedece a essa sabedoria mais profunda, porque a reconhece verdadeira e também porque, embora sepultada nas profundezas da célula e nas trevas do subconsciente, essa memória biológica continua participando do seu ego. O subconsciente, que registrou tudo e se recorda de tudo, está sempre por detrás de nós para guiar-nos, executa, por nós, automaticamente, inúmeras atividades e resolve, em nosso lugar, grande quantidade de problemas, sem perturbar nem agravar o consciente. Simples divisão de trabalho. Representando o patrimônio comum e a sabedoria da vida, o subconsciente diz respeito à hereditariedade fisiológica com que se transmite. A célula constitui-lhe, de fato, a sede e o canal de transmissão. O subconsciente contém o capital hereditário que mais do que ao indivíduo enquanto indivíduo pertence à vida. É riqueza que recebemos ao nascer, como bagagem necessária para percorrermos o pedaço de caminho representado por uma existência. O patrimônio individual, diferenciado, que não se transmite por hereditariedade fisiológica celular, mas, como vimos, por hereditariedade espiritual, está situado no espírito. Vivendo como corpo, acumulamos o primeiro desses patrimônios e, vivendo como espírito, o segundo. Mas bem poucos possuem esse patrimônio individual; a maior parte da humanidade encontra-se ainda nos alicerces de sua construção espiritual, que no atual estado evolutivo, não pode ser o resultado de esforço coletivo, e sim individual. O superconsciente é produto pessoal diferenciado e, por isso, não obedece à hereditariedade comum que se processa através dos caminhos da carne.
Podemos, agora, concluir a exposição do problema da hereditariedade, de que já cuidamos no final do capitulo anterior. A vida é bipolar e, por isso, uma hereditariedade adequada garante a continuidade de cada um de seus dois extremos: a fisiológica responsabiliza-se pela transmissão do subconsciente; a espiritual pela transmissão do patrimônio do superconsciente. Portanto, duas vias, dois canais abertos, um material e outro imaterial, ambos adaptados à transmissão dos resultados das experiências de dois organismos diversos, as do corpo e as do espírito. (Cf. as palavras de Cristo a Nicodemos: “O que se gerou da carne é carne; o que nasce do espírito é espírito": João, 3:6) Do subconsciente e do superconsciente, os dois diferentes patrimônios, acumulados no passado que vivemos em ambas as formas, e que, nos dois campos herdamos de nós mesmos, emergem no consciente, oferecendo-lhe suas úteis produções. A carne adquiriu experiência própria e repete-a. O espírito adquiriu a sua e ofereceu-a. A criança desenvolve-se plasmada por ambas as forças, cujo desencadeamento ela mesma preparou, cresce debaixo dessa dupla orientação, e influência, útil e necessária em ambas as formas. Trata-se de simples restituição, é propriedade nossa que nos volta às mãos e nos diz respeito, porque esses dois patrimônios, na medida em que existem, nós os conseguimos com nosso trabalho. Cada um dos dois transmite a si mesmo e, em seguida, age como força, mas operando cada qual no seu próprio campo; cada um constitui impulso que, por força da lei de causalidade, se liga ao próprio passado de que constitui conseqüência e continuação e se imprime no eu atual, plasmando-lhe o corpo e o espírito. Esse impulso representa a incorporação já acabada, a zona já formada, e por isso fatal, de nosso livre destino (cf. cap. XXIV: "Nosso Livre Destino", deste volume). E como a memória biológica reconstitui o organismo físico, repetindo a história celular, continuada agora através da hereditariedade biológica, assim também o espírito reconstrói a personalidade moral, repetindo-lhe a história, agora continuada através da hereditariedade espiritual. O espírito, amparando-se nos instintos do subconsciente delegados à vida animal, plasma a criança, compondo-lhe a personalidade e, quase sem que ele o perceba, atingindo-lhe o cérebro (o consciente), pelas vias imateriais (que sabemos serem conscientes no evoluído) de percepção interior inversa (cf. cap. XXVI: "A música - A Vida Dupla”, deste volume).
O corpo, o cérebro e o espírito constituem, pois, as sedes da personalidade trifásica (subconsciente, consciente e superconsciente), nas suas três funções: instinto, razão e intuição. A personalidade humana, una e trina como o universo, possui, portanto, o organismo instintivo da besta, o cérebro raciocinante do homem, o espírito intuitivo do super-homem. Três zonas, três funções, três sedes. A proporção que evoluímos, o domínio da intuição torna-se, como vimos, o domínio da razão e, em seguida, o domínio do instinto. As três zonas representam, também, três fases de acréscimo. Quanto mais progredimos, porém, tanto mais a função é precária e a forma imatura. Se no alto vemos o mais evoluído, vemos também o mais novo e menos completo. A elevação e a estabilidade são inversamente proporcionais. A intuição, mais elevada e mais ampla, vive em equilíbrio mais instável que qualquer outro. A razão, mais restrita e terra a terra, fica bem mais embaixo, mas se mostra muito mais sólida e segura e, exatamente por isso, é muito mais adequada ao controle da intuição. O instinto fica no ponto mais baixo possível, por ser o de conteúdo mais elementar e limitado; no entanto, revela-se o mais garantido pela estabilidade de equilíbrios e segurança de experiências. Três graus de elevação e, em razão inversa, três graus de solidez. Assim, o animal, servido pelo instinto, é, no seu plano, o mais seguro e perfeito, embora menos adiantado do ponto de vista da evolução e mais limitado quanto ao domínio; seu instinto é mais seguro e perfeito do que a discussão racional, perto dele insegura e oscilante; esta, por sua vez, comparada com os arriscados vôos da intuição, mostra-se muito mais positiva e garantida. É natural, porém, a instabilidade e o perigo aumentarem, à medida que deixamos de rastejar como vermes e começamos a marchar e a voar. Toda forma de atividade tem lugar apropriado e função determinada. A vida não se arrisca, senão em excepcionais emersões, às grandes altitudes. Quer ficar tranqüila, e fica mesmo, em plena massa, nas suas bases mesmas.
Ainda uma observação. Não vá o leitor surpreender-se, porque, nestas páginas, não estamos mais formulando hipóteses, mas fazendo contínuas afirmações. Isso depende dos seguintes fatos: por brevidade, estamos dando aqui apenas as conclusões; por querermos que este livro seja construtivo, deixamos de lado toda discussão, como elemento negativo; tudo isso, enfim, resulta do método intuitivo adotado neste trabalho. A dúvida, a hipótese, a espera da confirmação espiritual e o horror às conclusões pertencem ao método racional; o método intuitivo, que nos leva à obtenção desses conceitos, tem características completamente diferentes. A intuição por sua própria natureza, vê, não discute, aceita as conclusões como estado de fato, não analisa, para atingi-las, não duvida, não experimenta; apenas sente. Por isso, diz, naturalmente: "é"; não diz: "poderia ser" ou "suponhamos que seja". A verdade surge-lhe já completa e não em estado de elaboração. Chegamos a esses conceitos graças a visões interiores, que não são dirigidas do cérebro para fora, graças a observações sensoriais, mas do cérebro para dentro, por meio de audição espiritual. Aqui a personalidade humana se nos apresenta funcionando como acima dissemos e aquelas afirmações encontram aplicação direta. Eis um primeiro controle experimental das teorias acima expostas, uma sua correspondência à realidade, pelo menos neste caso. Reconhecemos ser justo que, em seguida, em um segundo estágio, a razão analítica graças a seu método positivo se apodere dessas sínteses intuitivas, para avaliá-las e controlá-las, por meio da lógica, da observação e da experiência, e relacioná-las com os conhecimentos atuais Isso não significa, porém, não tenhamos já feito aqui um trabalho de coordenação. Esses conceitos, a que, como sempre acontece com o método intuitivo, chegamos tempestuosamente, intermitentemente, rebeldes a todo registro metódico, obedientes a leis diferentes das leis da concatenação lógica e da conexão de idéias que, por afinidade vibratória (fenômeno da ressonância), se atraem; esses conceitos sintéticos, mas racionalmente indisciplinados, aqui já foram reprimidos e, apenas roubados ao superconsciente, coordenados e enquadrados sistematicamente no consciente. Eliminadas irregularidade e intermitência, o relâmpago torna-se luz regulada e contínua, permitindo que se veja o caminho. Este domínio da intuição dinâmica e rebelde num concatenamento racional é um dos maiores esforços necessários à exploração do super-normal, sendo todavia disciplina imprescindível sem a qual tornar-se-ia inútil o método intuitivo. De outro lado tal método permite a compreensão contínua e progressiva dos problemas por captações sucessivas como o estão demonstrando estes "Comentários à Grande Síntese", pelos quais pode-se provar que tal livro não tem propriamente um fim, podendo ser desenvolvido ad infinitum[17]. Se os esquemas fundamentais então expostos são simples e unitários, torna-se agora ilimitado o número de combinações possíveis entre as posições da forma. Realmente são esses os caminhos da natureza seguidos por nós: chegar por meios extremamente simples ao infinitamente complexo, partindo de princípios elementares ou temas fundamentais, repetindo-os em alturas, dimensões e combinações diversas. Dualismo universal. A criação, num pólo, simples, noutro, complexa, centralmente unitária e de incomensurável multiplicidade na periferia, imutável no absoluto e instável no relativo, é, ao mesmo tempo, perfeita e imperfeita; se por um lado se inclina a formas e existências efêmeras é assinaladamente eterna em seus princípios vitais. Os dois pólos se pressupõem e se subentendem. Segundo a lei do dualismo, para o princípio universal da oposição dos contrários, a forma transitória do lado matéria presume e impõe, do lado espírito, a presença de uma vida eterna correspondente.
Pelo lado forma ou matéria uma das características do ser é a caducidade, a necessidade, portanto, de continua troca para sobreviver, de ininterrupto renovamento para suprir, com as entradas, as perdas e saídas, tornando-se a vida uma corrente onde é necessária e implícita a presença de um dinamismo animador e dirigente, reencontrando tudo na forma sem o que esta não se pode suster. O limite desse complemento, que contrabalança o binômio, e o equilibra com um elemento e impulso inverso, é o espírito. Ele realiza precisamente a reparação contínua, sem a qual a caducidade não seria renovamento vital, mas morte. Sem a presença ativa de tal espírito encarregado da contínua manutenção, isto é, encarregado de tudo alimentar, sustentar e reparar interiormente, onde é seu lugar, nada se manteria, nada haveria de sobreviver. Tal caducidade da vida é a sua fraqueza, o seu perigo, a sua lida. O mal, a dor, a morte estão continuamente em choque. Tudo se decompõe e é sempre necessário reconstruir. O ritmo do fenômeno vital acha-se ligado ao ritmo fatal do tempo, dentro do qual, se abandonado a si mesmo, se extingue e morre. As contínuas relações que o sustêm não podem sofrer intermitências. Se pára, vem a morte. A caducidade, fraqueza congênita da vida, subentende e impõe o movimento ininterrupto. Esta é sua condenação: o fragmentar-se no relativo, de única tornar-se múltipla, o cair do eterno na corrupção, do infinito na prisão do limite, na necessidade de reconstruir, com o cansaço de um condenado e o sofrimento de um decaído, tudo o que desmoronou, e que permanece como um sonho, um lamento, um ideal. Esta reconstrução chama-se evolução e todo trabalho necessário à complexa estrutura da personalidade representa o esforço constante que a ela está ligado.
O mesmo princípio universal do dualismo, estabelece que, estando num pólo do sistema a divergência, no outro esteja, por compensação, a concórdia, ficando a vida condenada a constantes rupturas e recomposições; a isolar-se no egoísmo e a dedicar-se ao acoplamento; a separar-se no individualismo e a reajustar-se na vida social. A própria personalidade, em seus extremos, subconsciente e superconsciente, está dividida, mas para o centro, o consciente, convergem todas as correntes, reunificando-as no ego. A mesma personalidade se divide em dois pólos, pai e mãe, espírito e matéria; nela porém, os mesmos se reencontram, fundindo-se numa única individualidade. Para cada ser, a existência consiste no mesmo processo de reconstrução da antiga síntese. O múltiplo deve retornar à unidade. Eis a constante labuta da vida, a essência da evolução: o sofrimento, tendo, porém, como meta a felicidade. A lei de dualidade é imprescindível que, se num extremo da involução o limite é a dor, no extremo oposto da evolução, o limite seja, pelo contrário, a felicidade. Assim a dor é, a um tempo, redenção, reatualização, reconquista, e tem a função reconstrutiva do progresso, que culmina em triunfo. Assim nos ensina a lei do sistema.
O homem nasce incompleto. É por todos os lados molestado por privações, sempre vulnerável e sensível, num ambiente indiferente ao seu dano, à sua dor. O sistema supõe a vida como um campo de provas. As investidas são ininterruptas mas a sensibilidade é proporcionada às provas e as provas à sensibilidade. Da reação recíproca nasceu a mútua educação, uma simbiose de forças que, nas contínuas relações e trocas se contrabalançam. O ego e seu ambiente se conhecem, um está disposto a se encontrar com o outro demonstrando profunda presciência de suas mútuas qualidades. São as harmonias da vida. Até a luta tem suas harmonias sem as quais seria absolutamente impossível qualquer aproximação ou equilíbrio. Luta e harmonia se subentendem; se a primeira está num extremo do binômio, a segunda deve necessariamente ser de natureza oposta e situar-se no extremo oposto. Se há luta e sofrimento, há também proporção entre resistência e ataque, entre ação e reação. A Lei, portanto, manifesta automaticamente a sua ação de acordo com a sensibilidade do indivíduo, e, proporcionando o tom de voz à sensibilidade, consegue fazer-se ouvida por todos. Quanto mais insensível e surdo o homem, tanto mais forte a Lei grita, tanto mais violentos são seus golpes, tanto mais difíceis suas provações.
O homem é um binômio, dividido em dois entre os extremos de sua personalidade, dividido no sexo, na contradição contida pelo antagonismo de todo pensamento ou ato, na luta que se trava em seu consciente entre subconsciente e superconsciente, na divergência entre seus dois mundos, o interno e o externo. Em contínuo movimento a fim de preencher suas falhas, aflige-se com os desejos de suas qualidades contrárias. Satisfazendo-os vê restabelecer-se a desproporção e descontentamento que o tornam desiludido pela impossibilidade de alcançar a paz proveniente da sua completa satisfação. As duas partes em que se fragmentou a antiga unidade parecem condenadas a perseguir-se mutuamente sem jamais se alcançarem. A meta de chegada se distancia mais e mais ou, se alcançada, reaparece sempre mais longe. O desequilíbrio acelera a corrida, mas conseguida a felicidade do repouso, se restabelece a desproporção e a necessidade de novo movimento para tranqüilizá-lo. A alegria da tarefa cumprida foge sempre. A imperfeição congênita muda-se em contínua necessidade de perfeição. Sublime e terrível condição de sofrimento e felicidade, de escravidão e liberdade, de miséria e triunfo. Negação originária que em si contêm implícitos todos os elementos da afirmação. Condenação de origem levando fatalmente às portas do progresso e do resgate. Todo este sofrimento se chama vida.
A divisão da unidade em duas partes, tornando o homem incompleto, faz dele um partidário. Não sabendo ser senão uma parte da verdade, para alcançar o seu complemento na parte oposta, sente necessidade de discutir e lutar. Ele possui a verdade fragmentada, não a verdade na sua unidade totalidade. Seu poder de concepção não sabe ir além; acha-se imerso no particular, no relativo, na contradição. De qualquer lado que esteja, na discussão, sente-se ausente da outra parte e, por isso, sofre e procura indenizar-se. Sob as aparências do antagonismo, expressão da oposição dos termos, deseja e procura aquilo mesmo que é o objeto de seu combate, aparentemente para destruí-lo, mas na verdade para apoderar-se dele, devorá-lo, assimilá-lo, tornando-o parte de si mesmo. Por esta única razão combate, primeiro para que seu adversário, igualmente incompleto e desejoso de completar-se, não o devore, não o assimile; depois porque ele próprio sendo imperfeito é sequioso de aperfeiçoar-se no outro. Eis o que é a vida: o estrugir de uma batalha que é unicamente desejo de amor.
A luta pela vida nasce do dualismo, unilateralidade e privação, havendo sempre atrás do amor o ódio, e atrás do ódio, o amor. Embora cada ser egoisticamente se incline a isolar-se do todo, contínua fazendo parte do todo, e por mais que deseje dominar para impor-se aos outros, na verdade não passa de um pobre que procura completar-se. Reaparece então uma bipolaridade inversa: conquanto o egoísmo seja indispensável à vida do indivíduo, sem altruísmo não pode haver nem fecundidade, nem geração. O primeiro, que parece conservar e acumular, torna-se um fator de separação e destruição; o segundo, que parece dissipar, constrói e une. Todas as possíveis atitudes da vida humana acham-se compreendidas no binômio egoísmo-altruísmo, composto de dois termos contrários que se completam. E todo esforço está compreendido num sistema de equilíbrios que o tornam possível somente dentro dos limites impostos pela Lei e sem possibilidade de causar desordens ao funcionamento universal. Assim, a luta se transforma em elemento de fecundidade e construção; não é, como pode parecer, caos e destruição, mas fator regulado dê evolução. Há compensação e equilíbrio: o eu luta para se assegurar contra tudo e contra todos, mas por lei tem necessidade de outros para unificar-se com a totalidade. Todo elemento está, por Lei, unido ao seu oposto de tal modo que altruísmo e egoísmo, atração e repulsão, impulsos contraditórios, se contrabalançam, se equilibram perfeitamente.
Tudo nasce corroído interiormente por essa autocontradição que cada ser traz em seu íntimo e em seu exterior. Porém, ao mesmo tempo, em si tem o remédio necessário. A própria contradição que supõe extermínio, subentende a construção, tornando-se princípio evolutivo de rejuvenescimento. Portanto não se pode dizer imperfeita uma natureza que traz no íntimo de sua imperfeição tanta beleza, a Lei que, apesar das aparências de desordens e desalinho é a própria substância da ordem e disciplina. É verdade que a natureza é falha, insegura em suas tentativas, sempre cega em frente ao desconhecido, porém, assim como tende a cair e pecar, como é grande seu poder de restauração, e que riqueza de possibilidades! Que variedade de doenças, mas que abundância de remédios! Continuamente perseguida, furtivamente ameaçada a cada passo, a vida prossegue ininterrupta, triunfando de todas as negações. Também aqui, a realidade é bipolar: exteriormente imperfeita, é em seu íntimo, realmente perfeita; corruptível e transitória na forma, é substancialmente incorruptível e eterna. Enquanto tudo ao seu redor se deteriora e acaba, seu interior é uma fonte inexaurível de fecundidade e rejuvenescimento. Em meio à instabilidade do futuro nas formas-efeito, permanece intacta a estabilidade do imutável no princípio-causa. Daí nasce a beleza e a necessidade do movimento. Tudo roda em contínua erosão sem que nada se destrua, tudo é tomado de assalto mas a vida continua ilesa. Do movimento, nasce a grande ilusão, a periferia complexa, mutável, fugidia. Porém só na periferia. Desçamos um pouco abaixo da superfície revolta do oceano e encontraremos a calma. A verdade simples, inalterável, divinamente tranqüila está no centro. Embaraço, instabilidade, incerteza, barulho, desordem, luta, sofrimento, tudo aumenta à proporção que nos distanciamos do centro Quanto mais perto, tanto maior estabilidade, segurança, harmonia, ordem, paz, contentamento. O difícil e múltiplo desorientam, mas no centro se dissolvem em um princípio fácil e unitário onde a direção é evidente. As almas que, afastando-se da vida exterior da matéria e dos sentidos, sabem interiormente aproximar-se de Deus, conhecem por experiência a verdade destas afirmações. O primitivo que vive superficialmente não vê senão desordens, mas quem vai ao fundo da substância encontra a ordem perfeita. Sendo portanto diverso o poder de visão, quem só vê desordem e caos, é negativo e materialista; quem encontra ordem e harmonia é positivo e espiritualista. Para quem olha de fora, como a análise racional e experimental, o universo é um dédalo inextricável de contradições, precipitação cega para a autodestruição, sabedoria incerta e falha, dissipação incontida, construção desconexa, onde as partes não se adaptam, incompleta, corroída pela maldade, pelo cansaço, pela dor, pela morte. Porém tanta imperfeição e corruptibilidade é apenas externa, aparente. Um olhar mais profundo, como a síntese intuitiva, descobre um universo que funciona perfeitamente como desenvolvimento lógico, potência construtiva, sabedoria e segurança de ação, conexão de partes, capacidade de compensação e reparação, enfim, um organismo completo, incorruptível, inexaurível. Somente se soubermos chegar ao centro, isto pode tornar-se evidente. Somente agora pode ser compreendida a oração de A Grande Síntese (cap. LXVII: "A Prece do Viandante"): "Nada posso pedir-te, Senhor, porque na tua Criação tudo é perfeito e justo, até meu sofrimento e minha momentânea imperfeição..." Portanto, o que se procura é a própria adesão à vontade de Deus. A fórmula "pulsate et aperietur vobis"[18], pertence ao plano humano; o "fiat voluntas tua"[19], ao super-humano. De fato, Cristo, no Getsêmani, usou esta última. É esta a diferença da oração do involuído e do evoluído.
Se o involuído sofre sem compreender sua dor e sua função, o evoluído, de superconsciente culto, compreende-as perfeitamente. Exalta-se na luta entre consciente e superconsciente, como na elaboração criadora. Sente-se dividido entre dois extremos, perseguido pelo desejo insaciável de se completar. Os dois extremos de seu ser estão em mundos opostos, o espírito de um lado, o corpo de outro, querendo cada qual dominar tudo sozinho, desencontrando-se no consciente. Que brilho intenso provoca esta batalha! A pátria terrena impõe-se por suas necessidades práticas, mas do íntimo chama com voz possante a longínqua voz do céu. Há olhos insensíveis, mudos, vazios, sem alma, inertes e silenciosos. Há olhos cheios de tempestades, onde se vê lutarem as forças do espírito, onde se sente a atmosfera vibrante dos grandes esforços construtivos, olhos abertos também para outro lado da vida, revelando-nos sua complexidade, falando de coisas misteriosas e longínquas, ultrapassando os limites, enxergando até no abismo do universo interior de onde emergem, resplandecendo da luz que dele emana. Falam-nos de outros mundos que viram, trazendo-nos recordações em seus olhares, esses olhos que choraram e pediram, deixando transparecer neste mundo a imagem neles impressa da divindade. Se soubermos entendê-los teremos o testemunho da outra realidade distante que foge aos sentidos e não se manifesta neste mundo.
Fragmentou-se a personalidade, porém não se quebrou por completo. Foi lançada na discórdia, mas pode se reconstituir na harmonia. Perdeu sua plenitude, está condenada a viver à custa de ininterruptas substituições, ligada às vicissitudes da vida e da morte que a impelem além ou aquém do limite; contudo, sua ascensão é lei fatal; fatalidade de culpa, fatalidade de evolução, inevitável e necessária conquista de felicidade. Se a dor e o esforço são impostos, do mesmo modo seus preciosos frutos. Olhando-se o exterior fica-se pessimista, procurando o íntimo das coisas, a única conclusão possível é o otimismo. A injustiça é aparente, a justiça real. Se a vida é penosa, também a lei de Deus, continuamente se esforça para eliminar as más inclinações, para libertar a luz das sombras, o bem do mal, a alegria da dor, procurando transformar o Getsêmani em glorificação. Através de infinitas oscilações entre um e outro pólo de sua existência, o eu renasce, cicatrizando a grande ferida da separação. Um dia, elevados sempre mais para o Alto, compreenderemos como era necessária a prisão do espírito no corpo, como este irmão menor era instrumento de perfeição, como era inevitável o impacto da matéria inimiga para se fortificar a resistência, instruir-se com a experiência e reconstruir através de provas e dificuldades. Compreenderemos então quanta sabedoria se originou da prisão no tormento da contradição íntima, algemados a um inimigo, rodeados por um ambiente de assaltos e negações. Compreenderemos a utilidade de nos unirmos ao inimigo, completamente imersos na luta incessante, universal e inevitável, destruidora, mas reconstrutiva.
XXIX
S. FRANCISCO NO MONTE ALVERNE (1ª PARTE)
Chegamos, finalmente, a estes últimos capítulos, em que o trecho de caminho percorrido neste livro se fecha numa pausa; depois dessa pausa, talvez continue mais para adiante. Este novo episódio pára no ponto culminante de sua manifestação, retira-se para o outro extremo da eterna oscilação do ser, mudando para dentro o sentido de seu deslocamento a fim de, após haver narrado e demonstrado, poder atingi-la de novo. De fato, a vida processa por meio desse deslocamento alternado, de dentro para fora e de fora para dentro, as duas fases inversas de todos os atos. A oscilação pendular entre tese e antítese, segundo a qual tudo se move e se equilibra, impõe que a introspecção e a manifestação se sucedam no tempo.
Ao longo de nossa caminhada neste volume, a vastidão dos problemas sociais foi gradativamente diminuindo, à proporção que se aprofundava na complexidade do problema individual; o campo apequenou-se, mas o potencial se elevou. Até mesmo na forma, portanto, este livro reproduz o fenômeno evolutivo, que lhe constitui o problema central. Partimos do problema dos grupos, da questão social coletiva, que por causa da extensão e involução se coloca na base da pirâmide humana, e subimos até o problema dos pouquíssimos evoluídos, à questão individual, que se coloca no vértice dessa pirâmide. Alcançamos, desse modo, alturas a que a massa não pode aspirar, a formas de vida que apenas podem ser atingidas pela excepcional emersão biológica. Completamos, assim, uma oscilação entre os dois extremos da vida humana: o coletivismo e o individualismo. De fato, ao progredir, a história oscila entre o sistema social igualitário e disciplinador de multidões e a exaltação do indivíduo excepcional, autônomo e rebelde, e, graças aos dois extremos contrários, se compensa e se completa. O sistema social, coordenando os elementos necessários, disciplina-os, constrói o indivíduo; da emersão do indivíduo resulta o sistema. Ambos estes termos são necessários e colaboram no mesmo processo biológico de evolução. Agem alternadamente na História e assim equilibram suas funções, no que têm de contraditórias. O progresso alimenta-se nas duas fontes. Agora, depois de havermos tratado dos numerosos problemas das multidões e chegado às bordas do abismo da personalidade, o último passo tem de necessariamente colocar-nos mesmo no ponto culminante da evolução humana, além do qual o espírito se desembaraça da forma corpórea para assumir formas superiores, que por enquanto nem mesmo podem ser concebidas pelo homem comum. Para chegar, porém, a esse ponto devemos percorrer de novo o caminho todo e ir subindo aos poucos, através de vários problemas, esgotando antes de mais nada até mesmo o da personalidade humana. O de que agora vamos tratar representa um de seus casos particulares mais evoluídos e complexos. Trata-se de emersão escolhida entre as mais conspícuas e espirituais, embora não seja nem a única nem tenha apenas esta forma.
Todos obedecem aos impulsos expansionistas do eu. A expansão constitui a primeira e mais evidente expressão vital. Este é o esquema do ser: manifestar-se por meio de individuações sintéticas, resultantes de concentração de forças no eu, mas subordinadas a inverso período de descentralização, por força do qual a personalidade humana se manifesta como sistema expansionista. Desse modo, o binômio se completa e os impulsos se equilibram. Mas, para a maioria, essa expansão se dá horizontalmente, em superfície, e verticalmente, em altura, se se trata de emersão biológica. A expansão do tipo normal dirige-se à posse, que, por reciprocidade, significa sujeição; a expansão do super-normal se dirige para a liberação e isso quer dizer domínio. O normal, inexperto, vítima da ilusão, tenta dominar, mas acaba sendo dominado, procura libertar-se e acaba agrilhoando-se. Conhece apenas a expansão terrena e, por isso, mostra-se avidíssimo, como hoje acontece, de munir-se de energia, necessária para aumentar seu raio de ação em superfície e sua capacidade de ação em profundidade, de modo a que a afirmação de si mesmo atinja a matéria o mais extensa e profundamente possível. Mas, desse modo, não toma conhecimento da expansão vertical, que lhe escapa à percepção e com ela a conquista do volume, quer dizer, de uma dimensão superior. As duas atitudes em face da vida correspondem a duas posições e a duas concepções totalmente diversas. O primeiro tipo revela-se muito pequeno, espiritualmente falando, para que. não possa alojar-se comodamente na pequenina casa do corpo. Sua única ambição consiste em ampliá-la, de modo a construir para si mesmo prisão cada vez mais bela e vasta e a anexar-lhe todas aquelas dependências do corpo chamadas posse, riquezas, honras, poder. O evoluído revela-se muito desenvolvido espiritualmente para que não se sinta sufocar no ambiente terrestre. Prova a sensação que sentiria um animal transformado em planta. Com efeito, a vida física, se a compararmos com a ilimitada liberdade de movimentos do espírito, poderá parecer, a quem já a experimentou, como a imobilidade da árvore comparada com a agilidade dos animais. O evoluído, prestes a sair da crisálida terrena, e que já saboreou a vida em dimensões super-espaciais e super-temporais, sente de fato os grilhões do corpo e do limite imposto, nas dimensões exatas, ao plano evolutivo da matéria. Sente a angústia da vida terrena, tolera-a como expiação ou missão, não espontaneamente, mas por dever; seu íntimo impulso expansionista, porém, segue rumo vertical, não tem em vista a ampliação e o enfraquecimento da prisão, mas liberta-se dela. Não há outro sistema sério para resolver as dores da vida. Descobriu os truques da ilusão e não se deixa mais iludir. Já sabe que os domínios humanos, na realidade, não passam de servidão e, por isso, não se dispõe a consegui-los mais; reconhece serem eles necessários para os primitivos, como meio de experimentação, compreende-lhes a função nesse plano; não pode, porém, aceitá-lo, pois executa trabalho completamente diferente. É justo que, de acordo com sua capacidade, cada um maneje na vida os instrumentos a que mais se adapte. Quem sabe, porém, dá a cada um deles o valor que merecer. Assim, o evoluído recusa uma fingida extensão de domínio, que para ele se resolve em mentira, pois em substância é, isso sim, aumento de escravidão; assim, repele as miragens que o ligam aos grilhões da posse, torna-se o mais possível independente de tudo e de todos e volta as costas a todas as conhecidas lisonjas da vida. Não faz questão de superioridade, mas de maturidade. Cada um de nós exerce a função exata no seu plano, e está no lugar certo. Mas também está na lei de justiça e equilíbrio que todos os que aprenderam a desempenhar funções mais elevadas devem ir exercê-las onde isso se torne possível, quer dizer, em outros mundos, mais adiantados e mais adequados. A natureza, econômica como é, conhece muito bem e, por isso, não desperdiça os seus valores; o funcionamento orgânico do universo e a grande marcha evolutiva não podem parar; a ascese, depois de realizada intimamente, imp5e inexoráveis mudanças, inclusive à forma. O ciclo deve continuar na fase seguinte, o fruto maduro deve destacar-se da árvore, o homem evoluído deve destacar-se da humanidade. Por mais que, por bondade, humildade, ou amor, se dedique a seus semelhantes, o evoluído é irresistivelmente impelido, cada vez mais para cima, no aflitivo turbilhão da vida.
Fechemos o pedaço de caminho percorrido neste livro, contemplando esse momento sublime através de um. caso excelso em que um tipo de personalidade madura, foge, como se fora um projétil, do campo das atrações terrestres e se atira no espaço infinito. O fruto, elaborado e amadurecido no ponto mais alto das ascensões biológicas, o produto mais bem acabado da vida humana, destaca-se da árvore que o produziu. Bem próximo da morte, em que ele ressurge, no limiar de vida muito mais ampla, veremos um ente, que, embora pareça, não é mais humano, nascer para a realidade iminente de um mundo superior que se abre diante dele. Revela-se-lhe ele como supremo lampejo espiritual sobre o tripúdio de paradisíacas sensações interiores. Esse mundo constitui o céu de Cristo; o ser, que, embora pareça, já não e mais humano, foi Francisco de Assis; o momento sublime, da derradeira ruptura das órbitas terrenas e do lançamento no infinito, se passou, num incêndio de luz e amor, nos cimos do Monte Alverne.
Relatemos a singela história dos Fioretti, acrescentando à citada no volume Ascese Mística (Cap. XV - Segunda Parte) a dos precedentes do maravilhoso acontecimento aproximava-se a festa da Cruz de setembro; certa noite, na hora em que se costuma rezar as matinas, frei Leão foi ter com São Francisco; e, tendo dito da cabeceira da ponte, como se costumava, Domine, labia mea aperies[20], São Francisco não lhe respondeu; frei Leão não voltou para trás, como São Francisco lhe ordenara; mas, com boa e santa intenção, atravessou a ponte, entrou-lhe devagar na cela e, não o encontrando, supôs estivesse ele na floresta, ou finalmente, entregue à oração em algum lugar; saiu e, à luz do luar, foi procurando-o cuidadosamente na floresta. Finalmente, ouviu a voz de São Francisco e, aproximando-se, viu-o de joelhos e com o rosto e as mãos voltados para o céu; e com grande fervor perguntava: Quem sois, ó Deus, dulcíssimo senhor meu? E quem sou eu, vosso vilíssimo servo? E repetia sempre as mesmas palavras e não dizia mais nada. For isso, frei Leão ficou muito admirado, levantou os olhos e fitou o céu; e viu vir descendo belíssimo e esplêndido facho de fogo, que pousou sobre o corpo de São Francisco; e da chama ouvia sair uma voz que falava com São Francisco; mas frei Leão não distinguia as palavras. Quando viu isso, julgando-se indigno de estar assim tão perto daquele santo lugar, onde se dava aquela admirável aparição, e, além disso, temendo ofender a São Francisco e perturbar-lhe a consolação, caso São Francisco lhe percebesse a presença, afastou-se silenciosamente e, ficando de longe, esperava ver o fim de tudo aquilo. Olhando atentamente, viu São Francisco estender três vezes as mãos na direção da flama: finalmente, depois de grande espaço de tempo, viu a chama voltar para o céu. Então, mexeu-se e São Francisco percebeu-lhe a presença, por causa do barulho de seus pés esmagando folhas, e disse-lhe que o esperasse e não se movesse do lugar. Então, frei Leão, obediente, ficou parado e esperou-o... São Francisco, aproximando-se, perguntou-lhe: Quem és? Frei Leão, tremendo, respondeu: Sou frei Leão, meu pai! E São Francisco lhe disse: Por que vieste até aqui, frei carneirinho? Não te disse eu que não me andasses espionando? Diz-me, em nome da santa obediência, se viste ou ouviste alguma coisa. Frei Leão respondeu: Pai, ouvi-te falar e dizer muitas vezes: Quem sois, é dulcíssimo Deus meu? E que sou eu, verme vilíssimo e inútil servo vosso? Em seguida, lhe pede devotamente lhe explique as palavras que não havia compreendido. Então, vendo São Francisco que Deus concedera ao humilde frei Leão, por sua simplicidade e pureza, a graça de contemplar algumas coisas, concordou em revelar-lhe e expor-lhe o que ele pedira; e falou assim:... Naquela flama que viste estava Deus, falando-me sob aquela mesma aparência com que outrora falara a Moisés... Mas, toma cuidado, não andes espionando-me por aí e volta para a tua cela, com a bênção de Deus e toma bem conta de mim: pois dentro de poucos dias Deus fará tão grandes e maravilhosas obras neste mesmo monte que todos ficarão maravilhados; e fará, também, algumas coisas novas, que Ele nunca fez em proveito de criatura alguma deste mundo... Daquele momento e daquele ponto em diante, São Francisco começou a libar e a sentir mais abundantemente o dulçor da divina contemplação e das visitas divinas. Entre elas, uma, logo depois, preparatória da impressão dos Estigmas. Foi assim. Na véspera da festa da Cruz de setembro, estava São Francisco em oração na sua cela, quando o anjo do Senhor lhe apareceu e lhe disse da parte de Deus: Vim confortar-te e recomendar-te que te prepares e te disponhas, humildemente, e com toda a paciência, para receber o que Deus quer fazer em ti. São Francisco respondeu: Estou preparado para suportar com paciência tudo quanto meu senhor queira fazer em mim; e dito isto, o anjo partiu. No dia seguinte, isto é, no dia da Cruz, São Francisco, por ocasião das matinas, de madrugada, se pôs a orar diante da porta da cela, com o rosto voltado para o Nascente; orou, e permanecendo por muito tempo em oração, começou a contemplar devotamente a Paixão de Cristo e sua infinita caridade; tanto cresciam nele o fervor e a devoção que, por amor e compaixão, todo ele se transformava em Jesus. Estando assim inflamado nessa contemplação, nessa manhã mesmo viu descer do céu um serafim com seis resplendentes e flamejantes asas e, voando velozmente, aproximou-se de São Francisco ao ponto de este poder discernir e ver perfeitamente haver nele a imagem dum homem Crucificado; (...) Estando imerso nessa admiração, foi-lhe revelado pela aparição que a Divina Providência lhe proporcionava aquela visão a fim de que compreendesse dever transformar-se, não por martírio corporal, mas incendendo-se mentalmente, em imagem perfeita de Cristo crucificado. Durante essa aparição admirável, todo o Monte Alverne parecia arder em chamas esplêndidas, que, como o sol, iluminava os montes e os vales dos arredores; os pastores, que velavam por ali, vendo o monte em chamas e tantas luzes em torno, ficaram com muito medo, isso de acordo com o que mais tarde eles mesmos contaram aos frades, dizendo-lhes até que as chamas permaneceram sobre o Monte Alverne pelo espaço de uma hora. Assim também, diante da claridade dessa luz, que resplendia nas janelas das estalagens da região, alguns muladeiros se levantaram na Romagna, crendo haver surgido o sol material, e carregaram seus animais: e, tendo-se posto a caminho, viram a referida luz apagar-se e aparecer o sol material. Na aparição serafínica, Cristo manifestou-se e disse a São Francisco algo secreto e sublime, que São Francisco jamais quis revelar a pessoa alguma... Depois de grande espaço de tempo e de colóquio particular, a admirável visão desfez-se, deixando o coração de São Francisco abrasado em vivo fogo de amor divino: e deixou-lhe na carne maravilhosa imagem e estigmas da Paixão de Cristo. Nos pés e nas mãos de São Francisco começaram a surgir os horrendos sinais dos pregos, exatamente como a visão lhe mostrara no corpo de Jesus crucificado, que lhe aparecera sob a forma de serafim; e, assim como as mãos e os pés do serafim apareciam com as marcas dos cravos, também as de São Francisco tinha impressa, nas mãos, nos pés e no lado, a imagem e semelhança de Cristo crucificado. Embora se empenhasse em esconder os gloriosos Estigmas, tão nitidamente impressos em sua carne, a necessidade obrigou-o a escolher frei Leão, o mais simples e puro dos frades, ao qual tudo revelou, deixando-o ver e tocar aquelas santas chagas e enfaixá-las em trapos para mitigar-lhes a dor e receber o sangue que delas saía. Finalmente, tendo São Francisco terminado a quaresma de São Miguel Arcanjo, se dispôs por divina revelação a voltar para Santa Maria dos Anjos, como, juntamente com frei Leão, lhe era conveniente voltar. Assim partiu e desceu o santo monte".
Isto nos contam as “Fioretti”, deixando os acontecimentos envoltos numa atmosfera de lenda e sonho. Que há de objetivo e real nesta narração? O fenômeno aqui é visto de longe, do plano comum da vida humana; do super-normal não se vêem senão efeitos físicos, aquilo que pode ser percebido pelo normal. Não chega até nós senão uma projeção dos fatos nos sentidos. A história depois passou de boca em boca e quem nô-lo narra não o assistiu, nem viu de perto qualquer testemunho; somente frei Leão sabe alguma coisa. Não recebemos senão um pouco de luz vista de longe, através do espaço e do tempo, de reflexo, filtrada pela psicologia dos narradores. Para nos aproximarmos do fenômeno é necessário penetrá-lo, reencontrá-lo cada um por si. Da redução por nós percebida, devemos tentar alcançar o seu esplendor primitivo, revê-lo em sua realidade; devemos não somente observá-lo, mas procurar senti-lo e revivê-lo como realmente aconteceu. Isto é possível pelos caminhos do espírito. O olho normal, que vê o exterior e não sabe penetrar até às realidades espirituais, não percebo senão indícios. Não temos aqui a história do que realmente aconteceu, mas de uma parte desse fenômeno grandioso que pôde se refletir na pequenez do olho comum. Este não poderia perceber com clareza o super-normal, que portanto lhe aparece envolto em névoas de mistério, como algo velado, perdido nas alturas do milagre. Para a comum percepção concreta, o mundo espiritual desaparece no irreal. Mesmo as vidas do Santo narram genericamente, sumariamente este momento, que não só é o ápice de sua perfeição, como o é também de toda a humanidade em sua subida à procura de Deus e do espírito. Momento crucial, decisivo da evolução, libertando o ser da animalidade humana, fuga ao mundo, às suas restrições, ao nosso modo de viver e sentir, para entrar numa fase de vida mais elevada, exaltação do amor até à divindade. O olho normal do historiador não vai além dos efeitos físicos, não penetra a substância, não pode, portanto, dar-nos a realidade destas exceções. A história pára no exterior, sendo-nos de pouca valia. Por isso mesmo não pode dar-nos detalhes de coisas profundas, esfumando-se em lendas. No campo místico, milagroso, fora de nossa realidade, rodeado de luz mas muito distante e irreal, o fenômeno foge à sua percepção, tornando-se inacessível à nossa experiência, à nossa observação objetiva.
Realmente não é nada fácil avizinhar-se a fatos semelhantes. Por momentos parece que o mesmo fenômeno pudicamente se mostra envolto em mistério, porque lhe repugna tomar forma material; parece que lhe seja impossível ou não lhe seja permitido apresentar-se claramente, ao olho humano, sob a luz crua dos sentidos e que é preciso encontrá-lo mais por meio da fé, que por meio da crítica histórica e científica. Sente-se que o profano é justamente desprezado. A própria natureza do fenômeno o exige. Não é permitido ao olho vulgar, além da homenagem que deve prestar à santidade, o direito de penetrar no sagrado retiro de mistério onde se ouve a voz de Deus. Trata-se de coisas altas e sublimes, que neste mundo de matéria e de armas se desfazem, existem e não existem, e, se nos aparecem, procuram e devem se esconder para a própria defesa, prestes a desaparecer no imponderável, horrorizadas pelo contato brutal com a matéria terrena. Estes fenômenos, portanto, não podem aparecer neste mundo em plena luz. A maioria só é possível crer e venerar. Segue-se daí que as mentalidades racionais e cientificas voltam-se para outras coisas, sentindo-se, por tudo isso, autorizadas a classificar o fenômeno entre os fatos da arte, da lenda, do sonho e nada mais, chegando ao extremo de duvidar de sua realidade objetiva, negando tudo materialisticamente.
Os fatos são bem diversos. O fenômeno realmente existiu. Ê racional e cientificamente possível. Para afirmá-lo e demonstrá-lo, como o faremos, é necessário primeiramente tê-lo reconstruído e sentido por meio da intuição e da fé, tê-lo vivido interiormente, no espírito, para reduzi-lo aqui em forma racional e compreensível, porque o fenômeno, em sua profunda realidade, não pode fazer-se sentir ou ser narrado; como percepção direta é incomunicável a espíritos comuns Isto não significa destruí-lo, mas reforçá-lo, já que sua realidade, de outro modo, fugiria, sendo portanto facilmente negada. Achegar-se a ele para melhor compreendê-lo não é irreverência. Assim poderemos analisá-lo e, analisando-o, explicá-lo, defini-lo, mostrando sua realidade objetiva, elevando-o assim a mais elevado significado. Estudando sua estrutura íntima não negamos nem diminuímos sua supernormalidade, antes a confirmamos. O prodígio compreendido, continua sendo prodígio, mesmo tornando-se-nos mais acessível e capaz de imitação. A intuição é compreensão e amor, não destruição; avizinha-nos e não nos afasta desse modo espiritual onde se dão tais fenômenos. Trata-se de fazer sentir o irreal como real, fazendo-o descer das alturas onde se encontra até este nosso mundo racional. E se também esta procura não tiver, por imperfeição de seu instrumento humano, a capacidade de conseguir o escopo desejado, ficará, contudo, como tentativa honesta, feita com fé e em boa-fé, inspirada não por desejos de destruição, mas de construção espiritual.
Entramos no mundo da realidade supersensória imponderável, situada no pólo oposto da realidade sensória e material de nosso mundo terreno. Já falamos de S. Francisco em diferentes fins e sentidos nos volumes As Noúres (Cap. IV) e Ascese Mística (Cap. XV - Segunda Parte). Para podermos nos avizinhar ainda mais a Ele, é necessário nova caminhada da fadiga e dor de onde nasceu o pensamento destas páginas de conclusão. Somente após esta nova maturação, depois de estabelecidos e resolvidos novos quesitos, é possível encarar racionalmente tão complexo problema para o qual convergem tantos outros presumindo outras tantas soluções menores. Podemos pormenorizar mais ainda, aplicando tudo isto a um caso real. Neste trabalho de caráter sobretudo racional e de pesquisa, falamos presentemente ao homem racional em particular, ao homem que não crê e não sente, para fazer que também ele compreenda este raro e incrível fenômeno vivido por S. Francisco no Alverne, seu significado científico, evolutivo e biológico: além disso, para dar a nós mesmos base lógica aos arroubos de fé e afirmações místicas e intuitivas desenvolvidas sobre este argumento em outros volumes. Antes tais fenômenos poderemos não só crer e venerar, chorar e amar, mas também pensar e compreender. O do Alverne tem seu lugar e naturalmente se enquadra, também ele, na filosofia dos fenômenos que vimos desenvolvendo em A Grande Síntese e nesta explanação.
E nestes capítulos conclusivos que se confirmam as teorias precedentes que para aqui convergem recebendo explicação e encontrando aplicação lógica. O cap. XXV, deste volume, sobre o dualismo universal fenomênico distingue duas vidas, exterior e interior, material e espiritual. Trata-se de dois mundos diversamente constituídos. O fenômeno do Alverne pertence ao segundo. Vimos como é individualizado e caracterizado por ritmo próprio, por uma forma de vida. Vida que é expansão para o intimo, introspectiva, intuitiva, ativa, espiritual, incorpórea, desenvolvida como qualidade, evoluída; ritmo de ondas curtas, alta freqüência e potencial, de sintonização noturna, azul, lunar, supersexual e supersensória; tipo biológico solitário, silencioso, sofredor, sensitivo e pacífico, negação do mundo. Tais as características dos fenômenos espirituais entre os quais, embora de nível infinitamente superior, se inclui o fenômeno de Alverne. Segundo a lei do dualismo, estamos no pólo oposto do ritmo e forma de vida material da animalidade humana, cujas características são opostas. O não-ser no mundo da matéria estabelece no espírito o ser do mundo imponderável. Eis o que se nos apresenta atualmente. A visão não é sensória, exterior, mas interior: é contemplação. A vida vegetativa é mortificada por jejuns, renúncia, sofrimentos. O ser vive de vida sutil de notas agudas, penetrante, intensa, poder-se-ia dizer, de alta voltagem, quase imaterializando-se em forma de energia radiante, constituída de ritmo vibratório. A exaltação vital está toda na expansão espiritual. A projeção dinâmica do ser dirige-se para a substância, o absoluto, Deus. A forma, o relativo, as coisas terrenas estão superadas. O tipo biológico já superou a fase da evolução humana, separando-se de nossa forma de existência e alcançando outra mais elevada. O ritmo da vida animal se transformou, através do longo caminho da evolução em ritmo de vida espiritual. O transformismo evolutivo superou a fase humana, alcançando outra superior, mais aproximada à divindade. Eis as características do fenômeno de Alverne e do seu protagonista.
Nossa pesquisa não o destrói; exalta-o. Tudo o que dissemos neste volume mostra-nos como verdadeiramente alcançou o limite supremo da evolução humana, estando aqui em seu verdadeiro lugar, na conclusão deste tratado, no vértice da pirâmide humana, no ponto supremo da evolução. Possui em sua mais legítima forma, embora em relação a seu tipo, as características do evoluído que indicamos como meta dos esforços humanos, como modelo do futuro tipo biológico. Esta conclusão nos mostra S. Francisco neste momento entrando triunfante nos umbrais de um mundo super-humano. Alverne representa precisamente um caso típico do fenômeno final da evolução humana; por isso foi estudado no fim destas considerações. Vemos aqui o esgotamento da vida no plano físico (o organismo consumido pelas penitências), a sua ressurreição no plano espiritual, a extinção do dinamismo animal pela deterioração e a sua ressurreição em forma radiante. Vemos S. Francisco alcançar um estado espiritual que representa o mais alto potencial suportável na fase da evolução humana, seu limite supremo além do qual a forma material se extingue. Chega-se a este estado por etapas, pois a freqüência de vibrações, o aumento de ondas, e a obtenção de potencial elevado progridem paralelamente, desde o pensamento concreto que não sabe existir senão se materializando em ação, até as ondas cerebrais do pensamento simples e comum, e sucessivamente ao pensamento abstrato, à intuição do gênio, à oração sempre mais elevada, ao êxtase e união espiritual com Deus. Trata-se de ondas cada vez mais rápidas, portanto, mais penetrantes, mais poderosas, mais imateriais. Por fim, o espírito consegue a forma radiante, imaterializada, independente da forma corporal.
O enfraquecimento do organismo age, no presente caso, como revelador da personalidade espiritual. As leis da fome e do amor (cf. História de um Homem, cap. XXIII: "O Evangelho e o Mundo") já estão superadas. O amor, por fim, se desmaterializou com funções puramente espirituais (cf. A Grande Síntese, cap. LXXXII - "A Evolução do Amor"). Para aqui convergem, e aqui se aplicam as teorias expostas anteriormente. A dor, transformada em perfeita alegria, cumpriu toda sua função criadora e é parte integrante do fenômeno de transumanização do Santo. Acham-se fechadas as portas do vício, abrem-se as portas da virtude, e o ser, impelido e guiado pela renúncia, corre para elas a expandir-se. O fruto do martírio já está maduro; o espírito afinal, depois de tantas lutas com a carne, triunfa; a vida, outrora mortificada, ressurge mais intensa. O processo construtivo-destruidor da evolução chega ao ápice de sua fase humana. O fenômeno do Alverne confirma completamente todas as nossas afirmações precedentes. Havermos concebido o fenômeno espiritual como fenômeno igualmente biológico deu-lhe mais força ao mesmo tempo que encontrou para os mesmos uma explicação científica e racional. A maceração dos santos não é mais utopia ou crença, mas processo evolutivo, método de imaterialização e espiritualização, isto é, impulso à degradação biológica que é condição para a ressurreição espiritual no imponderável, elemento indispensável ao aceleramento da freqüência no ritmo da vibração e transformação do potencial impulsionador da evolução. Sua meta é a harmonização na ordem divina; e que harmonização maior com a criação e Deus que a realizava no Alverne? Cessou todo o barulho, a alma fundiu-se em paz na vontade divina, e a criação naquela noite sublime faz eco, em sua ordem material, à ordem espiritual, sintonizando-se e fundindo-se numa única harmonia. Para confirmar quanto dissemos no cap. X, deste volume, - "O Problema do Mal" - vejamos neste caso como, quando o ser chega a um vértice da evolução, alcança relativamente sua autodestruição, depois de cumprir seu dever a serviço e triunfo do bem.
Enquanto o cap. XXV, idem, nos dá elementos para definir e classificar o fenômeno de Alverne e as características biológicas do ser que o vive, o cap. XXVI, idem, sobre o dualismo da vida, dá-nos a estrutura interior e funcional do mesmo fenômeno. Somente confrontando-o em relação à função orgânica do universo é que poderemos compreendê-lo. Trata-se de um fenômeno de sintonização entre o humano, levado pela evolução até às portas do super-humano, e o divino. Para chegar a isto, o ser deve conseguir uma forma de vida de ritmo vibratório tão sutil e poderoso que possa penetrar no âmago das coisas e ai harmonizar-se com a ordem interna da criação. Só o evoluído é capaz de captar e perceber as radiações da realidade interior do espírito. As vias de comunicação não são, portanto, as normais, exteriores, sensórias, mas interiores e imateriais. Precisamente no já citado cap. XXVI sobre o dualismo vital, observamos o mecanismo destas comunicações por via interior com o mundo imaterial do espírito, e mostramos sua realidade tão objetiva quanto a realidade deste nosso mundo material. A percepção, nestes casos, segue canais de volta correspondentes em posição contrária aos canais normais de ida, em um caminho sensório que não vai do interior para o exterior. Neste caso os órgãos sensoriais são sujeitos a vibrações provenientes do interior, nada tirando à existência objetiva da realidade excitante de percepções das quais resulta o fenômeno. E é natural que quanto mais a vida se muda de sua forma material em espiritual, tanto mais nela se normaliza esta nova forma de sensibilidade, pela qual se substitui a percepção fisiológica direta e normal por uma percepção super-normal, inversa e espiritual. O processo é facilitado, como já dissemos, pela deterioração física (degradação biológica) e depende do grau de imaterialização (momento destrutivo) e espiritualização (momento reconstrutivo) alcançado pela evolução. Vimos como, no caso normal, as várias partes de caminho, por percepção visual, são: objeto externo, lente ocular, retina, nervo óptico, cérebro e espírito. Na última etapa a corrente dinâmica deixa qualquer base física, imaterializando-se em forma radiante. Mas vimos que não só o mundo externo mas também o interno e imponderável da personalidade, podem ser geradores de vibrações. O mundo do espírito, que se abre para as alturas da evolução, isto e, em direção à divindade, acha-se deste lado do ser e não do lado sensório exterior. Está dentro de nós, no intimo, dirigido ao cerne das coisas e dos seres, onde está a substância, o absoluto, o imutável, e não a periferia onde se encontra a forma, o relativo, o transitório. A evolução é elaboração levada sempre para o mais profundo do ser, isto é, despertar e viver sempre mais perto de Deus. As percepções e manifestações espirituais vêm daí: a alma as consegue segundo o grau de sutileza e transferência conseguido por seu invólucro material; a realidade excitante, neste caso, está situada não no exterior, mas no interior, e a sensação é o último produto de um esforço inverso ao precedente normal, isto é, como dissemos, de uma inversa percepção espiritual super-normal. Os termos deste caminho inverso percorrido são: espírito, cérebro, nervo ótico, retina. A fonte da corrente dinâmica excitadora da percepção, não está mais no ambiente material externo, mas no ambiente espiritual interno. Tratando-se de radiações espirituais, não podia estar em outro lugar. A sede natural dos fenômenos espirituais e de sua origem, é precisamente o mundo interior, do espírito, mundo que se abre para a divindade que está em nosso interior, no centro do universo, e não na periferia do ser. Somente o involuído, incapaz de sentir uma realidade diferente de seu mundo físico pode crer que estas realidades sejam inconscientes e inexistentes, unicamente porque escapam a sua percepção. No entanto para quem consegue sentir profundamente nada há de extraordinário. Não sabem todos que a mesma e solidíssima matéria, em sua essência é imponderável? A ciência já não nos mostrou que logo que penetramos na íntima essência das coisas, tudo se imaterializa? Imaterializar-se significa espiritualizar-se, passar da forma transitória à eterna substância, da ilusão à realidade, do relativo ao absoluto, o que é o mesmo que caminhar para Deus.
Eis, portanto, como aconteceu o fenômeno do Alverne. O dinamismo originário é radiante, movido por estados vibratórios de substância imaterial adequada ao mundo espiritual. O cérebro capta e registra, como se fora receptor radiofônico, esse dinamismo transmitido sem fio. Assim, a realidade espiritual se concretiza em imagem que, através do nervo ótico, é conduzida à retina e gera a percepção ótica. Obtém-se, portanto, sob forma sensória, a equivalente expressão do imponderável, de outro modo impossível de traduzir em termos de sensação. Observando os olhos do indivíduo inspirado (os de T. Neumann, por exemplo), sentimos que, apagados para o mundo, não vêm coisa alguma da realidade exterior, mas contemplam, como verdadeiro vidente, vaga e profunda realidade. Já expusemos os princípios do fenômeno e, até mesmo, já os aplicamos. O olho, de fato, registra uma projeção, com resultados visuais, não oriundos, porém, de realidade externa, mas de realidade interna. natural que os fenômenos espirituais, evolutivamente mais elevados, não possam ter sede e origem na periferia, no exterior, na forma, que é menos evoluída, mas apenas no centro, na parte de dentro, na substância; é, também natural que, por força do principio de dualidade, esses fenômenos se transmitem de maneira inversa da dos fenômenos materiais. Não se trata de alucinação nem de ilusão ótica. Nossos olhos, quando olham para dentro de nós, vêem tão realmente como quando olham para fora. Tudo se resume em saber olhar, em saber sentir as vibrações do mundo espiritual, e, principalmente, em possuir um mundo espiritual dentro de si mesmo. O próprio vácuo interior é que nos leva a acreditar na irrealidade desse mundo. O supranormal é percepção do normal, que por isso lhe nega a existência. Trata-se de um problema de potencial interior, de desenvolvimento espiritual, de refinamento orgânico, de sensibilização conseguida por evolução. Se o fenômeno ocorrido no Monte Alverne constitui caso sublime e excepcional, para alguns temperamentos evoluídos, no entanto, é suscetível de experimentação, embora em grau e sob forma diversos. Mas, torna-se necessário que sejam evoluídos; ora, já vimos que no mundo domina o tipo oposto; além do mais, na terra as opiniões são, em grande parte, elaboradas pelo tipo involuído, para seu uso e consumo. Em face dessa psicologia, ninguém pode sentir, compreender, nem admitir nada disso. E questão de adiantamento evolutivo Necessário se torna seguir e amar essa realidade interior, servir-nos ela de alimento e vivermos em contato estreito. É indispensável sintonizarmo-nos com ela, através das preces, aproximarmo-nos dela por desmaterialização à custa de sofrimento, destruindo em nós a animalidade humana. O fenômeno, que estamos analisando, nos oferece tudo isso em grau elevado. Quando todas essas condições se verificam nesse grau de intensidade e elevação, o fenômeno pode adquirir tal potência que o dinamismo radiante originário não chega apenas a transformar-se em visão, mas em fato objetivo até mesmo no que diz respeito à realidade externa, como o caso, por exemplo, da lesão muscular dos estigmas. Então, a imagem espiritual interior, não só se materializa sob a forma de imagem ótica, mas consegue até mesmo impor-se às leis físicas e orgânicas comuns e a causar, na carne, alterações permanentes das células e tecidos. Já vimos como, relativamente à sua estrutura íntima, a própria célula não passa de movimentos atômicos e cargas elétricas. As formas exteriores constituem apenas a ilusória roupagem, resultado desse dinamismo imaterial. Quando reduzimos os fenômenos materiais e espirituais ao seu denominador comum, quer dizer, à sua estrutura cinética, aí compreendemos facilmente essas concomitâncias e correspondências. Os efeitos verificados no fenômeno do Monte Alverne mostram o elevado grau de potência radiante da fonte transmissora e a enorme capacidade sensitiva do organismo receptor.
O fenômeno é, pois, perfeitamente possível e se verifica de acordo com as qualidades do indivíduo receptor. Quem não as possui não percebe coisíssima alguma. As radiações mais poderosas podem estar-lhe ao lado e, mesmo, envolvê-lo completamente: ele continua cego e surdo. A visão permanece na estreita dependência do estado e das qualidades individuais. O indivíduo imaturo fica do lado de fora, não é admitido a participar do fenômeno; sua visão exclusivamente exterior, não penetra na intimidade das coisas. Para ver-lhe a intimidade, torna-se necessário, sem dúvida, olhar de dentro de si mesmo para o interior das coisas. Assim, a historieta se limita à verificação dos efeitos, cujas causas3 refugiando-se no miraculoso, lhe escapam inteiramente. Frei Leão é o único que percebe alguma coisa. Vimos, pois, o fenômeno verificar-se no grau permitido pela potência espiritual, pelo desenvolvimento, pela maturidade evolutiva e pela intima sensibilização do sujeito. Tudo dependeu apenas dos seus poderes de percepção nesse campo. Desse modo, a visão só têm os indivíduos maduros; e, portanto, fato estritamente pessoal. Para que outros a percebam torna-se necessário que estejam nas mesmas condições de sintonização e recepção. Apenas proporcionalmente às suas capacidades espirituais é que podem sentir ou parte do fenômeno, como frei Leão, ou coisíssima alguma, como acontece na maioria dos casos. Isso é muito natural, tratando-se, como se trata, de, por meio das vias interiores, registrar formas imateriais que não encontram símile nas formas materiais do mundo exterior. Para perceber as formas materiais faz-se necessário possuir, e em bom estado de funcionamento, os correspondentes órgãos sensoriais; nada mais natural, portanto, que para perceber a realidade espiritual devamos possuir, e absolutamente livres, as vias interiores que nos põem em comunicação com o lado oposto, com o imponderável. O que pertence ao espírito não podemos percebê-lo senão com recursos espirituais, isto é, com processos diametralmente opostos aos nossos processos sensoriais comuns. A projeção da realidade interior (projeção ótica, acústica, tátil, etc.) fica limitada ao sujeito exclusivamente. Quando, porém, produz modificações no estado da matéria, o fenômeno torna-se domínio comum, principalmente se a alteração se revela permanente. Para os demais não resta senão o caminho da fé ou da prova, representado por esse último resultado atingido no seu plano material. Relativamente a isso, observemos que não se trata de materializações ectoplasmáticas, isto é, de novas formações em sentido mediúnico, mas de percepções e projeções do imaterial por vias internas e de transformações operadas na matéria já existente. Os fenômenos sempre se aproveitam da via de menor resistência, que, no caso do evoluído, é exatamente a via interior.
A simpatia levou-nos a escolher S. Francisco, entre tantos outros, como tipo de evoluído, para determo-nos apenas nesse setor particular das formas evolutivas. Mas sempre se trata, sem dúvida, de ponto culminante, de homem que atinge a fase super-humana e, no momento crítico, faz chegar ao nosso mundo, por seu intermédio, reflexos do mundo superior a que ele pertence e que, embora sob tantas formas diversas, representa o futuro da humanidade.
XXX
S. FRANCISCO NO MONTE ALVERNE (2ª PARTE)[21]
Depois de havermos racionalmente individualizado, em suas características, o fenômeno do Monte Alverne, segundo o esquema por nós aqui traçado de sua estrutura, agora procuremos compreender e reviver, espiritualmente, esse grande acontecimento, na moldura em que a História o enquadrou.
Quem já subiu até ao alto do Monte Alverne em Casentino e visitou a capela dos Estigmas terá lido a inscrição central: "Signati, Domini, hic servum Tuum Franciscum, Signis Redemptionis nostrae"[22]. Esse é o lugar em que Cristo apareceu a Francisco e este recebeu os estigmas. Para baixo, a rocha abre-se num abismo; subindo em direção do pico e da floresta, encontra-se logo a gruta de frei Leão, o único companheiro do Santo, o único ser humano que, embora contrariando proibição expressa, se aproximou dele e o observou naquele instante supremo. Por isso, entre tantos frades, é escolhido para curar as chagas dos estigmas. O grande acontecimento deu-se em 1224, na madrugada de 14 de setembro, festa da exaltação da Cruz. Em 30 de setembro Francisco deixou o Alverne para sempre. Acompanhado de frei Leão, "carneirinho de Deus", desceu montado num burro até S. Sepulcro, onde parou num leprosário e por esse caminho voltou para Porciúncula, onde morreu dois anos depois, em 4 de outubro de 1226 ("De Cristo recebeu o último selo, que seus membros dois anos carregaram"). Frei Leão, que celebrou missa, foi amigo e confessor de Francisco, confidente e testemunha de numerosos acontecimentos espirituais íntimos, viu e tocou os estigmas e "costumava tirar os pensos de pano tintos de sangue para colocar novos”. Em 1224, na época. destes acontecimentos, ele e o Santo ainda eram moços. Frei Leão teve, mais tarde, tempo de recordar e meditar, pois morreu Beato em Assis, em 14 de novembro de 1271, isto é, 45 anos mais tarde. Foi em Alverne que o Santo escreveu para ele a Bênção, na segunda quinzena de setembro de 1224, logo depois de recebidos os estigmas. Escreveu-a com a mão trespassada e sangrenta:
"Benedicat tibi Dominus et custodiat te:
"Ostendat faciem suam tibi et misereatur tui:
"Convertat vultum suum ad te et det tibi pacem:
"Dominus benedicat te, Frater Leo"[23]
... "Que o Senhor te abençoe, frei Leão". No autógrafo o nome de Leão está dividido pelo Tau ou cruz, sigla de Francisco e essa palavra está dividida bem no meio para indicar, na fusão dos dois nomes, a estreita união das duas almas. Mais tarde, frei Leão de próprio punho acrescentou, em letras vermelhas bem pequenas: "Beatus Franciscus scripsit manu sua istam benedictionem mihi frati Leoni".[24] A Bênção esta escrita numa folha de papel pequena. Frei Leão, enquanto vivo, sempre a trouxe consigo.
Relativamente à manifestação exterior e sensorial, nada se pode acrescentar à belíssima história dos Fioretti. Que acontece, porém, no interior dela, na intimidade do fenômeno? Frei Leão tenta acostar-se a essa outra realidade, penetrando-a por meio dos sentidos e da fé. E volta a ver a flama e a ouvir a voz que vem de dentro dela; não consegue, porém, entender nem uma palavra. Sua percepção interior não consegue mais do que isso. Mas intui o resto e fica de lado, reverentemente. Então, o amigo Francisco, que entendeu tudo, conta mais tarde tudo quanto Leão não pôde ouvir. Só o amor e a fé podiam induzi-lo a isso. Porque de repente Francisco se torna reservado e procura disfarçar, por humildade, reverência, temor e por causa de pudor de que sempre se reveste o sublime. Nesses momentos, sentimos necessidade de estar sozinhos com Deus. Então, ordena de novo a frei Leão que não ande espionando e pede-lhe que tome cuidado com ele, pois sabe o incêndio espiritual que vai lavrar-lhe no corpo. Francisco percebe a aproximação do Incêndio. Já o envolvem línguas de fogo, que saem do incêndio, antecipando-o e preparando-o. E Francisco ouve dentro de si um anjo de Deus, advertindo-o do que está para acontecer. No dia seguinte é a festa da Cruz de setembro. E agora a história dos Fioretti não e mais tão minuciosa e se torna vertiginosa, levando-nos de um golpe ao momento em que, naquela madrugada, o fenômeno se processou de modo a ser percebido até mesmo pelo homem normal. E nada mais nos diz. Que aconteceu durante aquela noite, no extremo oposto do fenômeno, no seu lado espiritual? Quais os derradeiros estágios que o tornaram possível? O fenômeno já vinha amadurecendo lentamente durante toda a vida do Santo, desde que começou a ouvir "vozes" em S. Damiano; a maturação se acelera intensamente no Monte Alverne durante os dias precedentes e, embora atingisse o clímax pouco antes da alvorada, o fenômeno tinha-se processado com intensidade durante a noite, nos seus claros-escuros e contrastes de forças. Acompanhamos até ao ponto maior da curva o ciclo de sua maturação.
Observemos. Francisco está na rocha dos estigmas. Frei Leão está um pouco afastado, mais para cima, em sua cela. Embora não possa ver muito bem no meio daquelas pedras e galhos de árvore, tão perto está que pode ouvir tudo. Permanece acordado, procurando ver, mas, por obediência, não ousa aproximar-se. Procura ouvir o menor ruído porque, se não deve andar observando, tem de, no entanto, proteger o Santo. "Tome bem conta de mim, porque dentro de poucos dias Deus fará grandes maravilhas neste monte..." Tinha-lhe sido, pois, confiada a guarda do amigo. Discreto, afastado, como demonstração de respeito, e, ao mesmo tempo, próximo, por força do amor, estava pronto para, se necessário, acudir em seu socorro. Ambos estavam esperando que, a qualquer momento, acontecesse algo de extraordinário. Francisco estava mais embaixo, mais afastado do Monte e mais isolado da terra, em cima da rocha vertical dos estigmas, guardado de perto pelo afeto do amigo, que até nesse momento supremo lhe servia de ajuda e proteção. A cela de Leão estava um pouco mais acima da Rocha onde Francisco orava. Mergulhado no profundo silêncio do céu e da terra, imerso na infinita paz da noite, Leão esperava. Não se ouvia o menor ruído. As tempestades do espírito não encontram eco na matéria. Porém, fervorosa prece abrasava-lhe a alma. Que insuportável desejo de aproximar-se, de compreender, de imitar! Que atração e que temor! A espiritualidade de Francisco causava-lhe medo; naquele momento e naquele lugar, causavam-lhe vertigem a misteriosa proximidade de Deus, o contato com o infinito, a sensação do sublime. E o amigo estava quase a precipitar-se naquele abismo de potência e de mistério, que o fazia tremer. Estava de espírito suspenso, presa de afetuosa angústia pela sorte do Santo, temia pela vida do querido "pai", que, refugiando-se no desconhecido e desaparecendo na vertigem dos céus, para ele se tornava inatingível. Tinha medo do sublime, mas temia por ele, que poderia queimar-se inteiramente no divino incêndio. Examina-se interiormente e fica triste por não poder segui-lo e, incapaz de progredir para o alto, ser obrigado a permanecer no sopé da montanha da santidade, a ficar sozinho na terra, em meio à própria miséria. E chora com pena de si mesmo. Mas, logo em seguida, se esquece de si e pensa no amigo, pensa na sua grande missão daquele instante e quer continuar vivendo apenas para executá-la. E transborda de alegria por seu triunfo no mundo divino. Mas esse mundo divino, de que o amigo se apodera, com seu peso, magnitude e poder, volta mais uma vez a esmagá-lo, a esmagar o pobre frei Leão, que se amedronta ainda mais. E se amedronta principalmente por causa de seu amado amigo, sobre quem recai todo o peso do infinito, daquela imensidade esmagadora em que a alma se perde. Por isso, escuta, reza, alegra-se, extravia-se, crê e espera. Pequena tempestade, reflexo da terrível tempestade que se apodera do Santo. Além disso, Leão ignora. Tomado de medo, admira de longe a para ele inatingível santidade do amigo; intui, porém não compreende tão incomuns colóquios com Deus. Não podemos, portanto, ver a substância do fenômeno através dos olhos de frei Leão, ainda fechados naquele momento. Apenas mais tarde, depois da morte do Santo, é que vão abrir-se, contemplando os divinos crepúsculos de Assis, através da saudade que sentia por Francisco e defendendo-lhe as idéias, amando-o e chorando-o. Aí então é que, meditando sobre o que ouvira da boca do amigo, se maturará até ao ponto de compreendê-lo perfeitamente. Para nós, porém, a compreensão do fenômeno ainda permanece na sombra.
Francisco contemplara demoradamente, na véspera, o suave crepúsculo. E, sem dúvida, verdadeira véspera de batalha havia sido a jornada anterior, pois, na vida tudo é luta, sobretudo a conquista espiritual. A noite precedente fora consumida no fogo devorador da oração, porque o paroxismo do amor realmente é voraz. Francisco sentia que estava para chegar ao zênite de sua vida, ao momento crítico da última separação da terra. Quem sempre foi a aplicação viva do Evangelho, está maduro para se desligar de qualquer forma terrena de vida. Mas para ai chegar, quanto caminho! Antes de ousar lançar olhares a um futuro maravilhoso, ele hesitava recordando o passado. Nas primeiras horas da noite, antes de afrontar sua ressurreição na divindade, representava-se diante de seu passado humano, cheio de fadigas e sofrimentos. Quanto caminho de S. Damiano ao Monte Alverne! Revivendo todas estas coisas, enorme cansaço parecia esmagá-lo, sua vida física agonizava e agonizando chorava sua destruição, oprimindo-o com seu pranto. Seu corpo ainda jovem, embora subjugado, sofria derradeira tentação: a tristeza de não ter vivido para si, de não poder mais viver. Expulsa do espírito, tornava-se mais sutil: a inutilidade do sacrifício. "Senhor, não me compreenderão! Não me compreenderão, como não nos compreenderam!" As forças do mal assaltaram-no então no ponto mais alto e precioso de sua vida: sua missão de santo. Talvez um assobio sinistro soou a seus ouvidos: "é inútil teu amor, tua paixão. Cumular-te-ão de louvores, mas a traição não tardará". E Francisco, como Jesus no Getsêmani certamente chorou pela incompreensão, reformas, traições, e adaptações que haviam de tentar sua obra, para reduzi-la a nada. Seu ânimo foi tomado de profunda tristeza e mortal abatimento como se lhe pusessem uma mordaça, sucumbindo momentaneamente. Junto à agonia física, a agonia espiritual. Nas primeiras horas da noite deve ter travado tremenda luta contra as trevas e o mal.
Em tais fenômenos há ritmo de períodos característicos e fases opostas em equilíbrio. Como aconteceu a Cristo, antes de seu martírio físico no Gólgota, houve na noite precedente, o martírio moral do Getsêmani; assim, com Francisco antes de sua crucificação pelos estigmas,. houve, certamente, uma crucificação de dor no espírito. Sintonia lógica entre fenômenos semelhantes. A tentação noturna é a contraparte, a primeira metade, negativa, do fenômeno, em oposição a seu segundo momento, positivo, o triunfo do espírito. O mal, a negação, tiveram seu turno como condição e preparação da afirmação e do bem. Francisco, portanto, para chegar à união com Cristo, devia naturalmente reviver-lhe as dores morais do Getsêmani antes de reviver-lhe o sofrimento físico da crucificação. Foi permitido ao mal que vencesse por momentos. O contraste entre as forças involuídas da matéria e as outras forças do espírito tornava-se cada vez mais violento na fase final da luta. Antes de definitivamente triunfar na luz foi desferido o assalto mais forte das trevas. Antes de conseguir sua perfeita sintonização com as supremas harmonias do divino, antes de poder unir-se a Deus na harmonia de um íntimo acordo de todas as criaturas e forças irmãs, Francisco certamente teve que atravessar na escuridão da noite a tempestade de ruídos e dissonâncias, desencadeada pelo choque caótico de forças involuídas, desarmônicas, ainda não disciplinadas na ordem superior. Em Alverne, não era novidade para o Santo se as forças do mal destruíssem o Monte, fazendo precipitar suas pedras. As primeiras horas da noite, as mais tristes e profundas, eram as mais próprias para semelhantes assaltos: mas, às primeiras horas da manhã a vitória já era certa.
O ritmo da vida é duplo e inverso, diurno e noturno, material e espiritual. Já vimos suas características. As primeiras horas da noite, trazem consigo os últimos e mais profundos ecos das horas do dia, ressentindo-se de sua proximidade, retardando-se, enquanto à meia noite o ritmo se inverte até a manhã, cuja espiritualidade, por sua vez, se retarda nas primeiras horas do dia. Tal ritmo acha-se deslocado em relação ao ritmo da luz. As primeiras horas da tarde parecem carregar o peso de toda a escória da vida física diurna, dos encontros e asperezas da luta material. O mundo diurno é de expansão exterior, de sintonização solar, vermelha, sensual e sensória, material e animal, de ondas longas, baixa freqüência, notas profundas, e baixo potencial em face do espírito. É o mundo do involuído, forte na carne, débil no espírito. Também aqui este momento do ritmo vital presume e espera seu momento oposto dado pelo poder do espírito.
Gradativamente, porém, a tempestade do mal se acalma, pára e passa. É na segunda metade da noite que, superada sua fase negativa, se inicia a fase positiva do fenômeno. Entramos no período de reconstrução da freqüência de onda, de potencial, em seu período espiritual. Esgota-se a vida material, cala-se revivendo no imponderável. Vimos suas características. É uma vida sutil, imaterializada, interior, vigorosa, penetrante, de ondas curtas, alta freqüência e grande potencial, de notas agudas e radiações noturnas, violetas, lunares. As condições ambientes que lhe são relativas e harmônicas, acentuam-se pela aurora, depois do que tendem novamente a inverter-se na fase diurna. Vemos nos Fioretti que o fenômeno aconteceu mais ou menos uma hora antes do nascer do sol, e que o Monte Alverne resplandecia pela chama que iluminava os montes e vales adjacentes como se fora o próprio sol. A chama continuou visível (portanto era ainda noite) por mais de uma hora (antes do dia); tanto que muladeiros que se dirigiam, para a Romanha foram despertados pela luz nos albergues, levantaram-se, carregaram seus animais, e puseram-se a caminho. Só então viram que a luz se extinguia e se levantava o verdadeiro sol. Por sua própria lei e pelas condições das radiações ambientes, o fenômeno só podia acontecer neste momento, antes da aurora.
Trata-se de fenômeno de harmonização com a divindade, onde a sintonização do sujeito receptor com a fonte transmissora, deve ser por esta acompanhada e fortalecida de radiações circunstantes, cuja contribuição é igualmente indispensável. Para isso concorrem não só fatores espirituais, como também condições especiais de dinamismo ambiente, porque se trata de universal orquestração de forças, e forças de todo tipo. É inadmissível qualquer dissonância, seja nas alturas, seja nas profundezas. Deus é harmonia, ordem suprema, e sua manifestação não age senão em atmosfera de harmonia e ordem perfeitas. É necessária, além da hora apropriada, a atmosfera pura das altas montanhas, a paz dos bosques, a vastidão dos espaços, o céu límpido e estrelado, o silêncio, a solidão. Para se dar a harmonização que constitui o fenômeno, é preciso não só a sintonização do sujeito humano com Deus, mas de todas as criaturas que o rodeiam, e as forças da matéria e da vida são, também elas, criaturas de Deus. Recordemos que tudo vibra, que todo ser, toda forma, mesmo material, desprende de seu íntimo radiações que são vida, expressão do pensamento, da potência, da presença de Deus. Deus está em todas as coisas. As vozes da natureza, falam-nos d’Ele. Atrás da aparência, toda forma traz uma íntima substância imaterial de que é efeito e que a mantém em vida pela continua reconstituição, pertence ao mundo espiritual, trazendo um traço, embora mínimo, da face de Deus. Só assim, contemplando essa face interior da natureza, é que poderemos nos aproximar dele. Aqui se revelou esta forma interior, só percebida por espíritos amadurecidos. Por isso, Francisco era capaz de ouvir em todas as coisas, forças e criaturas, a voz de Deus presente. E no alto do Monte Alverne, naquela hora, cada ser, cada coisa, árvores, rochas, pássaros e estrelas, ofereceram, reverentes, a homenagem de sua contribuição. A criação assistiu, vibrou, ofertou-se, acompanhou com sua íntima presença e perfeita harmonia as núpcias da criatura com o Criador. Não foi unicamente uma oferta cega, insensível, mas verdadeira resposta à participação, donde podia nascer unicamente verdadeira sintonia, acordes livres e perfeitos. Deus está em todas as coisas, como ordem, e como tal se manifesta. Não pode portanto falar-nos, nem poderemos subir até Ele, se a harmonia não for perfeita. Para que Francisco pudesse sentir a presença de Deus, era preciso estar em harmonia com a natureza e ao contrário. Pois, qualquer dissonância nos afasta do íntimo das coisas, ao qual só poderemos chegar com a perfeita harmonia.
O fenômeno só podia acontecer naquele lugar, naquela hora, com aquele homem. Isto está no intimo da criação. São estas as regras musicais da orquestração que origina tais acontecimentos. Era necessária a transparência matutina de sutil atmosfera que não obstaculasse ou absorvesse as radiações provenientes tanto da terra como do céu, radiações telúricas e estelares. Era necessária também a doce estação de setembro, quando o sol é oblíquo, o calor do estio calmo em suas primeiras quenturas outonais, quando se aquietou o fervor estivo da vida; estação em que a exaltação da parte física, ao contrário da espiritual, diminui de ritmo e se esvai. O princípio de harmonia e sintonia exigia manhã tranqüila, límpida, diáfana. O perfeito equilíbrio das forças primordiais permitiria à natureza entoar a nota fundamental da sinfonia, elevando ao redor do fenômeno, em perfeita consonância um fundo musical harmonioso, que a faria vibrar qual caixa de ressonância, a fim de nela apoiar e elevar a harmonia muito mais sutil do fenômeno místico.
Do mesmo modo, eram indispensáveis as condições particulares em que se encontrava o sujeito, isto é, seu estado de completo esgotamento físico, a maceração orgânica que eleva o potencial de vida do espírito, estado de degradação do dinamismo vegetativo que ajuda sua transformação em dinamismo espiritual. Enfim, era preciso o elemento fundamental, o homem, um homem que tivesse conseguido, por longa preparação, a maturidade; capaz de suportar e superar diante de Deus, a hora critica da revolução biológica, lançado como um bólido no mundo do espírito, saindo para sempre da órbita das trajetórias terrestres. Era preciso que este homem, no extremo do sacrifício, no vértice do amor, abrisse os braços para Deus, e a ele se atirasse ardente de fé, e louco de paixão.
Era noite alta. Parecia que se tornara imóvel antes de se destruir no dia. Nos dois horizontes opostos, o crepúsculo e a aurora calavam-se. A luz solar que neste hemisfério é quente, rósea, viva, direta, estava agora envolta em sombras. Somente, difundido pelo céu, um pálido reflexo de miríades de estrelas, luz tão diferente, fria, argêntea, sutil, imaterial. A mais humilde e calma sinfonia noturna, sucedeu à grande sinfonia do dia. Harmonia inversa, em tom menor, quase viúva e melancólica, de expectativa e meditação. Eis que a vida não mais se lança ao exterior para se expandir e crescer, mas se recolhe em si para se compreender. Durante a noite, a vida renasce inversa, envolta em sonhos; toda nota de luz, de som, de forma, revive aveludada em vozes delicadas que refletem o dia, suavizada por transparências irreais, espiritualizada em contornos indefinidos, vaga, submissa, sutil como um eco de acordes distantes. É a hora em que o universo cessa de falar materialmente, do exterior, mas fala espiritualmente, de suas profundezas. Olha-nos então com seu olhar interior que não vê a forma mas o mistério de suas causas, observa nosso interior e nos convida à introspeção. Foi em meio a esta imprecisão de formas, neste supremo silêncio da ilusão humana, que o espírito preparado de Francisco podia, cantando as criaturas, reconquistar a corrente de manifestação divina até chegar à sensação de Deus. Sua alma ouvia as infinitas vozes da criação, abria-se como flor ao sol da manhã, ao mesmo tempo que ao redor começava, mais límpida e sutil, a sinfonia do universo, abriam-se os céus e do alto chovia luz espiritual. Na diáfana imensidão da noite desapareceram os horizontes. A terra não era mais terra. Do alto do Alverne parecia infinda vastidão, sem limites como o céu, e com ele tão idêntico, que era uma única e indivisível imensidade O céu e a terra eram então a imagem do infinito. No alto, na vertigem do azul, abriam-se os misteriosos abismos das estrelas, espaços sem limites, onde os olhos e a mente se perdem. Deus é ainda mais profundo e distante mesmo estando tão perto; a alma o encontra quando está para se perder. A visão dos céus se mostra a nossos olhos como a visão de Deus: parece cair no nada e aí encontramos tudo.
Francisco, de pé sobre a rocha, de braços abertos, contemplava. Deixava-se acompanhar e guiar pela voz de todas as criaturas irmãs para o Criador comum. A maré imensa das radiações de todas as coisas parecia elevar-se como ele para Deus, harmonizando-se em uma orquestração cada vez mais doce e espiritual. Cada ser era uma nota falando-lhe de Deus. Tudo falava à sua alma sensível, e ele tudo ouvia e compreendia. A vibração mais profunda vinha da terra e subia como um trovão pelas rochas ásperas do monte. A relva emitia uma nota mais cheia, mais vizinha da vida, majestosa, severa. Os pássaros, os insetos, os outros animais adormecidos, as ervas, ressonavam ao redor numa respiração tranqüila. Mais ao longe, na interminável descida, nos montes, nos vales e planuras, as forças da vida repousavam em paz. Em paz as criaturas abandonavam-se confiantes nos braços da sabedoria e providência da Lei de Deus. A tempestade do mundo, onde o homem se amedronta e se consome, estava longe, lá em baixo, nas cidades agitadas e cansadas. Sua voz não chegava ao pico, nem perturbava aquela paz divina. Mais longe ainda se perdia o ribombar seco da voz cavernosa do mal. Também ele, como toda criatura de acordo com sua natureza no equilíbrio entre as forças do universo, também ele estava em seu lugar, para confirmar, não para violar a ordem divina. O mal lá em baixo revolvia-se num mar de trevas. Do alto, do ilimitado resplandecer das estrelas chovia sobre a terra uma luz indecisa. Era uma radiação difusa e penetrante, tremor agudíssimo do éter acariciando os seres, por toda parte, transmitindo seu ritmo a toda criatura; vibrando de alta freqüência, quase espiritual, trinado agudíssimo, igual, sutil. Paz: cantavam as estrelas, obedecendo à ordem divina. Esta a orquestração do universo que acompanhava o desenrolar-se do fenômeno. Viva em cada nota, feita de conceitos, de forças, de formas, feita do pensamento e poder de Deus que tudo movimenta e vivifica. Sobre esse fundo de tão imensa sinfonia vibrava a alma do Santo, respondendo às notas graves das criaturas irmãs que com ele cantavam em coro. Por sua vez, elas respondiam numa única música que em síntese dizia: Deus. Assim, bem de longe, através da criação, teve começo o colóquio entre Francisco e o Criador.
Era o último dia da lunação; ia surgir a lua nova, que portanto nesse momento não aparecia no firmamento[25]. A noite navegava triunfante para o momento de sua mais intensa espiritualidade. A música universal seguia em diversas alturas a espiritualização da hora e a tensão cada vez mais crescente da alma de Francisco, num crescendo de harmonia e perfeição. Vibrações e acordes sucediam-se em pianos sempre mais elevados, cada vez mais claros e puros. Ele, o mais perfeito dos seres, o mais nobre, o mais vizinho a Deus, confortado pelo amor que espalhava e que agora lhe era restituído, rodeado pela natureza ajoelhada em veneração, entoava, seguido por toda a orquestra, seu mais sublime canto. Parecia guiar a marcha ascensional da vida. E tudo em perfeita harmonia progredia, em ritmo cada vez mais vivo e poderoso, para a aurora, o incêndio. Ao mesmo tempo que o ritmo aumentava de potencial, a respiração tornava-se ofegante, suspensa de enorme tensão, temendo um choque. Parecia que a terra se inflava e se erguia para seguir o Santo em seu arrojo divino, que parecia querer arrastar consigo todos os seres para Deus, ou abraçar em seus braços abertos, todas as criaturas irmãs, incendiando-as em sua divina paixão de subir. Estas pareciam querer unir-se ao arauto da vida, seu mensageiro perante Deus, e impeli-lo a subir ainda mais alto, até o trono do Eterno, para levar até aí suas vozes e para que lá o Santo recebesse o último selo de sua missão. A vida parecia atirar-se alegremente à subida para matar sua sede de sublime. O fenômeno já havia começado e devia cumprir-se até o fim. Cada minuto acelera-lhe o ritmo. Francisco tem atrás de si o acordo universal das forças que o estimulam, e diante de si Deus que o atrai. Não pode mais voltar. Não é mais dono da situação. Deve aceitá-la humildemente de Deus. Cairá inevitavelmente no incêndio que se alastrará pelo monte.
A história dos Fioretti, como o Evangelho, não podia ser inventada. Os dois livros pressupõe e fazem sentir na simplicidade de sua história, um profundo conhecimento dos fatos espirituais, que não podem ser improvisados nem inventados pela alma do povo. O narrador dos Fioretti fica na ingênua simplicidade fora do fenômeno, limitando-se a contar os fatos exteriores. No entanto este modo de ver tão material, coincide com sua substância espiritual, com a profunda realidade do fenômeno. Ora, a experiência comum das coisas terrestres não é suficiente para fornecer-lhe elementos de semelhante história que não parece, mas deixa transparecer tanta sabedoria. O modo como é estabelecido e se desenvolve o fenômeno, a moldura que tão bem o cerca, a hora, o lugar, o homem, o comum, o prodigioso, o material e o espiritual, tudo está perfeitamente equilibrado e com os meios mais simples, com a espontaneidade das almas virgens, nos dá imediatamente o sentido da verdade. Francisco está suspenso no vértice de uma rocha entre a terra e o céu, ao mesmo tempo só e acompanhado por todos os seres, com a alma aberta a todas as vibrações do universo, diante de Deus que em alta voz, através de todas as criaturas, lhe diz: presente. Deus lhe fala por tudo que existe, pela organização funcional do universo, pelas harmonias da vida, pela alegria e pela dor, fala-lhe no fundo da alma, por toda a parte e sempre presente. Temos necessidade não só de um Deus que é causa transcendental e longínqua, mas sobretudo deste Deus atual, imanente e presente. Doutra forma ficaremos órfãos e sós, sem esperança de ver algum dia o que seja do rosto de Deus. Ele existe e é preciso senti-lo no meio de nós. Não é, nem pode ser, um pai inatingível, por si mesmo triunfante nos céus, colocado numa distância insuperável. Assim é para quem raciocina friamente, o que nos aproximaria muito pouco de Deus. Francisco o alcançou porque começou por olhar na terra seus reflexos, servindo-se deles para subir até Deus pelos caminhos íntimos da fé; porque para chegar ao Criador, passou por todas as suas manifestações nas criaturas. Alcançou-O porque seguiu mais os caminhos do coração que os da inteligência, e preferiu a imolação e o amor ao raciocínio.
Eis que se aproxima o momento supremo. Francisco começa a rezar, voltado para o oriente. Sua querida Assis, também está desse lado, onde logo o primeiro pressentimento vago da aurora começava a delinear o horizonte. A noite atingia sua hora mais espiritual, hora de sonhos alados de luzes diáfanas e irreais, hora profunda de mistério e silêncio. Eis Francisco diante do fim supremo: Deus. Quantas etapas para aí chegar, quantas pequenas tentativas de sintonização em sua vida! Aproximações parciais foram concedidas a S. Damião, em Greccio, na ilha de Trasimeno, em Porciúncula, na lagoa de Veneza, e em tantos outros lugares de solidão e beleza. Tinha sido preparado por assaltos e contatos progressivos até a perfeita sintonização com Deus. O invólucro físico de sua alma se sutilizava gradativamente pela penitência, seu ser tornou-se mais sensível, e por sua vez preparado pelo jejum, pela oração, pela solidão e pelo sacrifício. Eis que as forças do universo rodam diante de Francisco. Subiu a tal ponto que as vê convergir para um único centro, e é capaz de ouvir a música paradisíaca de sua harmonia. É a ordem das coisas que canta os louvores de Deus. Francisco é arrebatado em êxtase, está fora de si de tanta alegria e tensão. A grande orquestração do mundo vibra anunciando a chegada da glória do Rei que vem ao encontro de seu servo. Abrem-se os céus, o monte se incendeia inundando a terra de luz. As criaturas imóveis, olham reverentes, prostradas mais abaixo, ao redor, distantes, temendo tocar tão alta tensão diante da qual sentem que suas formas se desfazem. No alto ficam dois únicos seres: Deus e Francisco, o universo é um grão de areia, que se funde e some. Não mais se vê o sol em seus reflexos infindos, mas em seu real esplendor. A extrema alegria e tensão, de espírito, deve-se ter seguido na matéria terrível choque e sofrimento imenso. Mas, para o espírito, é felicidade naufragar e perder-se na infinita divindade. Tocamos o inexprimível e as palavras faltam. Estamos no limite extremo do sublime. O próprio Santo contou tudo isto da melhor maneira: calando-se.
Só nos é possível olhar de longe, como os muladeiros que iam à Romanha; olhar através da história, da lenda, da arte, da fé, porque nossas tentativas de reconstrução por intuições não vão além. Aquele incêndio projetou na visão interior de Francisco uma forma luminosa: Cristo. Mas o incêndio envolveu também o corpo do Santo, que ficou marcado em sua carne pelos sinais da Paixão. Pois é lei, que a união não se pode alcançar senão com a semelhança e a subida só é possível pela dor.
Tudo isto será por alguns relegado como lenda ou fantasia. Não podem admitir o fato. Procuramos demonstrar por meios científicos e racionais, a possibilidade e realidade do fenômeno que a mesma ciência e razão às vezes negam, pondo-o como conclusão deste trabalho que lhe serve de base. Procuramos reconstruí-lo pelo método da inspiração, isto é por intuição e sintonização noúricas. Procuramos restitui-lo à vida para que nos alimente, nos guie, nos arrebate, como fenômeno biológico que interessa a nossa evolução humana. Apresentamos S. Francisco no vértice da evolução humana, como um dos muitos modelos de nosso futuro, para que alguém tente imitá-lo na medida do possível. Temos necessidade de S. Francisco, especialmente hoje. Onde a ciência materialista nos iludiu prometendo-nos uma riqueza traiçoeira que nos empobreceu o espírito, S. Francisco nos oferece a riqueza espiritual e a alegria, mesmo numa vida pobre e simples. A ciência ainda não soube fazer tão grande descoberta: fazer os homens contentes com meios simplíssimos. Podem dizer: "enganando-os com ilusões". Mas a civilização o que fez para o tão esperado Paraíso na terra, que está sempre para se realizar, senão traições? S. Francisco nos ensinou a libertação de tantas necessidades que nos escravizam, e que o progresso cria para explorar; ensinou-nos (e em que condições!) a alegria perfeita que o mundo desconhece. Como se sentia rico com tão pouco; como nos sentimos pobres com tanta riqueza! A moderna ciência materialista jamais conseguirá invenção semelhante: dar sensação de riqueza a quem vive pobremente. Quem destrói as aparentes utopias da fé, pode destruir valores morais inestimáveis, que são imenso poder de resistência. No céu e na terra existem tantas coisas que são impossíveis só aos ignorantes. Intuições supremas que ultrapassam os limites de nossa miserável vida cotidiana, indispensáveis à vida de indivíduos e de povos, cumprindo há séculos sua função, apesar de todas as negações.
CONCLUSÃO
O fecho deste livro representa novo trecho de caminho percorrido, mais uma pedra do edifício espiritual. Esta obra desenvolveu também como continuação e comentário de A Grande Síntese, a grande luta humana entre a luz e a sombra, o presente e o passado. Cada passo nosso, no estudo do contraste entre a tese e a antítese, foi caracterizando a síntese. Este trabalho constitui novo desafio lançado ao mundo, não a esta ou àquela de suas pequenas divisões feitas à base de interesses, mas ao mundo todo e à sua psicologia, aos seus valores, como antítese do reino dos céus, da imponderável realidade do espírito. É desafio que o mundo da justiça lança a todo o mundo da força. Longínqua e humilde ressonância do Evangelho, rebela-se, como ele, contra o mundo e emprega na guerra as armas da paz. O Evangelho, a que nada podemos acrescentar ou tirar, constitui de fato o nosso farol; e Cristo, que com as armas do amor desafiou a força bruta, Cristo é para nós o modelo supremo. Roma não o entendeu, naturalmente; não o entenderam, também, as multidões apaixonadas que o seguiam e talvez preferissem aclamá-lo como rei de um reino terrestre; nem mesmo o compreenderam os apóstolos, que apenas esperavam vitórias materiais; não o compreende, finalmente, nossa época, divorciada do espírito. Desse modo, Cristo viveu no meio da incompreensão dos que mais próximos estavam d'Ele e do silêncio de seus contemporâneos, como ainda hoje, em meio da incompreensão e do silêncio dos nossos tempos. Ninguém Lhe ligou importância, enquanto vivo. Roma está plenamente satisfeita do próprio esplendor. O cérebro que dirige o mundo todo nem de longe poderia suspeitar que um bárbaro obscuro, perdido lá nos confins de uma terra de escravos, estivesse lançando a semente, viva até hoje, da renovação do mundo. Quando Ele morre, pensam que Sua figura tenha desaparecido completamente e Sua instituição entrado em agonia. Mais tarde, de um golpe, inesperadamente, Seu pensamento se propaga e conquista o mundo todo até transformar-se em sinal de contradição na história da civilização humana. Hoje, como ontem, e como amanhã, o mundo ou é a favor de Cristo ou contra Cristo. Indiferente é que ninguém. pode ficar. Ninguém pode ignorar-lhe ou destruir-lhe o pensamento. Está nas próprias raízes da vida, tem valor fundamental na realidade biológica. Quem se espelha nesse pensamento, quem a ele adere, por uma questão de simples reflexo se engaja na luta apocalíptica das ascensões humanas. Se a Grécia criou a Beleza e a Sabedoria e Roma o Direito, Cristo elevou o Amor ao papel de força de coesão social, introduzindo no mundo conceito novo, inédito e original, que se tornará a unidade de medida do progresso humano. Quem, como nós se ocupa principalmente disso, não pode deixar de tomar conhecimento d'Ele e seguir o rastro luminoso de Seu exemplo...
Nossos tempos lembram os em que Ele viveu. Enquanto o mundo romano, em pleno fastígio da força, se desfazia no ceticismo, o suave e humilde mundo cristão, amparado no poder da fé, construía em silêncio. A História parece divertir-se com seus personagens, destruindo os mais poderosos, exaltando os mais humildes, demonstrando-nos obedecer a desígnios que não se identificam com os dos homens. Muitas vezes até mesmo os mais espertos e astutos denotam grande cegueira em face dos acontecimentos futuros e a História conduz governantes e governados a situações inesperadas. Acontece que os fortes tombam e os humildes triunfam o mínimo se torna máximo e ao contrário, as mais sólidas construções desabam e as mais débeis continuam de pé. Enquanto o homem arquiteta planos, a História, instável e repleta de surpresas, faz os acontecimentos se desenvolverem de acordo com o plano diretivo por ela elaborado e bem diferente do formulado pela razão humana. Não poderemos compreender esse plano interior, sem antes entender o funcionamento orgânico do universo. Nenhuma orientação política, nenhuma filosofia e nenhuma interpretação da História atuam apenas em função desse conhecimento mais amplo.
Como existem dois planos históricos, um exterior e aparente, outro interior e real, a História se desenvolve através de duas espécies de acontecimentos: os exteriores, visíveis e ruidosos, que todos acompanham e a História registra, e os interiores, invisíveis silenciosos e subterrâneos, que as pessoas e a História não vêem senão quando finalmente se manifestam em frutos concretos e maduros. Assim, os períodos de incubação e de germinação, tão importantes quanto os de desenvolvimento e plenitude, passam despercebidos e permanecem secretos. A História é uma florescência de acontecimentos, dos quais não percebemos nem o intenso e íntimo trabalho preparatório, onde reside seu significado, nem a calma subterrânea e que continuam a elaborar-se. E, desse modo, muitos fatos continuam sem explicação lógica Existe a conquista bélica, material, das terras, dos corpos e dos haveres e a conquista pacífica, espiritual, das almas e dos valores morais. São estes os dois extremos da História seu aspecto visível e seu aspecto invisível. Não apenas as multidões, mas até mesmo os próprios apóstolos, ao invés da expansão interior, no plano do espírito, conceberam a expansão exterior, no plano material. Cristo, porém, esclareceu e retificou e, mais tarde mostrou através de fatos que sabia vencer interiormente, apesar das aparências exteriores da derrota. Mostra-nos a História como podemos chegar à afirmação, sem as manifestações exteriores que a assinalam, como conseguimos criar e vencer em silêncio, conquistar também por meio de expansão interior e ir muito mais longe pelos caminhos pacíficos da convicção que satisfaz do que pelos caminhos bélicos da ação que constrange. E, nisso ainda, obedecemos ao Evangelho.
Mas o presente volume, que estamos concluindo, não tem apenas significado espiritual, moral e social, mas também biológico. E, acima de tudo, construtivo; consegue explicar tudo, sem negar coisa alguma; cria, relaciona e nada destrói; eis sua contribuição. Assim como respeitou a fé, respeita a ciência. Neste livro, a questão religiosa do progresso espiritual é também considerada como fase de evolução biológica e, por isso, o fenômeno moral continua verdadeiro, mesmo se enquadrado na ciência, que, assim, não fica destacada nem diferente do Evangelho, mas enquadrada nele. Por isso este livro faz o que a ciência não pode, isto é, conforta moralmente a dor, até mesmo em termos racionais.
Apesar das várias tentativas de nivelamento a que hoje nos inclinamos na busca da justiça social, os homens não são, não podem ser, jamais serão iguais. A justiça é necessária, mas, em razão da estrutura biológica do planeta não no-la pode dar a igualdade, pois na terra a igualdade não corresponde à realidade e, por isso, é absurda e imposta coativamente. A humanidade, no entanto compõe-se de seres de diversíssimo grau evolutivo, que vão da besta ao anjo. Para o primeiro tipo o ambiente terrestre representa o máximo de evolução e de aperfeiçoamento biológico, de bem-estar e de felicidade; para o segundo, o mínimo de tudo isso, apenas provações, verdadeiro inferno. Entre os dois extremos oscilam mil e um estados intermediários. Vivem materialmente lado a lado, confundidos, ajudando-se e alternando-se no labor evolutivo, mas inconfundíveis quanto à natureza, que permanece diferente de modo a permitir, mais tarde, a volta de cada um a seu lugar exato. Os indivíduos adiantados, embora poucos, não estão nesta ou naquela raça, nesta ou naquela nação, mas distribuem-se por toda parte e seus objetivos são, acima de tudo, superterrenos. Os indivíduos evoluídos não constituem casta com o objetivo de dominar neste mundo, nem raça nacional de finalidades imperialistas; pelo contrário, reconhecem-se à primeira vista e confraternizam-se onde quer que se encontrem; e, finalmente, sua vida já se dirige para fora deste mundo, que eles superaram Na terra, o tipo besta goza; o tipo anjo, sofre; o primeiro destrói, o segundo cria; um ignora, o outro sabe; um pede, toma, prende-se, o outro dá e se desliga. São essas as verdadeiras diferenças de substância, que distinguem e separam, as únicas que têm valor. Neste livro, partimos do involuído e chegamos ao evoluído O problema coletivo ficou embaixo, nos primeiros degraus, porque, desenvolvendo-se em extensão, não pode desenvolver-se em altura. Já vimos que, como é justo, quando o evoluído acabou de sofrer no calvário do dever, de altruísmo e de dor, vai para sempre embora deste mundo. Este fim constitui o objetivo dos que têm longo caminho a percorrer e representa conforto para quem está ansioso por atingi-lo.
"Coragem!" Dizemos a quem sofre. Não superestimeis as liberdades e os programas humanos; libertai-vos individual e definitivamente. O caminho da libertação existe, sim. A condenação não é eterna. Vós mesmos podeis empregar, em vosso próprio benefício, as leis da vida e transformar-vos, evoluindo. O caminho livre, a única fuga possível do inferno terrestre consiste precisamente na evolução. Não há outro. Na verdade esse caminho subentende sofrimento e esforço, mortificação, purificação e imaterialização; é árduo e difícil, mas o único seguro e positivo. A evolução coletiva, em massa, é demasiado lenta para os de mais boa vontade e muito morosa para os mais adiantados. Quem quer conclui-la depressa deve abandonar a corrente e agir sozinho. Esse caminho é a redenção ensinada por Cristo. Por isso Ele disse:
"Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
"Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.
"Alegrai-vos e exultai, porque a vossa recompensa e grande no reino dos céus..." (Mateus, 5).
O evoluído, que entende e sofre, compreende o valor destas palavras. Sabe que a ressurreição só é possível depois da paixão e que Cristo pôs em prática leis biológicas, demonstrando-lhes a inexorabilidade. Não há outra porta para escapar à dor senão essa, estreita e difícil. O evoluído tem os olhos fixos no Getsêmani, fase de evolução biológica para todos.
O problema final deste livro, depois de todos os outros, é a salvação do evoluído. Há três tipos humanos predominantes (cf. A Grande Síntese, cap. LXXVIII: "Os Caminhos da Evolução Humana"):
1) O tipo sensorial, que vive exteriormente nos sentidos: é o selvagem, que forma grande parte até mesmo de povos civilizados. Sua fé e sua vida baseiam-se na força.
2) O tipo racional, que vive mais internamente, no cérebro; é o cerebral, tipo que, embora muitas vezes constitua a classe culta e dirigente, ainda continua egoísta, isto é, isolado e, em geral, desorientado. Sua fé e sua vida baseiam-se na astúcia.
3) O tipo intuitivo-espiritual, que vive ainda mais internamente, no espírito; é o evoluído, exceção biológica, sábio, altruísta, irmanado a todos os outros seres do universo, enquadrado no seu funcionamento orgânico, em que representa uma parte e tem uma missão. Sua fé e sua vida baseiam-se na honestidade (cf. cap. VI, deste volume: "A Lei da Honestidade e do Merecimento"). Esse tipo constitui o ponto nevrálgico deste nosso livro.
Cada tipo supera o outro pelo grau de evolução, como no progresso da vida interior, o que significa aumento gradual de potencial, vida cada vez mais intensa, criação de novas formas, maior enquadramento e fusão nas forças biológicas e cósmicas. O evoluído representa o super-homem, o tipo ideal, o resultado de experimentações terrestres, a meta biológica do planeta. A ele, e não mais às massas de que falamos no início, dirigimos esta conclusão. Em favor dele, empreguemos de novo os seus meios de defesa, frente à agressividade dominante no meio em que, no entanto, tem de viver.
Toda sua defesa reside na evolução, ou seja:
1) Em sua sensibilidade que lhe tornou mais aguda a capacidade de percepção, permitindo-lhe sentir mesmo à distância, no tempo e no espaço, prevenindo-o contra os perigos.
2) Em seu conhecimento e sabedoria, em seu enquadramento universal, que o defendem das ilusões comuns, erros e sofrimentos correspondentes.
3) Em sua comunhão com as forças cósmicas a que está unido e que intervêm, defendendo-o e socorrendo-o segundo for justo, isto é, de acordo com o merecimento e não por direito de conquista.
4) Na certeza de sua libertação da terra, por meio da morte; e, antes disso, no colocar o centro de sua vida e de seus tesouros fora da concepção normal ou, seja, do campo dos instintos e atrações comuns e, por isso, da zona das agressões.
Sem dúvida alguma, a luta do futuro se travará entre o involuído e o evoluído, porque é esta a mais substancial diferença entre os homens: o tipo biológico. Não esperemos, porém, que o evoluído empunhe armas. Sua estratégia consiste precisamente na mudança radical dos métodos humanos. Seu campeão é Cristo, que vence com a bondade, a justiça, o sacrifício e se impõe por merecimento intrínseco e não pela força das armas. A economia do evoluído não é a economia da posse ou do domínio, mas da renúncia, da providência divina. Se seu sistema não fosse completamente diverso dos sistemas terrenos, não representaria nenhuma vitória sobre eles. O evoluído quando é agredido por um inferior, não responde humanamente, com violência, mas angelicamente, com bondade. Distingue-se do involuído precisamente por não usar arma alguma. Sua força é a lei, isto e, Deus. Esta se encarregará de fazê-lo triunfar e protegê-lo. A evolução é fatal. Está no plano da criação e é vontade expressa de Deus.
Portanto, o evoluído não deixa a seu irmão primitivo que quer prejudicá-lo e espoliá-lo, senão seu invólucro vazio, os tesouros humanos, isto é, os excrementos da vida. O involuído, que crê tê-lo subjugado, roubou-lhe apenas as pedras do cárcere para com elas construir sua prisão; é um ludibriado, vítima de sua própria ignorância. O evoluído dando-lhe os excrementos de sua vida, com tanto esforço roubados, vai para mundos melhores, possuidor de bem diferentes riquezas. A distância percorrida já é enorme e o abismo que divide os dois tipos não pode mais ser eliminado. Porque existe a justiça divina, se há gozo para o pecador, haverá felicidade para o justo. Lázaro e o rico avarento estarão eternamente distantes:
"Abraão disse:(...) há entre nós e vós um grande abismo, de maneira que os que querem passar daqui para vós não podem, nem os dai passar para cá." (Lucas, 16:26).
Dirijamos ao evoluído, ápice biológico, estas palavras de conforto. A maior parte da humanidade ainda se encontra fora de seu campo e destas derradeiras conclusões. É fatal, por justiça divina, que cada ser volte a seu lugar, segundo o próprio merecimento e valor.
Fechamos assim este volume. Este novo trabalho, salvo da destruição da guerra, dos sofrimentos, das contrariedades, do abatimento físico e moral, está terminado. Se aprouver a Deus, amanhã recomeçaremos. Tudo está nas mãos de Deus, tudo a Ele pertence. Fazer sua vontade, nosso perfeito guia, é a felicidade máxima, porque nos leva pela alegria ou pelo sofrimento pela vida ou pela morte, ao nosso maior bem possível. Basta segui-lo, satisfeitos e felizes.
Amanhã, o esforço continuará ainda a traçar os aspectos infinitos do mutável e multíplice no relativo, continuara a narrar outros acontecimentos misteriosos, para cavar novos sulcos nas almas, em diferente clima histórico, com nova maturação de ambiente interior e exterior, de destino individual e universal. Estamos presos aos limites, algemados pelas dimensões desse nosso mundo; só nos resta caminhar no tempo. Amanhã! Este novo trabalho é concedido a todos, como semente jogada nos campos, para que esse futuro seja mais completo, mais elevado, mais feliz para todos.
GUBBIO, 6ª feira Santa, 1945.
CONCLUSÃO
(Da II Trilogia)
Com este volume, A Nova Civilização do III Milênio, encerra-se a segunda trilogia, isto é, o segundo ciclo, que é calmo, o da assimilação, seqüência do primeiro, que é explosivo, fruto da inspiração. O primeiro ecoa e ressurge no segundo. Através dos seis momentos e dos dois ciclos, assisti á revelação progressiva de minha personalidade. Estas páginas, no fundo, nada mais são que a história do apocalíptico drama por mim vivido. Que peregrinação longa e tempestuosa! Sem pretensões sistemáticas, narrei, com verdade psicológica, como se desenvolveu minha personalidade. Não vão dizer: este só sabe falar de si próprio. Porque o meu drama é o drama de todos, a vida é uma só e o meu caminho é também o vosso caminho, o mesmo de todos. Falando de mim, falo de vós, que, como eu, estais na mesma evolução do mundo. Creio haver vivido a suprema aventura, a aventura mais trágica e tremenda que o homem possa conhecer. Tive a força de dominá-la e contá-la a vós. Mas isso não é tudo. Estou num remoinho imenso, na imensa voragem da moderna vida humana. O meu drama fundiu-se no drama universal. Senti-lhe a imensa paixão, em meio de profundo sofrimento.
Meu espírito triunfa, mas o corpo está cansado. Tentei superar a vida animal, mas a vida se vinga no mesmo plano animal que eu quis negar. Talvez se aproxime a boa irmã morte, morte para o corpo, vida para o espírito. Talvez esta seja a condição para que eu possa agora ouvir e entoar um canto mais sublime. Levo apenas esta mágoa: eu poderia ter feito mais e não fiz; e não pude porque tive de despender as maiores energias de minha vida na luta pela vida, luta imposta a todos neste inferno terrestre, luta impiedosa ao lado do involuído. Os auxílios foram raros; agradeço-os imensamente. Mas, em geral, devo bem pouco a meus semelhantes, que só me deram desgostos e sofrimentos. Agora, não está falando a Sua Voz, que tantas vezes guiou minha mão nestes trabalhos, é a minha pobre humanidade abalada.
O motivo dominante nas duas trilogias é um único, o que para o leitor superficial parecerá repetição. O tema é uma alma que se aperfeiçoa3 é a humanidade que se redime pela dor. Tentei-o porque assim me estava determinado. os tempos modernos têm forma própria de martírio incruento. Só Deus sabe se a vitória me sorriu ou se fui vencido, se minha tentativa foi útil ou vã. Em Sua imensa piedade me julgará mais pelo que tentei ou esperei fazer que pelo que realmente fiz. Há somente três lustros, minha pobre pena escrevia sua primeira mensagem (Natal de 1931): "No silêncio da noite sagrada, ouve-me... Levanta-te e fala... "[26] Falei e aquela voz se espalhou pelo mundo.
Começou então a longa viagem de exploração no abismo interior, o abismo de todos, da vida, de Deus. E não retratei com minhas pobres palavras senão a sombra da vertigem experimentada. Em alguns momentos, o esforço titânico me arrebatou da órbita terrestre, para que depois eu aí tombasse de novo e sofresse mais. Assim sou: apocalíptico contraste de aspirações e misérias. Disse tudo sinceramente, diante de Deus e da morte. Não tenho culpa de que tudo isso possa parecer, à mentalidade moderna, megalomania ou forma patológica de elefantíase espiritual. Neste caso, a vida é assim mesmo. E eu, além de ator, também fui, como quem lê, espectador e, mais do que a causa, fui envolto pelo turbilhão do infinito. Vivi a agonia proveniente do tormento de necessitar do impossível e não saber alcançá-lo. Senti em mim um desespero cósmico: o do ser que quer subir, e não sabe. Meu lamento é tão grande como a terra, lamento do homem que procura na dor a sua redenção. É o lamento de Prometeu acorrentado, o lamento de quem traz no coração sublimes sonhos e verifica que a dura realidade cotidiana o desmente sempre. Por isso tudo, o conjunto da presente obra valerá mais pela tentativa que pelo que realmente foi feito. Isso de meu lado humano. Mas é certo que tal obra foi inspirada e querida pelo Céu. Deus, portanto, conhece-lhe os fins e aplicações futuras.
Algumas almas têm unicamente uma espécie de cobiça nostálgica da eternidade e não sabem viver senão fazendo violência, senão obrigando os céus a fazerem um raio de sua luz iluminar a tenebrosa noite da terra. É a Divindade que clama neste inferno terrestre. Embora toda a vida física a desminta, aquela voz continua a clamar; e mesmo que o ser caia ela ainda clama. Embora pareça loucura, ela nos convida a lançar-nos na voragem do mistério, irresistivelmente. É sempre Deus que clama. O absoluto já está e nos atrai; a ânsia de alcançá-lo nos devora e o sentimos inatingível. O contingente, porém, nos acabrunha, nos cerca, nos estorva, asfixia-nos. Eis o grande drama. A matéria é inerte e o espirito, que quer vivificá-la, desce luminoso a seus escuros antros, tão escuros que ai agoniza e parece extinguir-se. A alma ouve ainda cá do mundo o apelo divino e percebe desesperadamente a impossibilidade de responder. Daí nasce o drama da discórdia, mas também o contraste criador.
Hoje meu corpo cansado, ferido pela tempestade, chora sua catástrofe humana, contingente; o espírito a oferece a Deus em holocausto e, como senhor, espera com alegria o futuro. Em que forma de vida ressurgirá das espirais dessa morte já aceita? A que extremos chegará a grande batalha? Bem o sei, já o disse, mas pergunto-o a mim mesmo, para repeti-lo ainda; e o direi, se continuar a viver. Poder ver finalmente o mal aprofundar-se no abismo da autodestruição e o bem vencer: eis a grande paixão.
Com este volume fecha-se o segundo ciclo de uma tragédia individual na tragédia universal. Enquanto o mundo emprega sua atividade em acumular meios materiais para ruína e destruição e a atividade teorética não cria, mas simplesmente varia de continuo a estéril disposição de meios já mortos, resíduos da criação dos gênios, este livro é uma ponte lançada para o infinito. Substitui a atual cultura exterior que não condena, antes, serve os instintos inferiores e é utilizada como meio para revigorá-los, por uma cultura de substância, de reerguimento biológico, que só tem valor enquanto apta para formar um homem melhor. Ao diabólico esforço das polêmicas corrosivas de palavras contra palavras, à tendência separatista de Satanás, representada pelo espírito de antítese de nossos tempos, pusemos em contraposição um contato mais intimo com a essência da vida, um espírito construtivo de colaboração e amor. O mundo científico e politicamente fragmentado e dividido, dissecado até as raízes pelo separatismo, desorientado em face das grandes finalidades do ser, tentamos reunificá-lo, levá-lo às fontes da vida, dando-lhe novamente seu verdadeiro significado. Que não haja mundos separados, unidades demográficas ou circuitos econômicos, disciplinas científicas ou afirmações várias de Deus, dadas pelas religiões, mundos rivais em que explode o ódio, mas unidade biológica de todos os seres avançando pelo mesmo caminho da evolução, irmana dos pelo esforço de redenção, seres amigos, intimamente unidos pelo amor; uma vida menos hostil, mais ampla, mais franca, mais comunicativa, entre seres que se compreendem. Isto quer dizer abolição de fronteiras, vitória, libertação, progresso, pois é a unificação que nos faz subir até Deus. Na atual época dos separatistas, isto é, dos filhos de Satanás, esta é a voz dos unificadores, isto é, dos filhos de Deus. Só assim a realidade fragmentada poderá reencontrar em nós sua unidade, os horizontes de nossa vida poderão dilatar-se e descobrir novas praias longínquas e desconhecidas. A vida de hoje adquiriu a trágica sabedoria das grandes horas em que reina a dor. O intelectualismo que hoje domina o pensamento é, diante desta realidade patente, vão e inútil. Crentes ou não, estamos todos pregados à cruz de Cristo. Na caminhada sem fim, quisemos indicar o único caminho de salvação.
Concluamos, para aqueles que ainda não vêem, com as palavras de S. Paulo:"Ninguém se iluda: se algum dentre vós imagina possuir a sabedoria deste mundo, torne-se louco para se tornar sábio; porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus." Certamente muitos não entendem. Mas, antes de sorrir como céticos, é bom refletir que os fundamentos da sociedade geralmente foram estabelecidos por homens de fé e não por homens apenas de ação. Estes vivem da vida alheia; fecundam, mas não criam; ajudam, mas não despertam a vida. Antes, os primeiros, que parecem utopistas e loucos é que a fazem surgir espalhando centelhas de luz; são os sábios sonhadores, e não os práticos, os que dão os maiores impulsos à humanidade. É bom refletir que o homem mais dinâmico e revolucionário não é o que grita e assalta, mas o que pensa, penetra a verdade e a anuncia sem agredir; que o homem mais destruidor no presente é o que pacificamente cria no futuro, limitando-se, diante do mal, a suportá-lo com paciência, a denunciá-lo cândida e, se preciso, heroicamente a todos. É bom recordar que o ataque mais poderoso, o ataque final, é desfechado, sob forma mansa e persuasiva, pelos verdadeiros demolidores, que ferem as raízes, e não pelos que seguem os caminhos da força que agem externamente e excitam reações; o verdadeiro assalto é aquele que, através do amor e da verdade, leva á convicção.
PIETRO UBALDI
GUBBIO, Páscoa de 1945
Fim.
[1] O leitor, que conhece os outros volumes citados no prefácio, sabe da gênese inspiradora desse escrito e compreende, por isso, que o autor aqui não está se elogiando.
[2] Dou para que dês
[3] Direito romano
[4] Infinitamente
[5] Deusa grega da Vingança e da Justiça distributiva, que reprovava todo excesso. (N da E.)
[6] A maior ordem nasce da integridade dos séculos.
[7] Os senadores são boas pessoas; o senado, entretanto é uma fera.
[8] Dou para que dês. (N. da E)
1 Deusa grega da Vingança e da Justiça distributiva, que reprovava todo excesso. (N. da E.)
[9] Se queres ser perfeito, vai e vende todas as coisas. (N. da E.)
[10] Aonde vais Senhor? (N. da E.)
[11] Direito de usar e abusar. (N. da E.)
[12] Eis o homem. (N. da E.)
[13] Trecho da "Vida de Jesus Cristo", de G. Ricciotti, seguimento 327. (N. do A.)
[14] O povo quer ser iludido; logo, seja iludido. (N, da E.)
[15] Sentido elevado. (N. da E.)
[16] Sustenta-se por si mesma. (N. da E.)
[17] Sem limites (N. da E.)
[18] Batei e abrirse-vos-á. (N. da E.)
[19] Seja feita a tua vontade. (N. da E.)
[20] Senhor, abrirás meus lábios. (N. da E.)
[21] Escrevi este capítulo em S. Sepulcro (Arezzo), em frente do Monte Alverne. (N. do A.)
[22] Assinalai, Senhor, este teu servo Francisco, com os sinais da nossa redenção.
[23] Deus te abençoe e te guarde:
Mostre a ti sua face e compadeça-se de ti
Incline para ti seu rosto e te dê paz:
O Senhor te abençoe Frei Leão.
[24] O Beato Francisco escreveu com sua própria mão esta benção para mim, Frei Leão.
[25] Tal fato foi depois confirmado por resposta do Observatório Astronômico de Capodimonte (Nápoles). (N. do A.)
[26] "Mensagem do Natal" do livro Grandes Mensagens. (N. da R.)