Translate

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Espiritismo Perante a Ciência-Parte 1-Gabriel Delanne

 

VOLTAR ÍNDICEPARTE 1- PARTE 2

GABRIEL DELANNE- O ESPIRITISMO PERANTE A CIÊNCIA

PRIMEIRA PARTE

I - TEMOS ALMA?

II - O MATERIALISMO POSITIVISTA

SEGUNDA PARTE

I - O MAGNETISMO É SUA HISTÓRIA

II - O SONAMBULISMO NATURAL

III - O SONAMBULISMO MAGNÉTICO

IV - O HIPNOTISMO

V - ENSAIO DE TEORIA GERAL

TERCEIRA PARTE

I - PROVAS DA IMORTALIDADE DA ALMA PELA EXPERIÊNCIA

II - AS TEORIAS DOS INCRÉDULOS E O TESTEMUNHO DOS FATOS

III - AS OBJEÇÕES

QUARTA PARTE

I - QUE É O PERISPÍRITO?

II - PROVAS DA EXISTÊNCIA DO PERISPÍRITO - SUA UTILIDADE - SEU PAPEL

III - O PERISPÍRITO DURANTE A DESENCARNAÇÃO - SUA COMPOSIÇÃO

IV - HIPÓTESE

V - ALGUMAS OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

QUINTA PARTE

I - ALGUMAS OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

II - OS MÉDIUNS ESCREVENTES

III - MEDIUNIDADES SENSORIAIS - MÉDIUNS VIDENTES E MÉDIUNS AUDITIVOS

APÊNDICE

NOTAS DE RODAPÉ

clip_image002

Um símbolo da união entre ciência e a religião

PRIMEIRA PARTE

CAPÍTULO I

TEMOS ALMA?

Temos alma? Tal é a questão que nos propomos estu­dar neste capítulo. Parece, à primeira vista, que este pro­blema pode ser facilmente resolvido, porque desde a mais remota Antigüidade as pesquisas dos filósofos tiveram por objeto o homem, sua natureza física e intelectual; poder­-se-ia crer que chegaram a um resultado? Pois bem, confor­me alguns sábios modernos, não é assim.

Os antigos que tinham tomado por divisa a célebre máxima - conhece-te a ti mesmo - não se conheciam. Eles imaginavam que o homem fosse composto de dois elementos distintos: a alma e o corpo; basearam, nessa dualidade, todas as deduções da filosofia, e eis que, em nossa época, uma escola nova acha que eles se enganaram; que em nós tudo é matéria; que a antiga entidade qualifi­cada com o nome de alma não existe; e que é preciso abjurar esse velho erro, filho da ignorância e da supers­tição.

Antes de nos submetermos passivamente a esse aresto, examinemos se os argumentos fornecidos pelos materia­listas têm, realmente, o valor que lhes querem atribuir. Procuraremos acompanhá-los no próprio terreno, e tentárei-nos discriminar o que de verdadeiro e de falso existe em suas teorias. Anteporemos, em relação aos seus traba­lhos, as conclusões imparciais da ciência e da especulação modernas. Dessa comparação nascerá, assim o esperamos, a certeza de que existe em nós um princípio independente da matéria, que dirige o corpo, e a que chamamos alma.

Àqueles que duvidarem da utilidade para o homem, do princípio espiritual, responderemos: não há assunto mais digno de nossa atenção, porque nada nos interessa mais do que o saber quem somos, para onde vamos e donde viemos.

Tais questões se impõem ao espírito, após os doloro­sos acontecimentos aos quais ninguém está isento neste Mundo.

A alma, iludida e mutilada, recolhe-se a si própria, depois dos combates da existência, e indaga por que o homem está na Terra, se seu destino é o de sofrer sempre?

Quando se vê o vício triunfante ostentar o seu esplen­dor, a quem não ocorre a idéia de que os sentimentos de justiça e de honestidade são palavras vãs, sim, afinal de contas, não é a satisfação dos sentidos o fim supremo ao qual aspiram todos os seres?

Quem de nós, tendo ardentemente perseguido a reali­zação de um sonho, não sentiu o coração vazio e a alma desenganada, depois de o haver atingido? Quem de nós não indagou, quando o turbilhão da existência lhe tenha deixado um instante de repouso: - Por que estamos na Terra e qual será o nosso futuro?

O sentimento que nos impele a essa pesquisa é deter­minado pela razão que quer, imperiosamente, conhecer o porquê e o como dos acontecimentos que se realizam em torno de nós. É ela que nos põe no coração o desejo de aprofundar o mistério de nossa existência. Se em meio ao ruído das cidades essa necessidade se impõe algumas vezes ao nosso espírito, com muito maior força, ainda, ela se apossa de nós, quando, ao deixar os centros populo­sos, nos encontramos face a face com as naturezas eternas, imutáveis. Ao contemplar os vastos horizontes de imensa paisagem, os céus profundos, semeados de estrelas, verificam­mos a nossa pequenez no conjunto da criação. E ao lembrar que os mesmos lugares, em que agora nos encontramos, foram pisados por inumeráveis legiões de homens, que não deixaram outros traços além do pó de seus ossos, perguntamos, com angústia, por que esses homens vivem­m, amaram e sofreram?

Quaisquer que sejam as nossas ocupações, quaisquer que possam ser os nossos estudos, somos levados invenci­velmente a ocupar-nos de nosso destino, sentimos a neces­sidade de conhecer-nos e de saber em virtude de que leis nós existimos.

Seremos o joguete das forças cegas da natureza? Nos­sa raça, que apareceu na Terra depois de tantas outras, não será mais que um anel dessa imensa cadeia de seres que se deve suceder em sua superfície? Ou efetivamente será a plena eclosão da força vital imanente de nosso Globo?

A morte, enfim, dissolverá os elementos constitutivos do nosso corpo para os mergulhar de novo no cadinho universal, ou conservaremos, depois dessa transformação, uma individualidade para amar e recordar?

Todos esses pontos de interrogação se erguem diante de nós nas horas de dúvida e de reflexão; eles prendem o espírito na rede de idéias que suscitam e obrigam o mais indiferente dos homens a indagar: Existe a alma?

Um golpe de vista sobre a história da Filosofia

Os mais antigos filósofos de que há lembrança na história acreditavam que éramos duplos, e que em nós residia um princípio inteligente, diretor da máquina huma­na; eles, porém, não aprofundaram as condições do seu funcionamento. As vistam gerais que possuíam eram bastan­te vagas, porque queriam descobrir a causa primária dos fenômenos do Universo.

Em suas pesquisas só se apoiavam em hipóteses; por isso a teoria dos quatro elementos, que resulta dos seus trabalhos, foi abandonada. Mas, fato digno de atenção é o de haver Leucippo admitido, para explicar o mundo sensível, três coisas: o vácuo, os átomos e o movimento, e vemos, hoje, essas deduções, em grande parte, adotadas pela ciência contemporânea.

Com Sócrates apareceu o estudo metódico do homem: esse grande espírito estabeleceu a existência da alma e se baseou em razões de extrema lógica. Platão, seu discípu­lo, levou mais longe ainda essa crença. O filósofo da Academia admitia, a exemplo de Pitágoras, um mundo distinto dos seres materiais: o mundo das idéias. Segun­do Platão, a alma conhece as idéias pela razão; ela as contemplou em uma vida anterior à existência atual.

Eis uma novidade: até então, limitavam-se todos a crer que a alma era feita ao mesmo tempo em que o corpo. A teoria platônica ensinava que ela vive anteriormente: veremos adiante como são justas as suas deduções. Aristóteles, apelidado o príncipe dos filósofos, é tão espiritualista como seus predecessores e cumpre reconhecer que toda a Antigüidade acreditou na existência da alma, como em sua imortalidade. As lutas entre as diferentes escolas provinham, antes, das divergências na explicação dos fenômenos do entendimento, que da alma em si mesma.

Foi assim que se criou a facção sensualista, cujos representantes mais ilustres foram Leucippo e Epicuro. Este último, fazia derivar todos os conhecimentos da sensa­ção. Admitia a alma, mas a supunha formada de átomos e, por conseqüência, incapaz de sobreviver à morte do corpo. Era, pois, em realidade, um materialista, e se achava em oposição formal com os idealistas representados por Sócrates, Platão e Aristóteles.

Zenon pode ser filiado a essa escola, mas, diversa­mente de Epicuro, separava a sensação das idéias gerais, e os sentidos, da razão.

Sem ir tão longe quanto os cínicos, os estóicos consi­deravam indiferentemente os prazeres e as penas. Julgavam imorais todas as ações que se afastavam da lei e do dever. Esta severidade de princípios foi, durante muitos séculos, a força da Humanidade, e o único dique contraposto às paixões desenfreadas da Antigüidade pagã.

A escola neoplatônica de Alexandria forneceu lumino­sos gênios, tais como Orígenes, Porfírio, Jamblico, que souberam elevar-se até as mais sublimes concepções da filosofia. ,

Eles admitem a preexistência da alma e a necessidade de seu regresso a Terra.

Achavam o homem incapaz de adquirir, de uma só vez, a soma dos conhecimentos que o elevasse a uma condição superior, e defenderam essa nobre doutrina, com coragem e audácia sem iguais, contra os sectários do Cris­tianismo nascente.

Próclus foi o último reflexo desse foco intelectual, e a Humanidade ficou, durante longos séculos, amortalhada sob as espessas trevas da Idade Média.

Nessa época de crença não se duvidava da alma nem da imortalidade, mas os dogmas da Igreja, que se adapta­vam, maravilhosamente, ao espírito bárbaro das nações atrasadas, tinham-se tornado impotentes em face do des­pertar das consciências.

A antiga filosofia apoiava-se na razão; a teologia de São Tomás de Aquino só repousava na fé; e as tentativas de libertação, que resultavam do divórcio entre a fé e a razão, eram cruelmente punidas.

Sendo o progresso uma lei do nosso Globo, devia chegar o momento em que se efetuaria o acordar das inteli­gências; foi o que se deu com Bacon. Este sábio, fatigado com as disputas dos escolásticos que se esgotavam em discussões estéreis, atraiu as atenções para o estudo da natureza. Criou-se com ele a ciência indutiva. O sábio recomendou, antes de tudo, a ordem e a classificação nas pesquisas: quis que a filosofia saísse de seus antigos limi­tes; abriu um campo novo às investigações e sugeriu a observação como mais seguro meio de chegar à verdade.

Morto Bacon, revelou-se, em França, Descartes. Este profundo pensador repeliu todos os dados antigos, para adquirir conhecimentos novos por meio de um método que descobriu. Partindo do princípio: eu penso, logo exis­to, Descartes estabelecia a existência e a espiritualidade da alma; porque, dizia ele, se pode supor que o corpo não exista, é impossível negar o pensamento, que se afirma por si próprio, cuja existência se verifica à medida que ele se exerce. Em uma palavra, somos algo que ouve, que concebe, que afirma, que nega, que quer ou não quer.

Nestas condições, a faculdade de pensar pertence ao indiví­duo, abstração feita dos órgãos do corpo.

O método preconizado por esse poderoso renovador inspirou uma plêiade de grandes homens, entre os quais podemos citar: Bossuet, Fénelon, Mallebranche e Spinosa. Ao mesmo tempo, o impulso baconiano formava Hobbes, Gassendi e Locke.

Segundo Hobbes, não existe outra realidade além do corpo, outra origem de nossas idéias além da sensação, outro fim na natureza além da satisfação dos sentidos; seu modo de ver também levava diretamente à apologia do despotismo como forma social.

Gassendi foi um discípulo de Epicuro, de quem reno­vou as doutrinas; mas, o mais célebre filósofo dessa época é Locke, que pode ser encarado, com justa razão, como fundador da psicologia. Ele combateu o sistema cartesiano das idéias inatas e imprimiu, na Inglaterra e na França, grande impulso aos estudos filosóficos.

Quase na mesma época viveram Bossuet e Fénelon, que escreveram admiráveis livros sobre Deus e a alma. Em tais obras, cheias da lógica mais sã, podemo-nos con­vencer da existência dessas grandes verdades tão bem pos­tas em relevo por aqueles eminentes espíritos. A profun­deza dos pensamentos é realçada, ainda, por uma lingua­gem admirável e nunca o espírito francês ostentou maior clareza, elegância e força como nesses livros imortais.

Leibnitz, a mais vasta inteligência produzida nos tem­pos modernos, colocou-se entre as duas escolas que se disputavam o império dos espíritos, entre Locke e Descar­tes. Refutou o que ambos tinham de absoluto; mas, com sua morte, seu sistema não tardou a ser abandonado, mes­mo na Alemanha, onde havia inicialmente sido acolhido com simpatia.

Na França, os Enciclopedistas fizeram triunfar as idéias de Locke; elas conduziram, com Condillac, Helve­tius e d'Holbach a um materialismo absoluto; esse materia­lismo é a conseqüência inevitável das teorias, que, reduzin­do o homem à pura sensação, não podem assinalar-lhe outro fim que não o da felicidade material.

Não tardou a verificar-se quanto esse método, chama­do empirismo, levava a tristes resultados. Sentiu-se, impe­riosamente, a necessidade de uma reforma e ela foi realiza­da por Thomas Reid, na Escócia, e Emmanuel Kant, na Alemanha.

Em França, a escola eclética admitiu o racionalismo de Descartes e brilhou com vivo clarão sustentando a tese espiritualista.

As vozes eloqüentes de Jouffroy, Cousin, Villemain demonstraram a existência e a imaterialidade da alma, com tal evidência, que lhes coube a vitória no terreno filosófico. Mas a escola materialista operou uma alteração de frente; deixando o domínio da especulação, desceu ao estudo do corpo humano e pretendeu demonstrar que, em nós, o que pensa, o que sente, o que ama, não é uma entidade chamada alma, senão o organismo humano, a matéria, que só ela pode sentir e perceber.

Devemos confessar que, para a massa dos leitores, é difícil tomar pé, em meio às contradições, aos sistemas e às utopias pregadas pelos maiores espíritos. Cansam as pesquisas metafísicas que se agitam no vazio; exige-se o retorno ao estudo meticuloso dos fatos: daí o êxito dos positivistas.

É preciso, entretanto, colocar nitidamente a questão. A fim de que o equívoco não seja mais possível, vamos fazê-lo o mais claramente que pudermos.

Só podem existir duas suposições quanto à natureza do princípio pensante: matéria ou espírito; uma sujeita à destruição, o outro imperecível.

Todos os meios termos, por mais sutis que sejam, epicurismo, espinosismo, panteísmo, sensualismo, idealis­mo, espiritualismo vêm confundir-se nestas duas opiniões.

Que importa, diz Foissac, que os epicuristas admi­tam uma alma racional formada dos átomos mais polidos e mais perfeitos, se essa alma morre com os órgãos, ou se, pelo menos, os átomos que a formam se desagregam e voltam ao estado elementar? Que importa que Spinosa e os panteístas reconheçam que um Deus vive em mim, que minha alma é uma parcela do grande todo? Não conce­bo a alma senão com o caráter de unidade indivisível e a conservação da individualidade do eu. Se minha alma, depois de ter sentido, sofrido, pensado, amado, esperado, vai-se perder nesse oceano fabuloso chamado a alma do Mundo, o eu se dissolve e desaparece: isto é a extinção e a morte de minhas afeições, de minhas recordações, de minhas esperanças, é o abismo das consolações desta vida e o verdadeiro nada da alma.

Assim, a alternativa é esta: ou com a morte terrestre, todo o ser desaparece e se desagrega, ou dele resta uma emanação, uma individualidade que conserva o que consti­tuía a personalidade, isto é, a memória, e, como conse­qüência, a responsabilidade.

Pois bem, restringindo-nos ao terreno dos fatos, va­mos passar em revista as objeções que se nos opõem e demonstrar que a alma é uma realidade que se afirma pelo estudo dos fenômenos do pensamento; que jamais se a poderia confundir com o corpo, que ela domina; e que, quanto mais se penetra nas profundezas da fisiologia, tanto mais se revela, luminosa e clara, aos olhos do pesquisador imparcial, a existência de um princípio pensante.(1)

As teorias materialistas

Os mais ilustres representantes das teorias materia­listas são, na Alemanha, Moleschott e Büchner. Eles reuni­ram em suas obras a maior parte dos argumentos que mili­tam em seu favor. Vamos examinar, primeiro, os sistemas que eles preconizam. Em outro capítulo, ocupar­-nos-emos com uma segunda categoria de adversários: os positivistas.

Compulsando os anais da fisiologia, ou sejam, os fenômenos da vida, é que os sábios acima citados esperam provar que estão certos. Eles examinam minuciosamente todos os elementos que entram na composição dos corpos organizados, estabelecem com autoridade a grande lei da equivalência das forças que se traduz nas ações vitais, medem, pesam, analisam com talento excepcional todas as ações físicas e químicas que se verificam no corpo humano. Mas se, deixando as ciências exatas, se aventuram no domínio filosófico, bem se lhes pode recusar o tes­temunho.

É que eles tentam, com efeito, uma empresa impossí­vel. Querem banir dos conhecimentos humanos todos os fatos que não caem diretamente sob os sentidos.

Na pressa de repelir idéias antigas, não refletem que admitem causas tão estranhas, entidades científicas tão bizarras como as dos espiritualistas.

Não vemos, em primeiro lugar, esses sábios que rejei­tam a alma, porque ela é imaterial, admitirem a existência de um agente imponderável, invisível e intangível que se chama vida? Que é, com efeito, a vida? É, responde Longet, o conjunto das funções que distinguem os corpos organizados dos corpos inorgânicos. Não avançamos nada sobre o conhecimento da vida, aceitando essa definição, porque ignoramos sempre qual é a causa dessas funções. Elas não se executam senão em virtude de uma força que age constantemente, que se conhece por seus efeitos, mas cuja natureza íntima permanece sempre um mistério.

Que força é esta que anima a matéria, que dirige as operações tão numerosas e tão complicadas que se pas­sam no interior do corpo?

Nossas máquinas, ainda tão rudimentares, exigem, se as comparamos ao mais simples vegetal, um cuidado constante para o bom funcionamento de cada uma de suas partes, uma vigilância contínua para remediar os acidentes que se podem produzir. Na natureza, ao contrário, tudo se executa maravilhosamente. As ações mais diversas, as mais dissemelhantes combinam-se para manter essa harmo­nia que constitui o ser em bom equilíbrio orgânico.

Que é o que designa a cada substância o posto que ela deve ocupar no organismo? O que repara essa máquina quando ela vem a estragar-se? Em uma palavra, que poder é este, de que resulta a vida?

Para responder a essas perguntas, os fisiologistas ima­ginaram uma força, que denominam princípio vital. Deseja­mos muito acreditar nessa força, mas faremos observar que esse princípio é invisível, intangível, imponderável, que não acusa sua presença senão pelos efeitos que mani­festa, e que os espiritualistas estão nas mesmas condições quando falam da alma. Se os materialistas admitem a vida e nenhum deles a pode negar, nenhuma razão têm para repelir a existência do princípio pensante do homem.

Moleschott publicou uma obra intitulada - A circula­ção da vida, na qual expõe a nova forma das crenças materialistas. Vamos resumi-Ia rapidamente, para que se veja como são desprovidas de justeza suas alegações e por que sofismas consegue-o dar às suas deduções uma aparência de lógica.

Estabelece, como princípio, que não podemos verifi­car em nós e em torno de nós senão a matéria; que nada existe sem ela; que o poder criador reside em seu seio, e que pelo seu estudo é que o filósofo pode tudo explicar.

Discorre, complacentemente, sobre as provas que a ciência forneceu a respeito dessa grande frase de Lavoi­sier: - nada se cria, nada se perde. A balança demonstra, que em suas transformações, os corpos se decompõem, mas os átomos que os constituem podem reencontrar-se integralmente em outras combinações. Ou, dito por outra forma, não se cria matéria.

O corpo do homem rejeita o que nutre a planta; a planta transforma o ar, que nutre o animal; o animal nutre o homem, e os seus resíduos, levados pelo ar à superfície da terra vegetal, renovam e entretêm a vida das plantas. Todos os mundos: vegetais, minerais, animais, se unem, se penetram, se confundem e transmitem a vida por um movimento que é dado ao homem verificar e compreender. Eis por que - diz ele - circulação da matéria é a alma do Mundo.

Esta matéria que nos aparece sob aspectos tão diver­sos, que se transforma em tão múltiplos avatares, é, entre­tanto, sempre a mesma. Como essência é imutável, eterna. Moleschott faz notar que é ela inseparável de uma de suas propriedades: a força. Não concebe uma sem a outra. Não pode admitir que a forma exista independente da maté­ria, ou vice-versa. Daí conclui que as forças designadas sob os nomes de Deus, alma, vontade, pensamento, etc. são propriedades da matéria. Segundo ele, acreditar que essas forças possam ter uma existência real é cair num erro ridículo.

Ouçamo-lo:

Seria uma idéia absolutamente sem significação a de que uma força pairasse acima da matéria e pudesse, à vontade, casar-se com ela. As propriedades do azoto, do carbono, do hidrogênio, do oxigênio, do enxofre, do fósforo, residem em si de toda a eternidade. Daí resulta que a força vital, a idéia diretriz, a alma, não passam, realmente, de modificações da matéria, de alguns dos seus aspectos particulares. A matéria, por toda parte e sempre, sob infinita variedade de formas, não é mais que a combinação físico-química dos elementos.

Tais são, em suas grandes linhas, as primeiras afirma­ções de Moleschott. Serão exatas? É o que se trata de verificar. Resumamos.

1 - Ele nega, em absoluto, todo plano, toda vontade dirigente na marcha dos acontecimentos do Universo.

2 - Ele afirma que a força é um atributo da matéria. Vejamos se os fatos lhe dão razão.

A idéia diretriz

Notamos em primeiro lugar, que existem, no infinito, terras como a nossa, que obedecem a regras invariáveis, cuja harmonia é de tal forma grandiosa, que o espírito, espantado e confuso diante de tantas maravilhas, não pode duvidar de que uma profunda sabedoria tenha presidido ao seu planejamento. Não será a um sábio como Moleschott que seja necessário lembrar essa extrema complicação da máquina celeste, nem preciso mostrar esses milhares de milhões de mundos que rolam no éter, e emaranham suas órbitas numa harmonia tão poderosamente combinada, que a mais fértil imaginação mal lhes pode aprofundar as leis mais simples.

Quem não se sente maravilhado diante do esplendor de uma bela noite de verão? Quem não estremeceu de indescritível emoção vendo essa poeira de sóis suspensa no espaço? Quem não sentiu involuntário terror ao lembrar­-se de que o astro que nos conduz caminha no éter, sem outro sustentáculo que a atração de um planeta longínquo? E quem não refletiu um dia que os movimentos tão precisos deste vasto maquinismo revelaram a inteligência de um sublime operário? Quem não compreendeu que a harmonia não pode nascer do caos e que o acaso, essa força cega, não poderia engendrar a ordem e a regularidade?

Sim, nos espaços sem limites, dão-se as transforma­ções eternas da matéria; sim, ela muda de aspectos, de propriedades, de formas, mas verificamos que o faz em virtude de leis imutáveis, guiadas pela mais inflexível lógi­ca; eis por que acreditamos em uma inteligência suprema, reguladora do Universo.

Se, desviando os olhos da abóbada azulada, lançarmos a vista em torno de nós, notaremos a mesma influência diretriz.

Sabemos, como Moleschott, que nada se cria, que nada se perde em nosso pequeno mundo. A Astronomia nos ensina que a Terra rodopia em torno do Sol através dos campos da extensão e sabemos que a gravidade retém em sua superfície todos os corpos que a compõem. Pode­mos compreender, perfeitamente, portanto, que ela não adquire nem perde coisa alguma em sua incessante carreira.

Provam-nos as novas descobertas que todas as subs­tâncias se transformam umas nas outras, que os corpos, estudados à luz da química, diferem pelo número e pela proporção dos elementos simples que entram em sua com­posição. Nada é mais exato e ninguém pensa em contestar essas verdades demonstradas.

Se encararmos a multiplicidade enorme das trocas que se realizam entre todos os corpos, o que mais nos surpreen­de não são essas combinações em si, mas o maravilhoso conhecimento das necessidades de cada ser que elas ates­tam. Nada se perde no imenso laboratório da natureza. Todos os seres, por ínfimos que nos pareçam, têm sua utilidade para o bom funcionamento do conjunto da cria­ção; cada substância é utilizada por forma a produzir seu máximo de efeito, e a circulação da matéria entretém a vida na superfície do nosso Globo. Sim, esse movimento perpétuo é a alma do Mundo, e, quanto mais complicado ele é, quanto mais variado, tanto mais testemunha em favor de uma ação diretriz.

A ciência contemporânea descobriu nossas origens; sabemos que, desde quando a Terra não era mais que um amontoado de matéria cósmica, produziram-se meta­morfoses que a trouxeram lentamente, gradualmente, à época atual. É em razão dessa progressão evolutiva que reconhecemos a necessidade de uma influência que se exer­ce de maneira constante, para conduzir os seres e as coisas, da fase rudimentar, a estados cada vez mais aperfeiçoados.

Não se pode negar, quando examinamos o desenvolvi­mento da vida através dos períodos geológicos, que uma inteligência haja dirigido a marcha ascendente de tudo o que existe, para um fim que ignoramos, mas cuja existên­cia é evidente.

É fácil verificar que os seres se têm modificado de maneira contínua, em virtude de um plano grandioso, à medida que as condições da vida se transformam à superfície do Globo; encontramos nas entranhas da Terra o esboço da maior parte das raças, vegetais e animais, que compõem, hoje, a fauna e a flora terrestres.

A que agente atribuir essa marcha progressiva? É o acaso que combina, com tanto cuidado, a ação de todos os elementos? Seria absurdo supô-lo, pois o acaso é uma palavra que significa a ausência de todo o cálculo, de toda a previsão.

Afastada esta hipótese, restam-nos as leis fisico-quí­micas de que fala Moleschott. Faremos ainda aqui observar que essas leis não são inteligentes. Nunca se admitiu que o oxigênio se combinasse por prazer com o hidrogênio; o azoto, o fósforo, o carbono, etc. têm propriedades que possuem de toda a eternidade, é evidente; mas não é menos verdade que se trata de forças cegas, que não se dirigem em virtude de um impulso próprio, e se estas energias passivas ao se aliarem produzem resultados harmônicos, bem coordenados, é que elas são postas em ação por um poder que as domina. A Química, a Física, a Astronomia, explicando os fatos que pertencem as suas respectivas esfe­ras, de forma alguma atingiram a causa primária. A Biolo­gia moderna também não toca nessa causa; não suprime Deus; ela o vê mais longe, e, sobretudo, mais alto.

A força é independente da matéria

Examinemos, agora, a segunda proposição de Moles­chott, que pretende seja a força um atributo da matéria, isto é, que impossível seja conceber uma sem a outra.

Em sua opinião, estudar separadamente a força e a matéria é uma falta de senso, donde resulta que, estando a energia contida na matéria, as forças como a alma, o pensamento, Deus, não são mais que propriedades dessa matéria. Se demonstrarmos que tal asserção é falsa, estabe­leceremos, implicitamente, a realidade da alma. Para res­ponder a um sábio não há melhor método que o de lhe opor outros sábios.

Diz d'Alembert, secundando Newton, que um corpo abandonado a si próprio deve persistir eternamente em seu estado de movimento ou de repouso uniforme. Em outras palavras: estando um corpo em repouso, não poderia por si mesmo deslocar-se.

Laplace assim exprime o mesmo pensamento. Um ponto em repouso não pode dar a si o movimento, pois que não dispõe de raciocínio que o faça mover num sentido em vez de outro. Solicitado por uma força qualquer e, em seguida, abandonado a si mesmo, move-se constantemente de maneira uniforme, na direção dessa força; não experimenta nenhuma resistência; em todo o tempo, sua força e sua direção de movimento são as mesmas. Essa tendência da matéria para perseverar em seu estado de movimento e de repouso é o que se chama a inércia. É esta a primeira lei do movimento dos corpos.

Assim, Newton, d'Alembert e Laplace reconhecem que a matéria é indiferente ao movimento e ao repouso, que só se move quando uma força atua sobre ela, porque, naturalmente, é inerte. É, portanto, uma afirmação gratuita e sem fundamento científico, atribuir força à matéria. Cremos que dificilmente podem recusar-se o testemu­nho e a competência dos três grandes homens acima cita­dos; para dar mais peso, entretanto, à nossa asserção, diremos que o Cardeal Gerdil e Euler estabelecem, por cálculos matemáticos, a certeza da inércia dos corpos; não podemos reproduzi-los aqui, mas faremos valer um argumento decisivo, em apoio de nossa convicção. Temos excelente prova do princípio da inércia nas aplicações que se fizeram das teorias da mecânica aos fenômenos astronômicos.

Com efeito, se esta ciência que tem por base a inércia não se apoiasse em um fato real, suas deduções seriam falsas e inverificáveis pela experiência. Se a lei da inércia não passasse de uma concepção do espírito, sem nenhum valor positivo, fora impossível a Leverrier achar e calcular a órbita de um planeta desconhecido, até sua época, e suas previsões, sobretudo, jamais se teriam realizado, as quais, entretanto, se verificaram ponto por ponto.

Esta descoberta demonstra que as leis encontradas pela razão são exatas, porque se verificam pela observação de um fenômeno cuja possibilidade não se suspeitava, quan­do os princípios da mecânica celeste foram estabelecidos. Não é evidente que se conheciam as propriedades dos corpos e mais tarde se conheceram as curvas que eles descrevem, muito antes de se ter observado no céu o movimento dos astros? Ora, não sendo a mecânica senão o estudo das forças em ação, é certo que suas leis são rigorosas, porque se verificam na Natureza.

Não só os matemáticos trataram desta questão: M. H. Martin, em seu livro - As ciências e a Filosofia, de­monstra, segundo o Sr. Dupré, que em virtude das leis da termodinâmica, é necessário admitir uma ação inicial exterior e independente da matéria.

É, aliás, fácil a convicção, raciocinando de acordo com o método positivo, de que o testemunho dos sentidos não pode fazer-nos ver a força como um atributo da maté­ria; ao contrário, verificamos pela experiência cotidiana que um corpo fica inerte e permanecerá eternamente na mesma posição, se nada lhe vier dar o movimento. Uma pedra, que lançarmos, permanece, depois de sua queda, no estado em que se achava, quando a força que a animava cessou de atuar. Uma bola não rolará sem o primeiro impul­so que lhe determine o deslocamento. Sendo o Universo o conjunto dos corpos pode dizer-se do conjunto da criação o que se diz de cada corpo em particular, e se o Universo está em movimento, é impossível achar que a causa desse movimento esteja em si próprio.

Vê-se até aqui que Moleschott não foi feliz na escolha de suas afirmações. Erige como verdade os pontos mais contestáveis; não é, pois, de surpreender que, partindo de dados tão falsos, chegue a conclusões absolutamente errôneas. O estudo imparcial dos fatos nos leva a encarar o Mundo como formado de dois princípios independentes um do outro: a força e a matéria.

É preciso, além disso, observar que a força é a causa efetiva a que obedecem aos seres, orgânicos ou não. Todas as forças, portanto, designadas sob os nomes de Deus, alma, vontade, têm uma existência real fora da matéria e esta é o instrumento passivo, sobre o qual elas se exer­cem.

Continuemos a análise do livro de Moleschott e vere­mos que em suas apreciações sobre o homem ele não mostra mais perspicácia do que em seu estudo sobre a Natureza.

O grande argumento que ele oferece como prova de convicção é o mesmo que o dos materialistas em geral. Consiste em dizer - o cérebro é o órgão pelo qual se manifesta o pensamento, logo, é o cérebro que segrega o pensamento. Esse raciocínio é quase tão lógico como se disséssemos - o piano é o instrumento que serve para que se faça ouvir uma melodia, logo, o piano segrega a melodia.

Se alguém se exprimisse por tal forma diante de um incrédulo, é mais que provável que ele encolheria os om­bros desdenhosamente; mas, fato estranho, quando se trata da alma, ele aceita imediatamente semelhante maneira de discutir. É que os materialistas não querem, sob nenhum pretexto, acreditar num princípio pensante; negam a exis­tência do músico, daí as singulares teorias que nos expõem.

Os materialistas se encontram em face desse proble­ma: o homem pensa; o pensamento não tem nenhuma das qualidades da matéria; é invisível, não tem forma, nem peso, nem cor; entretanto, existe. É preciso, pois, por se mostrarem coerentes, que o façam provir da matéria.

Certo, a dificuldade é grande para explicar como uma coisa material, o cérebro, pode engendrar uma ação imate­rial, o pensamento. Vamos ver, então, desfilarem os sofis­mas, com o auxílio dos quais nossos adversários dão a aparência de um arrazoado.

O cérebro é necessário à manifestação do pensamento; os filósofos gregos já o sabiam e não caíam, por isso, no erro dos cépticos de hoje; estabelecem a distinção entre a causa e o instrumento que serve para produzir o efeito. Certos fisiologistas, como Cabanis, não encaravam o assunto de tão perto. Este diz, com efeito:

Vemos as impressões chegarem ao cérebro por intermédio dos nervos; elas se acham, então, isoladas e sem coerência. O órgão entra em ação, age sobre as impressões e as reenvia metamorfoseadas em idéias, que se manifestam, exteriormente, pela linguagem da fisionomia ou do gesto, pelos sinais da palavra ou da escrita. Concluímos, com a mesma segurança que o cérebro digere, de alguma sorte, estas impressões; que ele faz, organicamente, a secreção do pensamento.

Tal doutrina tão bem se implantou no espírito dos materialistas que, segundo Carl Vogt, os pensamentos têm com o cérebro quase a mesma relação que a bílis com o figado ou a urina com os rins.

Broussais já tinha dito em seu testamento:

Desde que eu soube, pela cirurgia, que o pus acumulado à superfície do cérebro destruía nossas faculdades, e que a saída desse pus lhes permitia o reaparecimento, não as pude considerar de outra forma que não atos do cérébro vivo, embora não soubesse nem o que era o cérebro, nem o que era a vida.

Moleschott, seguindo nessa alheta, diz a seu turno, variando um pouco a argumentação:

O pensamento não é mais que um fluido, como o calor ou o som; é um movimento, uma transformação da matéria cerebral; a atividade do cérebro é uma propriedade do cérebro, tão necessária como a força, por toda a parte inerente à matéria, de que é caráter essencial e inalienável. É tão impossível que o cérebro intacto não pense, como é impossível seja o pensamento ligado à outra matéria que não o cérebro.

Segundo o sábio químico, qualquer alteração do pen­samento modifica o cérebro, e qualquer dano a esse órgão suprime o pensamento no todo ou em parte.

Sabemos, afirma ele, por experiência, que a abun­dância excessiva do líquido céfalo-raquidiano produz o estupor; a apoplexia é seguida do aniquilamento da cons­ciência; a inflamação do cérebro provoca o delírio; a sínco­pe, que diminui o movimento do sangue para o cérebro, provoca a perda do conhecimento; a afluência do sangue venoso para o cérebro produz a alucinação e a vertigem; uma completa idiotia é o efeito necessário, inevitável da degenerescência dos dois hemisférios cerebrais; enfim, to­da excitação nervosa na periferia do corpo só desperta uma sensação consciente no momento em que repercute no cérebro.­

Conclui, pois, que nos fenômenos psicológicos o que se observa é a eterna dualidade da criação; uma força, o pensamento que modifica; uma matéria, o cérebro.

Toda a argumentação de Moleschott consiste em di­zer que, com órgãos sãos, os atos intelectuais se exercem facilmente; ao contrário, se o cérebro adoece, a alma não pode mais se servir dele, e as faculdades reaparecem quan­do as causas que o alteravam cessam de agir.

É sempre a história do piano. Se uma das cordas chega a quebrar-se, será impossível fazer vibrar a nota que lhe corresponde; substitua-se a corda e imediatamente o som voltará a produzir-se. Mas, quando fosse demons­trado que o pensamento é sempre a resultante do estado do cérebro, não bastaria isso para afirmar-se que o encéfalo produz o pensamento. Quando muito, daí se poderiam induzir as relações íntimas existentes entre ambos. Não está ainda provado que a integridade do cérebro seja indispensável à produção dos fenômenos espirituais.

Eis o que diz Longet, cuja competência em fisiologia é unanimemente reconhecida:

Nunca se negou à solidariedade dos órgãos sãos com uma inteligência sã - mens sana in corpore sano; mas essa dependência tão natural não é de tal forma absoluta que se não encontrem numerosos exemplos do contrário; vêem débeis crianças assombrar pela precocidade da inteligência e extensão do espírito; velhos decrépitos, já vizinhos da tumba, conservam intactos os julgamentos, a memória, o fogo do gênio, o ardor da coragem.

Há poucos anos, o Professor Lordat escreveu notável tratado sobre a insenescência(2) do senso íntimo nos velhos.

A loucura é acompanhada, muitas vezes, de uma lesão apreciável dos centros nervosos; mas, que diremos dos casos em que Esquirol e os autores mais conscienciosos afamam não haver encontrado nenhum vestígio de alteração no cérebro? Os anais da Ciência nos fornecem grande número de fatos, perfeitamente observados, de alteração profunda da substância cerebral, sem que, durante a vida, se haja notado a mais leve alteração da inteligência.

Viram-se porções do cérebro retirado, balas atravessarem esse órgão de um lado a outro, sem o menor desarranjo do espírito; basta, entretanto, alguns delgados filetes de sangue em um pequeno ponto, para acender a febre, excitar um delírio furioso e trazer rapidamente a morte. Apresse­mo-nos em reconhecer que a integridade dos órgãos, sua boa conformação, um volume suficiente são condições favoráveis ao livre exercício, ao vigor das faculdades intelectuais, mas não confundamos o órgão com a função; e é, sobretudo, falando do cérebro e do pensamento, que essa distinção se torna importante, porque muitos órgãos da economia concorrem para esse grande fenômeno da vida intelectual: a privação do ar a faz cessar imediatamente; uma bala que atravessa o coração a destrói com rapidez. Quem ousaria, entretanto, dar como causa primária ao pensamento, o ar que respiramos ou o sangue vermelho que circula nos canais arteriais?

Eis o que diz a Ciência e parece-nos que suas conclu­sões não são inteiramente a favor de Moleschott; não é possível afirmar que o pensamento esteja sempre em harmonia com a integridade do cérebro, logo, ele não é produzido pelo cérebro.

Vimos também, mais acima, o sábio holandês atribuir o pensamento a uma vibração da matéria cerebral. Seria essa teoria mais justa que as precedentes? Vamos vê-lo imediatamente.

Desde logo esbarramos numa dificuldade; é difícil compreender como uma sensação gera uma idéia. A sensa­ção é uma impressão produzida nos nervos sensitivos por um abalo externo; este determina um movimento ondulató­rio que se propaga até o cérebro pelas fibras nervosas. Lá chegado, esse movimento faz vibrar as células do senso­num. Como pode o movimento mecânico das células deter­minar uma idéia? Como compreender que esse abalo seja percebido pelo ser pensante?

As células nervosas, formadas de colesterina, água, fósfo­ro, ácido humico, etc., associados em certas proporções, não é, por si mesma, inteligente; o movimento vibratório é simples ação material. Como pode o pensamento nascer desse abalo da célula nervosa? Foi o que se esqueceram de ensinar-nos.

Os espiritualistas interpretam os fatos dizendo que há em nós umas individualidades intelectuais, que é advertida por essa vibração de que uma ação foi exercida sobre o corpo, e é quando a alma tem consciência desse movi­mento vibratório que nós experimentamos a percepção. O que prova até à evidência que tudo se passa assim é o fenômeno tão ordinário da distração.

Quando trabalhamos num aposento, não acontece fre­qüentemente ficarmos insensíveis ao tique-taque de um relógio? E não sucede, mesmo, ficarmos insensíveis às horas que batem? Por que não as ouvimos? As vibrações, produzidas pelo som impressionaram nosso ouvido, propa­garam-se através do organismo até o cérebro, mas, estando a alma preocupada por outros pensamentos, não pôde trans­formar a sensação em percepção, de sorte que não tivemos consciência dos ruídos produzidos pelo relógio. Esse sim­ples fato demonstra, de maneira concludente, a existência da alma.

Outras objeções

Estamos certos, agora, de que o pensamento não é produzido, nem pelo conjunto do cérebro, nem por um movimento vibratório de suas moléculas. Asseguremo-nos de que não é ele além disso produto da matéria cerebral.

Retomemos, para examiná-las, as teorias de Cabanis e Carl Vogt: é possível que o pensamento seja uma secre­ção do cérebro? Tão falsa se apresenta essa idéia, tão pouco em harmonia com a realidade dos fatos, que um declarado materialista como Büchner recusa-se admiti-Ia.

Diz-nos ele:

Apesar do mais escrupuloso exame, não podemos encontrar analogia entre a secreção da bílis ou a da urina, e o processo pelo qual se forma o pensamento no cérebro. A urina e a bílis são matérias palpáveis, ponderáveis e visíveis; e ainda mais, matérias excrementícias que o corpo usou e que ele rejeita. O pensamento, o espírito, a alma, pelo contrário, nada tem de material, não é ela mesma uma substância mas o encadeamento de forças diversas formando uma unidade, o efeito do concurso de muitas substâncias dotadas de forças e de qualidades.

Quando uma máquina feita pela mão do homem produz um efeito, põe em movimento seu mecanismo ou outros corpos, dá uma pancada, indica a hora ou coisa semelhante, esse efeito, considerado em si, é coisa essencialmente diferente de certas matérias excrementícias que ela produz, talvez, durante essa atividade.

Assim, o cérebro é o princípio e a fonte, ou, para melhor dizer, a causa única do espírito, do pensamento; mas, não é por isso o órgão secretor. Ele produz algo que não é rejeitado, que não dura materialmente, mas que se consome a si mesmo no momento da produção. A secreção do fígado, dos rins, se realiza sem o sabermos, independentemente da atividade superior dos nervos; ela produz uma matéria palpável. A atividade do cérebro não pode existir sem a consciência completa e não segrega substâncias, porém forças. Todas as funções vegetativas, a respiração, a pulsação do coração, a digestão, a secreção dos órgãos excretores se verificam tanto no sono como em estado de vigília; mas as manifestações da vida se suspendem no momento em que o cérebro, sob a influência de uma circulação mais lenta, fica mergulhado no sono.

Para Büchner o pensamento não é uma secreção; pro­vém de um conjunto de forças diversas que formam unida­de; é uma resultante; mas uma resultante de quê? Será do conjunto do cérebro ou somente de certas partes? Pode­rá algo invisível e imponderável, como o pensamento, ser produzido por diferentes órgãos que se reúnem para um efeito comum?

O Autor nada nos diz, nem temos necessidade de explicação para perceber que essa maneira de encarar o pensamento é ainda errônea. Büchner reconhece que o pensamento é imaterial; perguntamos, agora, como poderia ser produzido pelo cérebro, que só se compõe de matéria?

Abordemos mais de perto o assunto e veremos que, de qualquer maneira que o encaremos, é impossível supor que o cérebro segregue o pensamento, ou que este dele se desprenda, como a eletricidade dos corpos que a contém.

É evidente, averiguado, incontestável, que o trabalho cerebral determina uma elevação de temperatura no cére­bro. Produz-se uma oxidação das células, que se pode medir, como fez Schiff, operando sobre cães ou sobre o homem; como o atestam as experiências de Broca, em estudantes de medicina; ou, enfim, as de Bayson, que pesava os sulfatos e os fosfatos que entravam em seu corpo pela alimentação, para demonstrar que a quantidade dos sais, rejeitada pelas excreções, aumentava de maneira sensível, após um trabalho cerebral.

Como podem estas experiências, de que os materia­listas têm pretendido fazer um argumento, infirmar a exis­tência da alma? Elas demonstram, simplesmente, que quan­do o cérebro trabalha, o sangue aí aflui e determina uns movimentos moleculares, que se traduz materialmente por ações químicas. Acreditar que o pensamento seja o produto dessas reações seria erro grave, porque, se o cérebro segre­ga o pensamento, é preciso explicar a natureza e o resulta­do dessa secreção. É um líquido, um sólido, um corpo simples ou composto? Desde que se afaste resolutamente a hipótese espiritual, deve-se estabelecer que, pela eleva­ção de temperatura, se obtém um objeto material. Ora, quem pretenderá jamais que o pensamento, esta coisa fugi­tiva, esteja nesse caso?

Admitindo que o pensamento é uma força, como a eletricidade e o calor, que emana do cérebro em certos momentos, e como toda força é um movimento vibratório do éter, recairemos na teoria de Moleschott, que demons­tramos falsa.

Vê-se, qualquer que seja o processo de análise empre­gado, que é impossível supor o pensamento como emanação do cérebro e ainda menos como secreções ou vibrações da matéria cerebral. Não podemos admitir os sistemas ma­terialistas sem nos encontrarmos em oposição formal com os fatos e com a razão; e, se verificamos no cérebro uma série de atos que precedem, acompanham ou seguem o pensamento, é absolutamente ilógico atribuir-lhes a produ­ção desse pensamento.

Uma das faculdades da alma que mais têm chamado a atenção dos filósofos é a memória. Faculdade misteriosa essa, que reflete e conserva os acidentes, as formas e as modificações do pensamento, do espaço e do tempo; na ausência dos sentidos e longe da impressão dos agentes externos, ela representa essa sucessão de idéias, de ima­gens e de acontecimentos já desaparecidos, já caídos no nada. Ela os ressuscita espiritualmente, tais como o cérebro os sentiu, a consciência os percebeu e formou.

Para explicar-lhe o mecanismo, Aristóteles admite que as impressões exteriores se gravam no espírito, quase pela forma por que se reproduz uma letra, colocando-se um sinete sobre a cera. Descarte crê também que essa facul­dade provém dos vestígios que deixam em nós as impres­sões dos sentidos ou as modificações do pensamento. Ado­temos a maneira de ver desses grandes homens e indague­mos como será possível conciliá-la com os dados que Mo­leschott nos fornece sobre a natureza do princípio pen­sante.

O sábio químico afirma, em magnífico capítulo, que um movimento incessante da matéria, que transformações maravilhosas e múltiplas se executam no interior de nosso corpo, e, apoiando-se nos trabalhos de Thompson, de Vie­rodt e de Lehumann, os quais, por sua vez, tinham por base os de Cuvier e Flourens, declara que os fatos justifi­cam plenamente a suposição de que o corpo renova a maior parte de sua substância em um lapso de vinte a trinta dias. E alhures diz mais: O ar que respiramos muda a cada instante a composição do cérebro e dos nervos.

Se isto é verdade, se somos uma nova entidade de trinta em trinta dias, se todas as moléculas que compõem nosso ser entram no turbilhão vital, como conservamos, ainda, na idade madura, a lembrança de atos que se passa­ram em nossa mocidade? Como explicará Moleschott que nos conservemos sempre os mesmos, apesar desse mu­tações.

É incontestável que possuímos a invencível certeza de ser sempre idêntico; mesmo quando envelhecemos, sabemos que a essência de nós mesmos não muda. Em meio às vicissitudes da existência, nossas faculdades po­dem aumentar ou obliterar-se, nossos gostos variar ao infi­nito e nossa conduta apresentar as mais singulares contradi­ções; estamos certos, porém, de que conservamos o mesmo ser; temos consciência de que outro não tomou nosso lugar, e, entretanto, todos os elementos de nosso corpo foram renovados muitas vezes. Nem um átomo, do que o formava há dez anos subsistem nele presentemente. Como se mantém, então, em nós a memória dos acontecimentos passados?

Responde os espiritualistas que existe em nós um princípio que não muda e cuja natureza indivisível não está, como a matéria, submetida à destruição. É a alma que conserva a lembrança dos fatos, as conquistas da inteli­gência e as virtudes adquiridas por incessante luta contra as paixões.

Não podemos admitir as teorias materialistas, porque elas tendem simplesmente a suprimir a responsabilidade dos atos.

Se não somos, com efeito, senão uma associação de moléculas, sem cessar renovadas, se as nossas faculdades são apenas a tradução exata do desenvolvimento que o acaso daria a certas partes do cérebro, com que direito poderia o homem prevalecer-se de suas qualidades e por que se condenaria um malfeitor, desde que sua inclinação para o crime dependeria de certa disposição orgânica que ele não pode modificar?

Os combates sustentados contra os impulsos que nos arrastam para o mal indicam que há em nós uma força consciente dirigida pelas leis da moral.

Essas lutas interiores revelam a ação da vontade, a despeito de todos os sofismas com que se pretende estabe­lecer que ela é quimérica. Não somos senhores sempre, é verdade, de dominar as nossas sensações; elas se nos impõem, muitas vezes, com energia: um espetáculo sensibi­lizador enche-nos de doce emoção; provoca a nossa revolta a vista de uma injustiça; encanta-nos uma harmonia suave; mas essas impressões tão diversas são bem diferentes da vontade, que é caráter mais íntimo do eu e da personalidade humana.

Quando estamos em face de um ato a realizar, ponham­ramos os motivos que nos podem dirigir; faz-se ouvir a voz do interesse em oposição à do dever e o que constitui o mérito é o poder que temos de escolher entre os dois móveis.

Por sermos livres é que somos responsáveis; esta gran­de verdade está tão firmada na consciência universal que nunca se viu punir um louco por ter cometido um crime. O livre-arbítrio não é uma ilusão. É ele que dá ao homem honesto a força de preferir a morte à infração das leis; é ele que impele os grandes corações à devota­mentos heróicos; e se o homem não passasse do joguete cego das forças físico-químicas, seria preciso despedir­mo-nos de todos os nobres sentimentos, de todas as aspira­ções generosas!

Tentaram provar, comparando-se o peso de grande número de cérebros humanos, que a inteligência mais de­senvolvida correspondia sempre a um encéfalo mais pesa­do. Estatísticas numerosas foram estabelecidas, mas até agora os resultados não são bastante precisos para permitir que se formule uma lei. Vê-se, é verdade, que, à medida que nos aproximamos das raças inferiores, a capacidade craniana diminui. Nestes últimos tempos, Bischof, Nico­lucci, Hervê, Broca e outros fizeram pesquisas muito curio­sas a este respeito, mas, tanto como seus predecessores, não puderam deduzir uma regra dos casos numerosos que observaram; viram-se idiotas com o volume do cérebro tão considerável quanto o de pessoas que gozavam da integridade de suas faculdades intelectuais.

Nesta espécie de pesquisa é preciso não confundir C órgão com a função. Vê-se que certas partes do corpo crescem mais que outras, é que elas trabalham mais. Sabe-se que os ferreiros têm o braço direito mais forte que o esquerdo, porque é com aquele que manejam o martelo, assim como os torneiros têm a perna esquerda mais volumosa que a direita, porque é a de que se servem constantemente. Concluir-se-á que estes homens são ferrei­ros ou torneiros porque seus membros se acham mais desen­volvidos?

O raciocínio é o mesmo para com o cérebro. Se, em certos casos, se observa uma correlação entre seu volu­me e uma grande atividade intelectual, prova isto tão-só que o espírito atua sobre ele com intensidade. Disse exce­lentemente Hervé: - O encéfalo cresce em proporção à atividade funcional de que é a sede. É essa uma lei que se aplica a todos os órgãos, em toda a série animal; ora, qual é a atividade funcional do cérebro? A intelectual e a moral.

O peso e o volume do cérebro nada têm, portanto, de comum com a existência da alma e não podem inva­lidá-la.

Conclusão

Diremos, em resumo, que do estudo dos fatos ressalta a certeza de que possuímos um princípio pensante, inde­pendente da matéria, que não está submetido, como esta, às transformações da vida, e no qual reside a memória. Para combater tão simples verdade os sábios investigaram as mais íntimas profundezas do ser, a fim de haurirem aí seus argumentos.

Surpreende-nos ver como eles se extraviam, quando abandonam o sólido terreno da experiência e se aventu­ram, guiados por hipóteses, no domínio filosófico. É que não querem admitir senão o que é visível, tangível, que se pode medir. Nada teríamos que alegar contra esse méto­do, se dele se servissem sempre; mas o que não é justo é que só o apliquem aos fenômenos psíquicos. Broussais dizia: Dissequei muitos cadáveres, mas nunca encontrei a alma. Entretanto admitia a vida e as ciências naturais que só repousam sobre entidades.

Ouçamos Langel:

A Química contenta-se com palavras, todas as vezes que lhe é impossível penetrar a essência mesma dos fenômenos. De que fala ela sem cessar? De afinidade. Não é isso uma força hipotética, uma entidade tão pouco tangível como a vida e a alma? A Química deixa à Fisiologia a idéia da vida e recusa ocupar-se com ela. Mas a idéia em torno da qual a Química se desenvolve tem alguma coisa de mais real? Essa idéia é muitas vezes inapreensível, não só em sua essência senão ainda em seus efeitos. Pode-se, por exemplo, meditar um instante nas leis de Berthollet, sem compreender que estamos em face de um mistério impenetrável?.

Nas experiências que lhe serviram de fundamento as reações químicas são conduzidas em condições puramente estáticas e independentes das afinidades propriamente ditas; mas no fenômeno de uma combinação, nessa atração que precipita um para os outros átomos que se procuram, que se juntam, escapando aos compostos que os aprisionavam, não há com que confundir o espírito?

Por mim, penso que quanto mais se estudam as ciências em sua metafísica, mais se acentua a convicção de que esta nada tem de inconciliável com a filosofia mais idealista. As ciências analisam as reações, tomam as medidas, descobrem as leis que regulam o mundo fenomenal; mas não há nenhum problema, por humilde que seja, que não as coloque em face de duas idéias sobre as quais o método experimental não tem nenhuma inferência; em 1: lugar, a essência da substância modificada pelos fenômenos; em 2: lugar, a força que provoca essas modificações.

Só conhecemos, só vemos o exterior, as aparências: a verdadeira realidade, a realidade substancial e a causa nos escapam.

Não podemos terminar melhor esta revista do que citando as seguintes palavras do ilustre fisiologista Claude Bernard:

A matéria, qualquer que seja, é sempre destituída de espontaneidade e nada provoca; só faz exprimir por suas propriedades a idéia de quem criou a máquina que funciona. De sorte que a matéria organizada do cérebro, que manifesta fenômenos de sensibilidade e de inteligência próprios ao ser vivo, não tem, do pensamento e dos fenômenos que ela manifesta, mais consciência do que a matéria bruta teria de uma máquina inerte, de um relógio, por exemplo, que não possui consciência dos movimentos que manifesta ou da hora que indica; assim, também, os caracteres de impressão e o papel não têm consciência das idéias que reproduzem. Assegurar que o cérebro segrega o pensamento, sena o mesmo dizer que o relógio segrega a hora ou a idéia do tempo.

É preciso não supor que foi a matéria quem criou a lei de ordem e de sucessão; seria isso cair no erro grosseiro dos materialistas.

CAPÍTULO II

0 MATERIALISMO POSITIVISTA

Na curta resenha que fizemos dos diferentes sistemas filosóficos, deixamos de referir-nos a duas escolas impor­tantes: os falansterianos.e os fourieristas. Não nos interes­sam elas diretamente, visto que as suas teorias são mais sociais que filosóficas. É preciso, entretanto, notar que Saint-Simon prestou um verdadeiro serviço ao espírito hu­mano, mostrando, com sagacidade, que se deve conceder à alma maior importância que aquela que lhe deram os filósofos do século XVIII.

O próprio Fourier, apesar do sensualismo de sua épo­ca, acreditava na alma e na sua imortalidade. Seus conti­nuadores se distinguem, no movimento moderno, pela fei­ção dos seus escritos, que sobressaem entre os trabalhos mais materialistas do fim do nosso século.

Afora esses dois grandes homens, assinalaremos uma plêiade de pensadores de escol, tais como Pierre Leroux, Jean Raynaud, Lamennais e outros, que reergueram bri­lhantemente o estandarte espiritualista; poder-se-ia acredi­tar que a vitória lhes estava definitivamente assegurada, quando se revelou, entre os discípulos de Saint-Simon, um filósofo de primeira ordem: Augusto Comte. Fundou ele um sistema denominado positivismo, que teve o mérito de opor à imaginação, realmente muito erran­te dos seus predecessores, as frias e rígidas doutrinas da tradição baconiana.

Comte procurou reanimar o sensualismo, aplicando­-lhe a idéia do progresso, mas faliu em sua tentativa, e foi forçado, depois de ter querido explicar tudo pela experiência e pela observação, a reconhecer que existe em nós uma faculdade: o sentimento, que não pode ser ignorado impunemente. Acabou por inventar uma espécie de religião que se perdia nas nuvens de um misticismo incompreensível. Era, segundo Huxley, um catolicismo a que faltava o cristianismo.

Seus discípulos não o. acompanharam nessa estrada; os dissidentes caíram no excesso oposto e são agora verda­deiros materialistas, bem que disto pretendam escusar-se.

Um dos mais ilustres representantes do Positivismo é Littré. Durante toda a sua vida, esse trabalhador infatigá­vel defendeu a nova concepção, expurgando-a daquilo que seu vigoroso espírito achava inútil ou supérfluo. Foram estas supressões que o determinaram a separar-se de Au­gusto Comte, decadente, e a reduzir as doutrinas de seu mestre ao que elas tinham de verdadeiramente útil; mas, acentua ainda as tendências materialistas, que o Positivismo contém em gérmen, e vemos essa inteligência em contradi­ção consigo mesma, quando pretende ficar neutra entre os dois sistemas que disputam a conquista dos espíritos: o espiritualismo e o materialismo.

Principiemos por expor o que se chama a concepção positiva do Mundo, isto é, a Filosofia que resulta da coordenação do saber humano. Ela é mais uma negação que um dogma. Os positivistas têm por objetivo o estudo da natureza pelos sentidos, pela observação e pela análise. Tudo o que se afasta dessa ordem de coisas é para eles o desconhecido, o porquê, ao qual renunciam, deliberadamente, pesquisar.

As realidades dos metafísicos podem existir, não as negam; mas como não entram no domínio dos fatos sensí­veis, acham inútil e perigoso querer defini-Ias; em suma, elas são incognoscíveis, isto é, inteiramente fora do alcan­ce do entendimento.

Assim, a base do estado positivo do espírito humano, o caráter essencial da mentalidade positiva, consiste em afastar a imaginação, na explicação das coisas e só proce­der pela verificação real, pela observação; em eliminar todas as suposições indemonstráveis e inverificáveis e nos limitarmos a observar as relações naturais, a fim de prevê­-las, para as modificar em nosso proveito, quando isso for possível, ou as suportar, convenientemente, quando não forem acessíveis ao nosso domínio.(3)

Além da esfera dos fenômenos comprovados, existe um desconhecido que o espírito procura em vão penetrar; assim, Littré, traçando o programa da escola, recomendou absoluta neutralidade em todas as questões dogmáticas relativas à essência das coisas. Ele o afirma nitidamente na seguinte página:

Não se conhecendo, nem a origem nem o fim das coisas, não há motivo para negar que haja algo além dessa origem e desse fim (isto é contra os materialistas e os ateus), assim como não há razão para o afirmar (isto agora é contra os espiritualistas, os metafísicos e os teólogos). A doutrina positiva põe de lado a questão suprema de uma inteligência divina, pelo fato de reconhecer sua absoluta ignorância nesse sentido, como aliás acontece às ciências particulares, que lhe são afluentes, no que toca à origem e ao fim das coisas, o que implica necessariamente que, se a doutrina positiva não nega a inteligência divina, não a afirma; conserva-se perfeitamente neutra entre a negação e a afirmação, as quais se valem, no ponto em que estamos.

Não é preciso dizer que ela exclui o materialismo, que é uma explicação daquilo que ninguém pode explicar.

Não busca mais o que o naturalismo tem de exorbitante, pois exclama, como De Maistre, falando da Natureza: quem é esta mulher?(4)

Vê-se, está bem claro, que o verdadeiro positivista não se deve inclinar para nenhum sentido; é-lhe absoluta­mente interdito meditar sobre os problemas que não se podem resolver pelo método direto da análise e da ob­servação.

Este equilíbrio de que fala Littré pode ser mantido? É possível, quando as leis da Natureza revelam um enca­deamento admirável de fenômenos, restringir-nos aos es­treitos limites dos fatos conhecidos, sem tentar elevar­-nos à causa primária, qualquer que ela seja?

- Não. Não é natural parar em caminho e dizer: Não iremos mais longe. A invencível curiosidade humana leva-nos a franquear os limites que se lhe quer impor, e, voluntariamente ou não, os homens de ciência são cha­mados a se pronunciarem, quer num sentido, quer noutro. Apressemo-nos a acrescentar que o estado suspensivo, re­comendado como expressão da sabedoria, é violado por Littré e seus partidários; eles se declaram francamente materialistas, assim como o prova a seguinte passagem, que o mestre escreveu no prefácio do livro de Leblais sobre o materialismo:

O físico reconhece que a matéria pesa; o fisiologista, que a substância nervosa pensa, sem que um ou outro tenha a pretensão de explicar por que uma pesa e a outra pensa.

Não nos deteremos em salientar a impropriedade da comparação entre o peso, fenômeno físico, e o pensamento, ação espiritual, que não pode ser assimilada a nenhuma propriedade da matéria. O que importa notar é essa afirma­ção: - a substância nervosa pensa, afirmação que vimos reproduzidas por todos os materialistas.

Um filósofo da escola de Comte deveria ser, entre­tanto, de absoluta ignorância quanto aos fatos psíquicos; para ele, os fenômenos do pensamento não podem ser o produto da substância cerebral, pois que nunca consegui­ram verificar, experimentalmente, se certa quantidade de fósforo, por exemplo, junta à massa cerebral, tornaria o pensamento mais ativo, ou, se a mesma quantidade, retirada desse órgão, aniquilaria o pensamento. Ele sai da neu­tralidade que seu programa exige, para pronunciar-se nega­tivamente. Daí termos razão no dizer que os positivistas não passam de materialistas disfarçados.

Querem ainda uma prova? Littré fornece quando examina o Universo e procura as leis que o dirigem. Eis o que se lê nas Paroles de Philosophie Positive:

O Universo nos aparece, presentemente, como tendo suas causas em si mesmo, causas que chamamos leis. A imanência é a ciência que explica o Universo pelas causas que nele residem­

A imanência é diretamente infinita, porque, deixando os tipos e as figuras, ela nos põe, sem intermediário, em relação com os eternos motores de um universo ilimitado, e descobre, ao pensamento estupefato e maravilhado, os mundos librados no abismo do espaço e a vida librada no abismo do tempo.

Não se pode negar, nesta passagem, o estabelecimento de uma doutrina muito nitidamente formulada. Opõe-se à idéia do Criador - a da imanência -, isto é, a propriedade que teria o Universo de se mover em virtude de leis que lhe são próprias. Como o faz notar Caro, é essa uma afirmativa que ultrapassa singularmente a esfera dos fatos verificáveis e das verdades demonstradas, de que Littré não pretende afastar-se.

Em suma, o mais ilustre representante da ciência posi­tiva é materialista, senão em principio, pelo menos efeti­vamente.

Contrário ao seu programa e à realidade, afirma que a matéria pensa, e crê que a Natureza se governa por si mesma.

São estas conclusões que nós denunciamos como fal­sas, em virtude das razões que expusemos no capítulo precedente.

O método positivo rejeita todo instrumento de estudo, que não os sentidos; mas existe em nós essa propriedade de nos conhecermos que se chama senso íntimo, e que tem seu valor, pois é por ele que somos informados da existência do pensamento. Sem dúvida, não se pode preci­sar em que consiste; é impossível encontrar o órgão que lhe corresponda; entretanto, ninguém recusará sua manifes­tação, que se afirma por um exercício ininterrupto. Citemos uma bela página do padre Elie Méric, tirada do livro - A vida no espírito e na matéria:

Os Srs. Littré e Robin não expuseram o positivismo mais claramente que Broussais. Uns e outros nos acusam de explicar o pensamento por uns arranjos misteriosos, impalpáveis: - a alma.

É preciso provar, pois, que temos a percepção clara da alma, do pensamento, do juízo, da vontade e da relação necessária entre a alma e suas faculdades. É preciso demonstrar que possuímos dessas coisas uma percepção tão real como dos fenômenos materiais.

Por uma propensão invencível e uma convicção raciocinada, eu sei e sinto que penso, que imagino, que amo, que arrazôo. Sei que pensamentos me acodem; que idéias se me apresentam sob a forma de imagens, que certos objetos, certas criaturas despertam em mim um sentimento de amor e outras um sentimento de ódio. Sei e sinto que posso refletir sobre essas idéias, essas imagens, esses desejos, esses senti­mentos, observá-los, descrevê-los, analisá-los; que eu raciocino, enfim.

Posso renovar esse fenômeno, evocar uma lembrança pela memória, acordar o amor e o ódio, chamar uma imagem desaparecida, ao sabor de minha vontade. É uma experiência que posso renovar, tantas vezes quantas um físico ou um químico renovarão uma experiência de física ou de química. Tal fato é tão certo como a circulação do sangue e a transformação dos elementos em minha própria substância.

Sob pena de fazer violência ao senso íntimo, de renegar o testemunho da consciência universal ou de ceder a preconceitos deploráveis e culpáveis, eis realidades que o Positivismo deve reconhecer e afirmar; entretanto, essas realidades, esses fenômenos não são materiais; não os conhecemos pelo testemunho dos sentidos.

O declive, por onde escorregam os positivistas, deve levá-los, fatalmente, ao materialismo, de que, teoricamen­te, os têm a pretensão de se afastarem. O desdém que mostram por tudo que não é diretamente mensurável denota a negação antecipada das realidades espirituais. Apesar de toda a sua ciência, não podem explicar o pensamento; ele se produz em condições determinadas que têm, sem dúvida, certa relação com estados especiais do cérebro; mas, como sucede com Moleschott, não lhes é possível afirmar que esse pensamento seja o produto do cérebro.

O cérebro, sua composição, seu modo de funciona­mento, tal é o campo de batalha atual onde se concentram os esforços dos partidos opostos. É penetrando nas profun­dezas de sua constituição íntima, perscrutando com tenaci­dade os recônditos desse órgão, que um sábio fisiologista, Luys, espera dar ganho de causa aos positivistas.

Ele quer mostrar que a atividade intelectual é produ­zida simplesmente pelo jogo das forças naturais das células do córtice cerebral, estimuladas pelas excitações do exte­rior e trazidas pelos nervos centrípetos.

É conseqüente com suas doutrinas, porque, hoje, a maior parte dos discípulos de Littré professam injustifi­cável horror pela antiga filosofia; repelem em bloco todos os fatos certos, aos quais se tinha chegado pelo estudo atento dos estados de consciência, para adotar uma psicolo­gia nova, que absolutamente não participa de qualquer filosofia, antes constitui outra ciência.

Esta psicologia não se ocupa da alma e de suas facul­dades, consideradas em si mesmas, senão dos fenômenos pelos quais se manifesta a inteligência e das condições invariáveis das leis que regem a sua produção. Ela não pede só à consciência que lhe faça conhecer o espírito; não se limita à ação interna, que julga, muitas vezes, ilusória, mas apela para o método das ciências naturais, e dispõe, por vezes, apesar da delicadeza do assunto e do temor respeitoso que a domina, da própria experimentação, graças à patologia.

Seu primeiro princípio, seu ponto de partida, é o fato, admitido há pouco tempo pela ciência oficial, de que o cérebro é o órgão do pensamento, do espírito, ou melhor, que a inteligência, a alma - se quisermos com­preender sob esse vocábulo o conjunto das idéias e dos sentimentos -, é uma função do cérebro.

Outros, exagerando, ainda, esse sistema, esperam chegar, um dia, a determinar a que vibrações da massa fosfórea correspondem, por exemplo, a noção do infinito!

Retomemos, ainda uma vez, o estudo do cérebro, não mais o encarando, com Moleschott, sob o ponto de vista de sua composição química, mas em sua estrutura anatômica e em sua vida fisiológica. Seguiremos, passo a passo, o livro de J. Luys: o Cérebro e suas funções, e poremos ainda aí, em evidência, todos os artifícios em­pregados para falsear as conclusões naturais dessas investi­gações, que são todas a favor dos espiritualistas.

II. O cérebro e suas funções

Para bem compreender a discussão, é indispensável que sigamos o autor na análise minuciosa que ele faz das diferentes partes do cérebro, resumindo, de maneira sucinta, o que está em relação com o nosso assunto.

Luys é um experimentador de primeira ordem; aperfei­çoou os métodos de investigação da substância cerebral, empregando uma série de cortes metodicamente espaçados, de milímetro em milímetro, quer no sentido horizontal, quer no vertical, quer no antero-posterior; e esses cortes, praticados segundo as três direções da massa sólida que se trata de estudar, foram reproduzidos pela fotografia.

As operações, assim regularmente conduzidas, permi­tiram representações tão exatas quanto possíveis da realida­de, e conservar as disposições mútuas das partes mais delicadas dos centros nervosos. Pode-se, comparando as seções, horizontais, ou verticais, seguir determinada ordem de fibras nervosas em sua progressão para o seu ponto de partida ou para o seu ponto de chegada. Estudou-se, milímetro por milímetro, a marcha natural e os emaranha­dos sucessivos das diferentes categorias de fibrilas nervo­sas, sem nada mudar, sem nada lacerar, deixando, de algu­ma sorte, as coisas em seu estado normal. Além disso, as porções observadas ao microscópio foram aumentadas por meio da fotografia, o que permitiu verificar certos detalhes anatômicos que não haviam ainda sido notados.

O sistema nervoso do homem apresenta 3 grandes divisões:

1 - O cérebro e o cerebelo;(5)

2 - A medula espinhal;

3 - Os nervos.

Não temos que tratar da medula espinhal nem dos nervos; o que nos interessa é o cérebro.

Ele é constituído por dois hemisférios A e C reunidos por meio de uma série de fibras brancas transversais B, que fazem comunicar as partes semelhantes de cada lobo, de modo que as duas metades façam um só corpo, cujas moléculas estão todas em relação umas com as outras.

Cada lobo, tomado separadamente, apresenta por seu turno:

1 - Massas de substâncias cinzentas;

2 - Aglomerações de fibras brancas.

1 - As massas de substância cinzenta, compostas de milhões de células, que são os elementos essencialmente ativos do sistema, estão dispostas:

Em primeiro lugar na periferia do lobo, sob a forma de uma camada delgada, ondulosa e contínua; é o córtice cerebral A, fig. 1. Além disso, nas regiões centrais, sob a forma de dois núcleos cinzentos, ligados entre si, e que não são mais do que a substância cinzenta das camas óticas(6) dos corpos estriados C, fig. 2.

2 - A substância branca, inteiramente composta de tubos nervosos justapostos, ocupa os espaços compreen­didos entre a superfície dos lobos e os núcleos centrais. As fibras que a constituem representam traços de união entre tal ou qual região do córtice cerebral e tal ou qual dos núcleos centrais. Podem ser consideradas como uma série de fios elétricos estendidos entre duas estações e em duas direções diferentes. As que reúnem os diversos pontos da superfície dos hemisférios aos núcleos centrais são comparáveis a uma roda, cujos raios ligam a circunfe­rência ao centro; as outras se dirigem transversalmente e juntam duas partes semelhantes de cada hemisfério.

clip_image004

FIG. 1

A - Camada cortical cinzenta do cérebro.

11 - Fibras brancas que fazem comunicar duas partes semelhantes de cada hemisfério.

clip_image006

FIG. 2

A mesma figura que a procedente, porem com as camas óticas.

A - Camada cortical cinzenta.

B - Fibras brancas comissurais.

C - Camas óticas.

D - Fibras brancas que fazem comunicar as camas óticas entre si e com cada um dos hemisférios.

Substância cortical dos hemisférios - Todos conhe­cem a aparência exterior dos lobos do cérebro. Basta lem­brar os miolos, servidos habitualmente nas nossas mesas, para ver de imediato, que a substância cortical cinzenta se apresenta sob a aparência de uma lâmina cinzenta, ondu­losa, dobrada muitas vezes sobre si mesma, e formando uma série de sinuosidades múltiplas, cujo fim é aumentar­-lhe a superfície. Pensou-se que havia nessas dobras certas disposições gerais; seu maior número, porém, toma as mais variadas formas, conforme os indivíduos. Os hemisférios não são rigorosamente homólogos, isto é, não têm, absolu­tamente, a mesma conformação, mas as modificações entre os dois lobos são de mínima importância.

A espessura da camada cerebral é em média de 2 a 3 milímetros; em geral, é mais abundantemente repartida nas regiões anteriores do que nas regiões posteriores. A massa varia conforme a idade e a raça: Gratiolet notou que nas espécies de pequena estatura a massa da substância cortical é pouco abundante.

Quando se toma uma fatia delgada dessa matéria cin­zenta do córtice cerebral e se a comprime entre duas lâmi­nas de vidro, nota-se que ela se divide em zonas de desigual transparência e que estas zonas se dispõem em uma estria­ção regular e fixa. Veremos o que apresenta o córtice cerebral, visto a olho nu, o que todos podem verificar em cérebros frescos.

Penetremos, agora, com o auxílio de lentes de aumen­to, no interior dessa substância mole, amorfa em aparência, e cujo aspecto homogêneo está longe de revelar seus mara­vilhosos pormenores.

Que se encontra na substância cerebral como elemento anatômico fixo, como unidade primária? A célula nervosa, com seus vários atributos, suas configurações definidas; vêem-se também fibras nervosas e um tecido que reúne todos esses elementos, o qual é atravessado por vasos sanguíneos muito pequenos, chamados capilares.

É do estudo da célula que depende a ciência das propriedades do cérebro, pois que ela é a unidade primor­dial do tecido cerebral, e quando conhecermos as proprie­dades íntimas desse elemento, teremos uma idéia exata do papel da matéria cortical.

Vemos na parte inferior desta camada dos hemisférios o começo das fibras que ligam a superfície ao centro. Elas são, a princípio, ramificadas ao infinito, de forma a entrarem em contato com grande número de células da camada cortical; depois se vão condensando até a saída do córtice dos hemisférios, onde têm a forma de fibras compactas.

Examinando as células nervosas, vemos que elas têm, como toda célula, uma forma determinada por uma mem­brana envolvente, a maior parte das vezes irregular, cujos contornos parecem braços que se prolongam em diversos sentidos; depois, no interior, um núcleo apresentando um ponto brilhante, que se chama nucléolo. No córtice do cérebro, as células menores ocupam as regiões superiores A, e as células maiores, as regiões profundas B; estas últimas têm, aproximadamente, um volume duplo das pri­meiras, e a passagem das pequenas para as grandes se opera por transições insensíveis. As ramificações de todas essas células formam uns verdadeiros tecidos, cujas moléculas são aptas a vibrar de algum modo, em uníssono.

Para se ter idéia do número imenso dessas células nervosas, bastas saber que no espaço de um milímetro qua­drado de substância cortical, com a espessura de um décimo de milímetro, conta-se cerca de cem a cento e vinte células nervosas de volume variado.

clip_image008

FIG. 3

Corte e aumento do córtice do cérebro.

A - Pequenas células.

B - Grandes células.

C - Começo das fibras bran­cas que ligam a camada cortical aos lobos óti­cos.

D - Capilar condutor do sangue.

Que se imagine o número de vezes que esta pequena quantidade está contida no todo e chegar-se-á a muitos milhões.

Ficamos confusos, ao penetrar no mundo desses infini­tamente pequenos onde se reencontram essas mesmas divi­sões infinitas da matéria, que impressionam tão vivamente o espírito, no estudo do mundo sideral.

Ao examinar a estrutura de um elemento anatômico, só visível com um aumento de setecentos a oitocentos diâmetros, se pensarmos que esse mesmo elemento se repe­te por milhões, na espessura da camada cerebral, não pode­mos deixar de ser tomados de admiração.

Refletindo-se que cada um desses pequenos aparelhos tem sua autonomia, sua individualidade, sua sensibilidade orgânica, íntima, que é ligado a seus congêneres, que participa da vida comum, e que é o obreiro silencioso e infatigável que elabora discretamente as forças nervosas necessárias à atividade psíquica, que se consome incessan­temente, reconhecer-se-á a maravilhosa organização que preside ao mundo dos infinitamente pequenos.

Decorre do que precede, que a substância cortical representa imenso aparelho formado por elementos nervo­sos dotados de sensibilidade própria, mas solidários, por­que as séries de células superpostas em andares, a corres­pondência delas entre si, implicam a idéia de que as ativida­des nervosas de cada zona podem ser despertadas isolada­mente, que têm a faculdade de associar-se, de modificar-se de uma região para outra, segundo a natureza das células intermediárias postas em vibração; que, enfim, as ações nervosas, como as ondulações vibratórias, devem propa­gar-se gradativamente, conforme a direção das células or­gânicas, no sentido horizontal ou no vertical, das zonas profundas às superficiais e vice-versa.

Estamos até aqui no firme terreno da observação; é preciso deixá-lo para entrar nas deduções fisiológicas, que oferecem quase sempre assunto à discussão.

No ponto de vista da significação fisiológica de certas zonas e do modo de distribuição da sensibilidade e da motilidade (faculdade de dar o movimento), é permitido supor, apoiando-nos nas leis de analogia, que as regiões superiores, ocupadas principalmente pelas pequenas célu­las, devem achar-se, sobretudo, em relação com as manifes­tações da sensibilidade, enquanto as regiões profundas, povoadas pelos grupos das grandes células, podem ser consideradas, principalmente, como centros de emissão do fenômeno da motricidade, isto é, das incitações que deter­minam o movimento.

Apóiam-se estas deduções num fato de observação, o de que, na medula espinhal, os nervos sensitivos comuni­cam-se com as pequenas células da medula, e os nervos motores, com as grandes células, nas quais se verificam as diversas ações da motricidade. Por analogia, estaríamos no direito de considerar as células superiores da camada cortical como a esfera de difusão da sensibilidade geral e especial, e, por isso mesmo, o grande reservatório co­mum, sensorium commune, de todas as sensibilidades do organismo; de outro lado, poder-se-iam admitiras camadas profundas como o lugar de emissão dos fenômenos do movimento.

Substância branca - A substância branca é composta, em grande parte, de fibras nervosas brancas B (figura. 1 e 2), formadas essencialmente por um filamento central chamado cylinder axis, envolto numa bainha; entre o cilin­dro e a bainha se encontra uma substância oleofosforada, transparente durante a vida, e que se chama mielina. Tem por fim isolar o cilindro, tal como a borracha com os fios destinados a conduzir eletricidade. A comparação é tanto mais justa quanto as fibras brancas só servem para transmitir as excitações nervosas do centro à periferia e reciprocamente.

O exame dos centros optoestriados terminará a revista das principais partes do cérebro, sem o que não poderíamos compreender a teoria de Luys.

Camas óticas(6) (v. fig. 4) - As camas óticas e os corpos estriados são, de alguma sorte, os eixos naturais em torno dos quais gravitam os elementos do sistema; apresentam-se sob a forma de massa cinzenta, cuja estru­tura e relações gerais foram conhecidas há bem pouco tempo. Parecem uns ovos, de cor avermelhados, ocupando o meio do cérebro, como se pode verificar a compasso; são, por assim dizer, o centro de atração de todas essas fibras, de que comandam o agrupamento e a direção.

Uma série de pequenos núcleos, colocados uns ao lado dos outros, indo de trás para diante do cérebro, são as partes principais da cama ótica. Essas excrescências, implantadas na massa, são em número de quatro; a maior, parte foi descrita pelos anatomistas, por Arnold em particular, salvo os núcleos médios, assinalados por Luys; eles formam, à superfície da cama ótica, tuberosidades que dão a esse corpo um aspecto mamiloso.

Podemos verificar, numa série de cortes horizontais e verticais, que esses núcleos formam verdadeiros pequenos centros, constituídos por células emaranhadas, que se co­municam isoladamente com grupos especiais de fibras ner­vosas aferentes.

Vejamos agora, do ponto de vista fisiológico, a impor­tância desses centros.

Até os últimos anos, as camas óticas eram para os autores um problema insolúvel, terra desconhecida de que a anatomia apenas precisava a situação; compreende-se, facilmente, que a função de cada um dos núcleos estava longe de ser fixada.

Foi estudando, ele mesmo, e examinando que Luys chegou a considerar esses núcleos como pequenos focos de concentração, isolados e independentes, para as diferen­tes categorias de impressões sensoriais que chegam à sua substância.

Assim, o centro anterior, que comunica com o nervo olfativo, é o que deve transmitir as impressões que vêm das regiões periféricas, isto é, do nariz, destinadas àquele nervo. Temos a prova disso nas espécies animais de faro muito desenvolvido, onde o núcleo é proporcionalmente muito grande. Ele é bem o ponto para onde convergem todas as sensações olfativas, antes de serem irradiadas para a periferia cortical.

Foi assim que se determinaram para os outros sentidos as funções seguintes:

1: - O núcleo médio é destinado à condensação das sensações visuais;

2: - O núcleo mediano é o ponto de concentração da sensibilidade geral;

3: - O núcleo posterior serve para condensar as sensa­ções auditivas.

Esses dados, posto que novos, são, segundo Luys, confirmados por experiências fisiológicas e, de outro lado, pelo exame dos sintomas clínicos, que são, nessas matérias, o critério irrefragável de toda doutrina verdadeiramente científica.

Admitidas as deduções precedentemente expostas, compreender-se-á possível encarar as camas óticas como regiões intermediárias entre as incitações puramente espi­nhais, isto é, vindas da medula espinhal, e as atividades mais apuradas da vida psíquica.

Por seus núcleos isolados e independentes, as camas servem de pontos de concentração a cada ordem de impres­sões sensoriais, que encontram em suas redes de células um lugar de passagem e um campo de transformação. É aí que estas impressões são logo condensadas, armazenadas e trabalhadas pela ação especial dos elementos que elas agitam em seu percurso. Daí, como de um último ponto depois de terem emergido de gânglio em gânglio, através dos condutores centrípetos que as transportam, são lança­das nas regiões da periferia cortical sob uma forma nova e, de algum modo, espiritualizadas, para servir de materiais incitadores à atividade das células da substância cortical.

São as únicas portas abertas pelas quais passam todas as incitações exteriores destinadas a serem aproveitadas pelas células corticais e os únicos condutos que permitem à atividade psíquica manifestar-se no exterior.

Mostra o exame do cérebro que cada um dos centros de que falamos está mais particularmente em relação com certas partes da substância cortical.

Pode-se, pois, admitir hoje esta verdade outrora tão controvertida das localizações cerebrais. É fácil compreen­der, agora, como o desenvolvimento periférico de tal ou qual aparelho sensorial determina, nas regiões centrais, um aparelho receptor, de alguma sorte proporcional; como a riqueza em elementos nervosos da própria substância cortical, o grau de sensibilidade própria, a energia especí­fica de cada um deles poderão, em dado momento, desem­penhar preponderante papel no conjunto das faculdades mentais e determinar o temperamento e a atividade especí­fica dessa ou daquela organização. Enfim, as experiências de Schiff estabelecem que as incitações da vida orgânica penetram também até os lobos óticos. É, pois, sob um­ duplo ponto de vista, que podemos considerar os lobos óticos como o nó de todo o conjunto do sistema cerebral.

O corpo estriado é agora o último órgão que devemos estudar.

Corpo estriado - A massa de substância cinzenta designada pelo nome de corpo estriado é, com a cama ótica, a porção complementar dos dois núcleos cinzentos que ocupam o lugar central de cada hemisfério e que são, como já temos várias vezes assinalado, os pólos naturais em torno dos quais gravitam todos os elementos nervosos.

As camas óticas parecem o prolongamento das células sensitivas da medula, enquanto o corpo estriado seria a continuação das células motoras do eixo espinhal.

A massa dos corpos estriados se compõe de grandes células semelhantes às da região inferior do córtice cerebral e ligadas entre si da mesma maneira. Tal como nas camas óticas, existem fibras que unem o corpo estriado à substân­cia cortical.

Essas fibras representam, pois, propriamente falando, os traços de união naturais entre as regiões corticais donde emergem as incitações voluntárias e os diferentes pontos do corpo estriado onde elas se reforçam. Foram as expe­riências de Fristch e de Hitzing, e, depois, as de Foumier, que demonstraram a existência de uma ordem especial de fibras nervosas, irradiadas dos diferentes departamentos da substância cortical e que se vão distribuir nos territórios isolados da substância cinzenta dos corpos estriados, a qual se acha assim associada, de modo direto e instantâneo, a todos os abalos das regiões da substância cerebral dos hemisférios.

Devem-se notar nos corpos estriada a presença de pe­quenas partículas amarelas, que são postas em relação com o cerebelo por fibras especiais. Segundo Luys, esses nú­cleos amarelos seriam os receptores da força nervosa des­prendida pelo cerebelo, sob o nome de influxo cerebeloso. Essa inervação, verdadeira força extranumerária, serve pa­ra aumentar a ação do corpo estriado. É ela que, seme­lhante a uma corrente contínua, derrama a força nervosa que carrega as células do corpo estriado; é ela que dá a nossos movimentos sua força, sua regularidade, sua con­tinuidade.

No interior dos tecidos do corpo estriado, as incita­ções partidas dos centros motores do córtice cerebral fa­zem uma primeira parada em seu curso descendente; entram em relação mais íntima com elementos novos que reforçam, materializam, de alguma sorte, as excitações tão fracas, em seu começo, das células motrizes do córtice cerebral. O influxo da vontade sai do corpo estriado, aumentado, por assim dizer, e vai às diversas partes dos pedúnculos cerebrais, onde aciona, por sua vez, diferentes grupos de células, das quais excita as propriedades dinâmicas.

Conhecendo agora os elementos gerais do cérebro, examinaremos a marcha da sensação através de todos esses órgãos. Não podendo entrar em todo o desenvolvimento que o autor deu a esse estudo, limitar-nos-emos a ver a maneira por que uma excitação exterior chega ao cérebro e como volta à periferia, sob a forma de incitação motriz.

Mecanismo da sensação - Os nervos que vão ter à superficie do corpo não vibram indiferentemente sob todos os impulsos; é preciso que as fibrilas que os compõem possam entrar em movimento sob determinadas incitações; por exemplo, as sensações luminosas são de nenhum efeito para o nervo auditivo e reciprocamente.

Suponhamos, para maior clareza, que só temos que ver com as vibrações luminosas. Quando a retina é impres­sionada pelo movimento ondulatório do éter, é preciso certo tempo para que esse abalo material determine vibra­ções no nervo ótico; mas uma vez produzidas, elas se propagam pouco a pouco até os tálamos óticos. Aí essas vibrações se concentram no primeiro núcleo, cuja existên­cia já verificamos; experimentam nesse pequeno cen­tro uma ação que tem por fim espiritualizá-las, já tendo sido animalizadas no trajeto dos nervos.

Figura 4

clip_image010

A - Córtice do cérebro.

B - Fibra comissural que liga o córtice às camadas óticas.

C - Camadas óticas.

D - Corpo estriado.

E - Núcleos medianos.

F - Orelha.

G - Olho.

MECANISMO DA SENSAÇÃO

Uma sensação luminosa chega em I; impressiona a retina, que comunica seu movimento ao centro J por intermédio do nervo ótico. Desse núcleo J a sensação é reenviada à camada cortical B. Ai chegada abala as células vizinhas L, que propagam o movi­mento às zonas profundas. A ação ondulatória volta transformada ao núcleo do corpo estriado e em seguida se espalha pelo corpo por meio do nervo N.

Depois do tempo de parada necessário àquela opera­ção, são lançadas para o sensório, isto é, para a parte periférica do cérebro, onde se espalham na camada das pequenas células e põem em ação toda uma série de elemen­tos nervosos, relativos às impressões visuais.

Cada ordem de incitação sensorial é assim dispersa e localizada em um lugar especial do córtice do cérebro. A anatomia mostra, além disso, que há localizações defini­das, regiões limitadas, organicamente destinadas a receber, a condensar, a transformar tal ou qual categoria de impres­sões vindas dos sentidos.

A fisiologia experimental provou, por seu lado, que, nos animais vivos, como há muito tempo mostraram as belas experiências de Flourens, poder-se-ia, tirando-se me­todicamente fatias da substância cerebral, fazer que eles perdessem, ou a faculdade de perceber as impressões vi­suais, ou as auditivas.

Ainda mais: Schiff pôs em evidência este fato, o de que o cérebro de um cão se aquecia parcialmente, con­forme a natureza das excitações que recebia. Logo, as impressões sensoriais chegam todas, em último lugar, às redes da substância cortical, transformadas pela ação dos meios intermediários que encontraram no percurso; enfim, é aí que elas se amortecem e se extinguem, para reviverem sob forma nova, pondo em jogo as regiões da atividade psíquica, onde são definitivamente recebidas.

Chegamos ao ponto delicado da demonstração; pude­mos ver a marcha evolutiva dos movimentos vibratórios, fazendo, entretanto, reservas quanto à animalização e à espiritualização das vibrações materiais; como compreen­der, porém, que elas se transformem em idéias?

Sigamos o autor em seu raciocínio.

Distribuída a indicação sensorial no meio da rede do córtice cerebral, quais são os fenômenos novos que se produzem?

Segundo Luys, só a analogia nos permite supor que as células sensitivas cerebrais se comportam como as da medula espinhal e que, em presença das incitações fisioló­gicas que lhes são próprias, reagem de maneira semelhante. (Sabe-se que, na ação reflexa, a excitação dos nervos sensitivos transmite às pequenas células da medula espinhal uma irritação que se comunica às grandes células da medula e excita os nervos motores que lhes correspondem, de forma que a excitação volta a seu ponto de partida sob a forma de incitação motriz. É desta forma que uma rã, a que se cortou a cabeça, contrai ainda uma pata irritada por um ácido.)

Luys admite, pois, que no momento em que a célula cortical recebe a impressão do exterior, ela como que se ergue, desenvolve sua sensibilidade própria e desprende as energias íntimas que encerra. É assim que o movimento se propaga pouco a pouco despertando as atividades laten­tes de novos grupos de células, que, por sua vez, se tornam focos de atividade para os vizinhos.

Dando-se, o que acabamos de ver, em todas as dire­ções, as excitações partidas das células da substância corti­cal se propagam para o interior e atuam nas grandes células, que transmitem esses abalos ao corpo estriado, que os reforça e os lança no organismo sob a forma de incitações motrizes.

Tais são segundo Luys, a gênese e a marcha de uma ordem qualquer de sensações, mas acrescenta que é preciso não confundir a evolução dos fenômenos da sensibilidade com simples ações reflexas, como as do eixo espinhal; e se pode dizer que a motricidade voluntária não é mais que um ato de sensibilidade transformada, é, entre­tanto, a sensibilidade duplicada, triplicada, multiplicada por todas as atividades cerebrais postas em comoção e a personalidade sensível e vibrátil que entra em jogo, sob uma forma somática, e que se revela no exterior por uma série de manifestações refletidas e coordenadas.

Detenhamo-nos por um instante e procuremos o senti­do de todas essas hipóteses. Compreendemos como a exci­tação nervosa chega até a camada superficial do cérebro, mas, uma vez aí, Luys nos fala de células que se erguem. Confessamos que não o entendemos. Quer ele dizer que as células desenvolvem todas as energias que contém? Concordamos. Mas que relação pode haver entre uma ação nervosa, por mais ereta que seja, e o pensamento?

O autor, sabendo que essa argumentação é insufi­ciente, acrescenta que a célula desprende sua sensibilidade própria e com isso deixa perceber que a célula é capaz de sentir. Veremos mais tarde se essa opinião tem funda­mento. Enfim, ele indica o movimento de retorno dessas excitações, mas esquece de notar que, entre a chegada e a partida das sensações, se produz um fato muito impor­tante - o da percepção, isto é, o conhecimento pelo eu, pela personalidade humana, das ações realizadas.

Aqui é útil insistir, porque todas as evoluções das vibrações nervosas, tão sabiamente descritas, não são mais que os preliminares do ato da percepção, e é preciso que essas vibrações despertem alguma coisa, uma força latente que delas tome conhecimento. Sem isso, elas serão letra morta para o entendimento, como o demonstra o fenômeno da distração, de que falamos no capítulo precedente.

O que prova neste caso a necessidade de intervenção de um agente novo é, como diz Luys, que não se devem confundir os atos do cérebro com simples ações reflexas; percebe-se que há uma diferença; ela, porém, só consiste, a seu ver, na multiplicidade e intensidade das forças que se manifestam. Na medula as operações são simples, no cérebro são complexas. Sendo assim, porque as ações, inconscientes no eixo espinhal, se tornam fatos de cons­ciência no cérebro? O sábio fisiologista foi obrigado a admitir, para apoiar sua teoria, que existe uma analogia completa entre as diferentes ordens de células do cérebro e as diferentes ordens de células da medula espinhal; o mesmo deve admitir quando se trata da sensibilidade, e, entretanto, nada denota nas células do córtice cortical que a consciência aí resida.

Debalde se analisam todas as forças que entram em jogo sob uma forma somática; elas são impotentes para fazer compreender a natureza ou a geração de uma idéia, enquanto se obstinarem em negar a alma.

III. Conseqüências das teorias precedentes

O capítulo precedente fez desdobrar-se sob nossos olhos o panorama das operações misteriosas que se realizam no seio da massa cerebral. Acompanhamos a função de cada um dos órgãos do cérebro; pudemos admitir, teorica­mente, que as coisas se passam como o ensina Luys. Mas, na realidade, os atos múltiplos da vida não têm a simplici­dade inicial que supusemos.

Um exemplo no-lo fará entender.

Quando assistimos a uma representação teatral, os olhos e os ouvidos são impressionados ao mesmo tempo, e surge um mundo de idéias determinadas por milhares de sensações, que chegam instantaneamente ao cérebro. Se juntarmos a essas duas causas as impressões produzidas pela decoração da sala, pelo calor, pela representação dos atores, pela música, chegar-se-á a um total enorme de ações sensitivas percebidas pelo cérebro.

Como essas diversas vibrações conseguem harmoni­zar-se? Como se combinam os movimentos vibratórios para produzir no espectador o sentimento de prazer ou de des­contentamento?

Em vão se nos mostrará que cada um dos sentidos tem um lugar reservado no córtice cerebral; que as excita­ções exteriores, que lhes correspondem, dirigem-se direta­mente para a parte que lhes compete; mal podemos com­preender como as excitações desses diferentes territórios de células se vão procurar e fundir para produzir uma idéia.

Para compreender o que se deu, seria preciso supor que as células nervosas são capazes de sentir, e ainda assim não seria fácil imaginar qual a resultante das sensa­ções de cada uma.

Se, pelo contrário, admitirmos a existência da alma, tudo, então, se torna claro. Temos um centro onde se reúnem as sensações e, conseqüentemente, as idéias a com­parar. É ele que armazena as múltiplas impressões que recebe, e as analisa, pesa, compara com as que possuía anteriormente; o resultado de todas essas operações é o juízo.

Pretende Luys que não é necessário recorrer à inter­venção da alma para explicar todas as ações do espírito, que se podem deduzir das 3 propriedades fundamentais seguintes, que ele atribui ao sistema nervoso:

1 - A sensibilidade;

2 - A fosforescência orgânica;

3 - O automatismo.

São estas propriedades gerais que Luys estuda na segunda parte do seu trabalho.

Uma vez conhecidas e definidas essas propriedades, Luys entra no estudo das diversas combinações, às quais se prestam, e pretende estabelecer que as operações do espírito não são mais que sensações transformadas por meio de atos reflexos múltiplos.

Se assim é para o cérebro e para os centros da medula espinhal, apenas com a diferença de que os processos são mais complicados, seremos, no ponto de vista fisiológico, autômatos, cujas molas são movidas por excitações exter­nas, quer diretamente, suscitando reações imediatas, quer indiretamente, depois de uma travessia mais ou menos longa nos centros nervosos.

É essa a opinião de certo número de sábios que repre­sentam, em nossa época, a escola positiva. A filosofia deles não passa da forma científica das teorias de Hume, que não adquiriram valor, passando para este novo terreno. Apesar das declarações e do tom doutoral que apresen­tam, não no-la podem impor.

Quanto à vontade, escreve Luys:

As controvérsias dos filósofos e metafísicos, que vêm de longa data, só tiveram um fim: exprimir em fraseologia sonora a ignorância mais ou menos absoluta das condições da vida psíquica.

Não sabemos até que pontos são fundados essa pala­vras, mas o que iremos demonstrar é que o sábio professor apresenta hipóteses muito contestáveis para explicar os fenômenos do espírito; a um positivista, a um homem que vê de tão alto a filosofia, seria prudente não se deixar expor ao desmentido dos fatos.

Da sensibilidade dos elementos nervosos

Toda argumentação de Luys assenta num equívoco de palavras; para ele, a sensibilidade, a faculdade de sentir pertence à célula nervosa; é um fato que enuncia sem trazer, aliás, a menor prova. Assim a define:

A sensibilidade é essa propriedade fundamental que caracteriza a vida das células; graças a ela as células vivas entram em conflito com o meio; reagem de modo próprio, em virtude das afinidades íntimas puas em ação, mostrando apetência para as incitações que as lisonjeiam e repulsa para as que as contrariam. A atração para as coisas agradáveis e a repulsa às desagradáveis, são, pois, os corolários indispensáveis a toda organização apta a viver, e a manifestação aparente de toda a sensibilidade.

Admitindo que as células sejam capazes de experi­mentar atração e repulsão, isto é, supondo-as dotadas da faculdade de discenir, mostra Luys que, à medida que se sobe na escala dos seres, somente em certas células se especializa essa propriedade; faz ele ver que o desenvol­vimento da sensibilidade marcha de par com a extensão, cada vez maior, do sistema nervoso, para chegar no homem a seu máximo poder.

Raciocinar assim não é difícil e dispensa grande esfor­ço de imaginação, pois se supõe demonstrada a questão em litígio. Admitir que a célula escolhe entre os diversos elementos com que se acha em relação, é tão racional como supor que, numa combinação química, o oxigê­nio escolhe o corpo com o qual se alia.

Mas, diz-se-á, as células são vivas, têm um grau de capacidade e de propriedade maior que os corpos inorgâni­cos; podem não estar, portanto, submetidas tão só às leis que regem os corpos simples, e possuir um rudimento de consciência. Eis o que responde Claude Bernard, o ilustre fisiologista, em suas Leçons sur les tissus vivants, à pág. 63:

Visto que só os elementos anatômicos são vivos, só eles nos poderão dar os caracteres da vida. Ora, cada tecido apresenta propriedades diferentes e dir-se-ia, assim, que não há caráter vital essencial. Os fisiolo­gistas, entretanto, ensaiaram determinar esse caráter no meio das varia~ de propriedades dos tecidos, e lhe chamaram irritabilidade, i. é, a aptidão a reagir, fisiologicamente, contra a influência das circunstâncias externas, como a própria palavra o indica. Essa propriedade não pertence nem às matérias minerais nem às orgânicas, é privilégio exclusivo da matéria organizada e viva, ou seja, dos elementos anatômicos vivos, que são, por conseqüência, as únicas partes irritáveis do organismo. Todos os seres vivos são, pois, irritáveis pelos elementos histológicos que compreen­dem, e perdem essa propriedade no momento da morte. A propriedade de ser irritável distingue, portanto, a matéria organizada da que o não é; e, além disso, entre as matérias organizadas, faz reconhecer a que é viva, e a que o deixa de ser. Em suma, a irritabilidade caracteriza a vida.

A matéria, mesmo a viva, é inerte por si própria, no sentido de que deve ser considerada como desprovida de espontaneidade. Mas essa mesma matéria é irritável e pode, assim, entrar em atividade para manifestar suas propriedades particulares, o que seria impossível se fosse, ao mesmo tempo, desprovida de espontaneidade e irritabilidade. A irritabili­dade é, pois, a propriedade fundamental da vida.

O trecho é bem explícito; mesmo a matéria viva é inerte; é preciso um excitante para que possa agir, e quando manifesta os caracteres da vida, fá-lo à maneira dos corpos inorgânicos, sem nenhuma participação voluntária; não po­de, pois, reagir de modo próprio, como o quer Luys. Uma célula nervosa não pode mostrar repulsão, porque lhe é impossível escolher entre os diferentes corpos com os quais está em contacto.

Ensina Claude Bernard que há três categorias de exci­tantes: os irritantes físicos, os químicos e os vitais. Se a célula é posta em presença de um deles, não pode escolher nem manifestar repulsão, reage, porque a isso é obrigada. Se a colocarem em contacto com um corpo que não entra numa dessas categorias indicadas, ficará inerte, tal como dois gases, que, não tendo afinidades, não se combinam.

A fisiologia está, pois, em oposição formal com Luys; ela não admite que nos fenômenos manifestados pela vida das células possa haver intervenção de qualquer vontade, por menor que a possamos supor. Podemos negar, legitima­mente, que a sensibilidade, essa faculdade de sentir o que se passa em nós, seja uma propriedade das células nervosas do corpo. É necessário, pois, atribuí-ler à alma.

Vejamos a opinião de outro sábio, Rosenthal, exposta em Les Mescles et les Nerfs:

Para que a percepção das sensações se produza, parece absolutamente indispensável que a excitação chegue até o cérebro. É muito duvidoso, e ainda menos provado, que outra parte do encéfalo, e sobretudo a medula, possam produzir sensações. Quando as irritações chegam ao cérebro, não se produzem as sensações somente, mas também percepções exatas sobre a espécie de irritação, sua causa e o ponto onde foi ela praticada. Algumas vezes, entretanto, esses fenômenos não se realizam, e a excitação passa despercebida. É o que acontece, por exemplo, quando nossa atenção é fortemente atraída para outra parte...

Mas não é possível dar a menor explicação de como essa percepção se forma.

Pode ser que haja produção de fenômenos moleculares no interior das células nervosas, mas esses fenômenos só podem ser movimentos. Ora, podemos compreender como movimentos produzem movimentos, mas não sabemos absolutamente como esses movimentos poderiam produzir uma percepção.

Está pois estabelecido que é hipótese não justificada admitir a percepção, ou por outra, os fenômenos da sensibi­lidade como pertencentes à célula nervosa. A ciência posi­tiva de Luys é apanhada em flagrante delito de concepções não demonstradas e apenas imaginada com vistas ao fim a atingir. Assim, também, as vibrações que se animali­zam e depois se espiritualizam só foram apresentadas para afastar a alma da explicação do pensamento.

É singular ver tomados como sonhadores e gente pou­co científica os que crêem no Espírito, enquanto os repre­sentantes da ciência oficial querem persuadir-nos de que existem vibrações espirituais, e contestam a existência de um princípio imaterial.

Vamos à segunda hipótese do autor, arriscada para explicar a memória.

Fosforescência orgânica dos elementos nervosos

Luys foi o primeiro que propôs assimilar a faculdade da memória a uma ação física. Supondo as células nervosas, como certos corpos capazes de armazenar, de algum modo, as vibrações que lhes chegam, tal como as substâncias fosforescentes que continuam a brilhar, depois de desapare­cida a fonte luminosa, assim as células nervosas poderiam vibrar, mesmo depois que cessasse de agir a causa exci­tante.

Graças aos trabalhos dos físicos modernos, é certo que as vibrações do éter, sob a forma de ondulações lumi­nosas, são susceptíveis, para os corpos fosforescentes, de se prolongarem por um tempo mais ou menos longo, e de sobreviverem à causa que os produz.

Niepe de Saint Victor, em suas pesquisas sobre as propriedades dinâmicas da luz, chegou a mostrar que as vibrações luminosas podiam armazenar-se numa folha de papel, em estado de vibrações silenciosas, durante um tempo mais ou menos longo, prestes a reaparecerem sob a ação de uma substância reveladora. Foi assim que se pôde, tendo-se conservado, na obscuridade, gravuras ex­postas precedentemente aos raios solares, revelar, muitos meses após a insolação, com auxílio de reativos especiais, os traços persistentes da ação fotogênica do Sol sobre a superfície delas.

Que sucede, com efeito, quando se expõe ao Sol uma placa de colódio seco, e muitas semanas depois se desenvolve a imagem latente que ela contém?

Surgem impressões persistentes, recolhe-se um vestí­gio do sol ausente, e isto é tão verdadeiro, acusa tão perfeitamente a persistência de um movimento vibratório de limitada duração, que, ultrapassando-se os limites, espe­rando-se muito tempo, o movimento se vai enfraquecendo como uma fonte de calor que resfriasse e cessasse de mani­festar sua existência.

Esta curiosa propriedade de certos corpos inorgânicos se encontra, sob formas novas, com aparências apropria­das, é verdade, mas copiadas e semelhantes no estudo da vida dos elementos nervosos.

Em apoio de sua teoria, Luys cita exemplos de fosfo­rescência orgânica, tirados do funcionamento dos órgãos dos sentidos.

Quem não sabe, diz ele, que as células da retina continuam a ser impressionada quando já desapareceram as incitações? Segundo Plateau, essa persistência das im­pressões podia ser avaliada de 32 a 35 segundos. Graças a ela, duas impressões sucessivas e rápidas se confundem e chegam a dar uma impressão contínua. Um carvão incan­descente que se faz girar, na ponta de uma corda, produz a ilusão de um círculo de fogo; um disco em rotação no qual estão pintadas as cores do espectro só nos dá a sensação da luz branca, porque todas as suas cores se confundem e formam umas resultantes únicas, que é a noção do branco.

Todos os que se ocupam com os estudos microscó­picos sabem que, após um trabalho prolongado, as imagens vistas no foco do instrumento ficam um tanto fotografadas no fundo do olho e basta fechar os olhos, depois de algumas horas de estudo, para as ver aparecer com grande nitidez. O mesmo se dá com as impressões auditivas: os nervos conservam, durante algum tempo, os traços das impressões que os excitaram. Quando se viaja em trem de ferro, ouve­-se, ainda, horas após a chegada, o ruído das trepidações do vagão; uma ária, certos estribilhos favoritos, ressoam, involuntariamente, nos ouvidos e isso algumas vezes de modo desagradável, muito tempo depois que foram ouvi­dos. O Doutor Moos, de Heidelberg, refere o caso de um indivíduo em quem as sensações musicais persistiram du­rante quinze dias.

Os dois aparelhos sensoriais da vista e do ouvido são os únicos em que as sensações parecem deixar uma impressão duradoura. As redes gustativas não parecem des­providas desta qualidade, mas não a apresentam com inten­sidade.

Prosseguindo seu estudo, o autor atribui a fosfores­cência orgânica as ações que derivam do hábito, como os exercícios do corpo, a dança, a esgrima, o toque dos instrumentos de música etc. Depois, filía a essa fosfores­cência todos os fenômenos da memória.

Esta explicação não nos pode satisfazer, por muitas razões: a fosforescência dos elementos nervosos está de­monstrada para um tempo muito curto; ademais, nenhuma experiência estabeleceu que ela existisse no cérebro.

Viu-se, pelos exemplos citados mais acima, que a duração das impressões persistentes, depois de cessada a causa, é muito limitada; sua maior influência limita-se à reminiscência de algumas semanas. Supor nas células centrais semelhante propriedade e mesmo em grau mais forte é aventurar-se em terreno desconhecido.

O que contradiz esta maneira de ver é que, nas subs­tâncias inorgânicas, é preciso não passar de certo limite, quando se quer obter fatos relativos à fosforescência. No organismo humano, submetido a excitações diferentes, e em um aparelho tão complicado como o cérebro, é certo que as vibrações tão diversas das células nervosas só podem ter duração limitada.

Há uma segunda razão que destrói radicalmente a suposição de um armazenamento da vibração.

Diz Luys textualmente:

Esta aptidão maravilhosa (fosforescência orgânica) da célula cerebral, incessantemente entretida pelas condições favoráveis do meio em que ela vive, mantém-se, incessantemente, em estado de verdor, enquanto as condições físicas de seu agregado material respeitadas, e ela está associada aos fenômenos vitais do organismo.

Como vimos, Moleschott supõe que o corpo se renova de trinta em trinta dias; sem ir tão longe, podemos admitir que todas as moléculas do corpo são substituídas por outras ao fim de sete anos, como quer Flourens(7). Este naturalista, operando em coelhos, mostrou que, em determinado lapso de tempo, os ossos estavam inteiramente mudados, e que em lugar dos antigos, novos se haviam formado.

Ora, o que se dá com os ossos, dá-se com os demais tecidos e com as células nervosas em particular. Se a fosforescência orgânica é uma propriedade do elemento nervoso, ela impressiona ou o conjunto da célula ou as moléculas que a compõem. Quando a célula inteira se renova, isto é, quando os elementos que a constituem são absorvidos pelo organismo, as moléculas que vêm to­mar o lugar das que desapareceram não possuem mais o movimento vibratório que impressionou suas anteces­soras, de sorte que, quando todas as células são mudadas, não existe nenhum dos movimentos vibratórios antigos, ou por outra, a fosforescência orgânica desapareceu, tanto de cada uma das moléculas como do conjunto da célula.

Se só nessa propriedade residisse a memória, deveria esta ficar aniquilada completamente ao fim de um tempo mais ou menos longo, mas que não poderia exceder de sete anos. De sete em sete anos, teríamos que reaprender tudo que já sabíamos; ou melhor, como a evolução das partículas do corpo se faz constantemente, nossas lembran­ças desapareceriam à medida que as moléculas se renovas­sem, de sorte que seríamos incapazes de aprender o que quer que fosse.

Sabemos que não é o que acontece, e que nossa perso­nalidade e nossa memória persistem, apesar da torrente de matéria que atravessa nosso corpo.

A despeito das moléculas diversas que se incorporam em nós, temos a lembrança e a consciência de sermos sempre os mesmos, e isto só se pode explicar admitindo a existência de uma força que não varia como a matéria na qual se registram os conhecimentos que adquirimos pelo trabalho. Esta força, essência imaterial, é a alma, que, apesar das negações materialistas, revela sua presença, por pouco que se estudem, imparcialmente, os fenômenos que se passam em nós.

O automatismo

Luys define o automatismo: A propriedade que apre­sentam as células nervosas vivas de entrarem espontanea­mente em movimento e traduzirem de modo inconsciente os estados diversos da célula postos em agitação. Por outra forma: A atividade automática da célula viva é a reação espontânea da sensibilidade íntima da célula, solici­tada de qualquer maneira.

É sempre a teoria do elemento nervoso que age direta­mente, em virtude de suas forças íntimas, e de modo pró­prio; e é com tal equívoco que o autor pode interpretar o fato a seu favor.

É incontestável que se passam em nós ações de que não temos consciência. As experiências de Charles Robin, feitas no cadáver de um supliciado, mostraram que as funções da medula se perpetuavam enquanto a vida dos elementos não havia desaparecido, e isto com tanta regula­ridade como se o cérebro as dirigisse.

Devemos atribuí-Ias às propriedades íntimas das célu­las nervosas? Para o saber, recorramos a Claude Bernard, que assim se exprime:

No homem há duas espécies de movimentos: 1°, os conscientes ou voluntários; 2:, os inconscientes, involuntários, ou reflexos (ou automá­ticos), porque, sob nomes diversos, são a mesma coisa.

O movimento reflexo é um movimento para cuja execução concor­rem sempre três ordens distintas de elementos do sistema nervoso o elemento sensitivo, o elemento motor e a célula.

Se produzisse um movimento sem uma dessas condições, sem a participação de um desses elementos, não seria mais um movimento reflexo. Com efeito, todo movimento reflexo implica três coisas bem distintas: 1:, uma excitação do nervo sensitivo num lugar qualquer de seu comprimento; 2:, uma excitação do nervo motor que se traduz pela contração de um músculo; 3:, um centro que serve de transição, e, por assim dizer, de traço de união desses dois elementos, de maneira a produzir a irritação do segundo, sob a influência do primeiro.

Sabemos já que a matéria viva é inerte, que não pode entrar em movimento por si própria; as ações automá­ticas são devidas sempre à irritação de um nervo sensitivo, que transmite a excitação a um nervo motor por meio da célula. É por esta forma que se executam os atos da respiração, da contração do coração, da digestão etc., nos quais a vontade não intervém habitualmente; entre­tanto, verificou-se que existe um ponto colocado no cére­bro que modera as ações reflexas. A alma manifesta, por conseguinte, a sua presença sempre, quer de maneira direta, pelos movimentos voluntários, quer indireta, nas ações reflexas, pela intervenção dos centros moderadores.

A argumentação de Luys limita-se a afirmações des­mentidas pela ciência, de sorte que seus raciocínios, apoiando-se em bases falsas, chegam a deduções em oposi­ção formal à verdade. Nem a sensação, nem a fosfores­cência, nem o automatismo têm o sentido e o alcance que se lhes quer emprestar. É por meio dessas interpre­tações mutiladas que a teoria materialista parece ter uma força que efetivamente ela não possui.

Conclusão

Das teorias examinadas, até agora, nenhuma dá a certeza de que a alma não seja uma entidade. Com um exame atento, deduz-se, pelo contrário, a convicção de que o espírito ou alma existe realmente e manifesta sua presença em todas as ações da vida.

Nem os profundos conhecimentos químicos de Moles­chott, nem o grande talento de sábios como Broussais, Büchner, Carl Vogt, Luys etc. são suficientes, não só a invalidar a crença na alma como, simplesmente, a fazer duvidar de sua realidade.

Há um século temos a nosso alcance um poderoso instrumento de investigação que nos revela, de maneira formal, a existência da alma; queremos falar da ciência magnética.

Nas discussões precedentes, ainda podem subsistir dúvidas no espírito de certos leitores.

A autoridade de nossos contraditores poderá fazer pensar que eles são incapazes de se enganar por tão grossei­ro modo; poderão suspeitaras nossas conclusões, que -são, aliás, as da ciência oficial. Mas, com os fatos fornecidos pelo magnetismo, separa-se a alma do corpo; ela dele se desprende e manifesta sua realidade por fenômenos surpreendentes; [ela se afirma separada do seu invólucro cama] e se diz vivendo uma existência especial.

Esta é a razão por que nos ocuparemos, na segunda parte, dos fatos que deixam fora de dúvida a existência do eu pensante, da alma.

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

O MAGNETISMO É SUA HISTÓRIA

Saindo das graves discussões dos capítulos preceden­tes, parecerá talvez bizarro a certas pessoas, que entremos num assunto como o magnetismo, ciência que até então não pôde achar direito de cidade nas academias.

Muito tempo desconhecido, ridicularizado e mesmo perseguido, o magnetismo, como todas as grandes verda­des, tem vida forte; longe de definhar ao sopro das perse­guições, tomou um desenvolvimento considerável e se nos apresenta com seu cortejo de homens ilustres e eruditos, com milhões de experiências probantes, como para mostrar à Humanidade de que aberrações são capazes as corporações científicas.

Há hoje uma reação em seu favor. Em todas as partes, os jornais, as revistas médicas se ocupam com os fatos maravilhosos produzidos pelo hipnotismo, nome novo de que o magnetismo se revestiu. Ao abrigo desse pseudô­nimo, insinuou-se no santuário dos príncipes da ciência, que o não reconhecendo, a princípio, lhe fizeram boa aco­lhida; agora, porém, sabendo com que tratam, desejaria negar-lhe o parentesco estreito com o magnetismo,'que continuam a proscrever.

Antes de estudar esse recém-chegado em capítulo es­pecial, ocupemo-nos do magnetismo propriamente dito. Na primeira parte desta obra, ficou estabelecido que a ciência não autorizava ninguém a falar em seu nome, quando se trata de combater a existência da alma. Os mais eminentes fisiologistas reconhecem sua incapacidade para explicar a vida intelectual, sem a intervenção de uma força inteligente. A filosofia concluiu pela necessidade do princípio pensante; a experiência, por sua vez, prova à evidência, pelos processos do magnetismo, a presença da alma como potência diretriz da máquina humana.

Há um século pesquisas minuciosas se fazem nesse domínio. Homens sérios, convictos e dedicados mostraram que o charlatanismo não tem parte alguma nas verdadeiras ações magnéticas e que se achavam em face de uma modifi­cação nervosa que era preciso estudar.

Puységur, Deleuze, Du Potet, Charpignon, Lafon­taine e outros, homens de ciência e de incontestada hones­tidade, descreveram, em suas numerosas publicações, mi­lhares de experiências verídicas, que constam em atas assi­nadas pelos nomes mais honestos e mais conhecidos. Negar hoje os fatos, seria infantilidade ou má fé.

A fim de mostrar nossa imparcialidade, só tomaremos, como demonstração da existência da alma, as experiências bem averiguadas; reportar-nos-emos, em grande parte, ao relatório sobre o magnetismo apresentado à Academia de Medicina, e lido nas sessões de 21 e 28 de junho de 1831, em Paris, por Husson, relator.

Os outros testemunhos serão tomados, ora a adver­sários das doutrinas espiritualistas, que não poderão ser acusados de complacência, ora a escritores especiais, que trataram destas questões, mas, neste caso, as suas narrati­vas se apoiam na autoridade de médicos, que as acompa­nharam em todas as suas fases.

Deste modo, poderemos raciocinar sobre observações autênticas e delas tirar conclusões tão claras como as que se deduzem do estudo da natureza e que foram formuladas sob o nome de leis físicas e químicas.

Histórico

A ciência magnética compreende certo número de di­visões, conforme as diferentes categorias de fenômenos. Assinalaremos, aqui, os fatos que se relacionam com o desprendimento da alma, deixando de lado o aspecto tera­pêutico dessa ciência cultivada pelos nossos antepassados.

Sem fazer a história detalhada do magnetismo, pode­mos lembrar que ele foi conhecido em todos os tempos. Os anais dos povos da antigüidade formigam em narrativas circunstanciadas, que mostram o profundo conhecimento que do magnetismo tinham os antigos sacerdotes.

Os magos da Caldeia, os brâmanes da índia curavam pelo olhar e por meio dele proporcionavam o sono. Ainda hoje, na Ásia, os sacerdotes estão de posse do segredo dos seus predecessores, e particularmente no Hindostão os faquires cultivam com êxito as práticas magnéticas, como relatam os viajantes que percorreram essas regiões.

Os egípcios colheram sua religião e seus mistérios na grande fonte da índia; empregavam, no alívio dos sofri­mentos, os passes e a aposição de mãos, como os executa­mos ainda em nossos dias. Cita Heródoto, em muitas passa­gens, os santuários onde iam ter os peregrinos, desejosos de curar-se com os remédios que os hierofantes descobriam em sonho. Diodoro de Sicília diz positivamente que os doentes chegavam em multidão ao templo de Ísis, para aí serem adormecidos pelos sacerdotes. A maior parte dos pacientes caíam em crise e indicavam, eles mesmos, o tratamento que os devia reconduzir à saúde.

O templo de Serápis, de Alexandria, era afamado, porque restituía o sono aos que dele se viam privados. Conta Estrabão que, em Mênfis, os sacerdotes adormeciam e nesse estado davam consultas médicas. A História está repleta das narrações de curas por esse processo. Arnóbio, Celso e Jâmblico ensinam em seus escritos que havia entre os egípcios, em todas as épocas, pessoas dotadas da facul­dade de curar por meio da aposição das mãos e de insufla­ções, conseguindo, muitas vezes, fazer desaparecer doen­ças tidas como incuráveis.

Os gregos, por sua vez, receberam dos povos do Egito grande número de conhecimentos e não tardaram a igualar, senão a ultrapassar os mestres. Os hierofantes do altar de Trofônius tinham adquirido grande celebridade nesses misteres. O que prova que o magnetismo estava muito espalhado nessa época é que, no dizer de Heródoto, alguns padres mataram por ciúme certa mágica que fazia curas por meio de fricções magnéticas.

O ilustre taumaturgo Apolônio de Tiana não ignorava essas práticas; ele curava a epilepsia com objetos magneti­zados, predizia o futuro e anunciava os acontecimentos que se passavam ao longe. Conserva-se a lembrança do seguinte caso:

Em sua velhice, o filósofo se refugiara em Éfeso. Ensinava um dia em praça pública, quando seus discípulos o viram deter-se, de repente, e exclamar, com voz vibrante: Coragem, fere o tirano! Interrompeu-se alguns instantes, na atitude de quem espera com ansiedade, e continuou:

- Perdei o temor, Efésios, o tirano já não existe, acaba de ser assassinado.

Alguns dias depois, soube-se que no momento em que Apolônio falava, Domiciano tombava sob o punhal de um liberto.

Os romanos também tiveram templos onde se reconsti­tuía a saúde por operações magnéticas. Conta Celso que Asclepíades de Pruse adormecia, magneticamente, as pes­soas atacadas de frenesi. Galeno, um dos pais da medicina moderna, suprimia certas doenças com a aplicação dos mesmos remédios que o fizeram passar por feiticeiro e o obrigaram a deixar Roma.

Declarou este notável sábio, que devia grande parte de sua experiência às luzes que recebia em sonho. Também dizia Hipócrates que as melhores mezinhas lhe eram indica­das durante o sono. Quem obteve, porém, maior fama nessa matéria, foi Simão, o mágico, que soprando nos epilépticos, destruía o mal de que estavam atacados.

Na Gália os drúidas e as druidesas possuíam em alto grau a faculdade de curar, como o atestam muitos historia­dores; sua medicina magnética tornou-se tão célebre que os vinham consultar de todas as partes do Mundo. É fácil verificar quanto sua fama era universal, consultando Táci­to, Plínio e Celso. Na Idade Média, o magnetismo foi praticado, principalmente, pelos sábios. O clero, ignorante e supersticioso, temia a intervenção do diabo nessas opera­ções um tanto estranhas, de sorte que esta ciência ficou sendo o apanágio dos homens instruídos.

Avicena, doutor famoso, que viveu de 980 a 1036, escreveu que a alma age não só sobre o seu próprio corpo, senão ainda sobre corpos estranhos que pode influenciar, à distância.

Ficin, em 1460, Cornélio Agripa, Pomponáceo em 1500 e sobretudo Paracelso, contemporâneo deles, estabe­leceram as bases do magnetismo moderno, como devia ser ensinado mais tarde por Mésmer.

Arnaud de Villeneuve foi buscar nos autores árabes o conhecimento dos efeitos magnéticos e seu êxito foi tão grande, que ele atraiu o ódio de seus confrades e foi condenado pela Sorbona.

Em 1608, Glocênius, professor de medicina em Mar­bourg, editou uma obra que tratava das curas magnéticas. Desde essa época ele procurou dar uma explicação racional desses fenômenos.

Van Helmont dizia, reabilitando a memória de Para­celso, de quem ele foi o continuador: O magnetismo só tem de novo o nome, só é um paradoxo para os que riem de tudo e que atribuem a Satã o que não podem explicar. Há no homem, diz mais adiante, uma tal energia, que ele pode atuar fora de si e influenciar de maneira durável um ser ou um objeto de que está afastado. Tal força é infinita no Criador, mas limitada na criatura, pelos obstáculos naturais. Estas concepções novas, estas vistas ousadas foram atacadas pela Igreja, que se encontra sempre na rota dos inovadores, empenhada em lhes impedir a passagem, e o célebre médico foi obrigado a refugiar-se na Holanda, onde já estava o grande Descartes.

Socorreu Van Helmont, em sua luta, o escocês Robert Fludd; mais tarde, Maxwell, em 1679, sustentou as mesmas idéias. O padre Kircher, falando de Fludd, dizia que seus escritos foram inspirados pelo diabo; cita, entretanto, nu­merosos exemplos de simpatias e antipatias e dá, mesmo, indicações para bem magnetizar.

Em 1682, assinalaremos Greatrakes, na Inglaterra, que fez milagres, simplesmente com as mãos, sem procurar, aliás, saber, a maneira por que a ação se dava.

Em França, Borel e Vallée, em começo do século XVII, empregaram o magnetismo por insuflações para com­bater as moléstias nervosas rebeldes a qualquer outro trata­mento. Gassner encheu a Alemanha com o ruído dos resul­tados obtidos pelo magnetismo, como é ele praticado em nossos dias. Fixava energicamente o olhar nos olhos do doente, e o friccionava de alto a baixo, sacudindo os dedos, quando chegava à extremidade, para expulsar os princípios maus.

Não narraremos a odisséia de Mésmer; ela é bastante conhecida e por isso cremos desnecessário reproduzi-Ia; basta assinalar que a vulgarização da ciência magnética lhe é devida.

O magnetismo é hoje estudado metodicamente, e uma notável propriedade descoberta pelo marquês de Puységur lhe fez dar passos de gigante: queremos falar do sonambu­lismo provocado, que será objeto de nosso próximo estudo. Não tendo o intuito de estender-nos sobre a história do magnetismo, paramos aqui. Era apenas nossa intenção mos­trar que esta ciência, motejada pelos ignorantes ou par­ciais, tem uma genealogia gloriosa e remonta a épocas bem afastadas.

Ainda há pouco tempo, atribuíam-se à credulidade e à superstição as narrativas dos antigos relativas às curas magnéticas. Atualmente, as pesquisas nesse campo tendo­-nos feito ver que se podiam obter os mesmos resultados, enchemo-nos por isso de admiração por esses sacerdotes que possuíam uma ciência tão completa da vida e que a exerciam com tanta habilidade.

CAPÍTULO II

O SONAMBULISMO NATURAL

Após fatigante jornada, quando repousamos os mem­bros lassos, sentimos pouco a pouco que um bem-estar nos invade; produz-se uma tranqüilidade geral, uma calma no cérebro; nossos olhos se fecham, dormimos. Que atos se realizam durante essa suspensão da vida ativa?

O sono tem por caráter essencial romper a solidarie­dade que existe, habitualmente, entre as diferentes partes do corpo, entre as diversas funções do organismo, entre as múltiplas faculdades do homem. Durante esse tempo, cada uma das unidades que compõem o todo concentra em si mesma a força que lhe é própria, isola-se das outras, e assim o corpo se separa do mundo exterior pelo repouso dos sentidos.

Até aqui se emitiram as mais contraditórias teorias para explicar esse estado, mas é também inteiramente difícil compreender a situação em que nos encontramos quando não se está dormindo, porque a vida é repartida por perío­dos de atividade e de repouso que não são menos naturais, nem menos normal, um do que o outro. O sono não é, pois, como alguns o pretenderam, a imagem da morte. Estudando com Longet os sintomas que se manifestam nos seres que vão dormir, verificamos que o sono não se apodera bruscamente de nós: nossos órgãos amortecem, sucessivamente, em graus variáveis; alguns velam ainda, enquanto outros já estão mergulhados em completo entorpecimento. Em geral, são os músculos dos membros os que primeiro se relaxam e enfraquecem. Os braços e as pernas, imobilizados, ficam na posição escolhida e que está em relação com a forma das articulações e das princi­pais massas musculares.

Depois dos membros, são os músculos voluntários do tronco que se afrouxam; na calma da noite, nossos sentidos inativos não recebem qualquer impressão de fora, e esta inação, que favorece a sonolência, é logo seguida de uma atonia completa. Quase sempre, a vista é o sentido que primeiro enfraquece; o olhar fatigado se embacia, per­de o brilho e se fixa em objetos que não vê mais, ao mesmo tempo em que a pálpebra se fecha; depois, é o ouvido leque adormece e termina a sucessão dos fenômenos que assinalaram a invasão do sono.

É de notar que o ouvido, tão rebelde à fadiga, resiste também por último aos ataques da morte; ouve-se, ainda, quando os demais sentidos já cessaram de viver, assim como se percebem sons, quando os diferentes órgãos já se acham adormecidos. Outra circunstância singular é a seguinte: é pelo ouvido que penetram, as mais das vezes, as influências soporíficas, e o ouvido vigia, ainda, quando o corpo, por sua ação, não é mais do que uma massa inerte. Sabe-se, com efeito, com que facilidade a monoto­nia de um som aniquila o conhecimento: o ruído de uma queda d'água, o murmúrio do vento através das grandes árvores, as melopéias dolentes, as ingênuas e tocantes cantigas das mães, embalando os filhos, são tantas provas do que dizemos.

O gosto, o olfato, o tato cessam, geralmente de mani­festar propriedades ativas desde os primeiros sinais do sono, que podemos encarar como o repouso do corpo.

É durante esse estado que os órgãos e os sentidos recupe­ram a força nervosa que despenderam durante a vigília, e quando a máquina humana se torna novamente apta às funções da vida de relação, o homem desperta.

A série de atos que acabamos de descrever é a que se exerce normalmente. Não indicamos os casos parti­culares que podem apresentar-se e que variam conforme os indivíduos, mas existe um ponto em que é bom insistir, porque nos porá na via das explicações relativas aos so­nhos, - é a marcha decrescente das faculdades, no mo­mento do sono.

Pode muito bem acontecer que a percepção ou o poder de conhecer se extinga em nós, antes que os sentidos adormeçam. Com efeito, quantas vezes, após laboriosas vigílias, sucede-nos deixar cair um livro no qual já não distinguíamos senão pontinhos pretos. Um pouco antes, víamos estas letras, nós as reuníamos, líamos, mas já não concebíamos; mais tarde, víamos, mas não líamos, perdía­mos a consciência de nosso estado. Nesse último caso, é incontestável que a percepção enfraquece antes do senti­do que transmite a impressão.

Outras vezes, ao contrário, o órgão sensorial adorme­ce antes da concepção, de sorte que a última imagem percebida serve de ponto de partida a uma série de idéias que nascem em razão do gênero de trabalho do indivíduo. Que a idéia de luz seja, por exemplo, a última recebida pelos sentidos; ao físico, ela irá levar o espírito ao estudo da luz; ele reverá as experiências múltiplas da refração, da polarização etc. cujos inumeráveis problemas poderão desfilar diante dele; ao fisiologista, lembrará os mistérios da visão; ao pintor, quadros mágicos, esplêndidos ocasos, auroras imaculadas; ao homem do Mundo, festas e saraus.

Ora, como todas essas visões interiores podem ser determinadas por uma ou várias sensações finais, produzi­das nos órgãos dos sentidos, e como são elas capazes de atuar simultaneamente, as faculdades do espírito se misturam umas às outras, produzindo as mais fantásticas e extraordinárias associações de idéias. É precisamente o que acontece no sonho habitual, que sobrevém, muitas vezes, também, por causas puramente materiais, que agem no corpo adormecido.

O sono, pois, no momento mesmo em que sobrevem, destrói a solidariedade que existe entre as diversas faculda­des do espírito, por maneira que elas adormecem sucessivamente; quando uma delas fica em atividade, adquire uma força tão grande, que nenhuma sensação externa lhe neu­traliza a ação.

Existem provas notáveis do fato. Se nos preocupamos com a solução de um problema ou se nos domina uma idéia, todas as nossas forças se concentram nesse ponto único, e se a lembrança permanecesse, veríamos de que obras-primas seria capaz o espírito humano.

Isto nos conduz ao caso particular do sono, que se chamou sonambulismo. Neste estado, o indivíduo caminha dormindo e procede como se estivesse acordado. Os trata­dos de fisiologia estão cheios de observações sobre esta curiosa anomalia. Podemos citar exemplos históricos de sonambulismo.

Foi durante o sono que Cardan compôs uma de suas obras, que Condillac, o famoso filósofo sensualista, termi­nou seu curso de estudos. Voltaire refez em sonho, comple­tamente, e melhor do que o fizera acordado, um dos cantos da Henriade. Massillon, dormindo, escrevia muito dos seus elegantes sermões; enfim, Burdach, o fisiologista, que se interessou muito por esta questão, conta o seguinte

A 17 de junho de 1882, fazendo a sesta, sonhei que o sono como o alongamento dos músculos, é um retorno a si mesmo, que consiste na supressão do antagonismo. Alegre, com a viva luz que essa idéia me parecia espalhar sobre os fenômenos vitais, acordei; mas, logo depois tudo entrou em sombra, peque este modo de ver estava, no momento, em contradição com minhas idéias, mas se tornou o gérmen das que se desenvolveram depois em meu cérebro.

Este último fato é simplesmente um sonho, mas, os citados acima, apresentam caráter especial. Assim, para compor uma obra ou escrever sermões, quando o corpo está adormecido, é preciso que o autor se desloque, que seus membros façam certos movimentos em relação com o fim a atingir: há aí o sonambulismo natural. Distingue-se pois do sonho por dois caracteres: 1 - o andar durante o sono; 2 - a perda da lembrança do que se passou, ao acordar.

Durante o sonambulismo, os membros obedecem à vontade e esta atua sobre o corpo, sem ser solicitada por qualquer estimulante exterior.

Isso se produz com freqüência nos indivíduos jovens. As crianças, sobretudo as irritáveis, levantam-se, muitas vezes, de noite, ou executam na cama movimentos varia­dos, sem que, aliás, lhes seja o sono interrompido. Se os órgãos da voz despertam, traduzirão os pensamentos do sonho; assim é que milhares de seres têm o hábito de sonhar alto. Podem suceder-lhes sustentar conversa, du­rante certo tempo, com pessoas acordadas; mas é preciso que se lhes adivinhe o objeto de suas preocupações, porque a resposta que eles dão se dirigem, não ao interlocutor real, mas à personagem ideal do sonho.

Tais são, em seu conjunto, os ensinos dados pela fisiologia, para explicar o sonambulismo. É fácil verificar que são insuficientes, na grande maioria dos casos.

Temos, na primeira linha, a Enciclopédia, que não pode ser acusada de ternura para com as teorias espiritua­listas. Relata, no artigo sonambulismo, a história de um jovem padre que se levantava todas as noites, ia, à escrivaninha, compunha sermões e tornava a deitar. Al­guns de seus amigos, desejosos de saber se ele, de fato, dormia, espiaram-no, e uma noite em que ele escrevia, como de costume, interpuseram um grosso cartão entre seus olhos e o papel. Ele não se interrompeu, continuou a redação, e, terminada esta, deitou-se, como de hábito, sem suspeitar da prova a que fora submetido. O autor do artigo acrescenta: Quando ele terminava uma página, lia-a alto, de princípio a fim (se pode chamar leitura a esta ação sem o concurso dos olhos). Se lhe desagradava alguma coisa, ele a retocava e fazia as correções, em cima, com muita exatidão. Eu vi o começo de um desses sermões que ele escrevia dormindo; pareceu-me bem feito e corretamente escrito. Mas havia uma emenda surpreen­dente: tendo posto num lugar - ce divin enfant, achou, relendo, dever substituir a palavra divin por adorable; viu, porém, que o ce, que ficava bem antes de divin, não o era antes de adorable, e colocou muito acertada­mente um t ao lado das letras precedentes, de sorte que se lia cet adorable enfant.

Aqui não é possível limitarmo-nos às explicações aci­ma enunciadas, para explicar os fatos, porque há uma fase do fenômeno em que não seria demais insistir: é a visão sem os olhos. É este um detalhe muito importante, porque se nos é demonstrado que um sonâmbulo pode caminhar em um quarto, escrever com os olhos fechados, fazer correções, que indicam uma vista bem nítida, isso nos provará que há nele uma força que seguramente o dirige, que age fora dos sentidos, numa palavra, que a alma vela quando o corpo dorme.

Na história referida pela Enciclopédia, pode-se pre­tender que uma forte contensão do espírito, durante a vigília, predispusesse o cérebro do jovem sacerdote a reda­ção de suas homilias. Mas se é fácil admitir que ele tinha o hábito de trabalhar em sua secretária e que, maquinal­mente, para ela vinha durante o sono, é impossível explicar como via através de um cartão, de forma a escrever corretamente, voltar às páginas, quando chegava ao fim delas, adicionar letras no lugar preciso onde isso fosse útil, prati­car, finalmente, todos os atos que exigem o auxílio da vista.

Os fatos que se seguem, tão estranhos como a prece­dente, e onde qualquer contestação é impossível, são toma­dos ao Doutor Debay, que faz profissão de materialismo e que não é benévolo para com os espiritualistas, em geral, e os espíritas, em particular. Exporemos, depois, as teorias luminosas que ele apresenta, admitidas em geral pelos in­crédulos, e mais uma vez assinalaremos a lamentável insufi­ciência desses sistemas, que querem dispensar a alma, na explicação dos fenômenos da vida.

É este o 1: caso observado pelo próprio doutor:

Por bela noite de verão, percebi, à claridade da lua, uma forma humana caminhando pelos telhados de uma casa muito alta; vi-a rastejar, estender-se, e depois se agarrar fortemente aos ângulos agudos do teto e assentar-se no alto da cumieira.

Para melhor observar essa estranha aparição, muni-me de um binoculo, e distingui, claramente, uma mulher ainda jovem com o filhinho nos braços, estreitado ao peito. Ela ficou perto de meia hora nessa perigosa posição; desceu, depois, com surpreendente agilidade e desapareceu.

No dia seguinte, à mesma hora, fez a mesma ascensão, na mesma atitude, e com a mesma agilidade percorreu os telhados. De manhã, relatei ao proprietário da casa o que vira. Ele me ouviu assustado e contou que sua filha era sonâmbula, mas ignorava completamente os seus passeios noturnos; induzi-o a tomar minuciosas precauções, a fim de impedir um terrível acidente.

Veio a noite e vi, ainda, a moça executando as monobras dos dias precedentes; corri de novo a advertir o pai; encontrei-o triste e pensativo. Disse-me que, depois de a filha deitar-se, tinha ele mesmo lhe fechado à porta do quarto, com dupla volta, tomando ainda a precaução de colocar um cadeado por fora.

Ah! - dizia ele - a pobre rapariga, não tendo outra salda, abriu a janela, e, como de costume, dirigiu-se para o telhado. De volta, após um quarto de hora, bateu com o punho num batente da janela que o vento fechara, ferira-se ligeiramente e acordou dando um grito agudo. Por inaudita felicidade, a criança, que escapara de suas mãos, cafra numa poltrona, que ela tivera o cuidado de colocar junto à janela, para lhe servir de degrau.

Nesse momento, a sonâmbula entrou. Era uma mulher delicada e adoentada; trazia no rosto, interessante, o cunho da tristeza e denotava uma idiossincrasia histérica. A prisão do marido, condenado político, impressionara-a extremamente e contribuía para sua exaltação moral. Quan­do lhe falei dos seus passeios perigosos, sorriu languidamente e não quis acreditar. Enfim, interrogando-a sobre a natureza dos seus sonhos, disse ela que parecia ter tido, havia já alguns dias, um sono pesado, penoso; umas vezes sonhava que gendarmes, guardas, toda a horda de policiais lhe invadia o domicílio, para apoderar-se do republicano; outras vezes era ao filho e a ela que queriam levar.

Seguia-se-lhe ao despertar grande lassidão; sentia-se fatigada, triste, abatida, com dor de cabeça, e tudo atributa à dolorosa separação que a privava do esposo.

Tal é a narrativa do doutor, que ele faz seguir das seguintes observações:

Refletindo nas condições físicas e morais dessa moça, descobre-se que ela era predisposta ao sonambulismo, por sua organização, e que um pensamento a acompanhava sempre: a prisão do marido. Dessa idéia, durante o sono, nasciam muitas outras, por associação: o órgão encefálico, fortemente estimulado, punha em jogo o aparelho locomotor e o dirigia para o beto da casa. O motivo dessa perigosa ascensão eis o perigo de que se acreditava ameaçada, ela e seu filho.

Muito bem. Mas aqui não se pode invocar o conheci­mento dos lugares e o hábito, para explicar o caminhar da sonâmbula por sobre as arestas agudas do telhado, porque, certamente, essa dama não fazia ali os seus pas­seios ordinários.

Ora, perguntamos qual era a força que a dirigia? Aonde ia ela buscar a segurança e a lucidez necessárias para guiá-la naquele caminho perigoso? Ainda mesmo que ela pudesse servir-se dos olhos, a criança, que sustinha nos braços, ser-lhe-ia causa de terrores, de que ela seria vítima.

Nesse estado, é preciso reconhecer que a alma dirigia o corpo sem o socorro dos sentidos, e para que a dúvida não seja possível, tomemos, ainda, do mesmo autor, dois outros fatos, onde, com o corpo adormecido, gozava a alma de todas as suas faculdades intelectuais.

O professor Soave, ensinando filosofia e história natu­ral na Universidade de Pádua deu à publicidade o seguinte caso de sonambulismo:

Um farmacêutico da Pavia, sábio químico, a quem se devem importantes descobrimentos, levantava-se todas as noites, durante o sono, e ia a seu laboratório continuar os trabalhos inacabados. Acendia os fornos, preparava os alambiques, retortas, vasos, etc., e prosseguia em suas experiências com uma prudência e agilidade, de que, acor­dado, talvez não fosse capaz; manejava as mais perigosas substâncias, os mais violentos venenos, sem que jamais lhe acontecesse o menor acidente.

Quando lhe faltava o tempo para preparar, durante o dia, as receitas mandadas aviar pelos médicos, ia busca­ na gaveta onde estavam fechadas, abria-as, colocava-las na mesa, umas sobre as outras, e procedia ao seu preparo, com todo o cuidado e as precauções requeridas.

Era verdadeiramente extraordinário vê-lo tomar a ba­lança, escolher os gramas, decigramas e centigramas, pesar com precisão farmacêutica as doses mínimas das substân­cias contidas nas receitas, triturá-las, misturá-las, prová­-las, pô-las depois em frascos ou em pacotes, segundo a natureza dos remédios, colar os rótulos, e dispor, final­mente, os preparados nas prateleiras da farmácia, pronto para ser entregue, quando os viessem buscar.

Terminados os trabalhos, ele extinguia os fornos, Etna em ordem os objetos, e voltava para a cama, onde dormia tranqüilo até à hora de acordar. Nota o Prof. Soave que.o sonâmbulo tinha constantemente os olhos fechados; confessa que, se a memória dos lugares e a idéia de acabar os trabalhos bastassem para guiá-lo no laboratório, a leitura e o preparo das receitas, cujo conteúdo ignorava, ficariam inexplicáveis.

Ei-nos chegados, enfim, a uma circunstância que, con­forme confissão dos sábios, não se pode compreender por suas teorias. Eles são incapazes de explicar esses fenôme­nos estranhos, mas essa incapacidade se origina, apenas, da sua obstinação. Enquanto rejeitarem sistematicamente a alma, a natureza humana terá sempre mistérios que eles não poderão sondar.

Conta também o Dr. Esquirol que um farmacêutico se levantava todas as noites e preparava as poções cujas fórmulas se encontravam na mesa. Para verificar se havia discernimento por parte do sonâmbulo, ou apenas movi­mentos automáticos, um médico colocou no balcão da far­mácia a nota seguinte:

- Sublimado corrosivo - 2oitavas

- Água destilada - 4 onças

Para tomar de uma vez

.

O farmacêutico levantou-se durante o sono e, como de hábito, desceu a seu laboratório; apanhou a receita, leu-a várias vezes, pareceu muito espantado e entabulou o seguinte monólogo, que o autor da narrativa, oculto no laboratório, escreveu palavra por palavra:

É impossível que o doutor não se tenha enganado nesta fórmula; 2 grãos já seriam bastante; mas há aqui legivelmente escrito 2 oitavas, que são mais de 150 grãos. Isto é mais do que suficiente para envenenar 20 pessoas. Ele enganou-se, indubitavelmente. Não preparo esta porção.

O sonâmbulo tomou, em seguida, diversas prescrições que estavam na mesa, preparou-as, rotulou-as e colocou-as em ordem para serem entregues no outro dia.

Sigamos o Dr. Debay nas explicações que dá sobre a narrativa acima. Temos três casos de sonambulismo natu­ral, impossíveis de compreender, sem admitir a existência de um princípio espiritual, diretor da matéria e não subme­tido ao sono como o corpo. Os sábios procuram disfarçar a ignorância, por meio de teorias obscuras, mais difíceis de admitir que as nossas. Assim, Debay explica que o olho não é o único órgão por onde se opera a visão e que pode transmitir ao cérebro, a percepção dos objetos. Somos desta opinião; onde diferimos é na interpretação do mecanismo da vista sonambúlica, que, segundo, o nosso doutor, se pode fazer pela ponta do nariz, pelo epigástrio ou pela extremidade dos dedos!

Não ria, leitor! Pretende ele que a visão pelo epigás­trio ou pela ponta do nariz não é tão sem fundamento como (a justo título) poderia acreditar-se; que existem, talvez, ramificações do nervo ótico, que vão a essas extre­midades, e por elas o sonâmbulo poderá guiar-se.

Se nos deixássemos levar por essa concepção, doce­mente fantasista, seria possível justificar a crença de que o homem perfeito seria o que possuísse um olho fixo à extremidade de uma longa cauda móvel.

Pela hipótese das ramificações - continua Debay - o estímulo exterior agiria sobre essas anastomoses desco­nhecidas e as vibrações que determinassem no cérebro bastariam para produzir a percepção. E acrescenta grave­mente: Não convém negar; mais sábio é duvidar, esperan­do novas demonstrações.

Que se deve dizer diante de tais suposições? Para uma discussão séria é preciso examinar o primeiro caso assinalado.

Debay explica esses fenômenos por uma comparação. Assim como um comandante dirige seu navio servindo-se de um mapa, da mesma forma, no sonambulismo, a memó­ria dirige o corpo pelas impressões que ela lhe fornece.

Admira ver um médico, um fisiologista emitir tal as­serção. Não sabíamos que a memória dirige o corpo, mas a vontade, guiada por diversas influências, de que uma delas poderia ser a memória. Apesar da dificuldade em admitir tal teoria quando os movimentos do indivíduo se produzem numa residência que lhe é habitual, que dizer das circunstâncias em que o sonâmbulo se conduz, maravilhosamente, e com uma segurança que não teria, mesmo acordado, em meios que lhe são totalmente desconhecidos?

Tomemos o exemplo daquela jovem senhora cujo mari­do foi preso. É possível afirmar que a memória a conduzia, quando ela caminhava pelo telhado, rastejava, esgueira­va-se pelas arestas pontiagudas e se assentava, enfim, na cumieira? Impossível supor que se entregasse a tais exercí­cios, em seu estado normal. Mas, então, que poder a protegia e lhe evitava as quedas? Por que órgão via ela, desde que em tal estado tinha os olhos completamente fechados?

Não se pode imaginar que ramificações do nervo óti­co, terminando no epigástrio ou alhures, sejam capazes de transmitir vibrações luminosas ao cérebro, porque sabe­mos, e desde muito, que as sensações luminosas e auditivas são localizadas nos órgãos desses sentidos, e que é tão difícil explicar a visão pelos ouvidos como a audição pelos olhos.

E ainda que o nervo ótico se ramificasse, como quer Debay, não tendo as extremidades aparelho receptor, ou seja, a câmara escura que constitui a parte essencial do olho, elas não poderiam, de forma alguma, transmitir vibra­ções luminosas ao cérebro.

Entretanto, o fato aí está; ele se apresenta inegável; é preciso explicá-lo exclusivamente pelo mecanismo da máquina humana ou admitir a alma como causa eficiente.

Dir-se-á, com o doutor, que quando a visão não se dá, o cérebro supre essa função por uma visão interna dos objetos que procura. Que quer isto dizer? E como poderia existir essa percepção íntima para objetos que não foram vistos pelos olhos do corpo? Essa hipótese é absolutamente inadmissível e o autor apresenta logo outra.

Os órgãos dos sentidos, diz ele, desenvolvidos em excesso no sonâmbulo, experimentam, à distância, a ação dos corpos e lhe fazem evitar os perigos que o ameaçam.

Entramos no domínio da fantasia com esta suposição, que não pode, mesmo, explicar todas as particularidades observadas. Com efeito, no caso referido por Esquirol, o farmacêutico adormecido que preparava suas poções pôde ser advertido do perigo que correria seu cliente se ele s conformasse com a receita, não por uma emanação do papel.

Ele procedeu como em estado ordinário e discutiu metodicamente a impossibilidade de um tal remédio. Per­guntamos: quem discutia, quem via?

Poder-se-ia admitir, em rigor, que um indivíduo prati­casse durante o sono, atos puramente mecânicos, como os que executa acordado e não exigem qualquer aplicação do espírito; assim, que o cocheiro cuide de seus cavalos, que o artista toque piano, que a cozinheira lave sua vasilha­me. Neste caso, é natural conceber certas ações reflexas do sistema nervoso, superexcitado por idéia fixa. Mas quando o raciocínio entra em jogo, quando todas as faculdades funcionam, como de ordinário, e é notório que o indivíduo está adormecido, ou por outra, quando as fun­ções da vida de relação cessam, dizemos que é preciso aceitar a existência de um agente que não dorme, que pensa, que arrazoa, que quer, e a esta força que vela sobre o corpo e o conduz chamamos alma.

Afinal, o Dr. Debay, que acha um desvario a crença nos Espíritos, não é muito positivo e seu cepticismo não repousa em qualquer prova da insânia de nossas crenças.

Diremos, em resumo, para não alongar a discussão: fica estabelecido que o sonambulismo natural oferece ca­racteres notáveis, que serão incompreensíveis se negarmos a realidade da alma. Poderíamos citar mil outros casos de sonambulismo; deles estão cheios os tratados de fisiolo­gia, mas não nos ofereceriam nada mais típico do que os já apontados. O capítulo seguinte é consagrado ao exame do sonambulismo magnético, e, aí, ainda verificaremos que a afirmativa espiritualista é bem fundada.

Um último reparo. Durante o famoso debate, na Aca­demia de Medicina, por ocasião da leitura do relatório do Sr. Husson, os fatos combatidos foram, sobretudo, os de visão sem o auxílio dos olhos. Mas se os doutos incrédulos tivessem pensado que os sonâmbulos se movem destramente com os olhos fechados, teriam evitado o ridí­culo de rejeitar um fato reconhecido por eles próprios.

CAPÍTULO III

O SONAMBULISMO MAGNÉTICO

O Curso de Magnetismo do barão du Potet contém, em grande número, documentos que nos persuadem ser uma verdade o sonambulismo artificial, isto é, provocado pelo magnetismo. Acrescentamos-lhes outras narrativas, tomadas às autoridades da ciência magnética, Charpignon e Lafontaine, sempre com o apoio das atas assinadas pelos médicos mais conhecidos. Os fatos que se seguem têm, pois, todos os caracteres de autenticidade.

O sonambulismo magnético é comumente caracteriza­do por inteira insensibilidade da pele; pode-se impune­mente picar o adormecido, beliscá-lo, fazer-lhe queima­duras: ele não despeita nem dá qualquer sinal de sofri­mento.

O amoníaco concentrado, levado pela respiração às vias aéreas, não determina a menor alteração, e o que, no estado habitual, poderia produzir a morte, fica sem efeito nesta espécie de sonambulismo. Se a sensibilidade se extingue, o ouvido não parece menos desprovido de ação. Nenhum ruído se faz ouvir; a voz, a queda ou a agitação dos corpos sonoros não comunica qualquer som aos nervos acústicos; eles parecem inteiramente paralisa­dos; tiros de pistola, junto ao orifício do conduto auditivo, ferindo as carnes, deixam crer na privação desse sentido.

Mas tal estado só não existe para o magnetizador, porque este pode fazer ouvir as mais fracas modulações da sua voz; sua palavra se faz compreender a distâncias onde qualquer outro nada ouviria nem mesmo poderia ver o movimento dos lábios.

Numerosas experiências foram feitas por du Potet, em 1820, no Hôtel Dieu de Paris. Ele assim as relata:

Eu, abaixo assinado, certifico que a 8 de janeiro de 1821, a pedido do Senhor Recamier, pus e sono magnético a chamada Le Roy (Lise), do leito n. 22, da sala Ste. Agnês; ele a tinha, anteriormente, ameaçado com um cautério, se ela se deixasse adormecer.

Contra a vontade da doente, eu, Roboam, fi-la passar ao sono magnético, durante o qual Gilbert queimou agárico junto às fossas nasais e essa desagradável fumaça nada produziu de notável. Recamier aplicou-lhe ele mesmo um cautério na região epigástrica, o qual produziu uma escara de 15 linhas de comprimento e 9 de largura; durante sua aplicação, a doente não manifestou a menor dor, por gritos, movimentos ou variações do pulso; permaneceu em insensibilidade completa; despertada, sentiu muita dor.

Sabeis - diz ele a seus discípulos - que o sonambulismo se ofereceu à nossa observação e que grande numero de médicos incrédulos, atraídos pela novidade do espetáculo, dele fora testemunhas. Quiseram assegurar-se por si mesmos da verdade do que eu lhes dizia. Deixei-os fazer o que entenderam, porque, em fenómenos extraordinários, só se deve acreditar pelo testemunho dos sentidos.

A presença de muita gente não impediu a produção do sonambulismo, e uma vez produzido este estado, os assistentes usaram de todos os meios para verificar a insensibilidade dos magnetizados. Começaram por lhes passar fios de pena muito leves nos lábios e nas asas do nariz; depois lhes pinçaram a pele de tal modo que produziram equimoses; introduziram fumaça nas fossas nasais; puseram os pés de uma sonâmbula em um banho de mostarda fortemente sinapizado e com água em alto grau de calor.

Nenhum desses meios determinou a menor alteração, o mais ligeiro sinal de sofrimento; o pulso se mostrou regular. Mas, ao despertar, todas as dores, que deviam ser provenientes dessas experiências fizeram-se sentir vivamente, e os doentes se indignaram com o tratamento que os fizeram experimentar.

Não se deve esquecer que essas experiências foram executadas, não por du Potet, mas por incrédulos; ele apenas deu a conhecer os seus (deles) testemunhos escritos. Eis, entre outras, uma ata assinada pelo Dr. Roboam:

Estavam presentes a esta sessão os senhores Crilbert, Créqui, etc.

Assinado: Roboam, doutor em Medicina.(8)

Se nos estendemos sobre este testemunho, é para bem mostrar que o magnetismo é uma força e o sonambu­lismo uma verdade, a despeito de todos os corpos sábios que quiseram abafar esse descobrimento.

Eis ainda uma última prova da insensibilidade dos sonâmbulos.

Alguns cirurgiões do Hôtel Dieu mudaram de hos­pital, e um deles, o Dr. Margue, ficou no vasto hospício da Salpêtrière. Em sua nova residência, ocupou-se com o magnetismo e em breve o sonambulismo se manifestou em muitos doentes. Esquirol, de quem já falamos, não se opôs a esses estudos; tolerou, mesmo, que se tornassem públicos: a multidão dos curiosos era grande e os incrédu­los numerosos.

Renovaram nas pobres mulheres as experiências do °Hôtel Dieu depois, como acreditassem que a dor podia ser suportada, até certo ponto, sem ser manifestada, que se podia sofrer a mais forte queimadura sem mostrar sinal externo, supôs-se que o melhor seria dar-lhes a respirar amoníaco concentrado. Para isso, procurou-se no hospital um vaso que contivesse quatro onças de amoníaco e o colocaram muitos minutos seguidos no nariz de cada so­nâmbula, tendo-se o cuidado de fazer com que a inspiração levasse para o peito o gás deletério. Repetiram a operação várias vezes e nunca puderam os observadores surpreender a sombra de qualquer manifestação de incômodo ou mal­-estar.

Detalhe pungente: um doutor, sem dúvida mais incré­dulo que os outros, quis certificar-se por si mesmo, de que o vaso continha amoníaco, e, tendo-se aproximado para cheirá-lo, quase pagou com a vida a imprudente curio­sidade.

Esses fenômenos, pois, provam que o sonambulismo é um estado particular do sistema nervoso, que apresenta grandes analogias com a paralisia sensitiva produzida pelos anestésicos, como o clorofórmio e o éter. Veremos mais longe quanto esta assimilação é completa.

Os fatos que acabamos de descrever foram examinados com escrupulosa atenção e afirmados por testemunhas ho­noráveis como Husson, Bricheteau, Delens e uma multidão de outros médicos. As atas, redigidas no lugar, foram depositadas com o Sr. Dubois, tabelião em Paris, sendo uma cópia daquelas publicada numa brochura, que teve grande repercussão, e ninguém jamais desmentiu a veraci­dade dos fatos.

Determinemos agora outros caracteres do sonambu­lismo magnético. O sonâmbulo sente com mais precisão, que no estado normal, qual a parte do seu corpo que é afetada; ele a vê, e muitas vezes indica o remédio conve­niente. Em grau mais elevado, abarca de relance toda a sua anatomia e seu poder se estende até ler o pensamento das pessoas que entram em relação consigo.

Um dos sinais característicos do sono sonambúlico é o esquecimento, ao despertar, de tudo que se passou.

Chegamos enfim ao que se chama transposição dos sentidos, que é a faculdade que têm certos sonâmbulos de ver sem a intervenção dos olhos, de cheirar sem o órgão da olfação, de ouvir sem o auxílio do ouvido.

Se insistimos nessas estranhas faculdades, é que não pode apresentar para elas uma explicação racional quem se obstina em não reconhecer a existência da alma, a de um poder que se manifesta fora das condições da vida habitual. Os exemplos que se seguem estabelecem, peremp­toriamente, a dupla vista.

Deleuze, bibliotecário e professor de história natural no Jardim das Plantas, em uma memória sobre a clarivi­dência dos sonâmbulos, narram este episódio:

A jovem doente me havia lido corretamente sete ou oito linhas, posto que seus olhos estivessem cobertos de modo a não poder servir-se deles. Foi ela depois obriga­da a parar, dizendo-se muito fatigada.

Alguns dias depois, querendo convencer incrédulos, Deleuze apresentou à jovem uma caixa de papelão, fecha­da, na qual estavam escritas às palavras: amizade, saúde, felicidade. Ela segurou a caixa por algum tempo, mani­festou muita fadiga, e disse que a primeira palavra era amizade, mas que não podia ler as outras. Instada para que fizesse novos esforços, consentiu e disse, restituindo a caixa: não vejo bem, mas creio que as duas palavras são - bondade, doçura. Enganara-se nos dois últimos ter­mos, mas, como se vê, tinham muita semelhança com os que estavam escritos, e essa coincidência não pode ser atribuída ao acaso.(9)

Escolhemos este fato entre muitos outros, para mos­trar que a faculdade sonambúlica pode, na mesma pessoa, apresentar graus diversos, que vão da vista incompleta à vista perfeita. Demos a palavra ao Senhor Rostan, que escre­veu o artigo - Magnetismo, no dicionário de ciências médicas.

Mas se a vista é abolida no seu sentido natural, está para mim inteiramente demonstrado que ela existe em muitas partes do corpo. Eis uma experiência que repeti freqüentemente; esta experiência foi feita em presença de Ferrus. Apanhei o meu relógio, coloquei-o a três ou quatro polegadas atrás do occipúcio e perguntei à sonâmbula se via alguma coisa.

- Certamente, vejo alguma coisa que brilha e que me faz mal.

Sua fisionomia exprimia dor e a nossa devia exprimir espanto. Entreolhamo-nos e Ferrus, quebrando o silêncio, me disse que desde que ela via alguma coisa brilhar, diria sem dúvida o que era.

- Que vê? - Ah, não sei, não posso dizer. - Olhe bem. - Espere, isso me fatiga„, espere: é um relógio.

Novo motivo de surpresa. Mas, se ela sabe que é um relógio - disse Ferrus -, poderá sem duvida ver que horas são.

- Oh! não, é muito difícil.

- Preste atenção, procure bem.

- Espere... vou esforçar-me, direi talvez a hora, mas não passo ver os minutos. São 8 horas menos dez.

Era exato. Ferrus quis repetir a experiência ele mesmo, e ela se reproduziram com o mesmo êxito. Fez-me ele virar, muitas vezes, os ponteiros do seu relógio, que lhe apresentamos, e ela, sem o ver, nenhuma vez se enganou.

Temos aqui uma prova concludente e que apresenta uma circunstância particular, que deve ser estudada. Desde logo, o fenômeno da visão sem os olhos está bem estabele­cido. Já demonstramos que a teoria do Doutor Debay, isto é, aquela das ramificações nervosas, aceita por todos os incrédulos, é inadmissível. Só resta, para compreender o que se passa, reconhecer que é a alma que momentaneamente se desprende e percebe de maneira diversa da vida corrente.

Já temos duas provas de clarividência, porém, a pe­quena distância, porque segundo Deleuze, a moça sustinha a caixa em suas mãos e Rostan diz que ela colocou o relógio a três ou quatro polegadas, atrás do occiput; pode constatar-se a visão à distância em outras condições. É ainda a um doutor que tomaremos o caso passado em Sabóia. A sonâmbula, filha de um rico negociante de Gre­noble, não pode ser suspeita de desempenhar uma farsa e por isso o caso se reveste de grande valor.

Entre as diferentes fases que apresentou esta doença que o Doutor Despine, chefe de clínica do estabelecimento de Aix, descreveu com muitos detalhes, ele insiste espe­cialmente sobre a do sonambulismo.

Transcrevemos literalmente:

Não só a nossa enferma ouvia pela palma da mão, como a vimos ler sem o auxílio dos olhos, pela extremidade dos dedos, que agitava com rapidez acima da página que queria ler, sem a tocar, como para multiplicar as superfícies sensíveis; vimo-la ler assim uma página inteira de um romance da moda.

De outras vezes ela escolheu, num maço de trintas cartas, uma que lhe tinha sido indicada; leu no mostrador, e do outro lado do vidro, a hora num relógio; escrevia cartas, corrigia, relendo-as, os erros que lhe tinham escapado; recopiava uma carta, palavra por palavra. Durante todas as operações um anteparo de papelão espesso interceptava-la completamente a vista.

Os mesmos fenômenos se realizavam pela planta dos pés e pelo epigástrio.

A visão aqui apresenta a maior intensidade: leitura de páginas inteiras, redação de cartas etc., e isso com minuciosa vigilância, estando a sonâmbula de olhos fecha­dos, com um cartão interposto entre o papel e ela.

A dupla vista vai agora se firmar em todo o seu es­plendor e é o Doutor Charpignon, de Orleans, quem nos conta o seguinte:

Uma noite, tínhamos em nossa casa duas sonâmbulas, e, em uma casa vizinha dava-se um baile.

Apenas preludiou a orquestra, uma delas se agitou, pois ouviu o som dos instrumentos.

Já dissemos que certos sonâmbulos, isolados, são sensíveis à música. Em breve, a segunda sonâmbula ouviu também e elas compreenderam que se tratava de um baile.

- Querem velo? - perguntei-lhes. - Certamente.

Imediatamente as duas jovens começaram a rir e a conversar sobre a atitude dos dançantes e as vestes das dançarinas.

- Veja aquelas moças de vestido azul, como dançam jocosamente, e o pai delas que gira com a noiva... Ah! como esta senhora é desembara­çada; ela se queixa de que não está doce seu copo d'água e quer mais açúcar. E este homenzinho! Que roupa vermelha esquisita! Nunca vimos espetáculo mais engaçado e curioso!

Duas pessoas presentes, duvidando que houvesse visão real, foram à sala do baile e ficaram admirados vendo as moças de roupa azul, os homenzinhos de traje vermelho, e o par da noiva que as duas moças tinham designado.

Outra vez - continua Charpignon - uma das nossas pacientes desejou, num dos seus sonambulismos, ir ver a irmã que estava em Blois. Ela conhecia o caminho e o seguiu mentalmente.

- Olá! - exclamou ela - aonde vai Senhor Jouanneau? - Onde está você?

- Eu estou em Meung, nas Malvas, e encontro o Senhor Jouanneau, em trajes domingueiros, que vai sem dúvida jantar em algum castelo.

Depois, continuou a viagem. Ora, quem se tinha apre­sentado, espontaneamente, à vista da sonâmbula, era um habitante de Meung, conhecido das pessoas presentes; es­creveram-lhe para saber o que havia de verdade sobre seu passeio no lugar e hora indicados. A resposta confir­mou minuciosamente o que dissera a senhorita Celina.

Quantas reflexões! Quantos estudos psicológicos nes­se fato fortuitamente produzido! A visão dessa sonâmbula não fora lançada, como geralmente acontece, no lugar desejado; ela percorrera toda a estrada de Orleans a Blois e notara, nessa rápida viagem, tudo o que podia chamar sua atenção.

Já não é só a clarividência à curta distância, mas a vista real com os olhos fechados, que se exerce ao longo de uma viagem. É preciso dizer adeus a todas as ramificações possíveis, porque, desde que o corpo da jovem estava em Orleans, necessariamente uma parte dela mesma deve ter-se destacado para ver o que se passava na estrada de Malva. Desgoste, embora, aos materialistas, isto só pode ser a alma.

Resta, é verdade, o recurso de negar os fatos; é mais cômodo que raciocinar. Mas, a quem se fará crer que doutores como Rostan, Deleuze, Despines e Charpignon, investigando longe uns dos outros, em pacientes diversos. e com todas as precauções possíveis, pudessem ser engana­dos por meninas! A boa fé desses senhores está acima de qualquer suspeita, porque eles não tinham outro escopo, publicando seus trabalhos, que o de afirmar a verdade.

Nessa época, sobretudo, em que tudo que dizia com o magnetismo era escarnecido pela multidão ignorante e pelas academias céticas, grande ato de coragem foi a decla­ração deles.

Para os espiritualistas, os fatos referidos podem pare­cer anormais, porém não inexplicáveis, uma vez que a alma, essa parte imaterial do homem, pode, em certas circunstâncias, destacar-se do corpo e transportar-se a dis­tância. Mas, para os materialistas, que não se contentam com um levantar de ombros em face desses relatórios, é indispensável achar uma explicação boa ou má, a fim de não ficarem omissos.

Conhecemos já a teoria dos plexos nervosos e de suas ramificações; vejamos outra, que se acha comumente em livros que tratam do mesmerismo, sob o ponto de vista material.

Os magnetizadores pretendem que o fluido nervoso que percorre os nervos não se detém sempre na superfície da pele, lança-se algumas vezes para fora, sob o império da vontade, formando assim uma verdadeira atmosfera ner­vosa em torno do paciente, esfera de atividade semelhante à dos corpos eletrizados.

Até que tudo é então bem racional, já essa doutrina foi admitida pelo célebre fisiologista Humboldt; ela pode explicar os fatos do magnetismo puro, tal como a ação do magnetizador sobre o seu paciente e o efeito curativo do agente magnético. Pode-se supor, com efeito, que o operador emita bastante fluido nervoso para saturar o mag­netizado, de maneira a fazê-lo recuperar as forças que perdeu. Mas, para o sonambulismo, e particularmente para a dupla vista, a explicação é insuficiente. Veja-se o que então, imaginaram. Citemos textualmente, porque vale a pena.

Sabe-se que o mundo não acaba onde para o nosso olhar; uma imensidade de coisas escapa a nossos sentidos, porque eles não são bastante desenvolvidos, bastante sutis para captá-los. Resulta da nossa imperfeição sensorial e intelectual que a impossibilidade não está onde a julgamos ver, mas, ao contrário, muito além do ponto em que a colocamos.

Tomemos, por exemplo, um casco de tartaruga; interponhamo-lo entre os olhos e um livro aberto; logo cessaremos de ler, porque os raios luminosos partindo do livro para se irem refletir na retina, são interceptados por um obstáculo.

Admitamos, agora, de um lado, que a luz penetra todos os corpos, em graus diversos, e, de outro lado, que o espesso casco seja dividido em cem lâminas extremamente delgadas; cada lâmina isolada será necessaria­mente diáfana, podendo-lhe ver através.

É precisamente o que se passa com o sonâmbulo; os nervos ópticos adquirem tão alto grau de força visual, que os corpos mais espessos, mais opacos, passam ao estado de transparência, de diafaneidade completa. É fácil, então, aos raios objetivos, atravessar esses corpos e, penetrando nas pálpebras fechadas da sonâmbula, ir desenharem-se sobre a retina que eles representam.(10)

Eis por que sua filha é muda!

Observemos, em primeiro lugar, que a luz não atra­vessa todos os corpos. É falsa, pois, a hipótese. Em segui­da, supondo-se que o casco de tartaruga seja dividido em cem lâminas e que, separadamente, cada uma delas possa ser atravessada pela luz, não é menos certo que, reunidas, ofereçam intransponível barreira ao olhar ordiná­rio, e, com mais forte razão, ao de uma sonâmbula àdor­mecida.

Adquiram os nervos ópticos à força que se lhes queira emprestar e a energia visual só se exercerão quando os raios refletidos pelos objetos se puderem desenhar na reti­na; ora, a sonâmbula, de olhos fechados, nada pode ver com o auxílio deles.

Narra Herschell que conheceu um homem que distin­guia a olho nu os satélites de Júpiter; certo, esse indivíduo tinha uma faculdade visual pouco ordinária, mas estamos convencidos de que, quando fechava os olhos, não via mais nada. Ora, por mais ativos que se possam tornar, os nervos ópticos não servem de explicação ao fenômeno, quando as pálpebras estão fechadas.

E, na citação precedente, que significa a última frase? Como podem raios desenhar-se na retina que eles repre­sentam?

Isso nada quer dizer.

De tudo se deve concluir que, quanto mais se estudam os estados particulares do corpo humano, mais a existência da alma se impõe como uma verdade brilhante; os que querem negá-la, ficam reduzidos às mais ridículas concep­ções no explicar os fenômenos do pensamento e do magnetismo, assim natural como provocado.

Não podemos esconder que fatos tão caracterizados, como os que acabamos de narrar, sejam pouco comuns na vida ordinária; mas todos os que se ocuparam, mais ou menos seguidamente, de magnetismo, puderam verifica­-los. Os livros, jornais e revistas que tratam do assunto, estão cheios de observações semelhantes, e só por ignorân­cia ou má-fé será possível recusá-las hoje.

Chegamos, agora, ao relatório de Husson, sobre as experiências magnéticas feitas pela comissão da Academia de Medicina, durante três anos, e lido nas sessões de 21 a 28 de junho de 1831. Nele descobriremos um 3 - caráter do sonambulismo: a previsão do futuro.

A comissão se reuniu no Gabinete de Bourdois, no dia 6 de outubro, ao meio-dia, hora em que chegou Cazot. Foissac, o magnetizador, tinha sido convidado a vir às doze e trinta; ele ficou no salão, sem Cazot o saber, e sem nenhuma comunicação conosco. Foram, entretanto, dizer-lhe, por uma porta oculta, que Cazot estava sentado num sofá, uma porta fechada, e que a comissão desejava que o acordasse nessa distância, ficando ele na sala e Cazot a dez pés de adormecesse e no gabinete.

Às 12:37, enquanto Cazot conversava conosco ou examinava os quadros do gabinete, Foissac, do aposento contíguo, começou a magneti­zá-lo. Notamos que ao fim de quatro minutos, Cazot pestaneja ligeiramente, mostra-se inquieto, e adormece, enfim, depois de nove minutos. Guersent, que o tratara no hospital das crianças, de ataques de epilepsia, pergunta se o conhece. Resposta afirmativa. Itard indaga quando ele terá um acesso; ele responde que de hoje há quatro semanas, - a 3 de novembro, às 4h5m. da tarde.

Perguntam-lhe, em seguida, quando terá outro. Depois de se concen­trar e hesitar um pouco, diz ele que será cinco semanas após o que acaba de indicar, a 9 de dezembro, as 9 e meia da manhã. A ata dessa sessão foi lida em presença de Foissac para que a assinasse conosco; tentamos induzi-lo em erro, dizendo o relator que o primeiro acesso de Cazot, seria a 4 de novembro, domingo; enganou-o, ainda, o relator, quanto ao segundo. Foissac tomou nota das falsas indicações, como se fossem exatas. Mas, alguns dias depois, pondo Cazot em sonambulismo, como o costumava fazer, para tirar-lhe as dores de cabeça, soube, por ele, que era a 3 e não a 4 o seu primeiro ataque. Avisou a Itard, a l de novembro, supondo que houvera erro na ata, cuja pretendida veracidade foi, entretanto, mantida por Itard.

A comissão tomou as precauções convenientes para observar o ataque de 3 de novembro; ela foi às 4 horas da tarde à casa de Georges, chapeleiro onde Cazot estava empregado; soube ai que Cazot tinha trabalhado toda a manhã, até às 2 horas, e que, ao jantar, sentira dor de cabeça; descera, entretanto, para retomar o trabalho, mas que a dor aumentara, e, tendo uma vertigem, subira a seu quarto, onde se deitou e adormeceu.

Bourdols, Fouquier e o relator subiram, precedidos de Georges, ao quarto de Cazot. Georges entrou sozinho e o encontrou dormindo profundamente, o que nos mostrou pela porta entreaberta. Depois, falou-lhe alto, agitou-o, sacudiu-o pelos braços, sem que o acordasse, e às 4 horas e 6 minutos, em meio às tentativas feitas por Georges para desper­tá-lo, Cazot foi presa dos principais sintomas que caracterizam um ataque de epilepsia, e em tudo iguais aos que lhe havíamos observado prece­dentemente.

O segundo ataque, anunciado para 9 de dezembro, isto é, com dois meses de antecedência, sucedeu as 9 e meia e se caracterizou pelos mesmos fenômenos precursores e pelos mesmos sintomas dos de 7 de setembro, 1 de outubro e 3 de novembro.

Enfim, a 11 de fevereiro, Cazot fixou a época de um novo ataque, a 22 de abril seguinte, às 12 e 5 minutos, e este se realizou como os antecedentes, com diferença de uns 5 minutos. Este ataque, notável pela violência, pela espécie de furor com que Cazot mordia a mão e o antebraço, pelos abalos bruscos que o levantavam, durava 35 minutos, quando Foissac, que estava presente, magnetizou o doente. Logo cessou o estado convulsivo, que cedeu lugar ao sonambulismo magnético, durante o qual Cazot se levantou, sentou-se e disse que estava muito fatigado; que teria, ainda, dois ataques; um, dali a 9 semanas, às 6h3m. (25 de junho). Não quer pensar no segundo ataque e acrescenta que, dentro de três semanas, depois do acesso de 25 de junho, ficará louco; sua loucura durará três dias e será tão mau que baterá em todos, maltratará, mesmo, a mulher e o filho; que não o deverão deixar com eles, e que não sabe se matará alguém, que não mencionou. Será preciso, então, sangrá-lo imediatamente nos pés. Enfim, disse ele, curar-meei em agosto, e, uma vez curado, a doença não mais voltará, quaisquer que sejam as circunstâncias.

Foi a 22 de abril que estas precauções nos foram anunciadas, e dois dias depois, querendo Cazot deter um cavalo fogoso que tomara o freio nos dentes, foi precipitado sob a roda do carro, que lhe fraturou a arcada orbitária esquerda, molestando-o horrivelmente. Transportado ao hospital, ai falecer a 15 de maio.

Vemos nesta observação um homem sujeito a ataques epilépticos durante dez anos. O magnetismo atua nele, embora ele ignore o que se lhe faz. Torna sonâmbulo; melhoram os sintomas da doença, os acessos diminuem; as dores de cabeça e a opressão desaparecem, sob a influência do magnetismo; ele prescreve um tratamento apropriado à natureza do seu mal, com o qual promete a cura. Magnetizado, sem o saber e de longe, cai em sonambulismo, donde é retirado com a mesma prontidão com que é magnetizado de perto. Indica, enfim, com rara precisão, um mês ou dois antes, o dia e hora em que deve ter um ataque de epilepsia. Entretanto, dotado de previsão para acessos afastados, e ainda mais para acessos que não se realizarão, não prevê que dois dias mais tarde será atingido por um acidente mortal.

Sem procurar indagar o que semelhante observação pode ter de contraditório à primeira vista, a Comissão faz notar que as previsões de Cazot só se referem a seus acessos, que eles se reduzem à consciência das modificações orgânicas que se preparam, e são como o resultado necessário das funções internas; que essas previsões, apesar de mais extensas, são inteiramente semelhantes às de certos epilépticos, os quais reconhecem, por certos sintomas precursores, que irão ter um acesso. Seria de espantar que os sonâmbulos, cujas sensações são mais vivas, como vimos, pudessem prever seus acessos, muito tempo antes, por alguns sintomas ou impressões internas que escapam ao homem acordado?

É dessa forma que se poderia compreender a previsão atestada por Arétée, em duas passagens de suas obras imortais, por Sauvage, que refere um exemplo e por Cabanis.

Acrescentemos que a previsão de Cazot não é rigorosa, absoluta, mas condicional, pois que, predizendo um ataque, diz que ele não se dará se o magnetizarem; ela é toda orgânica, interna. Concebemos porque ele não predisse um acontecimento externo, a saber, que o acaso lhe faria encontrar um cavalo fogoso, ao qual teria a imprudência de querer deter, e que receberia uma ferida mortal.

Ele pôde prever um ataque que nunca se deveria dar; foi como o ponteiro de um relógio, que deve percorrer, em um tempo dado, certa porção do circulo do mostrador, e que não o descreve por que o relógio se quebra.

O Doutor Husson define perfeitamente o papel do sonâm­bulo na previsão. É o de um espectador que examina o jogo dos órgãos de uma máquina e percebe que, em dado momento, produzir-se-á um acidente. Neste exemplo, a alma afirma-se independente do corpo, pois que julga, calcula, raciocina, e indica exatamente as crises que se realizarão em um tempo muito afastado.

Deve-se convir que o preconceito está profundamente enraizado no coração humano, porque esses fatos se produ­zem há um século, claramente, não isolados, mas na Europa inteira, e ainda se encontram sábios, pouco ciosos do seu nome, que ridicularizam tais práticas e lhes chamam sim­ples imposturas charlatanescas.

Os casos que relatamos têm, entretanto, tanta autenti­cidade, como qualquer fenômeno físico ou químico. Sábio de primeira ordem, uma comissão da Academia, proclama­ram a verdade e o caráter científico desses estudos; eis por que nos assiste o direito de afirmar que temos em mão a prova experimental da existência da alma.

Quando se vê um homem ou uma mulher em sonambu­lismo, isto é, em um estado tal que as mais violentas ações físicas são incapazes de lhe produzir a menor impres­são; quando se verifica que este ser, que se acreditaria morto, vê, ouve o magnetizador, designa os objetos coloca­dos atrás de si; indica o que se passa, não só na casa, mas também a grande distância, como duvidar que reside nele um agente que não obedece às leis da matéria, como recusar a evidência?

Esse indivíduo, no qual os órgãos sensoriais são inati­vos, tem uma percepção mais viva, mais nítida que em estado ordinário; prevê os acidentes que hão-de sobreviver no curso de sua doença; enfim, dá todos os sinais de uma atividade intelectual mais intensa, mais penetrante que a dos assistentes. Francamente, perante esse conjunto esmagador de provas, diremos que é impossível negar a alma.

O magnetismo não tem que lutar somente contra os materialistas, senão também com os incrédulos, mesmo espiritualistas.

Bersot, que escreveu interessante volume sobre o magnetismo, passa em revista os fenômenos naturais que apresentam analogias com o Mesmerismo e o Espiritismo. Nós os reencontraremos em outro capitulo para o que diz respeito a esta última ordem de idéias; aqui só nos ocupamos do sonambulismo.

Bersot pretende explicar os fatos maravilhosos que verificamos. Vejamos como. Em primeiro lugar não nega o sono sonambúlico:

No magnetismo animal o que parece incontestável é o sono, a insensibilidade e a obediência ao magnetizador. Não falemos da insensibili­dade, que é um fato comum; o sono é artificial e não é menos real por isso; so há que discutir o artifício.

Muito bem. Mas se a insensibilidade está tão- bem averiguada e é tão comum, porque diz ele, mais adiante, a propósito dos gestos que o sonâmbulo reproduz:

-Não é certo que os sentidos, neste estado extraordinário, estão bastante excitados para perceber o que, de outro modo, lhes seria insensível; que o ouvido apanha o movimento indicado e sua direção, que o tato julga pela impressão do calor proveniente de um corpo que se aproxima ou se afasta? Explicando-se as coisas assim, prescinde é verdade, do mistério, mas eu, confesso, sou um dos que se contentam com os mistérios que já existem no Mundo, e que não introduzem outros por prazer.

Suprimindo, com tão lógicas explicações, os casos embaraçosos, é difícil a Bersot encontrar mistérios. Tão trivial lhe parece a insensibildade, que dela não se quer ocupar, e duas páginas adiante arrisca uma teoria que se baseia, pelo contrário, numa sensibilidade muito maior que a do estado ordinário. Para um crítico, isto não é convincente.

Muito lhe custa ter que recusar aos sonâmbulos a previsão do futuro; convidamo-lo a ler o relatório de Hus­son e isto o aliviará de grande peso.

Enfim, declara que não acredita na vista através dos corpos; é uma infelicidade, contra a qual nada podemos; mas entre sua incredulidade e a afirmação dos homens de ciência, já citados, não hesitamos: cremo-los mais aptos a decidir que Bersot.

O autor declara que não tem repugnância em admitir a comunicação de espírito a espírito, mas não pode crer que ela se estabeleça entre magnetizador e sonâmbulo, porque, diz ele, quando a alma está no corpo, só se pode comunicar sob certas condições físicas, que não se despre­zam à vontade.

Certamente. Se quisermos, no estado normal, ler o pensamento de outrem, haveria alguma dificuldade na ope­ração, apesar de ter Cumberland dado provas de que isso não é impraticável. Mas, na espécie, o sonâmbulo se acha em estado especial, com a alma desprendida, ou menos ligada ao corpo, o que lhe permite a radiação à distância, a clarividência.

Eis a que se reduzem às objeções; é tudo o que os críticos mais credenciados encontram como EXPLICA­ÇÃO dos fatos do sonambulismo. Deve reconhecer-se que seus leitores não são difíceis de satisfazer, uma vez que se contentam com tão magros argumentos. Entretanto, o fato ou existe ou não existe. Se ele existe, dai-vos ao trabalho de o verificar cuidadosamente e trazei-nos argumentos plausíveis, em vez de vossas negações que sobre nada repousam; se ele não existe, é inútil, então, discutir.

Vejamos outro exemplo da desenvoltura com que Ber­sot explica os fatos maravilhosos. Ouça-mo-lo:

O dom de falar línguas desconhecidas que se encontra tantas vezes entre os convulsionários das Cevenas, e que vemos em certos doentes convulsivos, sugere uma reflexão. Se forem línguas existentes, mas que o doente nunca lera ou ouvira falar antes que se nos permita negar simplesmente o fato, sem maiores explicações.

É mais fácil que fazer compreender como se pode produzir o fenômeno, e duvidamos que Bersot convença muita gente com a eloqüência persuasiva que emprega; confissão é essa de impossibilidade, que é bom registrar. Mas se a negação pura tem seus atrativos, não rivaliza com a explicação dada para o caso em que o doente fala uma língua de que ouviu algumas palavras, ao acaso, como o latim, que tem passado mais ou menos pelos olhos de todo o mundo.

Esse prodígio é devido tão-só a uma excitação da memória e da inteligência. Por exemplo, se um sujeito, durante a crise, fala o latim, é simplesmente porque o ouviu cura da aldeia ou o médico da terra pronunciarem algumas palavras nesse idioma. E ele empregará, então, no seu discurso, regras gramaticais que nunca aprendeu, vocábulo que nunca feriram seu ouvido; mas não importa, é tudo determinado por uma superexcitação da memória e da inteligência.

Francamente, é difícil zombar dos homens com maior desenvoltura. Cremos sonhar, lendo coisas que tais, e os espíritas, tachados de loucos e impostores, nunca pregaram teorias tão absurdas e tão contrárias ao bom senso.

A despeito de todas as críticas, diremos com Charles Richet: - Desde 1875, os numerosos autores que se deram ao estudo do magnetismo tiraram todos, sem exceção nenhuma, a conclusão de que o sonambulismo é um fato indiscutível.

CAPÍTULO IV

O HIPNOTISMO

Há alguns anos, fala-se muito nos hospitais e no mun­do médico, de um novo estado nervoso chamado hipno­tismo. Definamos primeiro o que se entende por esta pa­lavra.

Se um paciente fixa durante algum tempo um objeto brilhante, de vidro ou metal, colocado acima da fronte, a fadiga nervosa que resulta dessa tensão do olhar produz, insensivelmente, um sono particular, caracterizado pela insensibilidade total ou parcial que se manifesta em todo o corpo, pela tendência a conservar a posição que se dá aos membros, e por uma dupla vista análoga à que determina o magnetismo.

Quem primeiro se ocupou desta doutrina foi o abade Faria; teve como continuadores o General Noizet e o Dr. Bertrand. Em 1841, Jenner Braid, cirurgião em Manches­ter, a princípio muito cético, acabou por descobrir, na fixidez prolongada do olhar, a causa dos fenômenos que tinha visto produzidos por um magnetizador francês, o Sr. Lafontaine.

Ele tentou demonstrar que nem um fluido nem a von­tade eram comunicados pelo operador ao paciente, e que tudo se passava no cérebro deste. Em 1843, publicou uma obra intitulada: A Neuripnologia, ou o hipnotismo, onde expunha suas vistas sobre o estado produzido pelo esgotamento nervoso. Essas pesquisas tiveram pouca repercussão; o trabalho de Braid é, entretanto, assinalado pela primeira vez por Carpenter, em 1849, na Enciclopédia de Tood.

Em França, só em 1855 é que o dicionário de Robin e Littré o mencionaram, e a obra do médico inglês só foi traduzida para a língua francesa em 1883, pelo Doutor Jules Simon.

Azam, professor na Escola de medicina de Bordéus, tinha, contudo, em 1859, reproduzido com êxito algumas experiências descritas por Braid, e o doutor Broca comuni­cou o resultado delas à Academia de Medicina, nesse mes­mo ano. Desde então, foi lançada a nova ciência e dela começaram a ocupar-se. Mas, com quantos obstáculos de­via topar a recente descoberta, antes de ser geralmente admitida!

Como não se procurava nessa época, no hipnotismo, senão um meio de provocar a anestesia, reconheceu-se, desde logo, que era difícil mergulhar os doentes no sono nervoso, por causa da emoção que causa sempre a expecta­tiva de uma operação grave.

Foi em vão que, em 1866, o Doutor Durand de Cros publicou, sob o pseudônimo de Philips, um curso teórico e prático do Braidismo. Esta obra, as conferências públicas e as conferencias interessantes feitas pelo autor em Paris e em algumas grandes cidades deixaram o mundo médico hostil ou indiferente.

É preciso chegar-se ao ano de 1875, para se encontra­rem novas pesquisas na matéria. Foram elas empreendidas por Charcot, Bourneville, Regnard e Paul Richer, seus discípulos. Eles operaram em histéricas, na Salpêtrière. Eis, sucintamente, os resultados a que chegaram:

1: - O doente é colocado diante do foco de uma lâmpada de Drummond ou em face de um arco voltaico; pede-se-lhe que fixe os olhos nessa luz viva e, ao fim de algum tempo, que pode variar de alguns segundos a alguns minutos, ele entra em estado cataléptico, caracte­rizado pelos seguintes sintomas: o olhar fixo e muito aber­to, o corpo em insensibilidade completa, os membros na postura que se lhes queira dar. A comunicação com o Mundo exterior é interceptada; ele não vê e não ouve mais nada.

Circunstância notável a assinalar é que a fisionomia reproduz, fielmente, a expressão do gesto. Se dá ao corpo uma atitude trágica, imediatamente o rosto toma uma expressão dura; se, ao contrário, se lhe aproximam as mãos dos lábios, como para enviar um beijo, logo o paciente apresenta um ar sorridente. Podem-se variar ao infinito as causas que constituem o que se chamam sugestões. Este estado cataléptico dura o tempo em que a retina estiver influenciada pelos raios luminosos.

2: - Se suprimir bruscamente o foco de luz, apa­gando-o, velando-o, ou fechando as pálpebras do doente, verifica-se, instantaneamente, uma alteração no estado do hipnotizado. A catalepsia cessa; se o doente estiver de pé, cai de costas, com o pescoço para frente. Fica ele, então, numa espécie de sonolência particular, que Charcot chama letargia, e que não passa do verdadeiro sonambu­lismo. A rigidez dos membros desaparece, os olhos se fecham. Salvo a anestesia, que continua completa, nenhum dos antigos caracteres subsiste.

Se o chamam, o paciente dirige-se para o observador, apesar de ter os olhos fechados. Podem fazê-lo ler, escre­ver, coser... Nesse estado, responde com mais precisão, que de comum, às perguntas que se lhe fazem; a inteli­gência parece mais desenvolvida que na vida habitual.

É útil lembrar que Braid fez experiências sobre esse estado particular, e que, em 1860, aditou a seu livro um curioso relato.

O médico inglês não crê nos fluidos magnetizadores; atribui tudo que descreve à grande sensibilidade dos senti­dos. Diz que os hipnotizados, não doentes, de forma algu­ma histéricos, podem, tendo os olhos fechados, escrever, desenhar, descobrir objetos ocultos, designar os indivíduos a quem. esses objetos pertencem, ouvir uma conversa, em voz baixa, num aposento vizinho, enfim, predizer o futuro.

Estes fatos se assemelham aos do sonambulismo mag­nético, tanto mais quanto o paciente não conserva a menor lembrança do que disse ou fez durante o sono hipnótico. Voltemos aos trabalhos de Charcot.

O estado letárgico ou soporífero, que vimos suceder ao estado cataléptico, cessa imediatamente quando se sopra a fronte do paciente. Há, ainda, uma particularidade notá­vel: pode-se, à vontade, passar o doente do estado letárgi­co ao cataléptico; basta para isso abrir-lhe a pálpebra, de sorte que a luz possa impressionar-lhe a retina. É preci­so, para obter as alterações, que a claridade ou a obscuridade sejam produzidas bruscamente, sem o que o paciente se conservará na última fase em que estava. A influência luminosa não é o único agente que provoca o hipnotismo.

Sentando-se uma doente na caixa de ressonância de um grande diapasão, e afastando-se por meio de uma haste, violentamente, os ramos deste, o diapasão vibra e a sensi­tiva entra em catalepsia; suprimindo-se instantaneamente o som, a letargia se declara com os mesmos sintomas que no caso precedente.

Enfim, chegou-se também a produzir os mesmo afeitos por meio do olhar. Neste caso, o olho do experimentador substitui as ações físicas mencionadas acima e é dessa maneira que Donato e Carl Hensen obtêm magníficos re­sultados.

Uma passagem do livro que Bernheim, professor da Faculdade de Nancy, publicou, ultimamente, sobre o hip­notismo, faz-nos-á ver que ele se ocupou muito com o assunto.

Eis como procedo para obter o hipnotismo.

Começo por dizer ao doente que é possível curá-lo ou aliviá-lo pelo sono; que não se trata de nenhuma prática nociva ou extraordinária, mas de simples sono que se pode provocar em qualquer pessoa, sono calmo, benéfico, etc. Em caso de necessidade faço dormir em sua presença uma ou duas pessoas, para mostrar-lhe que o sono nada tem de penoso, nem servirá para experiências; quando afasto do seu espírito a preocupação que a idéia do magnetismo faz nascer, e o temor um tanto místico ligado a este desconhecido, o paciente se torna confiante e entrega-se.

Digo-lhe, então: Olhe-me bem e só pense em dormir. Vai sentir peso nas pálpebras e fadiga nos olhos; seus olhos piscam, vão umedecer-se; a vista torna-se confusa, os olhos fecham-se.

Alguns pacientes fecham os olhos e dormem imediatamente. Com outros, repito, acentuo, acrescento o gesto, pouco importa a sua natureza. Coloco dois dedos da mão direita diante dos olhos da pessoa e convido-a a fixá-los, ou, com as duas mãos, passo-as de cima para baixo, diante dos seus olhos; ou, ainda, faço-a com que fixe meus olhos, e me esforço em concentrar sua atenção na idéia do sono. E digo: suas pálpebras se fecham; não poderá mais abri Ias; tem um peso nos braços, nas pernas; não sente mais nada; suas mãos estão imóveis, nada mais vê; o sono chega, e acrescento em tom imperioso: - durma. Muitas vezes esta palavra tudo resolve os olhos se fecham, o doente dorme.

Paremos um instante, para assinalar a curiosa seme­lhança entre a maneira de operar de Bernheim para hipnoti­zar e a que emprega Deleuze para magnetizar.

O professor Bernheim faz gestos, passeia as mãos de cima a baixo do doente e termina pronunciando com voz imperiosa a palavra durma! Os magnetizadores não fazem outra coisa, e como os resultados obtidos por Bernheim são os mesmos que relatamos no artigo do sonambu­lismo, estamos no direito de concluir que magnetismo e hipnotismo não passam de denominações diferentes do mesmo fenômeno. Os processos descritos no memorial do doutor, para determinar o sonambulismo, podem ser consi­derados como um aperfeiçoamento do método magnético, relativo à produção do sono, como vamos ver; o que segue vai prová-lo de modo evidente.

Bernheim prossegue:

Se o paciente não fecha os olhos ou não os conserva fechados, não prolongo a fixidez das suas vistas nas minhas ou nos meus dedos: porque alguns mantêm os olhos indefinidamente arregalados, e em vez de conceberem, assim, a idéia do sono, só têm a de fixar com rigidez fechar os olhos dá então melhor resultado.

Ao fim de dois minutos ou três, no máximo, mantenho-lhe as pálpebras fechadas ou as abaixo, lenta e docemente, sobre os globos oculares, fechando-os progressivamente cada vez mais, imitando o que se dá quando o sono vem naturalmente; acabo por mantê-los fechados, continuando com a sugestão: - Suas pálpebras estio coladas, não poderão mais abri-las; torna se cada vez maior a necessidade de dormir; não resistirá mais. Abaixo gradualmente a voz e repito a injunção - durma! É raro que se passem quatro ou cinco minutos sem que o sono venha.

Em alguns, consegue-se melhor, procedendo com doçura; em outros, rebeldes à sugestão doce, convém a aspereza, o tom autoritário, para reprimir a tendência ao riso ou a veleidade de resistência involuntária que esta manobra pode provocar.

Muitas vezes, em pessoas aparentemente refratárias, fui bem sucedido, mantendo por muito tempo a oclusão dos olhos, impondo silêncio e imobilidade, falando continuamente e repetindo as mesmas fórmulas: Você sente um entorpecimento, um torpor; seus braços e suas pernas estão imóveis; eis que aparece calor em suas pálpebras; seu sistema nervoso se acalma; você não tem mais vontade; seus olhos permanecem fechados; o sono chega, etc. Ao fim de oito a dez minutos dessa sugestão auditiva prolongada, retiro os dedos e os olhos ficam fechados; levanto os braços, eles permanecem no ar; é o sono cataléptico.

Muitas pessoas se impressionam logo na primeira sessão; outras, na segunda ou na terceira. Depois de uma ou duas hipnotizações, a influência torna-se rápida. Basta, quase, olhá-las, estender os dedos diante dos seus olhos e dizer durma, para que, em alguns segundos, instantanea­mente, mesmo, os olhos se fechem e todos os fenômenos do sono apareçam. Outros não adquirem, senão ao fim de certo número de sessões, em gerai pouco numerosas, a aptidão de dormir depressa.

Tentaram fazer, a respeito dessas experiências, as mesmas observações que para o magnetismo; quiseram atri­bui-las a efeitos da imaginação. Durante muito tempo, esse argumento foi o cavalo de batalha de nossos adversá­rios, mas demonstrou-se que o hipnotismo se exercia, tam­bém, sobre os animais. Desde então, foi-se a explicação dos incrédulos.

Um frango, que se prende a uma tábua, onde se traça um risco, fica logo em estado hipnótico, se o obrigam a olhar para esse risco, durante certo tempo.

Deveríamos ter já mencionado os trabalhos de Lié­bault, de Nancy, que serviram de ponto de partida a Bern­heim, na publicação de sua brochura. Liébault, sem conhe­cer as pesquisas de Braid, estudou, muitos anos, particu­larmente sob o ponto de vista terapêutico, as questões que se ligam ao hipnotismo.

Em 1886, ele publicou um livro importante sobre o Sono e os estados análogos, que passou quase des­percebido.

Levando mais longe que o médico inglês o método sugestivo, ele o aplicou com êxito na cura de algumas doenças. Ultimamente, a curiosidade pública foi vivamente suscitada por duas conferências feitas no círculo St. Simon, por Brémaud, doutor da infantaria de marinha. O interesse que elas apresentavam vinha do espírito científico do autor e do caráter especial do auditório, composto em grande parte de membros do Instituto.

Tratava-se de demonstrar, não somente ,que o hipno­tismo é uma verdade, coisa não contestável depois dos sábios trabalhos de Charcot e Dumontpallier, mas, ainda, que esse estado pode ser produzido em quaisquer indiví­duos, e não especialmente em histerio-epilépticos, como pretendiam os retardatários da ciência, que fizeram dessa condição o último refúgio da resistência às novas doutrinas.

Diversos jornais, Le Temps, Le Debats, La France, etc. que citamos livremente, fornecem-nos interessantes observações.

O Doutor Brémaud, depois de haver sido testemunha de um caso de hipnotismo parcial, na ilha Bourbon, não pensava mais nessas estranhas manifestações, quando, há dois anos, o famoso Donato veio dar em Brest represen­tações de magnetismo. As mesmas experiências que, por um momento, abalaram Paris inteiro, produziram em Brest extraordinária emoção. Amigos pediram a Brémaud, cuja consciência científica conheciam, que investigasse a parte de verdade e a de charlatanismo que podiam existir nessas exibições.

O que intrigara o doutor, conhecedor dos trabalhos da Salpêtrière, era ver Donato operar em grande número de jovens de Brest, que não pareciam doentes, e com os quais tinha prontamente obtido resultados análogos.

Pôs-se à procura da maior parte dos que se haviam prestado à influência de Donato, fê-los vir a sua casa, estudou-os de perto, e, sem muito trabalho, conseguiu produzir neles os mesmos efeitos que o magnetizador. Com seu concurso, deu algumas sessões na Escola de Medicina Naval, onde reproduziu, exatamente, todos os exercícios de que tanto o público se havia admirado. Prosseguiu as experiências em muitos marinheiros postos à sua disposi­ção e chegou à certeza de que, entre os homens reputados sãos de corpo e de espírito, havia grande número suscetível de ser posto em estado de hipnotismo, letargia, catalepsia e sonambulismo, verificado já em indivíduos atingidos de histeria e epilepsia.

Acreditou, mesmo, poder estabelecer, para a raça Bre­tã, que, em 10 indivíduos de 16 a 27 anos, há 2 ou 3, isto é, cerca de um quarto sobre os quais as experiências instituídas podem dar bom resultado. Esta proporção - diz Brémaud - pode variar com a raça, o meio, o gênero de vida. É o que compete às pesquisas determinar.

Um segundo resultado foi o de notar, no desenvolvi­mento desses estados mórbidos que formam série progres­siva, um estado inicial que, segundo ele, não se produziria nos histerio-epilépticos, até aqui observados, e que deno­mina - fascinação.

O paciente é a princípio fascinado, isto é, antes de chegar à letargia ou à catalepsia, cai em estado de abulia completa, ou por outra, perde a vontade, torna-se o escravo do operador; puro autômato, obedece inconscientemente a qualquer impulso. O segundo grau, provocado por processos mais simples, é a letargia e depois a catalepsia, pela contração dos músculos. Esta se obtém parcial ou total, à vontade; uma pancada num membro; ligei­ra fricção fá-la cessar.

Da letargia passa-se ao sonambulismo. Neste último estado, certos sentidos ou certas faculdades, conforme os indivíduos, adquirem uma acuidade ou um poder verdadei­ramente espantosos. O Doutor Brémaud citou exemplos muito notáveis, se bem que estejam longe de poder comparar-se aos assinalados por Braid.

Um de seus pacientes, que ele tinha em seu gabinete, perto do fogão, repetiu-lhe a conversa que duas pessoas mantinham em voz baixa na rua, a uns 50 metros. Um dos seus parentes, sonambulizado, resolveu, sem esforço, difícil problema de trigonometria, que não compreendia acordado, nem mesmo compreendeu depois de voltar ao estado normal.

Notemos ainda, que, segundo o hábito dos homens de ciência, Brémaud atribui aos sentidos um papel que eles não podem representar. Não é crível que o ouvido, faculdade particular do organismo, possa projetar-se para o exterior, franquear paredes e irradiar a cinqüenta metros, de maneira a acompanhar uma palestra em voz baixa. Não se percebe, também, como um rapaz poderia resolver me­lhor um problema de trigonometria, mergulhado no sono do que em estado normal. Admitida a alma, tudo se expli­ca, se torna simples e compreensível.

Como os fatos valem mais que as narrativas, Brémaud fazia-se acompanhar de dois rapazes de 23 a 26 anos, pessoas conhecidas, com uma situação oficial ao abrigo de qualquer suspeita, e em perfeito estado de saúde. À medida que descrevia os fenômenos, ele os ia produzindo e fazendo verificar pelo auditório. A catalepsia era bem real; a contratura das pernas, dos braços, do corpo bem positiva, o estado sonambúlico perfeito. Todos se renderam à evidência, e experiências muito curiosas foram feitas sucessivamente. Assim, viu-se um desses jovens, posto em estado de fascinação, obedecer instantaneamente a qualquer ordem; ouviram-no repetir, como um perfeito fonógrafo, palavras chinesas, russas, com exata entonação, como se estivesse habituado a falar esses idiomas e em estado de compreendê-los.

A outro se fez beber um copo d'água; persuadiram-no de que havia bebido catorze copos de cerveja, e em conse­qüência ele sentiu-se realmente embriagado, ou então via efetivamente as figuras que representavam no espaço, e ria, se eram engraçadas, amedrontava-se, se eram ater­radoras.

Observação muito importante: se, enquanto o pacien­te está nessa contemplação, se lhe põe diante dos olhos um vidro prismático, ele vê duas figuras, o que prova, diz o Doutor Brémaud, que não há, propriamente, alucinação, isto é, exteriorização de uma idéia subjetiva, mas ilusão sensível produzida pela ação do raio luminoso sobre os nervos oculares.

Veremos, no último capítulo, que há, realmente, uma figura, formada fluidicamente.

A experiência pode apresentar-se sob forma talvez ainda mais interessante, se, naquele estado, separarem-se os dois olhos do paciente por um anteparo. Pode-se, então, mostrar ao indivíduo uma figura grotesca do lado direito; e essa metade do rosto se torna hilariante, e depois descre­ver, à esquerda, uma imagem horrível, e a outra metade do rosto se contrai com terror, de sorte que o paciente fica como que partilhado entre dois seres, de que cada um experimenta sensações contrárias, obedece a impulsos opostos e vive uma vida diferente, o que se pode explicar, provavelmente, pela dissociação dos dois hemisférios cere­brais.

O Doutor Brémaud mostrou aos assistentes fenômenos inesperados - a aniquilação da vontade e mesmo do eu, a dissociação das funções, cuja unidade constitui a vida psíquica normal, estada de insensibilidade, rigidez, letar­gia, onde a própria vida parece desaparecer, e em seguida uma excitação nervosa onde os músculos, os sentidos e certas faculdades intelectuais adquirem poder espantoso.

Todos esses fenômenos não são novos e só são curio­sos porque produzidos em pessoas jovens perfeitamente sãs de corpo e de espirito e porque o doutor Brémaud não pode ser acusado de charlatanismo.

Entrevê-se, sem que seja necessário insistir, o inte­resse múltiplo que se liga à solução de tais problemas; é impossível ficarmos indiferentes às perspectivas ofereci­das ao nosso espírito. Sob o ponto de vista prático, a importância é talvez maior ainda para a medicina legal e, sem dúvida, também para o tratamento dos alienados.

O sistema nervoso pode ser influenciado por causas externas, ainda mal definidas, a ponto de modificarem completamente o indivíduo no moral e no físico, de trans­formarem-no em autômato, e de substituírem, por várias sugestões, à sua vontade uma vontade estranha. As expe­riências tentadas na Alemanha e na França, nesses últimos anos, não deixam nenhuma dúvida a respeito.

Liégeois, professor em Direito da Faculdade de Nancy, acaba de chamar a atenção novamente sobre estes fatos, em uma memória interessante lida na Academia de ciências morais e políticas, a 5 de abril de 1884.

Liégeois quis, a princípio, verificar pessoalmente a realidade dos fenômenos hipnóticos e ver até que extremos limites se podem estender a influência do homem a seu semelhante. Com o concurso do Professor Bernheim, seu colega cuja maneira de operar explicamos, hipnotizou certo núme­ro de pessoas, sãs de corpo e de espírito, e chegou às mesmas conclusões de seus antecessores.

O hipnotizado torna-se um autômato inconsciente; o mais curioso é que conserva, durante dias, semanas, traços desse automatismo, e a tal ponto, que as sugestões anteriores persistem muito tempo e podem levá-lo à prática de atos independentes da sua vontade.

O operador poderá inspirar a seu paciente a idéia de ações criminosas que, ao despertar, serão executadas fatalmente, em todos os pontos, com dias e meses de intervalo, segundo afirma Liégeois.

Assim, certos pacientes foram, no dia e hora fixados por Liégeois, acusar-se na polícia ou ao procurador da República, de crimes imaginários, com todos os pormeno­res e nos termos que lhes haviam sido ditados na véspera ou antevéspera.

Alguns hipnotizados executaram ou julgaram executar atos terríveis. Uma rapariga, entre outras, deu em sua mãe um tiro de pistola, com o maior sangue frio; inútil dizer que a arma não estava carregada. Outros reconhe­ceram obrigações que absolutamente não tinham contraído. Outros, enfim, a quem se havia sugerido certas frases, certas narrativas, afirmaram, sob sua honra, que tinham visto ou ouvido o que lhes tinha sido indicado durante o sono hipnótico.

Há, pois, incontestavelmente, um campo novo aberto à medicina legal.

É conhecida a história de Didier, condenado uma primeira vez pela polícia correcional, sem saber do que se tratava, e que agira em estado sonambúlico; foi depois absolvido, na Corte de Apelação, graças ao Doutor Motet, comissionado para o exame médico legal, e que, magneti­zando-o, o fez repetir a cena que motivara a prisão. Reco­nheceu-se a não culpabilidade, ou pelo menos, a irrespon­sabilidade do paciente, e o julgamento do qual se apelava foi anulado.

Não terminaremos sem falar, com Parville, do livro, refeito de fatos estranhos, mas verificados, que acaba de publicar Richet: L'homme et l'intelligence.

Não insistiremos nos fenômenos mais conhecidos, mas examinaremos alguns casos em que a personalidade desaparece completamente.

Estás mais velha diz-se a uma jovem hipnotizada e logo o seu caminhar, os seus sentimentos são de uma velha. Estás uma menina e logo a paciente apresenta a linguagem, os gestos, os gostos de uma criança. Pode-se transformar a hipnotizada em camponesa, atriz, general ou sacerdote. Nada tão curioso como fazê-la general, com uma palavra.

Passe-me o binóculo - diz ela. - Está bem. Onde está o comandante do 2: de zuavos? Há ali Kroumirs; vejo-os subindo o barranco. Comandante, chame uma com­panhia e carregue sobre eles. Que se leve também uma bateria de campanha. São bons, estes zuavos. Como eles sobem!.

Que é que me quer? Como? Não há ordens? (A parte). É um mau oficial, não sabe fazer nada! Vejamos, meu cavalo, minha espada... (Faz o gesto de afivelar a espada na cinta.) Avancemos... ah!... estou ferido!

E tudo isto é pronunciado em voz baixa, com um simples mover de lábios. A paciente acredita-se a personagem que se lhe diz que é, e tanto assim que se encoleriza quando a acusam de enganar a assistência. Pode-se, ainda, pela sugestão, metamorfosear um homem em animal, em cão, em macaco, em papagaio.

Conta Richet que, certa vez, hipnotizara um amigo e lhe disse: - eis transformado em papagaio, meu pobre rapaz. - Após um momento de hesitação, respondeu este:

- Devo comer a semente que está na gaiola?

De outra vez, uma dama a quem persuadiram que era uma cabra, trepou com agilidade num canapé e fez todos os esforços para subir numa estante.

Verificamos que o hipnotizado vê, realmente, o que se lhe quer mostrar, mas o que há de mais notável é a sugestão por ordem, devendo realizar-se em tempo deter­minado. A mais simples a produzir-se é a do sono. - Amanhã dormirás às 3 horas. E, no dia seguinte, o paciente dorme quando soam às três horas, não importa o lugar em que se ache. Não parece um sonho de fadas, em que um mal encantador faz dormir um palácio inteiro?

É bem uma verdade. Disseram-lhe, no estado sonam­búlico - dormirás; ele esquece a ordem, ao acordar, e, apesar de tudo, dorme, chegado o momento. O operador, provavelmente, não pensa mais na recomendação; ela está, porém, gravada, burilada no cérebro do hipnotizado, e o autômato obedece, assim como um aparelho registrador que indicasse um fenômeno no momento em que se produz, movido por máquina de relógio.

Eis aqui provas ainda mais demonstrativas desta espé­cie de obsessão imperativa.

A. está adormecida. Richet lhe diz: Quando acordar, pegue este livro, que está na mesa, leia o título, e o coloque em minha biblioteca. A. acorda, esfrega os olhos, olha em redor, espantada, põe o chapéu para sair, depois lança a vista sobre a mesa, vê o livro, apanha-o, lê o título.

- Ó, disse ela. - V. lê Montaigne, vou colocá-lo em seu lugar; e o põe na biblioteca.

Perguntaram-lhe por que fez isso. Ela admira-se. - Não podia olhar o livro? - diz tranqüilamente. Eis um ato executado, sem motivo conhecido, e o resultado direto de uma sugestão.

B. está adormecida. Quando acordar, tirará o abajur da lâmpada. Acordam-na. Não está claro - diz ela - e retira o abajur.

Outra vez: - quando acordar, ponha bastante açúcar em seu chá. Servem o chá. A paciente, bem acordada, havia um quarto de hora, enche a xícara de açúcar.

- Mas que faz? - perguntaram-lhe. - Ponho açúcar.

- Mas põe demais.

- Tanto pior -, e põe mais açúcar ainda. Depois, achando o chá detestável: - Que quer? Foi uma tolice. Mas nunca fez V. tolices?

Entre as experiências de Richet, é preciso citar a seguinte, que é a mais característica.

A paciente está adormecida. - Virá em tal dia, há tal hora. Acordada, ela tudo esquece e pergunta: - Quando quer que eu volte?

- Quando puder, em próximo dia da semana. - A que hora? - Quando quiser.

E regularmente, com uma pontualidade surpreenden­te, ela chega no dia e hora indicados.

Certa vez A. chega à hora exata, com um tempo horrível. - Não sei, realmente, por que vim, - disse ela; tinha tanta gente em casa; corri até cá e não tenho tempo de ficar. É um absurdo; não compreendo por que vim. Será um fenômeno de magnetismo?

De outra feita, esta senhora chega também à hora prescrita e confessa que não sabia, antes de se pôr a caminho, que iria. Evidentemente, ela obedece, aqui, como a uma ordem imperativa. De nada se lembra; ignora, abso­lutamente, o que lhe ordenaram durante o sono e, entre­tanto, obedece. A lembrança inconsciente, ignorada, per­siste em estado latente, e determina o ato. Será preciso, como diz Liégeois, desconfiar da inconsciência; há ali um domínio absolutamente ignorado, que reclama um estu­do aprofundado e muito curioso.

Ao terminar, diremos com Parville:

Magnetismo, hipnotismo, ilusões ontem, realidade ho­je. Certamente, foi preciso tempo, muito tempo, antes de se decidirem a estudar de perto esses fatos estranhos, mas pode-se afirmar, agora, que os mais eminentes fisiolo­gistas consideram como incontestáveis os principais fenô­menos do hipnotismo e do magnetismo animal. É, pois, com certeza absoluta que concluímos pela existência da alma, que se afirma em todas essas experiências.

CAPÍTULO V

ENSAIO DE TEORIA GERAL

Ao lado dos fenômenos que estudamos, podem enfilei­rar-se os estados produzidos pelos anestésicos, como o clorofórmio, o éter, o protóxido de azoto e outros. Os pacientes, submetidos à ação desses agentes, são de uma insensibilidade completa às impressões exteriores. É esta propriedade que se utiliza em cirurgia para tirar ao doente a sensação da dor.

Não podemos, visto o quadro restrito desta obra, estudar detalhadamente todos os efeitos provocados por esses produtos químicos; limitar-nos-emos ao fato se­guinte:

O Doutor Velpeau, num relatório que apresentou a Aca­demia de Ciências, em 1842, concluiu pela adoção do tratamento pelo clorofórmio, em todas as operações cirúrgicas bastante dolorosas. Cita grande número de circuns­tâncias em que os anestésicos deram bons resultados e assinala, como caráter distintivo do sono produzido, a perda de lembrança do que se passou ao acordar.

Relata a seguinte experiência em uma senhora, a quem operava um câncer num seio. Depois de haver adormecido pelos processos ordinários, efetuava a operação, quando a doente lhe disse, com grande espanto para ele, que via o que se passava em casa de uma de suas amigas, não longe dali. Ele não ligou maior importância a essa comunicação, que tomou por fantasia da paciente. Mas, qual não lhe foi à surpresa, quando a senhora em questão, ao vir inquirir da saúde da amiga, declarou que fazia exata­mente o que a doente vira durante o seu sono. Ainda aqui não nos deteremos em pôr em evidência o desprendi­mento da alma, que consideramos perfeitamente demons­trado.

O que temos que assinalar são as analogias notáveis existentes entre o sonambulismo magnético, o hipnotismo e a anestesia provocada por substâncias químicas.

Nestas três categorias de fenômenos é fácil constatar caracteres comuns, que vamos assinalar: 1- a insensibili­dade; 2 - , a perda da lembrança, ao acordar; 3 - , a dupla vista.

Tal identidade nos resultados indica identidade de causa. Devemos procurá-la e podemos, nos três casos, atribuir os fenômenos verificados a uma modificação no sistema nervoso.

Essa modificação, produzida no conjunto do sistema nervoso, determina o desprendimento da alma; e quando esta parte imaterial de nós mesmos se torna mais livre que no estado normal, quando está menos ligada ao corpo, pode irradiar, à distância, e apresentar os caracteres que se atribuem, à falta de melhor explicação, a uma superexci­tação dos órgãos dos sentidos.

Vamos provar o que adiantamos:

É incontestável que o sistema nervoso fica profundamente modificado nesses fenômenos; estudemos, pois, com Claude Bemard, quais os excitantes que o podem influen­ciar.

Há 3 espécies de excitantes do sistema nervoso: os físicos, os químicos e os vitais.

Fixemos mais especialmente nossa atenção nos irritan­tes químicos e entre esses estudemos a ação dos anestésicos no organismo.

Segundo Claude Bemard, os anestésicos diminuem a excitabilidade, não, porém, de maneira geral nem em todos os tecidos: assim, o clorofórmio só atua nos nervos da sensibilidade; o mesmo se dá com o éter, o álcool, o protóxido de azoto. Quando estão sob a influência dos anestésicos, os nervos sensitivos não são mais atacados pelos excitantes normais, nem mesmo pelos anormais, que, em estado ordinário, aumentariam a intensidade dos fenô­menos, a ponto de produzir a morte. É que a vida dos nervos se toma, então, quase latente, ou pelo menos, se encontram eles num estado de entorpecimento que os protege.

Quando se aplicam no homem os anestésicos, pode­mos notar, no caso citado por Vulpian, que o estado nervo­so em que se achava o paciente, caracterizado pela insensi­bilidade, pela perda da lembrança, ao acordar, e pela dupla vista -, coincide com a insensibilidade dos nervos, com a do sentimento, com uma vida latente dos nervos sensiti­vos. Cremos, pois, que, todas as vezes que encontrarmos reunidas essas condições, o sistema nervoso sensitivo esta­rá paralisado.

É o que acontece quando se examinam os fenômenos do hipnotismo. Todos os agentes físicos empregados, como a luz, o som, o olhar, são excitantes do sistema nervoso, que mergulham o paciente num estado especial, chamado sono hipnótico, por não se poder definir melhor esse gênero de vida particular. Este sono deriva da paralisia dos nervos sensitivos, sob a influência dos excitantes físicos, que agem em determinadas condições.

O método operatório do Professor Bernheim, que alia aos processos hipnóticos as práticas dos magnetizadores, leva-nos a perguntar se os excitantes físicos poderiam, por vezes, substituir-se aos excitantes vitais.

Responde Claude Bemard:

Algumas vezes, os excitantes físicos podem produzir os efeitos que resultam igualmente da ação dos excitantes vitais. Assim, certos ácidos provocam a contração do másculo; a eletricidade produz o mesmo efeito. Mas, no estado fisiológico, esse fenômeno se manifesta sob a influência do nervo. Du Bois teymond acreditava poder atribuir esta influência a uma causa física, considerando o nervo como um órgão que segregasse, de algum modo, a eletricidade. Infelizmente, os fatos não vieram, ainda, demonstrar esta hipótese, à qual o próprio Bois-Reymond parece ter renunciado. Somos, pois, forçados a chamar esta força nervosa, até nova ordem, um irritante vital, isto é, uma força que ainda não se pôde fazer entrar no número das forças físico-químicas, visto que esta expressão vital não tem outro sentido.

O que os magnetizadores chamam o fluído, em que pese a Bersot, tem, pois, uma existência real no corpo humano. Este fluido nervoso é um irritante vital, pode agir à distância, ser lançado pela vontade em determinada direção, como se vê nas experiências da Academia, relata­das por Husson. Vimos, com efeito, que o paciente Cazot adormecia sob o influxo enviado pelo magnetizador Foissac, colocado em outro quarto.

Notaremos, ainda, que a vontade é uma força e, de nenhum modo, como se supôs, simples estado de cons­ciência.

É o que se verifica do seguinte lanço de Claude Ber­nard: A ação da vontade constitui um excitante vital por excelência, impossível de substituir, e que atuaria de modo particular sobre a medula espinal. Estes fatos foram bem postos em evidência por Van Deen.

De outro lado, Rosenthal, no livro - Les Muscles et les Nerfs, descreve uma experiência, por onde se pode medir a influência da vontade, pelas correntes elétricas, que ela determina nos músculos.

Podemos, portanto, admitir, que os fatos do sonambu­lismo provocado pelas práticas magnéticas são devidas à ação do fluido nervoso do magnetizador, dirigido por sua vontade, e que vai irritar o sistema nervoso sensitivo do paciente, para o mergulhar em um estado especial, durante o qual os nervos sensitivos ficam aniquilados, entorpe­cidos.

É à vontade, esse irritante vital por excelência, que se propaga pelo fluido nervoso, o qual serve de condutor, do magnetizador ao paciente. No caso do sonambulismo natural, é a própria vontade do paciente que o leva a esse estado. Basta a intensa preocupação de alguma coisa, para explicar porque o espírito superexcitado faz mover seu corpo, no estado sonambúlico.

Os diferentes excitantes de que falamos só atuam sobre o sistema nervoso sensitivo. Mas não têm todos e sempre a mesma intensidade; daí as diferentes fases dos fenômenos observados. Isto está de perfeito acordo com a fisiologia:

Todas os irritantes, qualquer que seja a sua natureza, ffsicos, químicos ou vitais, devem ser tidos como irritantes especiais de certos tecidos, de certos órgãos.

Mas a especialidade não é tudo; cumpre, ainda, ter-se em conta a quantidade do irritante. A importância dessa consideração foi já indicada por Brown, que chamava incitação normal a que produzia o irritante empregado em sua dose ordinária. Quando se ultrapassava essa dose, a incitação tornava-se irritação e produzia fenômenos mórbidos. Foram esses dados que Broussais seguiu e que formaram a base de sua patologia geral. A quantidade do irritante, é, pois, um ponto importante.

Assim, quando se faz passar em um órgão uma corrente elétrica muito fraca, os tecidos não são irritados nem reagem. Mas, aumentada a força da corrente, obter-se fenômenos cuja intensidade irá crescendo, com certas qualidades da corrente, até tomar um verdadeiro caráter mórbido.

Há, pois, certa medida a atingir na aplicação de um irritante e essa medida depende, ao mesmo tempo, da quantidade maior ou menor do irritante e da suscetibilidade mais ou menos delicada do próprio órgão.

Daí o poder mais ou menos forte dos magnetizadores, conforme a energia de sua vontade e a força de seu fluido nervoso. Também se compreende que os pacientes sejam mais ou menos sensíveis, conforme mais ou menos grossei­ros ou delicados sejam seus organismos.

Braid pretendera estabelecer, por suas experiências, que o sonambulismo magnético não era determinado pela ação fluídica do operador sobre o paciente. Ele empregava irritantes físicos para produzir o sono, mas só tinha visto um lado da questão. Poder-se-ia responder-lhe, agindo com os anestésicos, que só esses agentes eram capazes de pro­duzir o sonambulismo.

Em suma, de todos esses reparos, se verifica que a alma se desprende, quando o sistema nervoso sensitivo está paralisado.

Cremos, portanto, bem estabelecido, que os diferentes estados do corpo humano conhecido pelos nomes de so­nambulismo natural, sonambulismo magnético, hipnotismo e estado anestésico, são devidos, simplesmente, à ação de irritantes de diversas naturezas do sistema nervoso sen­sitivo.

A fascinação é o primeiro grau da ação modificadora, a letargia é um estado mais acentuado do fenômeno, o sonambulismo é a ação integral do irritante sobre o sistema nervoso, e, enfim, a catalepsia é o exagero da ação irritan­te(11), o começo dos estados mórbidos.

Este é o lado puramente material de tais fenômenos. Os aspectos psíquicos, que se tem querido atribuir a uma superexcitação dos sentidos, são devidos, já o dissemos, ao desprendimento da alma. Enquanto não se nos tiver de­monstrado que estamos em erro por outros argumentos que não os que se têm apresentado até agora, temos o direito de afirmar que a existência da alma está experimentalmente provada pelos fatos do magnetismo, do hipno­tismo e da anestesia.

Teremos ocasião, na quarta parte desta obra, que trata do perispírito, de voltar à série dos atos que se realizam no momento em que a alma se desliga das peias do corpo.

TERCEIRA PARTE

CAPÍTULO I

PROVAS DA IMORTALIDADE DA ALMA PELA EXPERIÊNCIA

À pergunta - existe a alma? - a ciência responde talvez, os fenômenos do magnetismo, do hipnotismo e da anestesia dizem que sim, e nisso confirmam todas as deduções da filosofia e as afirmações da consciência.

Constrangidos, pela evidência dos fatos, a admitir uma força diretriz no homem, grande número de materia­listas se refugiam em uma última negativa, sustentando que essa energia se extingue com o corpo, de que ela não era senão uma emanação. Como todas as forças físicas e químicas, dizem eles, a alma, essa resultante vital, cessa com a causa que a produz; morto o homem, está aniquilada a alma.

Será possível? Não seremos mais que um simples con­glomerado vulgar de moléculas sem solidariedade umas com as outras? Deve desaparecer para sempre nossa indivi­dualidade cheia de amor e, do que foi um homem, não restará verdadeiramente senão um cadáver destinado a desagregar-se, lentamente, na fria noite do túmulo?

Ante a grandiosa questão da imortalidade do ser pen­sante, diante desse temível problema que tem apaixonado as maiores inteligências, em face desse ignoto, cheio de mistério, não hesitamos em responder de maneira afir­mativa.

Temos provas seguras da existência da alma após a morte; podemos estabelecer irrefutavelmente que estamos com a verdade e isto, com o auxílio de experiências sim­ples, práticas, ao alcance de todos, e para cuja explicação não se faz mister um gênio transcendente. O ignorante pode, como o sábio, ter uma convicção, e esse resultado é devido a uma ciência nova - o Espiritismo.

Quando se pensa na gravidade ligada à solução do problema da sobrevivência do eu e nas conseqüências que daí resultam, não se poderia achar demasiado insistir nos fenômenos que nos mostram, de forma probante, a existência da alma depois da morte. A vida social, as leis que a dirigem são baseadas num ideal moral que só se pode apoiar na crença em Deus e numa vida futura.

Há longos séculos, com efeito, os povos, confiando nos princípios de suas religiões, que lhes pareciam inabalá­veis, aceitaram as leis ditadas por seus legisladores. Mas, com os tempos modernos, com a discussão livre, levanta­ram-se dúvidas sobre a legitimidade dessas leis; o direito divino, que fazia de um homem o senhor de um povo, sossobrou na tormenta de 93, e esse resultado é devido, assim em política como em filosofia, ao descrédito em que caíram as idéias religiosas. Havia aliança íntima entre a realeza e o clero; quando os enciclopedistas minaram os dogmas, com o mesmo golpe ruiu o trono.

A fé cega, imposta pelos padres, produziu erros e crimes sem número, contra os quais se revoltou o espírito humano, livre dos preconceitos. Ninguém encara, sem hor­ror, as matanças dos valdenses, dos albigenses, dos cami­sardos. Os gritos das vítimas de S. Bartolomeu, dos Savo­narola e dos João Huss repercutem dolorosamente no fundo dos corações, e os suplícios da Inquisição, seus monstruo­sos autos-de-fé lançam sangrenta mancha na história do catolicismo. Os fanáticos que condenaram Galileu nada conheciam das maravilhas do Universo; a fé estreita e intolerante que possuíam só podia gerar a ignorância e a credulidade.

Os cristãos da idade média faziam mesquinha idéia de nosso Mundo, que só conheciam em parte. Considera­vam-no como a base do Universo; não viam no Céu senão a morada de Deus e nas estrelas mais que pontos luminosos. Tinham, assim, estabelecido uma hierarquia grosseira, co­locando o inferno no centro da Terra e o paraíso acima do Sol, de sorte que éramos o eixo de toda a criação, e fora do nosso mundículo nada existia.

A Astronomia, porém, veio destruir essa fabulosa con­cepção. Ampliaram-se os nossos conhecimentos, a nossos olhos, enlevados, o infinito descobriu os seus espaços. As estrelas não são mais pontos brilhantes disseminados pela mão do Criador, para iluminar as noites, porém mun­dos imensos que rolam no vazio, sóis radiantes, que arras­tam em sua corrida, através do infinito, um cortejo de planetas. A imensidade nos apareceu com suas profundezas insondáveis; sabemos que nossa Terra é parte ínfima dessa poeira de mundos que turbilhonam no éter, de. sorte que as crenças baseadas em nosso orgulho apagaram-se ao so­pro da realidade.

O Universo inteiro ostentou diante de nós os esplen­dores de sua harmonia eterna, a simetria inalterável de suas transformações, sua imutabilidade, sua imensidade! Diante de tão novos espetáculos, reconheceu os homens a inanidade de suas crenças primitivas, queimaram o que haviam adorado, e, levando o desdém do passado aos últi­mos limites, repeliram a noção de Deus e a da alma, como de entidades vetustas, sem nenhum valor objetivo. Assim se estabeleceu a corrente materialista nascida, no 18: século, da luta contra os abusos.

O homem de nossa época não quer mais crer, descon­fia mesmo da razão e se refugia na experiência sensível como a única que lhe pode trazer a verdade; eis por que exige ele provas positivas dos fenômenos que eram, até então, do domínio da filosofia. Estas considerações explicam-nos o pouco êxito de escritores eminentes como Bal­lanche, Constant Savy, Esquiros, Charles Bonnet, Jean Reynaud, que pregaram a imortalidade da alma.

Em nossos dias, um filósofo e sábio, Camille Flamma­rion, segue a rota gloriosa desses grandes homens. Este vulgarizador de gênio semeia a mancheias as idéias da palingenesia humana, e os resultados correspondem a seus nobres esforços; ele deve, porém, a fama que alcançou, mais à beleza do estilo que às idéias que emite. O espírito humano, agitado há séculos entre os mais diversos siste­mas, está cansado das especulações metafisicas e se aferra à observação material como a uma tábua de salvação. Daí o grande crédito dos homens de ciência no momento atual. Eles formam uns corpos sagrados, cujos julgamentos não têm apelação. Possuem a soberba dos antigos colégios sacerdotais, sem lhes partilhar as raras virtudes, e em ambas as partes a intolerância é a mesma.

A maioria do povo, que só percebe o exterior das coisas, vendo os conhecimentos antigos destruídos pelos descobrimentos modernos, crê cegamente em seus novos condutores e se lança, após eles, no materialismo absoluto.

Não mais se raciocina; vai-se de cabeça baixa as últi­mas conseqüências, e, porque está provado que o cérebro é a sede do pensamento, já não existe a alma; porque não se acredita mais em Jeová a pairar sobre as nuvens, Deus não passa de fabuloso mito.

Contra essas tendências é que o Espiritismo vem rea­gir. Sendo o nosso século o da demonstração material, ele apresenta ao observador imparcial fatos bem verifi­cados.

O Espiritismo deixa de parte as teorias nebulosas, desprendem-se dos dogmas e das superstições e vai apoiar-se na base inabalável da observação científica; os próprios positivistas poderãc declararem-se satisfeitos com as provas que fornecemos à discussão, porque elas nos são trazidas pelos maiores nomes de que se honra a ciência contem­porânea.

Há 50 anos que essa doutrina reapareceu no Mundo, foi submetida a críticas apaixonadas, a ataques muitas vezes desleais. Seus adeptos foram escarnecidos, ridicula­rizados, anatematizados; quis-se fazer deles os últimos representantes da feitiçaria; entretanto, apesar das perse­guições, acham-se na hora atual mais numerosos e mais poderosos do que nunca; encontram-se, não entre os ignorantes, mas entre os esclarecidos; escritores, artistas, sá­bios.

O Espiritismo se espalha no Mundo com rapidez inau­dita; nenhuma filosofia, nenhuma religião tomou tão consi­derável desenvolvimento em tão curto tempo.

Hoje, mais de 40 publicações, mensais ou bebdoma­dárias, levam ao longe o resultado das pesquisas empreen­didas em todas as partes do Mundo, e seus partidários, grupados em sociedade, contam muitos milhões de aderen­tes em toda a superfície do Globo.

A que é devida essa progressão formidável? Tão-só à simplicidade dos ensinos espiritistas, baseados na justiça de Deus, e, sobretudo, aos meios práticos que essa nova ciência emprega para convencer a todos da imortalidade da alma.

Há duas fases distintas na história do Espiritismo, que é útil assinalar. A primeira compreende o perío­do que vai do ano de 1846, data de sua aparição, até n ano de 1869, que foi o da morte de um escritor célebre, Allan Kardec. Durante esse tempo, estudou-se em toda parte o fenômeno espírita, as experiências se multiplicaram e os observadores sérios descobriram que os fatos novos eram produzidos por inteligências que viviam uma existên­cia diferente da nossa. Dessa certeza nasceu o desejo de estudar tão curiosas manifestações, e, com documen­tos recolhidos em toda a parte, Allan Kardec, compôs O Livro dos Espíritos e, mais tarde, O Livro dos Médiuns, que são o indispensável às pessoas desejosas de se iniciarem nessas novas práticas. O grande filósofo que os escreveu, imprimiu vigoroso impulso a tais investigações, e à sua dedicação infatigável, pode dizer-se, é que se deve a propagação tão rápida dessas consoladoras verdades.

O segundo período, que se estende de 1869 até nossos dias, é caracterizado pelo movimento científico, que se voltou para as manifestações dos Espíritos. A Inglaterra, a Alemanha, a América parecem caminhar de acordo nessas pesquisas. Já os mais autorizados sábios desses países proclamam alto a realidade dos fenômenos espiritistas e, den­tro em pouco, o mundo inteiro se associará a esses nobres trabalhos, que têm por fim arrancar-nos à crença degra­dante do materialismo. Já veremos os documentos em que se estriba nossa afirmação.

Passou o tempo em que se podia, a priori, repelir as nossas idéias sem lhes dar a honra de as discutir; hoje, o Espiritismo se impõe à atenção pública. É preciso que os absurdos preconceitos que o acolheram no berço desapa­reçam diante da realidade. É necessário saber que, longe de serem visionários, de possuírem cérebro oco, os espiri­tistas são observadores frios e metódicos, que só relatam os fatos bem observados.

Força é que se convençam de que muitos milhões de homens não são vítimas de uma loucura contagiosa; que, se crêem, é porque a doutrina lhes oferece os mais dignos ensinos, porque abre ao espírito os mais vastos horizontes. Convém, enfim, que se deixem de lado as fáceis zombarias empregadas há vinte e cinco anos nos jornalecos, e que nem mesmo fazem rir os que os editam. A nova ciência que ensinamos não consiste, somente, no movimento de uma mesa, porque, tão grande é a distância que vai destes modestos ensaios às suas conseqüencias, quão a maçã de Newton à gravitação universal.

Convidamos os homens de boa fé a fazerem pesquisas sérias, pedimos-lhes que meditem nos ensinamentos de nossa filosofia e eles se convencerão de que nas nossas explicações nunca intervém o sobrenatural.

O Espiritismo repele o milagre com todas as forças. Faz de Deus o ideal da justiça e da ciência; diz que o Criador do Mundo, tendo estabelecido leis que exprimem seu pensamento, não pode derrogá-las, pois que elas são a obra da razão suprema e é impossível qualquer infra­ção a essas leis. Os fatos espíritas podem ser todos, senão explicados, pelo menos compreendidos com os dados da ciência atual, o que demonstraremos no fim desta obra.

A parte espiritual do homem foi desprezada pelos sábios; seus trabalhos versavam tão-só sobre o corpo e eis que os Espíritos invadem a Ciência que os havia des­denhado.

Histórico

Narremos sucintamente como se produziram os fatos.

Pancadas, de que não se podia adivinhar a causa, se fizeram ouvir pela primeira vez em 1846, na casa de um tal Veckmann, numa pequena aldeia chamada Hydesvil­le, não longe da Arcádia, no Estado de Nova York.

Nada foi desprezado para descobrir-se o autor dos ruídos misteriosos; mas tudo resultou inútil. Uma vez, também, durante a noite, a família acordou com os gritos da mais jovem das filhas, de oito anos de idade, que assegurou ter sentido qualquer coisa como uma mão que tivesse percorrido o leito e enfim passado sobre o seu rosto, o que se dera em muitos outros lugares em que as pancadas se fizeram ouvir.

Desde esse momento nada mais se manifestou, durante seis meses, quando a família deixou a casa, que passou a ser habitada por um metodista, John Fox e sua família, composta de mulher e duas filhas. Durante três meses ele aí viveu tranquilamente; depois as pancadas recome­çaram com maior intensidade.

A princípio eram ruídos ligeiros, como se alguém batesse no assoalho de um dos quartos de dormir, que vibrava a cada ruído; as pessoas deitadas percebiam a vibração e a comparavam à ação produzida pela descarga de uma bateria elétrica. As pancadas se faziam ouvir sem interrupção e não era possível dormir na casa; durante toda à noite, esses ruídos leves, vibrantes, manifestavam­-se suavemente, mas sem cessar.

Fatigada, inquieta, sempre à espreita, a família deci­diu-se, enfim, a chamar os vizinhos para auxiliá-la a desco­brir a chave do enigma. Desde então, as pancadas misterio­sas detiveram a atenção de todos.

Colocavam na casa grupos de seis ou oito indivíduos, ou então saíam todos, e o agente invisível batia sempre. A 31 de março de 1845, não tendo podido a Senhora Fox e suas filhas dormir na noite precedente, já exaustas, deita­ram-se, cedo, no mesmo quarto, esperando, assim, escapar às manifestações que se produziam, ordinariamente, alta noite. O Senhor Fox estava ausente. Mas as pancadas recome­çaram logo e as duas moças, despertadas pelo ruído, puse­ram-se a imitá-lo, fazendo estalar os dedos. Vendo com grande espanto que as pancadas respondiam a cada estalo; então, a mais jovem, miss Kate, quis verificar este fato surpreendente: ela deu um estalo, ouviu-se uma pancada, dois, três... e o ser ou agente invisível respondia sempre com o mesmo número de pancadas. A irmã, gracejando, disse: - Agora, faça como eu, conte um, dois, três, qua­tro... e batia na mão o número indicado. As pancadas se seguiram com a mesma precisão, mas, como a mais moça das meninas se alarmasse com este sinal de inteli­gência, ela cessou logo a experiência.

Disse, então, a Sra Fox: Conte dez, e imediata­mente dez golpes se fizeram ouvir. Ela acrescentou: - Quer dizer a idade de minha filha Catarina?

E as pancadas indicaram o número de anos que tinha essa criança. Perguntou depois a Senhora Fox se era um ser humano o autor das pancadas. Não houve resposta. Disse ela ainda: - Se é um espírito dê duas pancadas. - Imediatamente elas se fizeram sentir. - Se é um espíri­to a quem fizeram mal, responda da mesma forma. - E as pancadas foram ouvidas.

Tal foi a primeira conversa estabelecida nos tempos modernos e verificada entre os seres deste e do outro mundo. Assim chegou a Senhora Fox a saber que o Espírito que lhe respondia fora o de um homem assassinado, havia muitos anos, na casa que ela habitava; que se chamara Charles Ryan; que era caixeiro viajante, e que tinha 31 anos de idade quando a pessoa que o hospedara o assassi­nou para tirar-lhe o dinheiro.

Perguntou a Senhora Fox ao interlocutor invisível, se as pancadas continuariam a dar respostas, caso ela cha­masse os vizinhos. Fez-se ouvir uma pancada afirmativa.

Os vizinhos chamados não tardaram a chegar, contan­do rir à custa da família Fox; mas a exatidão dos pormeno­res fornecidos pelas pancadas, em resposta às perguntas dirigidas ao ser invisível, sobre os negócios particulares de cada um, convenceram os mais incrédulos. Espalhou-se longe a fama desses fatos e logo vieram de toda parte sacerdotes, juízes, médicos, e uma multidão de pessoas.

A família Fox, que os autores das pancadas acompa­nhavam de casa em casa, acabou estabelecendo-se em Ro­chester, cidade importante do Estado de Nova York, aonde milhares de pessoas vieram visitá-la e procuraram, em vão, descobrir se havia alguma impostura no caso.

O fanatismo religioso irritou-se com essas manifes­tações de além-túmulo, e a família Fox foi atormentada. A Senhora Hardinge, que se fez defensora do Espiritismo na América, conta que nas sessões públicas dadas pelas filhas da Sra. Fox, correram elas os maiores perigos.

Nomearam-se três comissões para examinar os fenô­menos e essas comissões afirmaram que a causa do ruído lhes era desconhecida. A última sessão pública foi a mais tempestuosa, e, se não fora à dedicação de um qualquer, as pobres meninas teriam parecido, vítimas de sua fé, linchadas por uma multidão em delírio.

É triste ver que no século dezenove se encontraram homens bastante atrasados para renovar as cenas bárbaras das perseguições da Idade Média. Isto é tanto mais lamen­tável, quanto este exemplo de intolerância foi dado nas Américas, que se diz, entretanto, a terra de todas as li­berdades.

A nova do descobrimento se espalhou rapidamente e houve em toda parte manifestações espirituais. Um cidadão, Isaac Post, teve a idéia de recitar o alfabeto em alta voz e convidar o Espírito a indicar, por meio de pancadas dadas no justo momento em que as pronun­ciasse, as letras que deviam compor as palavras que ele quisesse ditar. Nesse dia estava descoberta a telegrafia espiritual.

Para logo fatigou tão incômodo processo e os próprios batedores indicaram novo modo de comunicação. Bastava, simplesmente, se- reunirem as pessoas em torno de uma mesa, porem as mãos em cima, e a mesa, levantando-se, enquanto se soletrasse o alfabeto, daria uma pancada no justo momento que se pronunciasse cada uma das letras que o Espírito quisesse designar. Este processo, apesar de muito lento, produziu excelentes resultados, e assim apareceram as mesas girantes e falantes.

É preciso dizer que a mesa não se limitava a levan­tar-se num pé, para responder às perguntas que lhe faziam: agitava-se em todos os sentidos, girava sob os dedos dos experimentadores, algumas vezes se elevava no ar, sem que se pudesse ver a força que a mantinha assim suspensa. Outras vezes, as respostas eram dadas por estalos, que se ouviam no interior da madeira. Esses fatos estranhos atraíram a atenção geral e, em breve, a moda das mesas girantes invadiu toda a América.

A par dos levianos, que viviam a interrogar os Espíri­tos sobre a pessoa mais amorosa da sociedade ou sobre um objeto perdido, pessoas sérias, sábias, pensadores, em vista do ruído que se fazia em torno desses fenômenos, resolveram estudá-los cientificamente, a fim de premuni­rem seus concidadãos contra o que chamavam de loucura contagiosa.

Em 1856, o juiz Edmonds, jurisconsulto eminente, que gozava incontestável autoridade no Novo Mundo, pu­blicou um livro em que afirmava a realidade dessas surpreendentes manifestações. Mapes, professor de química, na Academia Nacional dos Estados Unidos, entregou-se a rigorosa investigação e concluiu pela intervenção dos Espíritos.

O que produziu, porém, o maior efeito, foi à conversão às novas idéias de Robert Hare, célebre professor da Universidade de Pensilvânia, que estudou cientificamente o movimento das mesas e consignou suas experiên­cias, em 1856, num volume intitulado - Experimental investigations of the spirit manifestation.

Empenhou-se, desde então, a batalha entre incrédulos e crentes. Escritores, sábios, oradores, eclesiásticos lança­ram-se na peleja, e para dar uma idéia do desenvolvimento da polêmica, basta lembrar que, já em 1854, uma petição, assinada por 15.000 nomes, tinha sido apresentada ao Congresso, solicitando que se nomeasse uma comissão, a fim de estudar o neo-espiritualismo (é este o nome que, na América, se dá ao Espiritismo).

O pedido foi repelido pela Assembléia, mas estava dado o impulso; surgiram sociedades que fundaram periódi­cos e neles se continuou à guerra contra os incrédulos.

Enquanto esses fatos se produziam no Novo Mundo, a velha Europa não ficava inativa. As mesas girantes tornaram-se uma interessante atualidade e nos anos de 1852 e 1853 muitos, em França, se-ocuparam em fazê-las girar. Em todas as classes sociais só se falava dessa novidade; fazia-se a todos essa pergunta sacramental: já fez girarem as mesas? E depois, como tudo que é moda, após o mo­mento de interesse, as mesas deixaram de ocupar a atenção e tratou-se de outros assuntos.

Aquela mania teve, entretanto, um resultado impor­tante, o de fazer muitas pessoas refletirem sobre a possibi­lidade da relação entre mortos e vivos. Pela leitura se descobriu que aquilo que se chama a crença no sobrenatural era tão antiga como o Globo.

A história de Urbano Grandier e das religiosas de Loudun, dos tremedores das Cevenas, dos convulsionários jansenistas, provaram que muitos fatos históricos mereciam ser esclarecido, e, para citar apenas os mais célebres, o demônio de Sócrates e as vozes de Joana d'Arc, que a levaram a salvar a França, são ainda mistérios para os sábios. Em vão, Lélut quis assemelhar a heróica Lorena a uma alucinada; desejar-lhe-íamos idêntica moléstia, a fim de que se lhe esclarecesse o juízo.

A narrativa da possessão de Louviers, a história dos iluminados martinistas, dos swedenborguenses, das estig­matizadas do Tirol, e, há apenas 50 anos, a do padre Gassner e da vidente de Prevorst, conduziram os homens sérios a examinar os fenômenos novos. Comparou-se o Espírito de Hydesville ao que revolucionou o prebistério de Cydeville; uma teoria geral nasceu do exame de todos esses fatos; ela está exposta nas obras de Allan Kardec.

As mesmas cóleras que acompanharam as manifes­tações espirituais na América, renovaram-se em França. Os jornais, as revistas científicas, as Academias esgotaram os sarcasmos para com a nova doutrina. Chamavam, gratui­tamente, os seus partidários, de loucos, idiotas, imposto­res. Acusavam-nos de querer fazer voltar o mundo aos maus dias da superstição da Idade Média; pedia-se, mesmo, aos tribunais, que impedissem a exploração vergonhosa da credulidade pública. Os padres trovejavam do alto do púlpito contra os fenômenos espiritistas, que eles diziam ser obra do diabo. Enfim, como remate, o arcebispo de Barcelona mandou queimar em praça pública as obras de Allan Kardec, por contaminadas de feitiçaria!

Dir-se-ia que sonhamos ao ler tais coisas; infelizmente elas são bem verídicas e mostram como são ainda rotineiros os homens, apesar do magnífico surto de progresso que determinou o movimento científico moderno. É preciso uma doutrina como a nossa, que brilha por sua simplicidade e sua lógica, para conduzir os Espíritos às grandes verdades que se chamam Deus e a alma. Nossa filosofia, em sua forma primitiva, sintetiza as crenças mais elevadas dos pensadores, mas ela tem a mais por si o fato, que, se impõe por si mesmo como o Sol, o rei do dia.

É dever nosso afastar de nossas experiências qualquer suspeita. Indispensável é que procuremos destruir as pre­venções e mostrar como são falsas, mesquinhas e incomple­tas, comparadas às nossas, as explicações aventadas para os fenômenos espíritas.

É o que faremos facilmente nas páginas seguintes, ao examinar as objeções que nos têm sido opostas. Antes, porém, descrevamos o movimento espiritualista que se pro­duziu na Inglaterra e na Alemanha, e se verá quantos homens de ciência são espíritas convencidos.

Na França a opinião pública habituou-se a confiar inteiramente em algumas sumidades literárias ou científi­cas, quanto aos seus julgamentos sobre os homens e as coisas, de sorte que, se essas notabilidades têm qualquer interesse em enterrar uma questão, a maior parte do públi­co as acompanha e faz-se o silêncio, o vazio em torno das matérias em litígio. É para protestar contra esse ostra­cismo, que reproduzimos as afirmativas de sábios da Grã­-Bretanha; verse-á quanto esses homens íntegros pouco se inquietaram do que se diria e com que honestidade enérgica proclamaram sua opinião, solidamente baseada nos fatos.

Comecemos por citar as memoráveis palavras pronun­ciadas por William Thompson, no discurso inaugural, lido em 1871, na Associação Britânica de Edimburgo: A Ciên­cia é obrigada, pela eterna lei da honra, a encarar de face, e sem temor, qualquer problema que lhe seja franca­mente apresentado.

São nobres sentimentos, partilhados por grande núme­ro de homens de ciência. Caminha à frente, William Cro­okes, químico eminente, a quem se deve o descobrimento do tálium, e que, em Westminster, demonstrou a existência de um quarto estado da matéria, que chamou, segundo Faraday, de matéria radiante.

Para que compreendamos a grandeza do descobrimen­to, escutemos os elogios com que lhe saudaram a aparição:

Dora em diante, as experiências do sábio inglês, para sempre ilustre, estabelecem problemas que se relacionam com a natureza mais íntima das coisas e abrem à imaginação científica horizontes de que ela mal começa a perceber os esplendores. - Edmond Perrier:

Parville, em seu folhetim científico, qualifica de gran­dioso aquele descobrimento e anuncia que ele vai revolu­cionar as teorias atuais.

Enfim, Wurtz, o conhecido químico, assim se pronun­cia na Revue des Deux Mondes:

O ilustre inventor do radiômetro penetra num domínio até então completamente desconhecido, e que, marcando o limite das coisas que se sabem, toca nas que se ignoram e que, talvez, nunca se venham a saber.

Esse químico ilustre, esse físico de gênio, Crookes, submeteu a estudo as manifestações espíritas, não com idéias preconcebidas, mas com o desejo firme de instruir-se e de só apoiar o seu julgamento na evidência. Diz ele:

Em presença de semelhantes fenômenos, os passos do observador devem ser guiados por uma inteligência tão fria e pouco apaixonada, quanto os instrumentos de que faz uso. Tendo a satisfação de compreender que está na trilha de uma verdade nova, esse único objetivo deve animá-lo a prosseguir, sem considerar se os fatos que se lhe apresentam são naturalmente possíveis ou não.

Com tais idéias, começou ele seus estudos sobre o Espiritismo; duraram perto de 10 anos e foram publicados com o título - Recherches sur les phénomènes du Spiritua­lisme, traduzido do inglês por J. Alidel.

Nesse livro, ele declara lealmente os resultados do seu inquérito, tal como se lhe apresentaram; não contente do testemunho dos sentidos, construiu instrumentos delica­dos, que medem matematicamente as ações espirituais. Longe de temer o ridículo, Crookes assim responde aos que o induziam a dissimular a fé, por não se comprometer:

Tendo-me assegurado da realidade desses fatos, seria uma covardia moral recusar-lhes meu testemunho, só porque minhas precedentes publicam­ções foram ridicularizadas por críticos e pessoas que nada conhecem do assunto, além de cheios de preconceitos para verem e julgarem por si próprios. Direi, simplesmente, o que vi e que me foi demonstrado por experiências repetidas e fiscalizadas, e preciso ainda que me provem não ser razoável o esforço por descobrir a causa dos fenômenos inex­plicados.

Eis a linguagem da verdadeira ciência e da honesti­dade; possam aproveitá-la nossos sábios franceses.

Poder-se-ia acreditar que Crookes é uma brilhante exceção; seria erro grosseiro supô-lo, e se afirmação de tal homem é inestimável para -a nossa causa, ainda é ela aumentada, consolidada pela de outros sábios, que se de­ram ao trabalho de estudar o Espiritismo.

Citaremos, em primeiro lugar, Cromwell Varley, en­genheiro chefe das companhias de telegrafia internacional e transatlântica, inventor do condensador elétrico. É ainda um físico, cuja assertiva não é menos nítida que a de Crookes. Ele fez experiências em sua casa, com as mais rigorosas condições de fiscalização e sua convicção é abso­luta. Termina uma carta sua dizendo:

Não fazemos mais do que estudar o que foi objeto das pesquisas dos filósofos, há dois mil anos; se uma pessoa bem versada no conhecimento do grego e do latim, ao mesmo tempo a par dos fenômenos que, em tão grande escala; se produzirem, desde 1848, quisesse traduzir cuidadosa­mente a escrita daqueles grandes homens, o Mundo logo saberia que tudo o que se passa, agora, é nova edição de velha face da história; estudada por espíritos ousados, chegou ela a um grau que diz bem alto do crédito desses velhos sábios clarividentes, porque se elevaram acima dos acanhados preconceitos do século e, ao que parece, estudaram o assunto em proporções, que, sob vários aspectos, ultrapassam, de muito, nossos conhecimentos atuais.

Como se vê, químicos e físicos não recusam adesão ao Espiritismo. Outro sábio, célebre naturalista, que desco­briu, ao mesmo tempo em que Darwin, a lei de seleção, Alfred Russel Wallace, faz também profissão de fé espírita, em carta dirigida ao Times que nós relataremos ao expor os fatos sobre os quais se baseia nossa convicção. Narremos somente em que condições ele foi levado a ocupar-se com as manifestações dos Espíritos.

Existe em Londres, independentemente da Sociedade Real, que é a Academia de Inglaterra, um grêmio de sábios - a Sociedade Dialética; conta ela homens notáveis como Thomas H. Huxley, Sir John Lubbock, Henry Lewes e outros.

Esta sociedade resolveu, em 1869, estudar os preten­didos fenômenos espíritas, a fim de esclarecer o público.

Nomeou-se uma comissão de 30 membros e, 18 meses depois, apresentou ela o seu relatório, inteiramente favorá­vel às manifestações espíritas. Segundo o hábito, a Socie­dade, vendo suas idéias desmentidas pelos fatos, recusou imprimir as conclusões dos seus comissários. Assim, tam­bém a Academia de Medicina repeliu o trabalho de Husson sobre o magnetismo animal, o que prova que as corporações sábias são as mesmas em todos os países; elas se compõem de ilustres mediocridades, que empenam, aterrorizadas, diante de todas as novidades.

Quando uma novidade, como o Espiritismo, se mani­festa de maneira anormal, e força a atenção pública, pela singularidade dos seus processos, logo se eleva um clamor de reprovação e procura-se sufocar oficialmente as teorias que tiveram a irreverência de produzir-se fora dos laborató­rios diplomados desses senhores.

Felizmente, para honra do gênero humano, encon­tram-se ainda homens que não recuam diante da verdade e Wallace é desse número. Membro da junta de investiga­ção, pôde observar uma série de fatos que o convenceram, e publicou um livro - Miracle and modern Spiritualism -, onde suas experiências são relatadas por extenso.

Faz ele precisamente notar que, no seio da comissão, o grau de convicção produzida no espírito dos diversos membros foi, tendo-se em conta a diferença dos caracteres, proporcional à soma do tempo e dos cuidados empregados na investigação. Isto nos leva a dizer que quem quiser experimentar seriamente e consagrar alguns meses ao estu­do do Espiritismo, chegará certamente a convencesse.

Na França, porém, quer-se aparentar tudo saber e tudo conhecer sem jamais ter-se estudado. Vejamos uma prova:

Um deputado, o Senhor Naquet, anunciou, há alguns anos, que iria fazer uma conferência sobre o Espiritismo e seus adeptos. Esperava-se do eloqüente orador uma refu­tação em regra, apoiada em bons argumentos. Não houve nada disso; limitou-se ele a reeditar os lugares comuns, já fora da moda, e levou a audácia a ponto de dizer que nenhum homem de certa notoriedade se havia ocupado do assunto. Levantou-se, então, uma senhora e lhe fez chegar às mãos a lista dos sábios estrangeiros que haviam publicado obras sobre o Espiritismo. Naquet confessou ingenuamente sua ignorância.

Diante de tais fatos não será tempo de reagir? Como! Sábios, conferencistas pretendem destruir o que chamam nossas superstições, e não estão sequer ao corrente dos trabalhos publicados sobre o Espiritismo! É verdadeira­mente triste constatar tal presunção aliada a tanta incúria!

Podemos ainda citar na Inglaterra, entre os adeptos do novo espiritualismo, alguns homens eminentes: Augusto de Morgan, presidente da Sociedade Matemática de Lon­dres; Oxon, professor da Faculdade de Oxford; P. Barkas, membro do Instituto Geológico de Newcastle, e o professor Tyndall, autor de notáveis estudos físicos. Todos se to­rnam espiritistas, depois de verificarem as manifes­tações dos Espíritos.

Deixamos, propositadamente, de falar dos magistra­dos, dos publicistas, dos médicos que trataram da matéria, não que seus testemunhos sejam destituídos de valor, mas para conservar em nossas citações o caráter eminentemente científico.

Depois da enumeração de tantos nomes ilustres, pode­mos sorrir da ingênua pretensão dos que, sem estudos preliminares, querem repelir o Espiritismo, tendo-o como vulgar superstição, ou melhor, como uma sandice de mun­do nascente, na opinião graciosa de Dupont White, repro­duzida por Jules Soury.

Se há sandice, estamos em boa companhia, porque a estudiosa Alemanha nos oferece, também, respeitável contingente. Vemos, à frente, o ilustre astrônomo Zõellner que, em suas memórias científicas, narra as experiên­cias que fez com Ulrici, professor de filosofia do maior valor; Weber, célebre fisiologista, Fechner, professor da Universidade de Leipzig, com Slade, o médium americano.

Ressalta desses estudos e das experiências conscien­ciosas instituídas por esses sábios, não só que as manifes­tações espíritas são reais como são dignas, ainda, no mais alto grau, de atrair a atenção dos cientistas.

Na França, pelas razões supracitadas, não contamos em nossas fileiras tantas notabilidades oficiais, mas os nomes de Flammarion, Victor Hugo, Sardou, Girardin, de Vacquerie, de Louis Jourdan, de Maurice Lachâtre e de outros têm algum valor e formam belo con­tingente, no qual Dupont White e Jules Soury não poderão encontrar, jamais, lugar.(12)

CAPITULO II

AS TEORIAS DOS INCRÉDULOS E O TESTEMUNHO DOS FATOS

Enunciaram-se, a propósito das mesas girantes e do Espiritismo, os mais contraditórios juízos. Entre os mais severos, encontra-se Bersot, que já vimos tão bem infor­mado sobre o magnetismo. Se ele admite, ainda, certas partes do mesmerismo, do Espiritismo não quer ouvir falar. Ouçamo-lo:

Enfim, o Espiritismo, é preciso dizê-lo claramente, explica-se por causas muito naturais: ilusão, trapaçaria, credulidade. Como se não fosse bastante a fraqueza da razão, opuseram-lhe o coração humano, e aqui nos dividimos entre a indignação contra os que zombam desses sagrados sentimentos e a simpatia pelos que assim se deixam enganar.

Como se vê, não é benigno o nosso crítico; não somos, simplesmente, estúpidos, devemos ser velhacos.

Para dar formal desmentido às imputações caluniosas, vamos examinar cuidadosamente os fatos, não os que temos observado, que não seriam bastante convincentes, mas os narrados pelos sábios de que falamos. Citaremos muitas vezes Wallace e Crookes, homens cuja boa fé, honestidade e valor intelectual respondem vitoriosamente às acusações de credulidade, trapaçaria ou ilusão, que, com tanta gene­rosidade, nos prodigalizam os êmulos de Jules Soury.

Segundo certas lendas, é preciso, quando se quer fazer girar a mesa, que as pessoas estejam com os dedos em contacto e fixem, com ininterrupta atenção, o mesmo ponto do móvel. Isso é inteiramente inútil. Basta colo­car as mãos, levemente, sobre a mesa, e esperar que se manifestem os movimentos. Ao fim de certo tempo, ou­vem-se estalidos, indicando que o fenômeno vai produzir­-se. Em dado momento, a mesa se ergue num dos pés e dá uma ou muitas pancadas; pode então ser interrogada pelo processo ordinário.

Os deslocamentos do móvel são, por vezes, violentos. Conta Eugène Nus, no livro encantador, intitulado Choses de l'Autre Monde, como conseguiu, em companhia de ami­gos, fazer com que a mesa girasse:

Trouxemos para o meio do quarto uma pesada e maciça mesa de jantar; assentamo-nos em torno, aplicamos as mãos, esperamos seguindo as formalidades e, depois de alguns minutos, ela oscila sob nossos dedos.

- Quem é o gracejador?

Todos protestam inocência, mas cada um desconfia do vizinho, quando, de repente, a mesa se levanta em dois pés. Desta vez não há dúvida possível. Ela é bastante pesada para que o esforço, mesmo aparente, possa incliná­-la assim.

Além disso, como para zombar de nós, permanece imóvel, em equilíbrio, nas duas pernas de trás, formando com o assoalho um ângulo quase reto, e resiste sob os braços que a querem fazer voltar à posição natural, o que conseguem, enfim, depois de enérgico esforço.­

Nós nos olhávamos espantados - acrescenta o autor; devemos fazer notar que esse espanto muito natural foi partilhado por Babinet, ao ver uma mesa elevar-se no ar, sem que alguém a tocasse.

Lemos, com efeito, na Revue Spiritualiste de 1868:

Um fato notável e de grande importância para as idéias que represen­tamos, acaba de produzir-se em Paris. O ilustre sábio Babinet, apresentado a Montet, foi testemunha da ascensão de uma mesa, isolada de todo contato. O acadêmico ficou por tal forma surpreendido, que não pôde deixar de exclamar: - É assombroso!.

Sabemos isto de várias testemunhas de vista, entre as quais o honrado General Barão de Brévern, que nos autorizou a dar desse fato e dessa palavra a garantia do seu nome. Ele está pronto a renovar seu testemunho a quem o quiser e diante de quem quer que seja.

As mesas manifestam sinais de inteligência, ora baten­do com um pé certo número de vezes, ora fazendo ouvir na madeira pequenos estalos quando se pronuncia a letra que o Espírito quer designar. Pode-se assim estabelecer uma conversa.

Não se presuma que a mesa é um móvel indispensável e que o Espírito se venha alojar na madeira, como se tem dito. Qualquer objeto pode servir a esse gênero de fenômeno, e se escolheu a mesa por ser mais cômoda que qualquer outro instrumento, quando são muitos a expe­rimentar.

Nesse estudo, seguiremos William Crookes, que cata­logou os fenômenos, passando dos mais simples aos mais complexos. Salvo as raras exceções, que ele indica, os fatos se produziram em sua casa, à luz, em presença do médium e de alguns amigos.

1 - Movimento de corpos pesados com contato, mas sem esforço mecânico

É um dos fenômenos mais simples que observei. Ele varia desde os abalos num quarto e no seu mobiliário até a ascensão de um corpo pesado, quando a mão está em cima.

Pode-se objetar a isso que quando se toca um objeto em movimento, é possível puxá-lo, impeli-lo, ou levantá­-lo: Provei pela experiência que, em numerosos casos, isso não podia suceder; mas, como elementos de prova, ligo pouca importância a essa classe de fenômenos e só os menciono como preliminares a outros movimentos do mesmo gênero, porém, produzidos sem contato.

2 - Fenômenos de percussão e outros sons da mesma natureza

O nome popular de pancadas dá uma idéia muito falsa desse gênero de fenômenos. Por diferentes vezes, em nossas experiências, ouvi sons delicados, que se diriam produzidos pela ponta de um alfinete; uma cascata de sons intensos como os de uma máquina de indução, em pleno movimento; detonações no ar, ligeiros ruídos metáli­cos, agudos; crepitações como as que se ouvem quando uma máquina de atrito está em ação; sons que se asseme­lham a raspagens, gorjeios como de pássaro...

Esses ruídos, que observei com quase todos os mé­diuns, têm cada um suas particularidades especiais. Com Home são mais variados; mas, quanto à intensidade e à regularidade não encontrei ninguém que se pudesse com­parar a Kate Fox. Durante muitos meses, tive o prazer, em inúmeras ocasiões, de verificar os variados fenômenos que ocorriam em presença dessa senhora, e foram esses ruídos que estudei particularmente.

Com outros médiuns, é geralmente necessário, para a regularidade da sessão, que todos se sentem antes que os ruídos se façam ouvir; mas a Srta. Fox, basta colocar-lhe a mão, não importa em que, para que se escutem sons vigorosos, como um choque tríplice e algumas vezes com força suficiente para serem percebidos através de vários aposentos.

Ouvi-os em uma árvore viçosa, em uma vidraça, num fio de ferro estendido, numa membrana esticada, num tam­boril, na coberta de um cabriolé e no assoalho de um teatro. Ainda mais, o contato imediato não é sempre neces­sário; percebi os ruídos saindo do soalho, das paredes, quando a médium tinha pés e mãos ligados, quando em pé numa cadeira, quando ela se encontrava num balanço suspenso do teto, quando estava encerrada numa gaiola de ferro, e quando em síncope, num canapé. Ouvi-os numa harmônica, senti-os em meus ombros e em minhas mãos. Ouvi-os numa folha de papel segura entre os dedos e suspensa pela extremidade de um fio que passava pelo canto dessa folha. Tinha conhecimento das teorias expos­tas, sobretudo na América, para explicar esses sons. Expe­rimentei-os por todas as formas que pude imaginar, até que não houve como fugir à convicção de que eram reais e que não se produziam pela fraude ou por meios me­cânicos.

Notar-se-á a persistência, o escrúpulo com que o sábio inglês examinou o fenômeno em todas as suas faces. Depois de numerosas observações, chegou à conclusão de que se produzem pancadas, ruídos, rangidos que não se podem atribuir à fraude, ou a meios mecânicos, imaginados pelo embuste. Estes ruídos, estas pancadas bizarras precisam ser estudados; são de natureza particular e sua singula­ridade atrai forçosamente a atenção.

Por isso, desde que eles foram verificados, assim como os movimentos da mesa, sábios notáveis, como Faraday, Babinet, Chevreul procuraram explicá-los por hipóteses mais ou menos racionais; não lhes era fácil, porque a ciência, que repeliu com tanto desdém o fluido magnético, não podia aqui lhe arranjar um papel.

A fim de sair do embaraço, Faraday fez muitas expe­riências para demonstrar que a aderência dos dedos à super­fície da mesa era condição do seu movimento, porque, dizia ele, uma vez estabelecida esta aderência, as trepida­ções nervosas e musculares dos dedos acabam por se tornar bastante potentes para imprimir um movimento à mesa.

É isto verdade? - responde Crookes que não, e prova-o.

Imaginou ligar a extremidade de uma comprida tábua a uma balança muito sensível, enquanto a outra extremi­dade repousava em alvenaria. Destarte, a balança indicava certo peso, de que se tomou nota. O médium pôs as mãos na parte da tábua sobre a alvenaria, por forma que qualquer pressão faria levantar a tábua, o que logo seria visto pela diminuição de peso, que a balança acusaria. Em vez disso, a tábua abaixou com uma força de seis libras e meia. Home, o médium, para provar que não exercia pressão, colocou sob os dedos uma frágil caixa de fósforos, e o mesmo fato se reproduziu. Nesta última circunstância, qualquer aderência dos dedos seria destruída e, ainda que se desse, perturbaria, em vez de favorecer o fenômeno.

Faz ainda notar Crookes, que não publicou suas obser­vações, senão depois de haver visto os fatos se produzirem uma meia dúzia de vezes, de forma a bem verificá-los.

Para tirar à teoria da aderência qualquer probabili­dade, o sábio químico construiu um segundo aparelho, tendo idêntico princípio, mas no qual o contato se pro­duzia por meio d'água, de modo que houvesse impossibi­lidade absoluta de transmitir-se à prancha qualquer movi­mento mecânico. Notou, aliás, que a balança acusava, muitas vezes, aumento de peso, quando Home conservava as mãos muitas polegadas acima do aparelho. A hipótese de Faraday é, pois, absolutamente falsa.

Babinet encontrou uma outra hipótese, ou melhor, formulou a mesma que Faraday, mas em outros termos.

Segundo ele, os deslocamentos da mesa eram produzi­dos por movimentos nascentes e inconscientes, isto é, que, involuntariamente, as pessoas reunidas em torno da mesa lhe comunicariam, de maneira automática, certos movi­mentos.

Estabeleceu ele esta teoria antes de ter observado todos os casos que se podem apresentar, pois que a eleva­ção de um móvel sem contato é inexplicável pelo seu método. De mais, a experiência de Crookes, citada acima, reduz a nada essa pseudo-explicações.

Chevreul, o químico, não foi mais feliz em suas tenta­tivas. Publicou uma brochura intitulada' - La baguette divinatoire et les tables tournantes - na qual expõe os princípios seguintes:

1 - Um pêndulo em ação, suspenso ao lado de uma parede, comunica seu movimento de oscilação a um segun­do pêndulo suspenso do outro lado da parede.

2 - A fricção produzida na extremidade de uma barra de ferro faz vibrar a outra extremidade.

3 - A resultante das forças digitais de muitas pes­soas, que atuam lateralmente, pode vencer a inércia da mesa.

Como se vê, é sempre a mesma teoria, sob nomes diversos. Aderência, movimentos nascentes ou oscilação do pêndulo, são hipóteses que repousam numa ação pura­mente física, por parte das pessoas que experimentam. Ora, nas citadas experiências de Crookes, é impossível atribuir o fenômeno a tais causas; força é pois concluir que, até então, a Ciência que não admite o fluido magné­tico é incapaz de indicar a força que produz esses fatos extraordinários.

É preciso, agora, examinar uma segunda categoria de observadores, que vêem no movimento das mesas efeitos magnéticos que se exercem de maneira desconhecida.

Acha-se entre estes Thury, professor da Academia de Genebra, e Gasparin, que publicaram obras cheias de observações curiosas; põem elas fora de dúvida a existência dos fenômenos, independentemente de ação material, por parte dos operadores. Segundo Thury, os fatos verificados são devidos à influência de uma força que ele chama ectë­nica, exercida a distância, e que pode produzir, sob a influência da vontade, ruídos, deslocamentos de objetos, e, por conseqüência, manifestar inteligência. Gasparin é dessa opinião.

Deixemos a palavra aos fatos, porque, como o diz Alfred Wallace, são eles coisas teimosas.

Declara Crookes, em seguimento às suas notas sobre as pancadas:

Questão importante se impõe aqui à nossa atenção: Esses movimentos e esses ruídos são governados por uma inteligência? Desde o princípio de minhas investigações, verifiquei que o poder causador desses fenôme­nos não era simplesmente uma força cega; uma inteligência o dirigia ou, pelo menos, lhe estava associada. Assim, os ruídos de que acabo de falar, foram repetidos determinados números de vezes; tornara fortes ou fracos e, a meu pedido, ressoaram em diversos lugares. Por um vocabulário de sinais, previamente convencionados, houve resposta a perguntas feitas e mensagens apresentadas, com maior ou menor exati­dão.

Até aqui os partidários da força ectênica ou psíquica (é a mesma coisa), podem em rigor explicar esses fenôme­nos. Podem dizer que, quando se deseja vivamente alguma coisa, projeta-se uma espécie de descarga nervosa que produz os ruídos desejados. Tal suposição é dificilmente admissível, quando se obtêm gorjeios de pássaros; pas­semos sobre essa improbabilidade e vamos verificar, sem­pre com Crookes, que se produz outro gênero de ação:

A inteligência que governa esses fenômenos é, algumas vezes, manifestamente inferior à do médium, e, muitas vezes, em oposição direta com seus desejos. Quando se tomava uma determinação que podia ser considerada como pouco razoável, vi darem-se instantes mensagens, induzindo-nos a refletir de novo. Essa inteligência é, por vezes, de tal caráter que somos forçados a crer que não emana de nenhum dos presentes.

Esta última frase destrói a teoria de Thury, porque, se a força nervosa não é dirigida pela vontade do operador e dos espectadores, é preciso admitir uma inteligência es­tranha, isto é, a intervenção dos Espíritos.

É incontestável, evidentemente, que se a mesa dá respostas sobre assuntos desconhecidos dos assistentes ou contrários aos seus pensamentos, não é deles que partem as respostas. Como é preciso, porém, que elas sejam dadas por alguém, atribuimo-las a uma inteligência oculta que vem manifestar-se.

Essa concepção não é uma invenção humana, porque, sempre que se manifestava uma inteligência e se lhe per­guntava quem era, ela constantemente respondia ser a alma de uma pessoa que habitara na Terra. Para bem compreen­der-se à maneira como se passam os fenômenos, urge fazer a narrativa de uma sessão de evocação.

Pode parecer ridículo colocar-se alguém diante de uma mesa e acreditar que um dos seus finados parentes venha conversar por meio desse móvel. É isto, porém, uma verda­de, e entre os milhares de fatos narrados pelos mais honorá­veis homens de ciência citaremos a seguinte carta de Alfred Wallace, não só por ser particularmente probante, como porque o autor está acima de qualquer suspeita.

Carta de Alfred Russel Wallace ao editor do Times.

Senhor. Apontado por muitos de vossos correspon­dentes como um dos homens de ciência que crêem no Espiritismo, seja-me permitido estabelecer, ligeiramente, as provas sobre que se funda minha crença.

Comecei minhas investigações há cerca de oito anos, e considero circunstância feliz para mim que os fenômenos maravilhosos fossem, nessa época, menos comuns e muito menos acessíveis que hoje; isto me levou a experimentá-los em larga escala, na minha casa e em companhia de amigos, nos quais podia confiar.

Tive, assim, a satisfação de demonstrar, com o auxí­lio de grande variedade de experiências rigorosas, a exis­tência de ruídos e movimentos que não podem ser explica­dos por nenhuma causa física conhecida ou concebível.

Assim, familiarizado com esses fenômenos, cuja rea­lidade não deixa a menor dúvida, estive em condições de compará-los com as mais poderosas manifestações de médiuns de profissão e pude reconhecer a identidade de causa entre uns e outros, em vista de semelhanças não muito numerosas mas bastantes características.

Consegui igualmente obter, graças a paciente obser­vação, provas certas da realidade de alguns fenômenos dos mais curiosos, que me pareceram e ainda me pare­cem dos mais concludentes. Os pormenores dessas expe­riências exigiriam um volume, mas talvez me fosse permi­tido descrever sucintamente uma delas, pelas notas toma­das no momento, a fim de mostrar, por um exemplo, como é possível evitar as fraudes de que o observador pacien­te é vítima, muitas vezes, sem o suspeitar.

Uma senhora, que nunca vira um desses fenômenos, pediu-nos, a minha irmã e a mim, que a acompanhássemos a um médium de profissão, bem conhecida. Lá fomos e tivemos uma sessão particular, em plena claridade, por um dia de verão. Depois de grande número de movimentos e pancadas, como de hábito, nossa amiga perguntou se o nome da pessoa falecida, com quem desejava comuni­car-se, podia ser soletrado. Sendo afirmativa a resposta, a senhora apontou, sucessivamente, as letras de um alfabe­to impresso, enquanto eu notava as que correspondiam às três pancadas afirmativas.

Nem minha irmã nem eu conhecíamos o nome que nossa amiga desejava saber, como ignorávamos o de seus defuntos pais; não a pronunciara o próprio nome e nunca havia visto o médium antes.

Descreverei exatamente o que se passou, alterando, apenas, o nome da família, por não ter autorização para publicá-lo.

- As letras que notei foram: Y, R, N, E, H, N, O , S, P, M, O, H, T.

Pronunciadas as três primeiras letras, Y, R, N, disse minha amiga: é um contra-senso, seria melhor recomeçar. Justo, nesse instante, seu lápis estava na letra E, e as pancadas foram dadas. Veio-me uma idéia (tinha lido um fato semelhante, sem ter sido nunca testemunha), e disse: - Peço que continue; penso saber o que isto quer dizer.

Quando minha amiga acabou de soletrar, apresen­tei-lhe o papel; ela não viu sentido nenhum. Fiz uma divisão depois da primeira letra H, e pedi à senhora que lesse as duas partes, às avessas. Com grande espanto seu, surgiu, corretamente escrito, o nome Henry Thompson, que era o de seu filho morto e de quem ela queria informa­ções. Justamente, por essa época, eu ouvira falar, a sacie­dade, da destreza maravilhosa da médium no apanhar as letras do nome que os visitantes enganados esperavam, apesar do cuidado que tinham em passar o lápis nas mes­mas, com perfeita regularidade.

Essa experiência (de que garanto a exata descrição feita no relato precedente), era e é a meu ver a refutação completa de todas as explicações apresentadas até aqui sobre os meios empregados para indicar, por pancadas, os nomes das pessoas falecidas.

Sem dúvida, não espero que os céticos, queiram se ocupem ou não de ciência, aceitem tais fatos, de que poderia, aliás, citar grande número de minha própria expe­riência, mas também, por seu lado, não devem eles esperar que eu ou milhares de homens inteligentes, a quem fui dadas provas assim irrecusáveis, lhes adotemos o curto e fácil modo de explicação.

Permiti que fizesse, ainda, algumas observações sobre as idéias falsas que grande número de homens de ciência conceberam, no que toca à natureza destas pesquisas. To­marei como exemplo as cartas de vosso correspondente Dircks.

Parece-o considerar como argumento contra a reali­dade dessas manifestações, a impossibilidade de produzi­-las e mostrá-las à vontade; outro argumento é o de que não podem ser explicadas por nenhuma lei conhecida. Mas, nem a catalepsia, nem a queda das pedras meteóricas, nem a hidrofobia podem ser produzidas quando se quer; entretanto, são fatos. O primeiro foi algumas vezes simula­do, o segundo negado outrora e os sintomas do terceiro grandemente exagerados; por isso nenhum desses fatos foi definitivamente admitido no domínio da ciência, e en­tretanto ninguém se servirá desse argumento para recusar­se a deles ocupar-se.(13).

Além disso, é estranho que um homem de ciência motive sua recusa em examinar o Espiritismo, no estar este em oposição a todas as leis naturais conhecidas, especialmente a da gravitação, e em contradição aberta com a química, à fisiologia humana e a mecânica. Ora, os fatos, se são reais, dependem de uma ou de muitas causas, capazes de dominar ou contrariar o efeito daquelas diferentes forças, exatamente como elas contrariam ou do­minam outras. Deveria ser isto forte estímulo para levar um homem de ciência a examinar o caso.

Não pretendo o título de verdadeiro homem de ciên­cia; há muitos, entretanto, que merecem esse nome e que não foram absolutamente considerados especialistas pelo vosso correspondente. Julgo como tais o finado Dr. Robert Chambers, o professor William Gregory, de Edimburgo, e o professor Hare, de Filadélfia, infelizmente mortos, bem como o Doutor Guilly de Malvern, sábio médico, e o juiz Edmonds, um dos melhores jurisconsultos da América, os quais fizeram as mais amplas pesquisas no assunto. Todos esses vultos estavam não só convencidos da realida­de dos fatos maravilhosos, senão ainda que aceitavam a teoria do Espiritismo moderno, como a única que poderia englobar todos os fenômenos e explicá-los. Conheço tam­bém um fisiologista vivo, de elevada posição, que é, ao mesmo tempo, hábil investigador e fervoroso crente.

Para concluir (aviso a Bersot), posso dizer que, ape­sar de ter ouvido falar em grande número de embustes, nunca os descobri; e se a maior parte dos fenômenos ex­traordinários são burlas, só podem ser produzidos por má­quinas ou aparelhos engenhosos, e estes ainda não foram descobertos. Não exagero declarando que os principais fatos estão agora bem estabelecidos e são tão fáceis de estudar como qualquer outro fenômeno excepcional da na­tureza, cuja lei ainda não se conhece.

São fatos de grande importância estes para a inter­pretação da História, cheia de casos semelhantes, assim como para o estudo do princípio da vida e da inteligência sobre o qual as ciências físicas lançam fraca e incerta luz. Creio firme, convictamente, que cada ramo da filosofia deve ser permitido, até que seja escrupulosamente exami­nado e tratado como constituindo parte essencial dos fenô­menos da natureza humana.

Seu muito respeitador Alfredo R. Wallace.

É difícil precisar melhor a questão do que o fez o eminente naturalista. O nome de Henry Thompson, que apareceu letra por letra, em ordem inversa, demonstra a intervenção de uma inteligência independente dos assisten­tes e replica vitoriosamente à objeção da transmissão pelo pensamento. Expliquemos o que significa esta locução.

Certo número de observadores, não podendo negar os fenômenos nem as respostas inteligentes dadas pela mesa, mas recusando categoricamente admitir uma inter­venção espiritual, imaginaram que os operadores emitem certa quantidade de fluido nervoso, o qual, concentrado na mesa, lhe comunica o movimento. É notório, diz um deles, que as respostas das mesas não passam do eco das respostas mentais dos assistentes, e Chevreul acrescenta: É fácil conceber que uma pergunta dirigida à mesa possa despertar, na pessoa que o faz, um movimento cerebral, e este, que não é mais do que o do fluido nervoso, possa propagar-se à mesa; daí resulta que se o impulso for propor­cionado, inteligente, a mesa o repetirá.

Observaremos ao eminente químico que o caso citado por Wallace está em oposição formal à sua explicação. Supondo-se, mesmo, que a senhora que evocava o filho lhe tivesse invocado mentalmente o nome, é impossível compreender como foi esse nome ditado em sentido contrá­rio, sem hesitação, e, sobretudo, como a ação não cessou, quando a senhora declarara, à terceira letra, que era inútil continuar, por não terem significação às letras apre­sentadas. Deve-se convir que Chevreul não é feliz com suas explicações, proximamente aparentadas com as de Bersot.

A transmissão do pensamento é um fenômeno que se opera do magnetizador ao magnetizado. Em certos ca­sos, o magnetizador não tem necessidade de enunciar men­talmente sua vontade para se fazer obedecer; basta-lhe pensar e o sonâmbulo executa a ordem que recebeu, ou responde à pergunta que se lhe fez. Aqui pode conceber-se o que se passa. Estabelece-se, pela ação magnética, uma corrente fluídica entre os dois sistemas nervosos, de sorte que as vibrações emanadas do cérebro do magnetizador impressionam, de maneira sensível, o do magnetizado, e lhe fazem nascer no espírito, as mesmas idéias do operador.

Tal é, pelo menos, a teoria apresentada para este fato notável.

Nas mesas girantes, porém, não são as mesmas as condições. Se supusermos muitas pessoas em torno da mesa, como o narra Wallace, como se fará o acordo entre os fluidos e as vibrações de todos esses cérebros? O da senhora evocadora achava o fenômeno impossível, enquan­to o de Wallace o supunha possível: em verdade, aquela suposta explicação é inaceitável.

Como está muito espalhada a objeção da transmissão pelo pensamento, vamos citar outros exemplos que mostra­rão quanto ela é absurda quando se quer aplicá-la às mani­festações espíritas.

Refere Crookes, que numa sessão com Home, uma pequena régua, que se achava na mesa, a pouca distância das mãos do médium, atravessou a mesa, sozinha, veio, em plena luz, até ele e lhe deu uma comunicação (é assim que se denominam as mensagens dos Espíritos), batendo­-lhe numa das mãos.

Soletrei, diz Crookes, o alfabeto, e a régua, cuja extremidade assentava na mesa, me batia às letras necessá­rias. As pancadas eram tão nítidas, tão precisas, e estava a régua sob tão evidente influência de um poder invisível, que perguntei: - A inteligência que dirige os movimentos dessa régua poderá mudar o caráter desses movimentos e dar-me, por meio de pancadas na minha mão, uma mensa­gem telegráfica no alfabeto de Morse?.

Tenho razões para crer que o alfabeto Morse era intei­ramente desconhecido dos presentes, e eu mesmo sabia mal. Apenas pronunciara aquelas palavras, mudou o caráter das pancadas; a mensagem continuou na forma em que eu pedira. As letras eram dadas rapidamente, de maneira que se apanhava uma ou outra palavra, e a mensagem perdeu-se; vi, porém, o bastante, para convencer-me de que havia, na outra extremidade da régua, um bom opera­dor de Morse, quem quer que possa ser.

Não há aqui sombra de transmissão de pensamento, e desafiamos Chevreul, Thury e os demais a nos explicarem o que se dá no caso, excluída a intervenção espiritual.

Um último fato, igualmente probante, é lembrado por Crookes:

Certa senhora escrevia, automaticamente, por meio da prancheta. Procurei descobrir o meio de provar que o que ela escrevia não era devido à ação inconsciente do cérebro. A prancheta afirmava, como o faz sempre, que, embora ela fosse posta em movimento pela mão e pelo braço dessa senhora, a inteligência que a dirigia era a de um ser invisível, que se utilizava o cérebro da senhora como de um instru­mento de música, e assim lhe fazia mover os músculos.

Perguntei, então, à inteligência: - Vê o que há neste aposento? - Sim, escreveu a prancheta. Vê esse jornal e o pode ler? - ajuntei, colocando o dedo num número do Times, que estava em uma mesa, atrás de mim, mas sem o olhar. - Sim, respondeu a prancheta. - Bem, acrescentei eu, se pode vê-lo, escreva, agora, a palavra que está coberta por meu dedo, e crer-lhe-ei.

A prancheta começou por mover-se lentamente e com muita dificul­dade escreveu a palavra honra (honour); voltei-me e vi que a palavra honra era a coberta pela ponta de meu dedo.

Quando fiz essa experiência, evitara, propositadamente, olhar o jornal, e era impossível à senhora, ainda que o tivesse tentado, ver uma única palavra impressa, porque ela estava sentada a uma mesa, o jornal ficava em outra, atrás de mim, e meu corpo o encobria.

A pós provas tão notáveis, se não se acreditar na inter­venção dos Espíritos, é-se obrigado a ver nisso a má­-vontade.

O testemunho de sábios tais como Crookes e Wallace é de grande valor, porque seria difícil acreditar que esses grandes homens estivessem a divertir-se, mistificando, co­mo vulgares farsistas, os seus contemporâneos. Por outra parte, seu saber, o profundo hábito da experiência, os põe ao abrigo da acusação de credulidade.

É preciso pois concluir que eles realmente viram, que os fatos são bem reais e que os Espíritos se manifestam aos homens. Se não temêssemos sobrecarregar a discussão, citaríamos ainda um grande número de fatos, mas preferi­mos encaminhar o leitor desejoso de instruir-se aos volumes publicados por esses sábios.

As manifestações espíritas não se limitam ao movi­mento das mesas; a experiência revelou que os Espíritos agem sobre os homens, de diferentes modos, para ditar suas comunicações. Mas, qualquer que seja o seu modo de operar, é preciso que haja entre os assistentes um indiví­duo que possa ceder parte de seu fluido vital. Os que têm essa propriedade são chamados médiuns.

O mais extraordinário, entre os fenômenos espíritas, é indubitavelmente o da escrita direta.

Citemos, sempre Crookes:

A escrita direta é a expressão empregada para designar a escrita que não é produzida por nenhuma das pessoas presentes. Obtive, muitas vezes, palavras r mensagens escritas em papéis marcados com o meu sinete particular e sob a mais rigorosa fiscalização. Ouvi, no escuro, o lápis mover-se no papel. As precauções preliminares tomadas por mim foram tão grandes que o meu espírito se convencera, como se eu tivesse visto os caracteres se formarem. Mas, por falta de espaço, limitar-me-ei a citar os casos em que meus olhos e meus ouvidos foram testemunhas da operação.

O primeiro fato, é verdade, se realizou numa sessão escura, mas o resultado não foi menos satisfatório.

Eu estava junto da médium, a Srta Fox; não havia mais pessoas presentes, além de minha mulher e outra senhora, nossa parenta; eu segurava as mãos da médium numa das minhas enquanto que seus pés estavam sobre os meus. Havia papel na mesa e minha mão livre mantinha um lápis.

Uma mão luminosa desceu do teto e depois de haver plainado perto de mim, alguns segundos, tomaram-me o lápis da mão, escreveu rapidamente numa folha de papel, deixou o lápis, e em seguida elevou-se acima de nossas cabeças e pouco a pouco, se perdeu na obscuridade.

Aqui não há mais negação possível, nem força ectêni­ca ou psíquica, porque a mão luminosa, que escreve direta­mente, não tem necessidade de nenhum intermediário. Não é a primeira vez que tais fatos se produzem. O Barão de Guldenstubbé publicou, em 1857, um livro curioso, intitulado - La Réalité des Esprits et le phénomène merveilleux de leur écriture directe.

Nesse volume, conta o autor como foi levado a fazer essa experiência. Estava à procura de uma prova, ao mesmo tempo, inteligente e palpável, da realidade do mundo dos Espíritos, para demonstrar a existência da alma com fatos irrefutáveis.

Colocou, pois, um papel de carta, branco, e um lápis, numa caixa; fechou-a a chave e nada disse a ninguém. Para maior segurança, pôs a chave no bolso. Esperou 12 dias em vão, sem notar algo de novo; qual não foi, porém, a sua surpresa, quando, a 13 de agosto de 1856, viu certos caracteres no papel. Não podia crer em seus olhos e repetiu a experiência dez vezes no mesmo dia, a fim de convencer-se de que não era joguete de uma ilusão.

Contou a seu amigo, o conde Ourches, o maravilhoso descobrimento; experimentaram ambos, e, depois de várias tentativas, obteve o conde uma comunicação de sua mãe, morta cerca de 20 anos antes; a escrita e a assinatura foram reconhecidas como verdadeiras. Isso afasta qualquer interpretação sonambúlica do fenômeno.

Tem-se dito que as mensagens recebidas por esse pro­cesso são, na maior parte, insípidas. Responde Oxon faculdade de Oxford: - Quanto à inteligência das mensagens escritas fora dos processos comuns, não quero saber se é ou não digna de apreço, pelo conteúdo das comunicações. O escrito pode ser tão insensato quanto aprouver aos críticos. Se nada há mais tolo, isso favorece meu argumento. Está ou não está escrito? Deixemos de lado os absurdos do pensamento e nos atenhamos apenas ao fato.­.

É o que fazemos, notando, entretanto, que esses escri­tos estão longe de ser tão ridículo, como se pretende. A propósito da escrita direta, escreve Oxon, sábio professor, que a estudou durante 5 anos. (Cito textual­mente do autor de Choses de l'Autre Monde):

Há cinco anos que me é familiar o fenômeno da psicografia (escrita dos Espíritos). Observei-o em grande número de casos, ou com psíquicos (médiuns) conhecidos do público, ou com pessoas que possuíam o dom de produzir esse resultado. No curso de minhas observações, vi psicografias obtidas em caixas fechadas (escrita direta); em papel escrupulosamente marcado e colocado em posição especial, donde não podia ser deslocado; em papel marcado e colocado sobre a mesa, no escuro; em papel colocado sob meu cotovelo ou coberto por minha mão; em papel, num envelope fechado e lacrado; em ardósias ligadas.

Vi escritas produzidas também quase instantaneamente e essas expe­riências me demonstraram que tais escritas não eram sempre obtidas pelo mesmo processo.

Enquanto se vê, algumas vezes, o lápis escrever como se fosse conduzido por mão, ora invisível, ora a dirigir-lhe os movimentos de maneira visível, em outras, a escrita parece produzida por um ato instantâneo, sem auxílio do lápis.

Ao de Crookes se junta o testemunho de Oxon. Estes sábios, operando sem ciência, um do outro, chegam aos mesmos resultados. Afirmam ambos terem visto mãos con­duzirem os lápis e escreverem frases. Não há aí com que fazer refletir os mais incrédulos?

Vejamos o testemunho de sábios de outras partes da Europa. Quanto mais mostrarmos o caráter universal das manifestações dos Espíritos, mais elas terão valor aos olhos dos homens de boa fé.

Zõllner, na Alemanha, acaba de confirmar as expe­riências de seus colegas e apóia sua narrativa em autorida­des como Fechner, Weber e Schreibner. Tomemo-lo, ainda de Eugênio Nus, que o traduziu diretamente do alemão, o seguinte trecho:

Na noite seguinte - é Zõllner quem fala - sexta-feira, 16 de novembro de 1876, coloquei uma mesa de jogo com quatro cadeiras, em um quarto onde Slade ainda não tinha entrado. Depois que Fechner, o professor Braune, Slade e eu colocamos as mãos entrelaçadas sobre a mesa, ouviram-se pancadas nesse móvel; eu comprara uma ardósia, que assinalamos; nela colocamos um fragmento de lápis, e Slade os pôs à beira da mesa; minha faca foi atirada, subitamente, à altura de um pé e recaiu na mesa. Repetindo-se a experiência viu-se que o fragmento do lápis, cuja posição foi marcada com um sinal, ficou no mesmo lugar na ardósia. A dupla ardósia, depois de limpa e munida de um duplo lápis, foi segura por Slade, sobre a cabeça do Professor Braune; ouviu-se uma arranhadura e, aberta a ardósia, lá se encontraram muitas linhas escritas. Uma cama colocada no aposento, por trás de um biombo, transportou-se inopinadamente até ficar a dois pés de distância da parede e afastou o biombo. Slade estava longe da. cama e lhe dava as costas; tinha as pernas cruzadas, o que todos viam.

Organizou-se imediatamente em minha casa uma segunda sessão, com Weber, Schreibner e eu. Um estalo violento, como a descarga de forte botelha de Leyde, foi ouvido; voltamo-nos, alarmados, e o biombo separou-se em dois pedaços; peças de madeira estavam dilaceradas, sem que houvesse contato visível de Slade com o biombo, e os pedaços quebrados jaziam a cinco pés de Slade, que estava de costas para o biombo.

Espantamo-nos com essa manifestação de uma força mecânica e perguntei a Slade o que isto queria dizer. Respondeu que o fenômeno acontecia, por vezes, em sua presença. Como ele falava de pé, colocou um pedaço de lápis na superfície polida da mesa, cobriu-o com a ardósia, comprada e limpa por mim, comprimiu a superfície com os cinco dedos abertos da mão direita, enquanto a mão esquerda repousava no centro da mesa. Começou a escrita na superfície interior, e, quando Slade a virou, achava-se em inglês o seguinte: - Não era nossa intenção fazer mal; perdoai o que aconteceu.

Enquanto se produziu a escrita, os mios de Slade ficaram imóveis.

São provas estas suficientes para estabelecer a exis­tência da escrita direta. Ora, nessa escrita, é necessário que alguém dirija o lápis, e como nenhum dos presentes o pode fazer, segue-se que são aqueles a quem se chama espíritos que o fazem. Justifica essa indução o se haverem visto, por muitas vezes, mãos luminosas servirem-se do lápis para traçar mensagens; não é pois permitida a dúvida quanto à causa dessas manifestações. Mas então, se os Espíritos puderam agitar guéridons, se lhes foi possível escrever fazendo ver suas mãos, por que não se tornariam eles próprios visíveis? Impressionado por estas conside­rações Crookes foi levado a constatar resultados esplêndi­dos que analisaremos no capítulo em que tratamos especial­mente da mediunidade.

Deve ter-se notado que contentamo-nos, até agora, em referir as experiências, sem lhes dar qualquer explica­ção; é que não queremos enfraquecer-lhes o alcance por comentários, que poderiam dar lugar à crítica. Por mais estranhos, bizarros, perturbadores que possam parecer es­ses fenômenos, há uma coisa certa, evidente, é que exis­tem, pois que foram verificados pelas sumidades da Ingla­terra, da Alemanha e da América. Além disso, em nenhum caso podem ser atribuídos à intervenção humana, porque foram tomadas as precauções para afastar essa eventuali­dade. É preciso necessariamente que eles sejam produzidos por individualidades independentes dos operadores, por outras palavras, pelos Espíritos.

Em um século de positivismo intransigente como o nosso, tais revelações indispensáveis para firmar a crença na imortalidade; desaparecida a fé com as religiões abandonadas, tornava-se necessário o fato brutal, para res­tabelecer a verdade. Hoje, ela se nos impõe a todos, e apesar das negações interessadas do materialismo, triunfará de todos os obstáculos amontoados a sua frente.

Os fenômenos espíritas têm sido tão ridicularizados que é útil insistir muito nos fatos que militam em seu favor. Os cientistas de nosso país, por tendência natural ou temor do ridículo, não ousam entregar-se a essas investi­gações. Não temos a pretensão de convencê-los, referindo­-lhes os trabalhos dos seus colegas do mundo inteiro, mas se essa leitura lhes pudesse inspirar o desejo de verificar o que há de verdadeiro ou falso em tais asserções, nosso fim seria atingido.

Pintaram os adeptos do Espiritismo com tão absurdas cores, que muitas pessoas supõem tratar-se de doentes ou alucinados. Há dificuldade em se apresentar, de público, um partidário de Allan Kardec, como um bom burguês prosaico; entretanto, é o que é fácil de verificar, freqüen­tando-se a sociedade espírita. Em vez de fisionomias desfiguradas, com os olhos a brilharem de febre, vêem-se pessoas honestas, que experimentam, tranqüilamente, e discutem os resultados obtidos com tanto sangue frio e lucidez, como em qualquer outro meio em que se estude.

O preconceito tem tão poderoso império sobre os homens, ainda os mais distintos, que não nos devemos espantar da vigorosa oposição, quando trazemos as mãos cheias de idéias em antagonismo com as vistas gerais.

Eis a carta de um amigo de Crookes, que descreve perfeitamente esse estado psicológico:

Não posso - respondia ele ao célebre químico -, achar resposta razoável aos fatos que V. expõe. E é curioso que eu mesmo, ainda com tendência e desejo de crer no Espiritismo, com fé em seu poder de observação e sua perfeita sinceridade, experimente a necessidade de ver por mim e me é penoso pensar que preciso de muitas provas. Digo penoso, porque noto que não há razões que possam convencer um homem, a menos que o fato se repita tantas vezes, que a impressão pareça tornar-se um hábito do espírito, um velho conhecimento, uma coisa conhecida há tanto tempo, que dele não se possa mais duvidar.

É uma das faces curiosas do espírito humano e os homens de ciência a possuem em alto grau, mais que os outros, creio eu.

Não devemos, por isso, dizer que um homem é desleal, porque resiste muito tempo à evidência. A velha muralha das crenças deve ser abatida à força dos golpes.

É esta também a nossa opinião, e assim se explica à persistência com que reunimos o maior número possível de documentos, para implantar a convicção nas almas sin­ceras. Se recusarem seguir-nos em todas as conseqüências que tiramos da observação, ao menos não se poderá di­zer que nossas crenças não tenham um ponto sério de partida.

Os espiritistas não são fanáticos, nem sectários; não querem impor a quem quer que seja a teoria que deduzi­ram da imparcial apreciação dos fatos. Se lhes demons­trarem amanhã que estão em erro, abandonará imediata­mente sua maneira atual de ver, para se colocarem ao lado da verdade, porque o seu método é, antes de tudo, o racionalismo.

Até agora, porem, consideram sua doutrina a mais provável e continuam a ensiná-la.

CAPÍTULO III

AS OBJEÇÕES

Na experiência tão notável narrada por Crookes, em que ficou provado que a inteligência que se manifesta é capaz de ler uma palavra desconhecida do médium e do experimentador, pôde-se ver a frase seguinte: Uma senhora escrevia automaticamente por meio da prancheta. Expliquemos esse novo gênero de mediunidade.

Como já o dissemos, as primeiras manifestações se deram em Hydesville por pancadas nas paredes; depois, passou-se ao emprego da mesa, mas - esse processo era longo e incômodo, de sorte que os Espíritos indicaram outro. Certa vez, um dos seres invisíveis que produzia a manifestação, ordenou ao médium que apanhasse uma cesta e lhe fixasse um lápis, que os colocasse sobre uma folha de papel branco e pusesse as mãos na borda da cesta, sem premi-la. Seguidas as recomendações, com gran­de espanto dos assistentes obtiveram-se algumas linhas de uma escrita indecisa. O fenômeno se reproduziu muitas vezes, e logo se espalhou.

Os Espíritos, em lugar de se servirem da mesa e de responderem por pancadas ou levantando o pé da mesa, agiam diretamente sobre a cesta, com o fluido fornecido pelo operador. O processo foi rapidamente aperfeiçoado; viu-se que a cesta era apenas um instrumento, não impor­tando a forma e a natureza, e construiu-se uma prancheta, isto é, uma pequena placa de madeira sobre três pés, com um lápis na extremidade.

Obtiveram-se, assim, verdadeiras cartas ditadas pelos Espíritos, com tal rapidez, como se tivessem eles próprios escrito. Mais tarde viu-se ainda que a cesta ou a prancheta eram simples acessórios, apêndices inúteis e o médium, tomando diretamente o lápis, escreveu mecanicamente sob a influência dos Espíritos. A faculdade de escrever incons­cientemente sobre os mais diversos assuntos, ciência, filo­sofia, literatura, e com o emprego de línguas muitas vezes desconhecidas do médium, tomou o nome de mediunidade mecânica.

Por esse novo método, as comunicações entre o mun­do espiritual e o nosso tornaram-se mais fáceis e mais prontas, mas as pessoas dotadas desse poder se encontram mais raramente do que as que obtêm por meio da mesa. Verificou-se, com o exercício, que todos os sentidos se podiam prestar às manifestações de além-túmulo e logo se contaram os médiuns videntes, auditivos, sensitivos e outros.

Para um incrédulo, é incontestável que a mediunidade mecânica está sujeita às mais graves objeções.

Afastando qualquer idéia de embuste, ele pode, entre­tanto, acreditar que a ação de escrever automaticamente é devida a um modo de ação particular do sistema nervoso, a uma espécie de ação reflexa da inteligência do médium, exercida sem a fiscalização da consciência. É verdade que isto é bem hipotético, mas essa teoria, já bastante difícil de conceber, é inútil e inaceitável diante da experiên­cia de Crookes já relatada. O médium escrevente não podia ver a palavra do Times, oculta pelo dedo do ilustre químico; este não podia transmitir à senhora o seu pensamento, pois que ignorava a palavra indicada; a intervenção de uma inteligência estranha, manifestada pela Senhorita Fox, é a única explicação plausível.

O cavalheiro des Mousseaux conta que um dia, achan­do-se em casa de uma família onde costumava passar as tardes e que aí se fez Espiritismo em presença de muitos sábios lingüistas. Nessa época, só se conheciam as comuni­cações pela mesa, mas o resultado não foi por isso menos convincente. Obteve-se por esse processo um ditado em língua hebraico-siríaca, que ninguém conhecia, mas que, levado à escola de línguas estrangeiras se verificou tratar ­se de um dialeto fenício, que se empregava havia mais de 2.000 anos, nos arredores de Tiro. O Senhor des Mous­seaux, muito cético a princípio, declarou-se convencido da intervenção de uma inteligência estranha à dos assistentes, mas concluiu atribuindo ao Diabo essas maravilhosas manifestações. Nós, que não acreditamos nem em Satã, nem nos demônios, preferimos admitir que um Espírito se manifestou desse modo para dar um testemunho bri­lhante da existência do mundo oculto.

Fomos nós próprios testemunha, em Paris, de uma comunicação escrita em caracteres árabes, por uma pessoa que nunca saiu da França, e cuja instrução não deixa supor uma trapaça. O mesmo fato se reproduziu de outra forma. Desta vez, o ditado dos Espíritos foi feito em dialeto italiano, em resposta a uma pergunta formulada nesse idioma. Convém dizer que o médium não conhece mais o italiano que o árabe.

Acontece, por vezes, que o Espírito comunicante, desejoso de se fazer reconhecer, emprega a mesma escrita que tinha em vida e se assina como costumava fazê-lo. Se não há sempre provas tão palpáveis, o que é bastan­te raro, aliás, verifica-se, muitas vezes, nas comunicações dos Espíritos, um caráter de sabedoria, uma altura de vis­tas, e tão sublimes pensamentos, que não poderiam emanar do médium, comumente um ser vulgar e que não se distin­gue dos seus semelhantes por qualidades especiais.

Eis, a propósito, o que refere Sarjeant Cox, distinto jurisconsulto, escritor e filósofo de grande valor, e, por conseqüência, bom juiz, diz Wallace, em matéria de estilo. Narra aquele sábio, que ouviu um moço de escritório, sem conhecimentos, sustentar, quando estava em transe, conversação com um grupo de filósofos sobre a presciência, a vontade e a fatalidade, e lhes levar vantagem.

Propus-lhe - diz Sarjeant, as mais difíceis ques­tões de psicologia, e recebi respostas sempre sensatas, cheias de vigor, e expressas invariavelmente em linguagem escolhida e elegante. Um quarto de hora depois, entre­tanto, em seu estado natural, era incapaz de responder à mais simples questão filosófica e, com dificuldade, conse­guia achar a linguagem para exprimir idéias comuns.

As faculdades medianímicas menos sujeitas a suspeita são, inegavelmente, a vidente e a auditiva. Como o nome indica, a primeira consiste no poder de que são dotadas certas pessoas, de ver os Espíritos. Neste caso, não há dúvidas, porque se o médium descreve a figura, as vestes, os gestos habituais de um ser que nunca viu, se reconhe­ce que essa descrição é precisamente a do parente morto, em quem ninguém pensava, é preciso admitir que a visão é real, e ainda, que a personalidade descrita existe, de maneira positiva, diante dos olhos do médium.

Conta Allan Kardec, na Revue Spirite, que um Senhor Adrien possuía esse poder no mais alto grau. Conhece­mos, também, em Paris, uma parteira, a Sra. R., que vê continuamente os Espíritos, e a tal ponto, que custa a distingui-los dos vivos. Aqui não se deixará de apontar imediatamente a grande palavra - alucinação: é o refúgio dos incrédulos, o cavalo de batalha de todos os que comba­tem o Espiritismo. Mas, atribuir os fenômenos a essa causa é conhecê-los bem pouco.

A alucinação é um fato anormal, que se produz, quase sempre, em conseqüência de acidentes patológicos, ou nos momentos que precedem o sono ou o acompanham, enquan­to que nos médiuns, que temos citado, a vista dos Espíritos é, por assim dizer, permanente. Não se deve esquecer, também, que aquele estado mórbido só pode apresentar à imaginação doente quadros que nada têm de comum com a vida real, fenômenos puramente subjetivos, e em nenhum caso pôde um alucinado dar os sinais exatos de pessoa que nunca viu, por forma a fazê-la reconhecer por seus parentes ou amigos. Voltaremos a esta questão na quinta parte.

Já citamos muitos sábios que partilham de nossas idéias, nomes ilustres e reverenciados, para poder afirmar nossa crença na imortalidade da alma, sem temor da zom­baria.

Procuramos colocar à vista do leitor esse majestoso conjunto de testemunhas a fim de patentear, àqueles que o ignoram, que o Espiritismo é uma ciência, cujas bases estão assentes na hora atual de maneira inabalável. Não se pode dizer que sejam superstições grosseiras as nossas idéias, como o faziam outrora, porque, se um erro pudesse propagar-se tão universalmente, se homens de estudo, au­toridades científicas, filósofos, pudessem, em todas as par­tes do Mundo, ç simultaneamente, delas ser vítimas, seria preciso convir que havia aí um fenômeno mais estranho que os fatos espiríticos.

Finalmente, que há de tão extraordinário em crer nos Espíritos? Todas as filosofias espiritualistas demonstram que temos uma alma imortal, as religiões o ensinam em toda a superfície da Terra; demonstrado que essas almas se podem manifestar aos vivos, parece natural que nossa convicção se espalhe, com rapidez, pelo Universo inteiro. Por meio das mesas girantes, dos médiuns mecânicos ou outros, podemos ter a convicção de que os seres que nos foram caros, que os mortos que havemos chorado, estão a nosso lado, velam solicitamente pela nossa felicidade, e nos sustentam moralmente na vida. Nada vemos aí que possa ferir a razão.

O Espiritismo tem, é verdade, muitos inimigos inte­ressados em sua perda; de um lado, os materialistas; do outro, os sacerdotes de todas as religiões, de sorte que seus infelizes partidários estão entre o martelo e a bigorna, a receber rudes golpes de todos os lados.

Os materialistas têm argumentos extraordinários; não concebem a boa fé nos seus adversários e declaram que os fenômenos espiritistas são todos devidos à mistificação ou à prestidigitação. Para esses Espíritos fortes, só existem duas classes no Mundo: a dos enganadores e a dos engana­dos. Ora, não partilhando dessa opinião, seremos, necessa­riamente, enganadores, e nossos médiuns, vulgares charla­tães. Para que não se nos acuse de tisnar intencionalmente o quadro, poderíamos citar numerosos extratos onde se pede nada menos que a prisão para punir as práticas espiri­tistas; alguns, havendo notado que o século não se presta mais à perseguição brutal, fizeram vibrar outra corda: pre­tenderam que todos os adeptos da nova doutrina fossem loucos e que somente eles possuíssem a sabedoria impecá­vel. Arrogaram-se o direito de somente eles terem bom senso e assim nos maltratam em seus escritos, da pior maneira.

Vamos dar uma amostra dessas amenidades, citando dois artigos de Jules Soury, aparecidos na République Française, de 7-10-1879. O método do jornalista é sim­ples: consiste em negar sem provas, como sempre, em proceder por afirmações sobre os assuntos em litígio, e em insinuar que os espíritas, mesmo os mais autorizados sábios estão atingidos de mania arrazoante, como conseqüência de sua avançada idade, que não lhes permite mais julgar de maneira sã o que se passa sob seus olhos. Ouça­mos esta obra-prima de má-fé.

Ele (Zõllner) precisamente fez acompanhar por Weber e Fechner as experiências que crê ter instituído com Slade; nunca esquece de citar esses sábios ilustres, como testemunhas dessas experiências, e de fato, o testemunho deles não deixaria de ter peso, se um não tivesse 66 anos e o outro 79!

E assim, esses homens veneráveis, cujos cabelos em­branqueceram na pesquisa da verdade, são declarados inep­tos para se pronunciarem em uma questão científica, por­que tiveram a infelicidade de desagradar a Soury. Dir-se­-ia que o nosso jornalista, que não é senão uma mesquinha personalidade em face desses grandes nomes, descobriu o meio de saber em que idade precisa se raciocina e em que outra se deve ser aposentado.

Nunca se teria acreditado, lendo-o, que se precisasse atingir setenta e seis anos para imbecilizar-se, porque, não é ridículo ver recorrer a tais argumentos para combater uma idéia?

Nosso crítico não se contenta em suprimir moralmente as ilustrações que o incomodam; ele chama Zõllner de louco lúcido e declara que o professor Ulrici está atacado de mania discursadora.

Pergunta-se, lendo tais absurdidades, se não se está sonhando e é-se mais tentado a examinar o estado mental de Jules Soury do que estigmatizar seus processos de polê­mica.

Se Jules Soury se limitasse a dizer semelhantes coisas, poder-se-ia ter complacência com ele, porque o bom senso público faz justiça a essas insanidades, mas ele vai mais longe e trata o médium Slade como um explorador vulgar. É o que não podemos deixar passar sem protesto. Vamos citar alguns trechos de uma brochura de Fauve­ty e da Sra. Cochet, muito bem escrita, onde são postos a nu os artifícios do nosso crítico:

Não hesitais em apresentar Slade, na França, como um refinado velhaco; vejamos, entretanto, as vossas provas. Credes ter denunciado à perspicácia de vossos leitores que Henry Slade tem alta estatura, braços compridos, mãos compridas, dedos compridos. Estendei-vos com prazer sobre sua palidez de espectro, seus olhos brilhantes, seu riso silencioso. De sorte que esse retrato lembra o do lobo do chapeuzinho vermelho e o do Mefisto de Fausto. As pessoas imaginativas irão até colocar garras no fim desses longos, longos, longos membros, e os espíritos positivos suporão que se trata de um dom que deve auxiliar singularmente as agilidades de passe-passe de um prestidigitador.

Chama-se a isso proceder por insinuação; muito hábil, senhor, pas­semos.

Lembrais o processo intentado contra Slade, na Inglaterra, em outubro de 1876. Há ainda aí uma prova de habilidade, sabendo-se como há inclinação para se ver um culpado num acusado.

Entretanto, todas as vossas pesquisas não vos põe na traça do embuste. A acusação é pueril e não repousa em nenhum dado positivo, enquanto a defesa traz à barra do tribunal os homens mais notáveis da Inglaterra e, principalmente, aquele a quem chamais o grande êmulo de Darwin, Alfredo Wallace. Mais um louco lúcido.

Não devo insistir nesse processo que acabou, na Corte de Apelação, por uma absolvição.

Sigo-vos, agora, a Berlim.

Em Berlim, Slade teve a seu favor todos os sábios. E contra quem? Um prestidigitador, que imita o que chamais as ligeirezas de Slade.

A afirmação é bem vaga; pela primeira vez tocais, enfim, na questão, de saber se sim ou não; se Slade usa de meios materiais para produzir os fenômenos, que ele diz devidos a uma causa estranha. Aqui é que era preciso dar os detalhes próprios para esclarecer a opinião. Teriam eles mais peso que as oito longas colunas através dos quais amontoastes insinuações contra Slade, sem apresentar um só fato?

Importa, com efeito, saber em que condições se colocou Hermann para imitar os passes, se ele os reproduziu todos, ou só alguns, se operou em sua casa ou em lugar preparado, se, enfim, se submeteu à fiscalização por parte dos assistentes que Slade experimentou. E não dissestes palavra sobre tão importantes circunstâncias.

Acrescentais, ainda, com a maior inconseqüência: O médium encon­trou, realmente, um compadre em Bellanchini, prestidigitador da corte, que declarou, em notário, que Slade não era um confrade, mas um sábio.

Perguntar-se-á em que provas vos baseais para acusar, tão ligeiramente, Bellanchini de compadrio, isto é, de velhacaria. Se estais certo de sua cumplicidade, deveis apoiá-la em fatos; fornecei as provas. Se fazeis, porém, uma suposição gratuita, está deslocado o tom afirmativo e os leitores podem desafiar-vos a que a sustenteis. Isto também se aplica a esta outra asserção: As respostas escritas são da mão de Slade. Está bem dito. Esqueceis, apenas, um detalhe - a prova.

É assim que procedem aos detratores do Espiritismo: afirmam, sem provas, fatos de nenhuma forma demons­trados e partem dessas afirmações falsas para tirar conse­qüências contra a doutrina.

Tal modo de agir denota idéia preconcebida ou igno­rância do assunto. Inclinamo-nos a crer que aí predomina a paixão, porque, quando se propõe aos nossos Aristarcos produzirem-se os fenômenos diante deles, eles se esquivam prudentemente para não se inclinarem diante da evidência.

Foi o que aconteceu com Jules Soury: convidaram-no para uma sessão espírita e ele recusou-se obstinadamente.(14)

Entre as objeções, que nunca deixam de ser dirigidas aos espiritistas, acha-se a seguinte: - Por que, se os fenômenos que produzis são reais, não podeis obtê-los à vontade perante os incrédulos?

A resposta é fácil. Verificou-se, pela experiência, que para ter comunicações dos Espíritos são necessárias várias condições: 1: - é preciso um médium; 2: - é necessário que sua faculdade corresponda ao gênero de manifestação que se pede. Assim, o médium da evocação pela mesa não será o mesmo que o da escrita, como pode suceder que o médium vidente não seja auditivo.

Há pessoas privilegiadas, que reúnem muitas faculda­des em alto grau, como Home e Slade, mas entre esses favoritos, a mediunidade não é constante; vê-se submetida a flutuações e mesmo a suspensões que lhe tiram todo o poder. De sorte que, para convencer um incrédulo, não basta sempre ter um médium, é preciso saber se ele estará em boas condições para servir de intermediário aos Espíri­tos. Ignoram-se, ainda, quais são as leis que dirigem esta espécie de fluxo e refluxo da mediunidade, mas cremos que é possível atribuí-Ias a duas causas: ou à saúde física do médium, ou aos Espíritos, que não podem ou não que­rem manifestar-se.

Pôde-se notar em médiuns poderosos, como Florence Cook, Home e Slade, depois das sessões espíritas de mani­festações, um tal desperdício de forças que produzia mal­-estar, desfalecimentos, e que não lhes permitia, por muito tempo, dar outras sessões.

Esse estado de prostração pode ser assemelhado às intermitências que se notam na vidência dos sonâmbulos. O célebre Alexis, que tão grande reputação conquistou, confessa que, por várias vezes, sua faculdade o abandonou durante dias, sem que ele pudesse atinar com as razões dessa atonia.

É preciso, ainda, considerar que os Espíritos são seres como nós, submetidos a leis que não lhes é possível frustrar a sua vontade, e que têm, além disso, seu livre-arbítrio, em virtude do qual não são nunca obrigados a responder a nossa chamada.

Uma queixa que vemos, muitas vezes, formular é precisamente o absurdo que há no acreditar que filóso­fos como Sócrates, físicos como Newton, poetas como Corneille, sejam forçados a vir palestrar com meia dúzia de basbaques, em torno de uma mesa. Seria ridículo de fato. A Doutrina Espírita ensina, pelo contrário, que os Espíritos podem responder às nossas evocações, mas que só o fazem quando julgam necessário.

Se os experimentadores só buscam nas práticas espíri­tas um divertimento pueril, poderão ficar certos de que serão vítimas de Espíritos farsistas, os quais lhes virão contar todos os disparates possíveis, e isto sob a capa dos mais ilustres nomes.

Em geral, ignora-se que o mundo dos Espíritos é composto dos mais diversos elementos. Assim como na Terra encontramos inteligências em todos os graus de desenvolvimento, também no mundo espiritual, que é o nosso com o corpo de menos, há individualidades de escol ao lado dos mais atrasados Espíritos.

Podemos, pois, obter ditados espíritas, que variam de elevação moral conforme o ser que os produz. O nome com que um Espírito se assina é de importância secundária; o que importa considerar são as idéias emitidas. Se o ensino é grandioso, se prega o amor de nossos semelhantes, se nos faz compreender as leis da moral, ele emana de um Espírito elevado; se a comunicação encerra idéias vul­gares, enunciada em termos impróprios, o Espírito é pouco adiantado.

Todas essas observações foram feitas muitas vezes por Allan Kardec, nos seus livros e na revista que dirigia, mas os nossos contraditores nunca se deram ao trabalho de as ler, de sorte que somos obrigados a recapitulá-las.

Os observadores sérios, desejosos de saber o que há de verdade no Espiritismo, submeteram-se a todas as condi­ções indispensáveis para o bom êxito da experiência. Lon­ge de exigirem, desde a primeira sessão, provas convincen­tes, lenta, metodicamente é que se familiarizaram com todas as fases do fenômeno. Barkas esteve em expectativa 10 anos. Crookes 6, Oxon 8. Foi pelo estudo atento dos fatos, quando se habituaram às singularidades aparentes das manifestações, que procuraram as causas capazes de produzi-los; depois de reunirem grande quantidade de ob­servações, em diferentes meios, fizeram-lhes a síntese e concluíram finalmente pela existência e intervenção dos Espíritos.

Sabemos que semelhante estudo pede muito tempo e ardente desejo de conhecer a verdade, que, por isso, não está ao alcance de todos. Os próprias sábios nem sempre têm coragem de prosseguir em tentativas que, se vingam, os porão em contradição com seus colegas e lhes acarretarão uma multidão de desgostos. Eis por que, em vez de um relatório sério e circunstanciado, a Academia de Ciências admitiu, como explicação dos fenômenos espí­ritas, os movimentos do longo peroneiro.

Parece que esse músculo, vizinho ao tornozelo, tem a propriedade de estalar, o que fez com que Schiff pedisse a Jobert de Lamballe que comunicasse à Academia esse luminoso descobrimento. Os Drs. Velpeau e Cloquel aplau­diram imediatamente e confirmaram o fato. Ficou demons­trado pela ciência oficial que, quando as pancadas respon­dem a uma pergunta mental, não são os Espíritos que produzem esses ruídos, mas o longo perônio que faz das suas. Se obtiver, como Crookes, o nome de uma palavra oculta pelo dedo, é sempre o longo peroneiro, porque ele não é somente estalador, senão ainda dotado de dupla vista!

Se os espíritas têm sido acusados, algumas vezes, de fantasistas, confessemos que os sábios, em assembléia, são capazes de imaginar gracejos mais chistosos que todos os que pudéssemos inventar. Nada tão cômico quanto uma grave cerebração, quando chega a desarrazoar; ela vai neste caminho, muito mais longe do que uma pessoa simples, e a descoberta genial dos senhores Schiff e Jobert de Lamballe foi bem feita para desopilar o baço de seus con­temporâneos.

Foi à única vez que o Espiritismo se apresentou à ilustre reunião, e dela deve conservar uma singular lem­brança.

Continuemos o exame das críticas ao Espiritismo. Tem-se feito a seguinte pergunta: - Supondo que o Espiri­tismo seja uma verdade, porque os Espíritos, para se mani­festarem, têm necessidade de uma mesa e de um médium?

Seria absurdo supor que um Espírito seja obrigado, para dar-nos instruções ou conselhos, a vir alojar-se num pé de mesa, ou de cadeira, ou de guéridon(15), porque se veria privado de comunicações quem não possuísse esses móveis; demais, não são eles de uma virtude especial que possa legitimar um tal poder.

É preciso familiarizar-nos com a vida dos Espíritos e seu modo de operar, para compreender o que se passa na tiptologia.

Os Espíritos sempre existiram, pois são eles que, pela encarnação, povoam a Terra; também sempre exerceram influência no mundo visível, por manifestações físicas e inspirações dadas aos homens. Os pensamentos soprados no cérebro do encarnado, não deixam traços, mas, se os invisíveis querem mostrar sua presença de maneira ostensi­va, servem-se de um médium, que lhes empresta o fluido necessário e põem em movimento o primeiro objeto que se lhes depara, mesa ou cadeira, de maneira a assinalar sua presença. A mesa não é condição indispensável do fenômeno, e dela se servem os Espíritos, e eis tudo. Ele, o médium, é necessário, porque sem a sua ação nada pode produzir-se; mas ele é simples intermediário, muitas vezes inconsciente, e não tem outro mérito que o da docilidade.

Uma causa de espanto para os que conhecem pouco os princípios da Doutrina Espírita é que os Espíritos não respondem sempre quando os interrogam sobre o futuro ou quando lhes apresentam questões relativas à solução de certos problemas científicos.

As perguntas que se ouvem a cada instante provam uma ignorância completa da missão dos Espíritos e do fim de suas manifestações. Todo pedido de interesse puramente pessoal, de sentimento egoístico, não recebe resposta, e, se alguma aparece, provém de Espíritos farsis­tas, que procuram enganar-nos. Não é preciso esconder que os Espíritos sérios, adiantados, são exceção, porque, se assim não fosse, o nosso Mundo seria mais perfeito.

Há, no espaço, seres que cercam, que se interes­sam em nossa vida e procuram, freqüentemente, divertir-se a nossa custa, quando percebem que a cupidez e outras vistas são os únicos móveis de um consulente. Empregam mil facécias, de que o imprudente é a vítima. Vemos com pena aqueles que no Espiritismo só buscam objetos perdi­dos, pedem conselhos sobre sua posição material ou pro­curam descobrir tesouros ocultos.

A ciência espírita tem um fim mais nobre, mais gran­dioso, seu principal objetivo é demonstrar a existência da alma, depois da morte; alcançasse somente esse resulta­do, e as conseqüências daí decorrentes, sob o ponto de vista moral e social, seriam já consideráveis. Mas não se limitam a isso seus benefícios. Ela nos fornece informa­ções seguras sobre a outra vida, permite-nos compreender a bondade e a justiça de Deus, dá-nos a explicação de nossa existência na Terra, numa palavra, é a ciência da alma e de seu destino.

Isto nos leva a falar das instruções que recebemos dos Espíritos Superiores, a quem chamamos guias. Eles já desvelaram a nossos olhos uma grande parte dos misté­rios que encobriam o futuro além da morte, iniciando-nos nos esplendores da vida espiritual e fazendo-nos entrever as grandes leis que dirigem a evolução das coisas e dos seres a destinos mais elevados. Mas não nos podem dizer tudo, porque, então, nenhum mérito haveria de nossa par­te, e como nossas aquisições espirituais devem ser o resul­tado de nossos esforços, não lhes é permitido revelar-nos tudo que sabem.

Por outro lado, é evidente a necessidade de proporcio­narem o ensino, na conformidade do adiantamento dos homens. Que se diria de um professor que quisesse ensinar cálculo integral a uma criança de dez anos? Que estava louco, porque é preciso que essa criança aprenda, antes, as diferentes partes da matemática, as quais, por encadea­mento lógico, vão até àquela ciência, que delas é o termo. Da mesma maneira, os Espíritos só nos podem revelar progressivamente as verdades que eles conhecem, à medida que nos tornamos mais aptos a compreendê-las.

Deram eles, entretanto, por comunicações, as mais altas idéias a que chegaram as deduções modernas. Allan Kardec pregava a unidade da força e da matéria, em uma época em que essas noções estavam longe de ser admitidas pela ciência oficial. Nossos guias prometem-nos para o futuro revelações ainda mais grandiosas; é por isso que, encorajados pelo que eles já nos anunciaram, esperamos, com paciência, novos descobrimentos no futuro.

Julgam um argumento decisivo contra os espíritas, não terem os Espíritos de diferentes países a mesma opinião sobre grande número de pontos: uns admitem a reencar­nação, enquanto outros a rejeitam; uns são católicos, ou­tros sustentam o protestantismo. Parte-se daí para afirmar que as comunicações podem bem ser o reflexo do espírito dos médiuns, segundo a equação pessoal de cada um, como diz Dassier.

Já combatemos essa maneira de ver e mostramos que, quando a influência espiritual se exerce, são inteligências estranhas ao médium que produzem o fenômeno; demais, dizem elas ter vivido na Terra, não uma vez, mas muitas vezes. Não há razão para duvidar dessa afirmativa, tanto mais que ela corrobora um sistema filosófico da mais severa lógica. A pluralidade das existências da alma concilia todas as dificuldades que as religiões atuais não podem resolver, eis por que adotamos esta maneira de ver.

A reencarnação é uma lei sem a qual não se poderia compreender a justiça de Deus. Ela é confirmada por milha­res de seres, que denotam, no raciocínio e no estilo, adian­tamento espiritual. Devemos, pois, concluir, que os Espíri­tos que não partilham essas idéias são almas atrasadas, que chegarão mais tarde à verdade.

Na Terra, mesmo em país civilizado, como o nosso, poucos homens conhecem os ensinos da ciência. Se nos colocarmos na via pública, detivermos vinte transeuntes e nos pusermos a examinar-lhes os conhecimentos, dezoito, pelo menos - poderíamos apostar - seriam incapazes de dar esclarecimentos exatos sobre as diferentes funções da digestão. E haverá fenômeno mais habitual e mais fre­qüente que este? Ora, se a multidão é tão pouco instruída sobre o que mais lhe importaria saber, com mais forte razão descuidará dos complicados problemas de que depen­de a vida espiritual.

O mundo dos Espíritos é absolutamente igual ao nosso e por isso não nos devemos espantar das divergências nas comunicações. Longe de aceitar todas as idéias que nos chegam pelo canal dos médiuns, convém passar pelo crivo da razão as teorias que nos apresentam, e rejeitar, sem hesitação, as que não estão em perfeito acordo com a lógica.

Deus colocou em nós este archote divino, que nada deve extinguir, e é um sagrado direito crer tão-só naquilo que compreendemos nitidamente. Eis por que o Espiri­tismo, tão bem resumido nas obras de Kardec, responde às aspirações de nossa época, e daí sua rápida propagação no mundo.

Um escritor positivista, Dassier, teve a pretensão de libertar o homem do que ele chama as enervantes alucina­ções do Espiritismo. Depois de tanta promessa, esperávamos uma refutação em regra de todos os argumen­tos espíritas, mas nos achamos em face de uma reedição disfarçada de velhos agravos: charlatanismo, superstição, etc. Dassier, entretanto, dá um passo à frente: consente em crer que é uma realidade o que chamamos perispírito; denomina-o duplo fluídico, personalidade póstuma ou mes­meriana, e lhe atribui os mais extensos poderes.

Esse autor reuniu documentos notáveis, que provam que o homem é duplo e que, em certas circunstâncias, se pode produzir uma separação entre os dois princípios que o compõem. Voltaremos mais particularmente sobre este estudo nos capítulos seguintes. Assinalemos somente, aqui, o processo de Dassier que, combatendo nossas doutri­nas, reconhece, entretanto, a exatidão dos fatos afirmados por Allan Kardec e a boa fé dos médiuns. Ele crê explicar tudo pela hipótese da transmissão do pensamento e da sobrevivência temporária da individualidade. Segundo ele, no momento da morte, a força vital não fica aniquilada; o que formava o duplo fluídico pode viver ainda algum tempo, mas se vai dividindo e desagregando à medida que os elementos que o constituem vão juntar-se aos seus similares na Natureza.

Para refutar esta doutrina, basta dizer que temos mi­lhares de comunicações que nos afirmam o contrário. Aliás, o autor se limita a expor sua maneira de ver, sem dar-se ao incômodo de fornecer provas. Lançou mão, apenas, em seu proveito, de parte das teorias teosóficas, que admi­tem, também, que os homens não têm todos, no mesmo grau, a possibilidade de atingir a imortalidade.

Todos esses sistemas provam o progresso em relação ao materialismo puro, mas não podem satisfazer àqueles que não se limitam a noções vagas, e que exigem dados positivos onde assentem suas convicções.

Procuraram assemelhar o médium escrevente a um sonâmbulo lúcido. Sabe-se, com efeito, que o magneti­zador pode, em certos casos, fazer com que o paciente execute os movimentos em que ele pensa, sem ser obrigado a enunciar, oralmente, sua vontade. Não se pode estabele­cer qualquer analogia entre esse fato e a mediunidade. Nas experiências espíritas o médium não dorme e o evocador é, muitas vezes, ignorante das práticas magnéticas. O pensamento do consultante não poderia, pois, produzir os efeitos verdadeiramente notáveis que se observam.

Além disso, o medium mecânico pode sustentar uma conversa, enquanto sua mão escreve automaticamente, es­tando ele intelectualmente em estado normal. Não é possí­vel comparar esse estado com o sonambulismo natural ou provocado.

O clero de todas as religiões entrou em guerra com o Espiritismo, porque ele destrói a crença no inferno e, por conseqüência, as penas eternas. Mina a teoria do peca­do original e faz um Deus bom e misericordioso da divin­dade zangada e cruel dos padres. A filosofia espírita não se apóia na fé, mas nas luzes da razão, e para combater o dogma esteia-se na observação científica.

Pode-se daí julgar o acolhimento que tem. Lembramos a história do arcebispo de Barcelona, fazendo queimar os livros de Allan Kardec, sob pretexto de feitiçaria. Esse processo renovado da Inquisição mostra bem o que seria dos espiritistas, se houvesse o poder de destruí-los.

Em França, as imunidades do clero não vão até lá. Evitamos a fogueira, mas os sacerdotes não deixam de pregar contra nossa doutrina, que dizem inspirada por Sa­tanás.

Estas invectivas não exercem influência alguma sobre nós, porque há muito tempo não acreditamos mais em deus do mal. Esse sombrio gênio, inventado pela casta sacerdotal, com o fim de amedrontar os povos infantis da Idade Média, está hoje fora da moda, e suas caldeiras vingadoras fogem diante das luzes do progresso. Fazemos muito alta idéia da divindade, para não supor que ela criasse seres eternamente votados ao mal. Aliás, a antiga concepção do inferno está desmentida pelo testemunho cotidiano dos Espíritos; ela não poderia, pois, influen­ciar-nos de maneira alguma.

Mas, aceitemos, por instantes, a idéia católica, e suponhamos que o espírito do mal paire em torno de nós, deveríamos reconhecer a arvore por seus frutos e manter-nos em guarda contra suas sugestões. Prega ele o ódio, a inveja, a cólera? Incita-nos a satisfazer nossas paixões?

Não. Os Espíritos ensinam a fraternidade, o perdão das injúrias, à mansuetude para amigos e inimigos. Dizem­-nos que o caminho único da felicidade é o do bem e que os sacrifícios agradáveis ao Senhor são os que fazemos a nós mesmos. Exortam-nos a vigiar cuidadosamente nos­sos atos, a fim de evitar a injustiça; recomendam-nos o estudo da Natureza e o amor de nossos semelhantes, como meios únicos de elevar-nos rapidamente para um futuro mais brilhante.

Longe de nos dizerem que a salvação é pessoal, fa­zem-nos encarar a felicidade de nossos irmãos como o objetivo superior para o qual se devem dirigir nossos esfor­ços; colocam, enfim, a felicidade suprema na mais sublime fraternidade, a do coração.

Se forem estes os processos empregados por Satã para perverter-nos, é preciso declarar que eles se assemelham estranhamente aos que Jesus empregava para reformar os homens, e o anjo das trevas conduz mal seus negócios, trazendo-nos à virtude pela austeridade da moral que reco­menda em suas comunicações.

Se nos é impossível acreditar na legião dos condena­dos, não se segue que os maus gozem de impunidade. Em O Céu e o Inferno, Allan Kardec descreveu o sofri­mento dos Espíritos infelizes, e se o inferno não existe, nem por isso deixam as almas perversas de sofrer terríveis castigos. Mas essas penas não serão eternas. Deus permite ao pecador abreviá-las, dando-lhe a faculdade de resgatá­-las por expiações proporcionais às faltas. Eis em que diferimos absolutamente de todos os dogmas, é que nossa esperança é fundada sobre a justiça e a bondade infinita do Criador. Não podemos supor que Deus seja mais cruel para conosco, do que é um pai para um filho arrependido, e essa esperança expele de nossos corações o pensamento pungente de um eterno desespero.

Que nova luz traz o Espiritismo! Não há mais doloro­sas incertezas sobre o nosso futuro; o além misterioso, velado sob as ficções das religiões, aparece-nos em toda sua realidade. Não mais inferno, não mais céu, mas a continuação da vida, que prossegue no tempo e no espaço, eterna como tudo que existe. A perene ascensão para desti­nos sempre mais elevados, eis a verdadeira felicidade. Lon­ge de acreditar em uma beatitude ociosa, colocamos a ventura em uma atividade incessante e no conhecimento cada vez mais perfeito das leis universais.

Lancemos um olhar sobre os benefícios que o homem tem tido com o progresso das ciências, comparemos o bem-estar material que atualmente goza com as condições miseráveis de sua vida, há cem anos, e compreender-se-á que, se tais revoluções são possíveis no domínio físico, elas não serão mais que pobres avatares ao lado dos esplen­dores que a evolução moral para o infinito nos promete.

Não há mais dogmas, não há mais coisas incompreen­síveis, senão uma harmonia sublime que se revela nos melhores detalhes dessa imensa máquina que se chama o Universo! E a satisfação profunda por perceber qual é, em suma, a nossa -finalidade na Terra é o resultado do estudo atento das manifestações espíritas. Para melhor tornar compreensível o caráter e o alcance científico do Espiritismo, vamos resumir em algumas palavras os pontos principais sobre que ele se apóia, enviando aos livros de Alan Kardec os leitores desejosos de estudar mais profun­damente esta crença.

O Espiritismo ensina, em primeiro lugar, a existência de Deus, motor inicial e único do Universo; nele se resu­mem todas as perfeições, levadas ao infinito. Ele é eterno e todo poderoso.

Ninguém o pode conhecer na Terra, mas todos experi­mentam suas leis; nosso entendimento é bem fraco, ainda, para elevar-nos até essas sublimes alturas, mas nos diz a razão que ele existe, e os Espíritos, melhor colocados que nós para lhe apreciarem a grandeza, inclinam-se com respeito diante de sua majestade infinita. Falta-nos desen­volvimento intelectual para abraçarmos, em sua extensão, essa grandiosa noção da divindade, mas tendemos para ela como a falena para a luz.

O desejo de conhecer desenvolve nos corações as aspirações mais nobres, e, mais tarde, desembaraçado da matéria, gravitando para a perfeição, o Espírito fará idéia cada vez mais elevada desse Onipotente, que ele pressente hoje e que conhecerá um dia.

Foi-se o tempo em que se concebia Deus como potên­cia implacável e vingadora, condenando eternamente o homem pela falta de um momento. A sombria divindade bíblica não plaina mais sobre nós como ameaça perpétua; não é mais o Jeová terrível que ordenava o degolamento dos que não criam nele, e que fazia curvar milhares de homens ao sopro de sua cólera, como uma floresta de caniços, batida pelo aguilhão furioso.

O Deus moderno nos aparece como a expressão perfei­ta de toda ciência e da toda virtude. Sua inteligência se manifesta no admirável conjunto das forças que dirigem o Universo, sua bondade, pela lei da reencarnação, que nos permite remir as faltas com expiações sucessivas e elevar-nos gradativamente até sua infinita majestade.

O Deus que compreendemos é a infinita grandeza, o infinito poder, a infinita bondade, a infinita justiça! É a iniciativa criadora por excelência, a força incalculável, a harmonia universal! Paira acima da criação, envolve-a com sua vontade, penetra-a com sua razão; é por ele que os universos se formam, que as massas celestes rolam seus esplendores nas profundezas do vácuo, que os planetas gravitam nos espaços formando radiantes auréolas em torno dos sóis. Deus é a vida imensa, eterna, indefinível, é o começo e o fim, o alfa e o ômega.

O Espiritismo ensina, em segundo lugar, a existência da alma, isto é, do eu consciente, imortal e criado por Deus. Ignoramos a origem desse eu, mas, qualquer que seja, cremos que Deus fez todos os espíritos iguais, e os dotou de iguais faculdades para chegarem ao mesmo fim - a felicidade. Deu-nos, do mesmo passo que a cons­ciência, o livre-arbítrio, que nos permite apressar mais ou menos nossa evolução para destinos superiores. Sabe­mos que a alma do homem existia antes de seu corpo, que este poderia não ter existido, que a natureza inteira poderia não existir sem que a alma fosse atingida por isso; em suma, ela é imaterial e indestrutível.

É o eu consciente que adquire, por sua vontade, todas as ciências e todas as virtudes, que lhe são indispensáveis para elevar-se na escala dos seres. A criação não está limitada à fraca parte que nossos instrumentos permitem descobrir; ela é infinita em sua imensidade. Longe de considerar-nos como os habitantes exclusivos do pequeno Globo, o Espiritismo demonstra que devemos ser os cida­dãos do Universo

Vamos do simples ao composto. Partidos do estado rudimentar, elevamo-nos, pouco a pouco, à dignidade de seres responsáveis. A cada conhecimento novo, entreve­mos mais vastos horizontes e experimentamos maior felici­dade. Longe de pôr nosso ideal numa ociosidade eterna, cremos, ao contrário, que a suprema felicidade consiste na atividade incessante do espírito, no seu conhecimento cada vez maior e no amor que se desenvolve à proporção que avançamos na estrada árdua do progresso. É o amor o motor divino que nos arrasta para esse foco radiante que se chama Deus!

Compreende-se que essas idéias nos obriguem a admi­tir a pluralidade das existências, ou seja, a lei da reencar­nação. Quando se pensa, pela primeira vez, na possibi­lidade de viver grande número de vezes na Terra, em corpos humanos diferentes, a idéia parece bizarra; quando, porém, se reflete na soma enorme de aquisições que deve­mos possuir para habitar a Europa, na distância que separa o selvagem do homem civilizado e na lentidão com a qual se adquire um hábito, logo se vê desenhar a evolução dos seres, e se concebem as vidas múltiplas e sucessivas, como uma necessidade absoluta imposta ao Espírito, tanto para adquirir o saber como para resgatar as faltas que se tenham podido cometer anteriormente.

A vida da alma, sob este ponto de vista, demonstra que o mal não existe, ou melhor, que ele é criado por nós, em virtude de nosso livre-arbítrio.

Deus estabelece leis eternas que não devemos transgredir, mas se não nos conformamos com elas, ele nos deixa a faculdade de remir, por novos esforços, as faltas ou crimes cometidos. É assim que os Espíritos, ajudando-se uns aos outros, chegam à felicidade, que é o apanágio de todos os filhos de Deus.

Nossa filosofia enriquece o coração; ela considera os infelizes, os deserdados do mundo como irmãos a quem devemos socorrer. Pensamos, pois, que uma simples ques­tão de tempo separa os mais embrutecidos selvagens dos homens geniais das nações civilizadas. O mesmo acontece no ponto de vista moral, e os monstros como os Neros e os Calígulas podem chegar ao mesmo grau dos São Vi­cente de Paulo.

O Espiritismo destrói completamente o egoísmo. Ele proclama que ninguém pode ser feliz se não ama seus irmãos e não os ajuda a progredir moral e materialmente. Na lenta evolução das existências, podemos ser por diver­sas vezes e reciprocamente: pai, mãe, esposa, filho, ir­mão... Cimentam-se, assim, os poderosos laços do amor. É pelo auxilio mútuo que adquirimos as virtudes indispen­sáveis ao nosso adiantamento espiritual.

Nenhuma filosofia se elevou a mais alta concepção da vida universal, nenhuma pregou moral mais pura. É por isso que, detentores de uma parte da verdade, apre­sentamo-la ao mundo apoiada sobre as bases inabaláveis da observação física.

Ciência progressiva, o Espiritismo se baseia na revela­ção dos Espíritos. Ora, estes, à medida que eles progridem, e nós avançamos intelectualmente, descobrem verdades novas, de modo que seu ensino é gradativo e se amplia à medida que eles próprios se tornam mais instruídos.

Não temos dogmas nem pontos de doutrina inabalá­veis; fora das comunicações dos mortos e da reencarnação, que estão absolutamente demonstradas, admitimos todas as teorias que se ligam à origem da alma e ao seu futuro. Em uma palavra, somos positivistas espirituais, o que nos dá incontestável superioridade sobre as outras filosofias, cujos adeptos estão encerrados em estreitos limites.

Tal é, em suas grandes linhas, a filosofia que se tem procurado vilipendiar por mentiras e calúnias. Conce­be-se que nossas idéias e o valor das nossas crenças nos coloquem muito acima dessas críticas indigentes, mas é preciso que o sol da justiça se erga sobre nós e permita aos pensadores apreciarem, em toda sua grandeza, esta nobre doutrina.

QUARTA PARTE

CAPÍTULO 1

QUE É O PERISPÍRITO?

Demonstramos, nos capítulos precedentes, que a alma é imortal, isto é, que quando o corpo que ela habita, durante sua passagem na Terra, se destrói, ela não é atingi­da por essa transformação, conserva sua individualidade e pode ainda manifestar sua presença por intervenções físicas. Levanta-se aqui uma dificuldade. Como fazer com­preender a ação da alma sobre o corpo?

Segundo a filosofia e segundo os Espíritos, a alma é imaterial, por outras palavras, não tem ponto algum de contato com a matéria que conhecemos. Não se pode conceber que a alma tenha propriedades análogas às dos corpos da natureza, pois que o pensamento que dela é a imagem, a emanação, escapa a qualquer medida, a toda análise física ou química. Mas se é obrigado a tomar a palavra imaterial em seu sentido absoluto? Não, porque a verdadeira imaterialidade seria o nada; mas esta alma constitui um ser cuja existência é tal, que dela nada na Terra poderia dar uma idéia. A fim de precisar bem o nosso pensamento, desejamos instruir nossos leitores sobre o sentido desta palavra imaterial, para que ela não se preste à confusão.

Pretendemos que nenhum estado da matéria pode fa­zer-nos compreender o da alma, e, entretanto, a Ciência chegou a resultados surpreendentes quanto à divisão da matéria. Eis o que resulta das experiências de Crookes, na Academia de Ciências.

Sabe-se que esse físico tem uma teoria especial, se­gundo a qual as moléculas dos corpos gasosos podem mo­ver-se por suas próprias forças, quando se lhes diminui o número, fazendo o vácuo. Para chegar a esse resultado é preciso operar com precisão extrema e empregar manipu­lações numerosas e complicadas. Crookes chegou a fazer o vazio de tal forma, que a pressão do ar no aparelho foi reduzida a um milionésimo de atmosfera. Nessas condi­ções, manifestam-se os caracteres do estado radiante.

Habitualmente, os fenômenos novos, em fisica ou químicos, são produzidos por adição de matéria; é curioso verificar que aqui, ao contrário, efeitos de extrema energia resultam de uma subtração de matéria; foi reduzindo-a quase a nada, rarificando-a além do verossímil, que Croo­kes obteve os singulares fenômenos. Quanto mais ele retira a matéria, tanto mais surpreendente se toma à ação. É a física do nada, e fica-se tentado a perguntar se ele tem o direito de atribuir à matéria efeitos tão poderosos, quando fez tantos esforços por desembaraçar-se dela. Não deve subsistir equívoco a este respeito e não devemos julgar segundo a impressão de nossos sentidos aquilo que pode perfeitamente lhes escapar.

A Natureza vai muito além de nossas sensações; é preciso, pois, pormo-nos ao abrigo de nossos erros. Quan­do as mais aperfeiçoadas máquinas subtraíram de um espa­ço fechado tanto ar, tanto gás quanto foi possível, não se segue que muito ainda não possa lá ficar.

Crookes reduziu o conteúdo de seus tubos a um milio­nésimo do ar que conhecemos, e que é tão impalpável que o deslocamos a cada instante, sem ter consciência de que ele está em torno de nós. Pareceria que o milioné­simo de coisa tão insignificante fosse para nós menos que nada. Esse julgamento é falso, como vamos ver.

O cálculo mostra que num balão de 13 centímetros de diâmetro, como o de que se serve Crookes, cheio de ar à pressão normal, existe, pelo menos, um septilhão de moléculas. 1.000.000.000.000.000.000.000.000.000

Rarefazer esse ar ao milionésimo, é dividir por um milhão o número precedente, e ainda fica um quintilhão de moléculas. Um quintilhão!

É uma cifra enorme e bem longe do nada. Para dar idéia desse número gigantesco, diz Crookes:

Tomo o balão no qual faço o vazio e o atravesso com a centelha da bobina de indução. A centelha produz um orifício microscópico, mas suficiente para que as moléculas gasosas penetrem no baldo e destruam o vácuo.

Suponhamos que a pequenez das moléculas seja tal que entrem no balão cem milhões por segundo. Nessas condições, quanto tempo creria fosse preciso para que o recipiente se enchesse de ar? Uma hora, um dia, um ano, um século? Era preciso uma eternidade, um tempo tão grande que a imaginação não pode concebé-lo. Seriam necessá­rios mais de 400 milhões de anos, um tempo tal, que, segundo as previsões dos astrônomos, o Sol teria esgotado sua energia calorífica e luminosa e já estaria há muito extinto!

O cálculo é, com efeito, fácil de fazer; Crookes não se engana.

Segundo Johnston Stoney, existe em um centímetro cúbico de ar um sextilhão de moléculas; o balão de Crookes, com 13 centímetros de diâmetro, encerra, portanto, 1,288,252,350,000,000,000,000,000 de moléculas de ar à pressão normal. Quando se diminui a pressão até um milionésimo de atmosfera, o balão fica contendo ainda:

1,288,252,350,000,000,000 de moléculas.

Tudo volta ao primitivo estado, quando entra pelo orifício o que se havia retirado, isto é,

1,288,251,061,747,650,000,000,000 de moléculas.

Se, por hipótese, passam cem milhões por segundo, eis o tempo que duraria o desfile: 12.882.510.617.476.500 segundos ou mais de 12 qua­trilhões de segundos.

214.708.510.291.275 minutos ou mais de 214 trilhões de minutos.

3.578.475.171.521horas ou mais de 3 trilhões de horas.

149.103.132.147 dias ou mais de 149 bilhões de dias.

408.501.731 anos, ou mais de 400 milhões de anos. Mais de 400 milhões de anos!

A realidade é que o vácuo de um balão Crookes se enche em menos de hora e meia, o que prova que a exigüi­dade das partículas é tão grande, que devem passar por segundo, na mais fina abertura, não 100 milhões, mas 300 quintilhões. Que pequenez infinita deve ter essas partículas!

Pois bem, por mais quintessenciada que seja a matéria, por minúscula e impalpável que a Ciência no-la mostre, ela é, ainda, grosseira em relação ao Espírito, que é uma essência, um ser ainda infinitamente mais sutil. É neste sentido que entendemos a palavra imaterial, aplicada à alma; esta é de tal forma imponderável, que não pode ter nenhum ponto de contato com a matéria que conhece­mos na Terra.

Entretanto, constatamos no homem a ligação destes dois elementos: o corpo e a alma. Eles estão unidos de maneira íntima e reagem um sobre o outro, como o demons­tra o testemunho diário dos sentidos e da consciência. Depois do que dissemos da alma, parece haver nisso contra­dição; ela, porém, é mais aparente do que real, porque o homem não é formado só do corpo e da alma, mas ainda de um terceiro princípio intermediário entre um e outro chamado perispírito, isto é, invólucro do Espírito.

Vai compreender-se, em seguida, a necessidade desse mediador fazendo-se o paralelo entre a espiritualidade da alma e a materialidade do corpo.

A alma é imaterial, porque os fenômenos que produz não se podem comparar a qualquer propriedade da matéria. O pensamento, a imaginação, a lembrança não têm forma, nem cor, nem duração, nem maleabilidade; essas produções do Espírito não estão adstritas à lei alguma que reja o mundo físico, elas são puramente espirituais, não se podem medir nem pesar. A alma escapa, por sua natureza, à destruição, pois que se manifesta, em toda sua plenitude, após a desagregação do corpo; é, pois, imaterial e imortal.

O corpo é esse invólucro do princípio pensante, que vemos nascer, crescer e morrer. Os elementos que o com­põem são tirados da matéria que forma o nosso Globo. Depois de demorarem certo tempo, no organismo, cedem lugar a outros que os vêm substituir. Essas operações se renovam até a morte do indivíduo; os átomos, então, que compunham, em último lugar, o corpo humano, são retomados pela circulação da vida e entram em outras combinações, em virtude da grande lei de que nada se cria, nada se perde na Natureza.

Corpo e alma são, portanto, essencialmente distintos: um, notável por suas transformações incessantes; a outra, pela imutabilidade de sua essência. Apresentam qualidades radicalmente opostas, mas verificamos que vivem em per­feita harmonia e exercem influências recíprocas. O ódio, a cólera, a piedade, o amor refletem-se no rosto e imprimem caráter particular à fisionomia. Nas emoções violentas é todo o organismo que se perturba: uma alegria súbita ou uma dor imprevista podem provocar abalos que conduzam à morte. A imaginação age também sobre o físico, com grande violência; é o que demonstram as obras de medicina sobre o assunto, de sorte que, de um lado, estando bem determinados esses efeitos e, do outro, verificando-se a imaterialidade da alma, fica insolúvel para os filósofos o problema da ação mútua da alma sobre o corpo.

Os maiores espíritos aplicaram-se a explicar a ação da alma sobre o corpo, mas nem Descartes, Malebranche, Spinosa ou Leibnitz ou Euler chegaram a uma explicação satisfatória desses fatos.

Segundo Descartes, a alma e o corpo, por sábio desíg­nio da Providência, seguem, em todo o curso da vida, duas linhas paralelas, e, entretanto, sua natureza os torna estranhos um ao outro. Deus modifica a alma, conforme os movimentos do corpo, e dá movimento ao corpo em conseqüência das vontades da alma. Cada substância é, pois, não a causa, mas parte conjuntural dos fenômenos que se manifestam na outra. Eis por que a teoria cartesiana foi chamada pelos historiadores - a hipótese das causas ocasionais.

Segundo Leibnitz, corpo e alma, vivendo separada­mente, receberam tal organização, que as modificações de uma são reproduzidas no outro, mais ou menos como os ponteiros de dois relógios bem regulados, que marcam há mesma hora. Essa harmonia é mais antiga que o Mundo, tem seu fundamento na inteligência divina e daí a denomi­narem, conforme Leibnitz, preestabelecida.

Euler, o matemático, tinha uma teoria muito mais vulgar, a do Influxo físico, que admite a ação direta e recíproca do corpo sobre a alma.

Todos esses sistemas levantam graves objeções e não resistem à crítica. Como conciliar as hipóteses de Descartes e de Leibnitz com o sentimento do nosso eu, de nossa atividade pessoal; com a experiência diária do império que o homem exerce sobre a Natureza e que esta possui sobre o homem? Quem nos persuadirá, quando estendemos o braço, que não somos a causa desse movimento?

Sabemos, por experiência, que o menor ato de nossa vontade, por fugaz que seja, se traduz por um gesto, e quando sentimos uma dor, sinal é que se produziu uma alteração orgânica, e não a intervenção de Deus para infli­gir à alma o sofrimento experimentado pelo corpo.

As doutrinas de Descartes e Leibnitz, absolutamente insuficientes para explicar os fatos, estão, além disso, em contradição com a experiência. A doutrina do influxo físico é menos afastada do senso comum, mas deixa a desejar, porque não oferece prova alguma e avilta a alma, tirando-lhe a imaterialidade. Como se vê, o problema é espinhoso, desde que homens desse valor não puderam resolvê-lo.

Vejamos outros filósofos, que se aproximam de nossa maneira de ver.

Um inglês, Cudworth, imaginou uma substância inter­mediária entre o corpo e a alma, a que ele chamava media­dor plástico e cujo papel consistia em unir o Espírito à matéria, participando da natureza de ambos. Esta teoria poderia ser aceita, porém com algumas modificações, por­que não podemos admitir que a alma, essência indivisível, se alie ao corpo, cedendo parte de sua substância. Além disso, a definição de Cudworth é muito vaga: preferimos a opinião de alguns fisiologistas, quando dizem: Toda ação, quer contínua e inconsciente, quer intermitente e voluntária da alma sobre a matéria ponderável do corpo, se exerce por certas ondulações do fluido imponderável, ondulações que têm por condutor o sistema nervoso, tanto cérebro espinhal como ganglionar.

É esse perfeitamente o nosso pensamento e não pode­mos definir melhor o papel do perispírito, senão assimilan­do-o à ação de um fluido imponderável que exerce sua ação pelos nervos.

A melhor prova da existência do perispírito é mostrar que o homem pode desdobrar-se em certas circunstâncias. Se, de um lado, vê-se o corpo material, e do outro a reprodução exata desse corpo, mas fluídica, não é mais permitida a dúvida.

O perispírito, como veremos a seguir, serve não só para explicar a ação recíproca da alma sobre o corpo, como também para nos fazer compreender qual é a vida do Espírito desprendido da matéria e habitando o espaço.

Até então, só havia idéias vagas sobre o futuro da alma. As religiões e as filosofias espiritualistas contenta­vam-se em afirmar a sua imortalidade, sem dar qualquer esclarecimento sobre o seu modo de vida no além-túmulo. Para uns, a eternidade espiritual passava-se em um paraíso mal definido, onde se encontrariam as delícias reservadas aos eleitos; para outros, o inferno era um lugar terrível, onde as almas passavam por horríveis torturas.

Além disso, as observações da Ciência detinham-se na matéria tangível; daí resultava entre o mundo espiritual e o mundo corporal um abismo que se diria intransponível. Este abismo, os novos descobrimentos e o estudo de fenô­menos pouco conhecidos vêm, em parte, preencher.

Ensina-nos o Espiritismo que as relações entre os dois mundos não são interrompidas, que há permuta cons­tante entre os vivos e os que chamamos mortos. Pelo nascimento, o mundo espiritual fornece almas ao mundo corporal, e pela morte este restitui ao espaço as almas que vieram temporariamente habitar a Terra. Há, pois, numerosos pontos de contacto entre a humanidade e a espiritualidade, e a distância que parecia separar o mundo visível do invisível está consideravelmente diminuída. Se demonstrarmos que esse mundo é formado de matéria como o nosso, que os Espíritos também têm um corpo material, as diferenças que pareciam tão radicais se reduzirão a simples nuanças, que vão do muito ao menos, mas não mais encontraremos chocantes anomalias.

A natureza da alma nos é desconhecida, mas sabemos que ela está envolvida, circunscrita por um corpo fluídico que a torna, depois da morte, um ser distinto e individual.

A alma, segundo Allan Kardec, é o princípio inteli­gente, considerado isoladamente; é a força que age e pensa e que, só como abstração, poderemos considerar isolada da matéria. Revestida de seu invólucro fluídico ou perispí­rito, constitui o ser chamado Espírito, como, revestida do invólucro corporal, constitui o homem. Ora, se bem que em estado de espírito goze de faculdades e propriedades especiais, não cessa de pertencer à humanidade. São, pois, os Espíritos seres semelhantes a nós, visto que cada um de nós se toma Espírito, depois da morte do corpo, e cada Espírito vem novamente a ser homem, depois do nascimento.

Esse invólucro não é de modo algum a alma, porque não pensa; não é mais que uma vestimenta; sem alma, o perispírito, assim como o corpo, não passam de matéria inerte, privada de vida e de sensação. Dizemos matéria, porque, com efeito, o perispírito, posto que de natureza etérea e sutil, não deixa de ser matéria, tanto como os fluidos imponderáveis, e, além disso, matéria da mesma natureza e da mesma origem que a matéria tangível mais grosseira. É o que demonstraremos no 2: capítulo.

A alma não possui essa veste somente em estado de espírito; ela é inseparável desse invólucro que a segue na encarnação e na erraticidade. Durante a vida humana, o fluido perispiritual identifica-se com o corpo e serve de veículo às sensações vindas do exterior e às vontades do Espírito; penetra o corpo em todas as suas partes; mas, com a morte, o perispírito se desprende com a alma, de que partilha a imortalidade.

Poder-se-ia, talvez, contestar a utilidade desse órgão, dizendo-se que a alma pode agir diretamente sobre o corpo e estaria destruída nossa teoria. Mas como nos apoiamos sobre fatos, como nossa convicção é fruto do estudo e da observação, e não uma concepção arbitrária, não depen­de de nós mudá-la. Isto sobressai claramente dos fatos que serão expostos no capítulo seguinte.

CAPÍTULO II

PROVAS DA EXISTÊNCIA DO PERISPÍRITO - SUA UTILIDADE - SEU PAPEL

Entre os numerosos casos de bicorporeidade do ser humano, vamos fazer uma escolha, não só pela abundância da matéria, como para apresentar ao leitor tão-só fenômenos bem verificados e de incontestável certeza. Tomemos aos adversários do Espiritismo a narrativa dessas manifes­tações. Dassier, de que já falamos na terceira parte desta obra, conta a seguinte história, que lhe fora referida du­rante sua passagem pelo Rio de Janeiro:

Foi em 1858; falava-se, ainda, na colônia francesa dessa capital, de uma singular aparição, havida alguns anos antes. Uma família alsaciana, composta de marido, mulher e uma filha menor, estava de vela para o Rio, onde ia reunir-se a patrícios ali estabelecidos.

A travessia foi longa; a mulher adoeceu e, por falta, sem duvida, de cuidados e de alimentação conveniente, sucumbiu antes da chegada. No dia em que morreu, caiu em síncope, ficou muito tempo nesse estado, e quando recuperou os sentidos, disse ao marido, que lhe estava ao lado: - Morro contente, porque sei, agora, que está assegurada a sorte de nossa filha. Venho do Rio de Janeiro, onde encontrei a rua e a casa de nosso amigo Fritz, o carpinteiro. Ele estava no limiar da poria: apresentei-lhe a pequena; estou certa de que, a tua chegada, ele a reconhecerá e a tomará a seu cuidado. - Alguns instantes depois ela expirava. O marido surpreendeu com a narrativa, sem lhe dar, entretanto, importância.

No mesmo dia e à mesma hora, Fritz, o carpinteiro - o alsaciano de que acabo de falar - encontrava-se à soleira da porta de sua casa, no Rio de Janeiro, quando acreditou que vira passar na rua uma de suas compatriotas, tendo nos braços uma menina. Ela o encarava com ar suplicante e parecia apresentar-lhe a criança. A figura era de grande magreza e lembrava os traços de Lota, a mulher do seu amigo e compatriota Schmidt. A expressão do rosto, a singularidade do andar, que se diria mais de fantasma que da realidade, impressionaram vivamente Fritz. Querendo assegurar-6e de que não estava sendo vitima de uma ilusão, chamou um dos seus operários, que trabalhava na loja, e que era também alsaciano e da mesma localidade.

- Olha - disse lhe - não vês passar uma mulher na rua, com uma filha nos braços, e não parece Lota, a mulher do nosso patrício Schmidt?

- Não sei dizer, não distingo bem - respondeu o operário.

Fritz calou-se, mas as diversas circunstancias dessa aparição real ou imaginária gravaram~ fortemente em seu espírito, notadamente a hora e o dia. Algum tempo depois, vê-o chegar seu compatriota Schmdt, trazendo uma criança nos braços é então, em seu espírito, a visita de Lota, e antes que Schmidt tivesse aberto a boca, disse lhe:

- Meu pobre amigo, já sabe tudo; tua mulher morreu durante a travessia e antes de morrer veio apresentar-me sua filha para que eu velasse por ela. Eis a data e a hora.

Eram exatamente o dia e a hora consignados por Schmidt a bordo do navio.

*

Façamos algumas observações. Vemos, primeiro, que o duplo fluídico reproduz, identicamente, os traços do indivíduo no qual o fenômeno se processa. A semelhança é de tal modo frisante que permite a Fritz reconhecer a mulher do amigo, que ele há muito não via.

O segundo caráter a notar é a rapidez com que se move a aparição, pois o momento em que foi vista por Fritz coincide com o da síncope da doente, a bordo do navio.

Terceiro, é preciso reter esta particularidade, a de que a alsaciana estava mergulhada em uma espécie de letargia, enquanto sua alma viajava ao longe.

Para explicar esse fato, os espíritas admitem que o perispírito ou invólucro fluídico da alma pode, em certas circunstâncias, separar-se do corpo, ao qual ele fica, entre­tanto, retido por um cordão fluídico. O perispírito reproduz a forma do indivíduo, porque, como veremos mais adiante, é a ele que devemos a conservação do nosso tipo material e a constituição física do nosso corpo. A alma, nesse caso, goza de parte das faculdades que possui quando está inteiramente desprendida da matéria; assim se explica a rapidez do deslocamento da alsaciana.

O estado doentio ou a síncope não são sempre neces­sários ao desdobramento.

Vejamos outro fato relatado por Gouguenot des Mous­seaux, citado por Dassier:

Robert Bruce, de ilustre família escocesa desse nome, é imediato de um navio; navega ele um dia perto da Terra Nova e, quando se entregava aos cálculos, julga notar seu capitão sentado à sua escrivaninha; olhando com atenção, verifica que a pessoa a quem vê é um estranho, cujo olhar friamente fixado sobre ele o surpreende. O capitão, para junto de quem ele sobe, percebe seu espanto e o interroga.

- Mas quem está em sua escrivaninha? - pergunta Bruce. - Ninguém.

- Sim, está lá um estranho, e como? - Você sonha ou moteja?

- De modo algum. Desça e venha ver.

Desceram e não se viu ninguém na escrivaninha; o navio é revistado em todos os sentidos; nenhum estranho se encontrou.

- Entretanto, quem eu vi escrevia em sua ardósia; sua escrita deve ter ficado lá - acrescentou Bruce.

Examinou-se a lousa; ela tinha estas palavras: steer to the north-west, isto é, governe para noroeste.

- Mas esta escrita é sua ou de alguém de bordo? - Não é!

Pediu-se a todos que escrevessem a mesma frase e nenhuma se assemelhava A da ardósia.

- Pois bem, obedeçamos, e aproemos o navio para noroeste; o vento está bom e permite a experiência.

Três horas depois, o vigia assinalava uma montanha de gelo e via ali um navio de Quebec, desmantelado, cheio de gente, com destino a Liverpool; seus passageiros foram trazidos em chalupas para a embarcação de Bruce.

Quando um dos homens subia para o navio libertador, Bruce estreme­ceu e recuou, muito comovido. Era o estranho que ele vira traçando as palavras na lousa. Narrou ao capitão esse novo incidente.

- Peço escrever steer to the north-west, nesta ardósia - disse o capitão ao recém-vindo, apresentando-lhe o lado onde não havia escrita. O estranho traçou as palavras pedidas.

- Bem. É esta a sua letra? - perguntou o capitão, impressionado com a identidade das duas escritas.

- Mas o senhor mesmo me viu escrever; seria possível duvidar? Como única resposta, o capitão virou a pedra e o estranho ficou confuso, vendo sua letra de ambos os lados.

- Teria o senhor sonhado que escrevia nesta lousa? - perguntou ao autor do escrito o capitão do navio naufragado.

- Não; pelo menos não me lembra

- Que fazia, ao meio-dia, esse passageiro? - indagou o capitão salvador ao seu colega.

- Estando muito fatigado, esse passageiro dormiu profundamente, e, tanto quanto me recordo, isso foi antes do meio-dia. Uma hora depois, ele acordou e me disse: - Capitão, seremos salvos hoje mesmo - e acrescentou: Sonhei que estava a bordo de um navio e que ele vinha em nosso socorro. Descreveu o navio e sua aparelhagem, e foi grande a nossa surpresa quando singrastes para nós e reconhecemos a justeza de sua descrição.

Enfim, o passageiro disse por seu turno:

- O que me parece singular é que aqui tudo me é conhecido e, entretanto, nunca vim aqui.

O desdobramento da personalidade é tão manifesto neste caso como no primeiro; as condições são quase as mesmas: o corpo está profundamente adormecido. Dois reparos, entretanto, nos levam um pouco mais longe, no caminho dos descobrimentos.

Em primeiro lugar, a lembrança do que se passou durante essa viagem da alma parece apagada, ou, pelo menos, só apresenta ao Espírito vagas reminiscências; o passageiro reconhece o navio que visita, sem saber como tal acontece, pois que antes nunca estivera nele. Não é mais um desejo ardente, como no caso de Lota, o que determinou o fenômeno; o fato tem menos nitidez, no ponto de vista da memória, mas apresenta outra particula­ridade que é preciso assinalar.

No exemplo da alsaciana, Fritz vê sua compatriota, ela lhe apresenta a criança com ar suplicante, mas o carpin­teiro seria incapaz de dizer se era uma aparição ou realmen­te se fora à mulher do seu amigo quem ele viu.

No segundo caso, a personagem fluídica escreve; não é, pois, somente vaga aparência, mas uma pessoa tangível, que tem certa força para dirigir um lápis numa ardósia. Este ponto é certamente importante, porque há materiali­zação da segunda personalidade do indivíduo, e vamos ver que, em muitos casos, é assim que sucede.

Eis uma descrição tomada ao Curso de Magnetismo, do Barão du Potet:

O fato seguinte está bem atestado e pode ser classificado entre os fenômenos mais difíceis de explicar, na ordem do Espiritismo. Foi publicado no manual dos amigos da religião, para 1814, por Jung Stilling, ao qual foi narrado pelo Barão de Sulza, Camarista do Rei da Suécia, como uma experiência pessoal.

Conta o Barão que, indo fazer visita a um vizinho, voltou a casa lá para meia-noite, hora em que, no verão, ainda faz claro na Suécia, de forma que se pode ler a mais delicada impressão. - Quando cheguei, diz ele, em meu domínio, meu pai veio a meu encontro, à entrada do parque; vestia, como de hábito, e segurava uma bengala, esculpida por meu irmão. Cumprimentei-o e conversamos muito tempo junto. Chegamos, assim, até a sua casa e à entrada do seu quarto. Quando entrei, vi meu pai despido, deitado na cama, e profundamente adormecido; no mesmo instante, a aparição se desvanecera.

Pouco tempo depois meu pai acordou e olhou-me com ar de interroga­ção. - Meu caro Eduardo, disse-me ele, bendito seja Deus, que te vejo são e salvo; fui atormentado em um sonho, por tua causa; parecia-me que tinhas caído n'água e que estavas prestes a afogar-te. Ora, nesse dia, acrescenta o Barão, eu tinha ido com um dos meus amigos ao rio, para pescar caranguejos, e quase fui arrastado pela correnteza. Contei a meu pai que vira sua aparição à entrada da casa e que tínhamos conversado bastante tempo. Ele me respondeu que se davam muitas vezes fatos semelhantes.

Esta narrativa apresenta circunstância bem notável. O fantasma humano fala com seu filho, durante muito tempo. Vimos, há pouco, que a mão perispiritual do passa­geiro era real, que escrevia; aqui é o órgão vocal que funciona; podemos, pois, concluir que em ambos os casos o perispírito se tinha materializado, pelo menos em parte. O duplo fluídico reproduz absolutamente, como se vê, todas as partes do corpo do paciente, é dele a cópia exata, ou antes, como veremos adiante, o -esboço imponderável sobre o qual se modela o corpo do encarnado.

Essa maneira de ver é tanto mais exata quanto vamos notar na história que se segue a presença simultânea do paciente e do seu duplo, em circunstâncias que nos auxilia­rão a descobrir aspectos característicos desses fenômenos.

VOLTAR ÍNDICEPARTE 1- PARTE 2