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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Alvorada Cristã-Francisco Cândido Xavier

 

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ALVORADA CRISTÃ

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

DITADO PELO ESPÍRITO NEIO LÚCIO

 

ALVORADA CRISTÃ

As páginas de Neio Lúcio, consagradas à mente juvenil em todos os padrões da experiência física, são, em verdade, valioso curso de iluminação espiritual.

Sementeira de princípios renovadores, aqui en­contramos avançadas noções de justiça e bondade para a elevação da vida. E a luta terrestre, em seus fundamentos, ainda mesmo considerada no setor expiatório, resume-se na obra educativa para a eternidade.

A instrução é, sem dúvida, a milagrosa alavanca do progresso. Sem ela, perseveraria a mente humana nos resvaladouros da Ignorância, confinada á miséria, à ociosidade, a indigência e ao infortúnio, através da delinqüência na praça publica e da correção na penitenciária.

Mas não basta esclarecer a inteligência, repetiremos ainda e sempre. É imprescindível aperfeiçoar o coração nos caminhos do bem.

Nero, o tirano, era discípulo de Sêneca, o filósofo.

Tito, o príncipe admirável, que costumava dizer

“perdi o meu dia”, quando a noite o alcançava sem algum gesto excepcional de bondade, mandou mas­sacrar mais de dez mil Israelitas doentes, abatidos e mutilados, depois de arruinar Jerusalém.

Marco Aurélio, o Imperador virtuoso e sábio, consentiu no morticínio de cristãos Indefesos.

Inácio de Loiola, maravilhosamente bem-Inten­cionado, tinha o cérebro cheio de letras quando incentivou a perseguição religiosa.

Marat, o demagogo sanguinário, era jornalista de mérito e intelectual de renome.

Todos os fazedores de guerra, ditadores e revo­lucionários, antigos e modernos, foram Incubados no convívio de professores ilustres, de páginas científi­cas, de livros técnicos ou de universidades famosas.

Razão sem luz pode transformar-Se em simples

Cálculo

Instrução e ciência são portas de acesso à educação e à sabedoria.

Quem apenas conhece nem sempre sabe.

A cultura do espírito vai mais longe: ajuda o homem a converter-se em santuário vivo, através do qual se irradia o Poder Soberano e Misericordioso.

Necessário, pois, semear pensamentos enobrece­dores e santificantes, amparando a mente que reco­meça a lição de aprimoramento Individual.

Esquecer a Infância e a juventude será despre­zar o futuro.

Regozijando-nos, assim, com a tarefa do amigo que nos doou estas páginas, cheias de sentimento paternal e de idealismo superior, saudamos, em companhia dele, a alvorada sublime de amor e paz, que resplandece, com Jesus, para a Terra de aman­hã, regenerada e feliz.

EMMANUEL

Pedro Leopoldo, 21 de junho de 1948.


1

Sigamos com Jesus

Maomé foi valoroso condutor de homens.

Milhões de pessoas curvaram-se-lhe às ordens.

Todavia, deixou o corpo como qualquer mortal

e seus restos foram encerrados numa urna, que évisitada, anualmente, por milhares de curiosos e se­guidores.

Carlos 5º, poderoso imperador da Espanha, sonhou com o domínio de toda a Terra, dispôs de riquezas imensas, governou muitas regiões; entre­tanto, entregou, um dia, a coroa e o manto ao asilo de pó.

Napoleão era um grande homem.

Fez muitas guerras.

Dominou milhões de criaturas.

Deixou o nome inesquecível no livro das nações.

Hoje, porém, seu túmulo é venerado em Paris...

Muita gente faz peregrinação até lá, para visi­tar-lhe os ossos...

Como acontece a Maomé, a Carlos 5º e a Napoleão, os maiores heróis do mundo são lembrados em monumentos que lhes guardam os despojos.

Com Jesus, todavia, é diferente.

No túmulo de Nosso Senhor, não há sinal de cinzas humanas.

Nem pedrarias, nem mármores de preço, com frases que indiquem, ali, a presença da carne e do sangue.

Quando os apóstolos visitaram o sepulcro, na gloriosa manhã da Ressurreição, não havia aí nem luto, nem tristeza.

Lá encontraram um mensageiro do reino espi­ritual que lhes afirmou: “Não está aqui.”

E o túmulo está aberto e vazio, há quase dois mil anos.

Seguindo, pois, com Jesus, através da luta de cada dia, jamais encontraremos a angústia da morte e, sim, a vida incessante.

No caminho de notáveis orientadores do mundo poderemos encontrar formosos espetáculos da glória passageira; contudo, é muito difícil não terminar­mos a experiência em desilusão e poeira.

Somente Jesus oferece estrada invariável para a Ressurreição Divina.

Quem se desenvolve, portanto, com o exemplo e com a palavra do Mestre, trabalhando por revelar bondade e luz, em si mesmo, desde as lutas e ensi­namentos do mundo, pode ser considerado cidadão celeste.


2

Na direção do bem

O Senhor tudo criou na direção do bem.

Todas as criaturas, por isto, são chamadas a produzir proveitosamente.

A erva tenra sustenta os animais.

A fonte oculta socorre o inseto humilde.

A árvore é abençoada companheira dos homens.

­A flor produzirá fruto.

O fruto dar-nos-á mesa farta.

O rio distribui as águas.

A chuva lava o céu e sacia a terra sedenta.

A pedra faz o alicerce de nossa casa.

A boa palavra revela o bom caminho.

Como desconhecer os santos propósitos da vida, se a natureza que a sustenta reflete os sábios desíg­nios da Providência?

Grande escola para o nosso espírito, a Terra éum livro gigantesco em que podemos ler a mensa­gem de amor universal que o Pai Celeste nos envia.

Desde a gota de orvalho que alimenta o cacto espinhoso, à luz do Sol que brilha no alto para todos os seres, podemos sentir o apelo da Infinita Sabedoria ao serviço de cooperação na felicidade, na paz e na alegria dos semelhantes.

Todo homem e toda mulher nascem no mundo

para tarefas santificantes, segundo a Divina Lei.

Com alegria, o bom administrador governa os interesses do povo.

Com alegria, o bom lavrador ara o solo e pro­tege a sementeira.

O homem que semeia no chão, garantindo a subsistência das criaturas, é irmão daquele que dirige o pensamento das nações para o conhecimento divino.

A mulher que recebe homenagens pelas suas virtudes públicas é irmã daquela que, na intimidade do lar, se sacrifica pela criancinha doente.

Deus conhece as pessoas pelo que produzem, assim como nós conhecemos as árvores pelos frutos que nos estendem.

Em razão disto, os homens bons são amados e respeitados.

A presença deles atrai o carinho e a venera­ção dos semelhantes. Os maus, todavia, são porta­dores de ações e palavras indesejáveis e toda gente lhes evita o convívio, tanto quanto nos afastamos das plantas espinhosas e ingratas.

O homem bom compreende que a vida lhe pede a bênção do serviço e levanta-se cada manhã, pen­sando: — “Que belo dia para trabalhar!”o-

O mau, porém, ergue-se de mau humor. Não sabe sorrir para os que o cercam e costuma ex­clamar: — “Dia terrível! Que destino cruel! De­testo o trabalho e odeio a vida!”

Um homem, qual esse, precisa de auxílio dos homens bons, porque em não se dedicando ao ser­viço digno será realmente muito infeliz.


3

Pequena história

Um dia, a Gota dÁgua, o Raio de Luz, a Abe­lha e o Homem Preguiçoso chegaram ao Trono de Deus.

O Todo-Poderoso recebeu-os, com bondade, e perguntou pelo que faziam.

A Gota dÁgua avançou e disse:

— Senhor, eu estive num terreno quase deser­to, auxiliando uma raiz de laranjeira. vi muitas árvores sofrendo sede e diversos animais que pas­savam, aflitos, procurando mananciais. Fiz o que pude, mas venho pedir-te outras Gotas dÁgua que me ajudem a socorrer quantos necessitam de nós.

O Pai sorriu, satisfeito, e exclamou:

— Bem-aventurada sejas pelo entendimento de minhas obras. Dar-te-ei os recursos das chuvas e das fontes.

Logo após, o Raio de Luz adiantou-se e falou:

— Senhor, eu desci... desci... e encontrei o fundo de um abismo. Nesse antro, combati a sombra, quanto me foi possível, mas notei a presença de muitas criaturas suplicando claridade. Venho ao Céu rogar-te outros Raios de Luz que comigo cooperem na libertação de todos aqueles que, no mundo, ainda sofrem a pressão das trevas.

O Pai, contente, respondeu:

— Bem-aventurado sejas pelo serviço à Cria­ção. Dar-te-ei o concurso do Sol, das lâmpadas, dos livros iluminados e das boas palavras que se en­contram na Terra.

Depois disso, a Abelha explicou-se:

— Senhor, tenho fabricado todo o mel, ao al­cance de minhas possibilidades. Mas vejo tantas crianças fracas e doentes que te venho implorar mais flores e mais Abelhas, a fim de aumentar a produção...

O Pai, muito feliz, abençoou-a e replicou:

— Bem-aventurada sejas pelos benefícios que prestaste. Conceder-te-ei novos jardins e novas companheiras.

Em seguida, o Homem Preguiçoso foi chamado a falar.

Fez uma cara desagradável e informou:

— Senhor, nada consegui fazer. Por todos os lados, encontrei a inveja e a perseguição, o ódio e a maldade. Tive os braços atados pela ingratidão dos meus semelhantes. Tanta gente má permanecia em meu caminho que, em verdade, nada pude fazer.

O Pai bondoso, com expressão de descontenta­mento, exclamou:e­

— Infeliz de ti, que desprezaste os dons que te dei. Adormeceste na preguiça e nada fizeste. Os seres pequeninos e humildes alegraram meu Trono com o relatório de seus trabalhos, mas tua boca sabe apenas queixar, como se a inteligência e as mãos que te confiei para nada valessem. Retira-te! os filhos inúteis e ingratos não devem buscar-me a presença. Regressa ao mundo e não voltes a pro­curar-me enquanto não aprenderes a servir.

A Gota dÁgua regressou, cristalina e bela.

O Raio de Luz tornou aos abismos, brilhando cada vez mais.

A Abelha desceu zumbindo, feliz.

O Homem Preguiçoso, porém, retirou-se muito triste.


4

Prêmio ao sacrifício

Três irmãos dedicados a Jesus leram no Evan­gelho que cada homem receberá sempre, de acordo com as próprias obras, e prometeram cumprir as lições do Mestre.

O primeiro colocou-se na indústria do fio de algodão e, de tal modo se aplicou ao serviço que, em breve, passou à condição de interessado nos lu­cros administrativos. Dentro de vinte e cinco anos, era o chefe da organização e adquiriu títulos de verdadeiro benfeitor do povo. Ganhava dinheiro com imensa facilidade e socorria infortunados e sO­fredores. Dividia o trabalho equitativamente e dis­tribuía os lucros com justiça e bondade.

O segundo estudou muito tempo e tornou-se juiz famoso. Embora gozasse do respeito e da estima dos contemporâneos, jamais olvidou os com­promissos que assumira à frente do Evangelho. Defendeu os humildes, auxiliou os pobres e libertou muitos prisioneiros perseguidos pela maldade. De juiz tornou-se legislador e cooperou na confecção de leis benéficas e edificantes. Viveu sempre honrado, rico, feliz, correto e digno.

O terceiro, porém, era paralítico. Não podia usar a inteligência com facilidade. Não poderia comandar uma fábrica, nem dominar um tribunal. Tinha as pernas mirradas. O leito era a sua residência. Lembrou, contudo, que poderia fazer um serviço de oração e começou a tarefa pela humilde mulher que lhe fazia a limpeza doméstica.

Viu-a triste e lacrimosa e procurou conhecer-lhe as mágoas com discrição e fraternidade. Confortou-a com ternura de irmão. Convidou-a a orar e pediu para ela as bénçãos divinas.

Bastou isto e, em breve, trazidos pela servidora reconhecida, outros sofredores vinham rogar-lhe o concurso da prece. O aposento singelo encheu-se de necessitados. Orava em companhia de todos, oferecia-lhes o sorriso de confiança na bondade celeste. Comentava os benefícios da dor, expunha suas esperanças no Reino Divino. Dava de si mes­mo, gastando emoções e energias no santo serviço do bem. Escrevia cartas inúmeras, consolando viú­vas e órfãos, doentes e infortunados, insuflando-lhes paz e coragem. Comia pouco e repousava menos. Tanto sofreu com as dores alheias que chegou a esquecer-se de si mesmo e tanto trabalhou que per­deu o dom da vista. Cego, contudo, não ficou so­zinho. Prosseguiu colaborando com os sofredores, através da oração, ajudando-os, cada vez mais.

Morreram os três irmãos, em idade avançada, com pequenas diferenças de tempo.

Quando se reuniram, na vida espiritual, veio um Anjo examinar-lhes as obras com uma balança.

O industrial e o juiz traziam grande bagagem, que se constituía de várias bolsas, recheadas com o dinheiro e com as sentenças que haviam distri­buído em benefício de muitos. O servidor da prece trazia apenas pequeno livro, onde costumava escre­ver suas rogativas.

O primeiro foi abençoado pelo conforto que es­palhou com os necessitados e o segundo foi tam­bém louvado pela justiça que semeara sabiamente. Quando o Anjo, porém, abriu o livro do ex-paralí­tico, dele saiu uma grande luz, que tudo envolveu numa coroa resplandecente. A balança foi incapaz de medir-lhe a grandeza.

Então, o Mensageiro falou-lhe, feliz:

— Teus irmãos são benditos na Casa do Pai pelos recursos que distribuíram, em favor do próximo, mas, em verdade, não é muito difícil ajudar com o dinheiro e com a faina que se multiplicam facilmente no mundo. Sê, porém, bem-aventurado, porque deste de ti mesmo, no amor santificante. Gastaste as mãos, os olhos, o coração, as forças, os sentimentos e o tempo a benefício dos semelhantes e a Lei do Sacrifício determina que a tua moradia seja mais alta. Não transmitiste apenas os bens da vida: irradiaste os dons de Deus.

E o servidor humilde do povo foi conduzido a um céu mais elevado, de onde passou a exercer au­toridade sobre muita gente.


5

O servo feliz

Certo dia, chegaram ao Céu um Marechal, um Filósofo, um Político e um Lavrador.

Um Emissário Divino recebeu-os, em elevada esfera, a fim de ouvi-los.

O Marechal aproximou-se, reverente, e falou:

— Mensageiro do Comando Supremo, venho da Terra distante. Conquistei muitas medalhas de mé­rito, venci numerosos inimigos, recebi várias home­nagens em monumentos que me honram o nome.

— Que deseja em troca de seus grandes servi­ços? — indagou o Enviado.

— Quero entrar no Céu.

O Anjo respondeu sem vacilar:

— Por enquanto, não pode receber a dádiva. Soldados e adversários, mulheres e crianças cha­mam-no insistentemente da Terra. Verifique o que alegam de sua passagem pelo mundo e volte mais tarde.

O Filósofo acercou-se do preposto divino e

— Anjo do Criador Eterno, venho do acanha­do círculo dos homens. Dei às criaturas muita ma­téria de pensamento. Fui laureado por academias diversas. Meu retrato figura na galeria dos dicio­nários terrestres.

— Que pretende pelo que fez? — perguntou o Emissário.

— Quero entrar no Céu.

— Por agora, porém — respondeu o mensa­geiro sem titubear —, não lhe cabe a concessão. Muitas mentes estão trabalhando com as idéias que você deixou no mundo e reclamam-lhe a presença, de modo a saberem separar-lhe os caprichos pes­soais da inspiração sublime. Regresse ao velho posto, solucione seus problemas e torne oportuna-mente.

O Político tomou a palavra e acentuou:

— Ministro do Todo-Poderoso, fui administra­dor dos interesses públicos. Assinei várias leis que influenciaram meu tempo. Meu nome figura em muitos documentos oficiais.

— Que pede em compensação? — perguntou o Missionário do Alto.

— Quero entrar no Céu.

O Enviado, no entanto, respondeu, firme:

— Por enquanto, não pode ser atendido. O povo mantém opiniões divergentes a seu respeito. Inúmeras pessoas pronunciam-lhe o nome com amargura e esses clamores chegam até aqui. Retorne ao seu gabinete, atenda às questões que lhe interessam a paz Íntima e volte depois.

Aproximou-se, então, o Lavrador e falou, hu­milde:

— Mensageiro de Nosso Pai, fui cultivador da terra... plantei o milho, o arroz, a batata e o feijão. Ninguém me conhece, mas eu tive a glória de conhecer as bênçãos de Deus e recebê-las, nos raios do Sol, na chuva benfeitora, no chão abençoado, nas sementes, nas flores, nos frutos, no amor e na ter­nura de meus filhinhos...

O Anjo sorriu e disse:

— Que prêmio deseja?

O Lavrador pediu, chorando de emoção:

— Se Nosso Pai permitir, desejaria voltar ao campo e continuar trabalhando. Tenho saudades da contemplação dos milagres de cada dia... A luz surgindo no firmamento em horas certas, a flor desabrochando por si mesma, o pão a multiplicar-se!... Se puder, plantarei o solo novamente para ver a grandeza divina a revelar-se no grão, trans­formado em dadivosa espiga... Não aspiro a outra felicidade senão a de prosseguir aprendendo, se­meando, louvando e servindo!...

O Mensageiro Espiritual abraçou-o e exclamou, chorando igualmente, de júbilo:

— Venha comigo! O Senhor deseja vê-lo e ou­vi-lo, porque diante do Trono Celestial apenas com­parece quem procura trabalhar e servir sem re­compensa.


6

Rebeldia

O pequeno rebelde amava a Mãezinha viúva com entranhado amor; entretanto, iludido pela indisciplina, dava ouvido, aos conselhos perversos.

Estimava a leitura de episódios sensacionais, em que homens revoltados formam quadrilhas de malfeitores, nas cidades grandes, e, a qualquer pá­gina edificante, preferia o folhetim com aventuras desagradáveis ou criminosas. Engolfou-se em tan­tas histórias de gente má que, embora a palavra materna o convidasse ao trabalho digno, trazia sem­pre respostas negativas e rudes na ponta da língua.

— Filho — exclamava a senhora paciente —, homem de bem acomoda-se no serviço.

— Eu não! — replicava, zombeteiro.

— Vamos à oficina. O chefe prometeu ceder-te um lugar.

— Não vou! não vou!...

— Mas já deixaste a escola, meu filho. É tempo de crescer e progredir nos deveres bem cumpridos.

— Não fui à escola, a fim de escravizar-me. Tenho inteligência. Ganharei com menor esforço.

E enquanto a genitora costurava, até tarde, de modo a manter a casa modesta, o filho, já rapaz, vivia habitualmente na rua movimentada. Tomava alcoólicos em excesso e entregava-se a companhias perigosas que, pouco a pouco, lhe degradaram o caráter.

Chegava a casa, embriagado, altas horas da noite, muita vez conduzido por guardas policiais.

Vinha a devotada Mãe com o socorro de todos os instantes e rogava-lhe, no outro dia:

— Filho, trabalhemos dignamente. Todo tempo é adequado à retificação dos nossos erros.

Atrevido e ingrato, resmungava:

— A senhora não me entende. Cale-se. Só fala em dever, dever, dever...

A pobre costureira pedia-lhe calma, juízo e chorava, depois, em preces.

Avançando no vicio, o rapaz começou a às escondidas. Assaltava instituições comerciais, onde sabia fácil o acesso ao dinheiro; e quando a Mãezinha, adivinhando-lhe as faltas, tentou aconselhá-lo, gritou:

— Mãe, não preciso de suas observações! Deixá-la-ei em paz e voltarei, mais tarde, com

grande fortuna. Dar-lhe-ei casa, roupa e bem-estar com fartura. A senhora tem o pensamento preso a obri­gações porque, desde cedo, vem atravessando vida miserável.

Assim dizendo, fugiu para a via pública e não regressou ao lar.

Ninguém mais soube dele. Ausentara-se, defi­nitivamente, em direção a importante metrópole, alimentando o propósito de furtar recursos alheios, de maneira a voltar muito rico ao convívio maternal.

Passou o tempo.

Um, dois, três, quatro, cinco anos...

A Mãezinha, contudo, não perdeu a esperança de reencontrá-lo.

Certo dia, a imprensa estampou nos jornais o retrato de um ladrão que se tornava famoso pela audácia e inteligência.

A costureira reconheceu nele o filho e tocou para a cidade que o abrigava.

A policia não lhe conhecia o endereço e, porque fosse difícil localizá-lo rapidamente, a senhora tomou ­quarto num hotel, a fim de esperar.

Na terceira noite em que aí se encontrava, notou que um homem embuçado lhe penetrava o aposento às escuras. Aproximou-se apressado para surripiar-lhe a bolsa. Ela tossiu e ia gritar por socorro, quando o ladrão, temendo as conseqüências, lhe agarrou a garganta e estrangulou-a.

Nos estertores da morte, a costureira reconhe­ceu a presença do filho e murmurou, debilmente:

— Meu... meu... filho...

Alucinado, o rapaz fez luz, identificou a Mãezinha já morta e caiu de joelhos, gritando de dor selvagem.

A desobediência conduzira-o, progressivamente, ao crime e à loucura.


7

O grande príncipe

Um rei oriental, poderoso e sábio, achando-se envelhecido e doente, reuniu os três filhos, deu a cada um deles dois camelos carregados de ouro, prata e pedras preciosas e determinou-lhes gastar esses tesouros, em viagens pelo reino, durante três meses, com a obrigação de voltarem, logo após, a fim de que ele pudesse efetuar a escolha do prín­cipe que o sucederia no trono.

Findo o prazo estabelecido, os jovens regressaram à casa paterna.

Os dois mais velhos exibiam mantos riquíssi­mos e chegaram com enorme ruido de carruagens, mas o terceiro vinha cansado e ofegante, arriman­do-se a um bordão qual mendigo, despertando a ironia e o assombro de muita gente.

O rei bondoso abençoou-os discretamente e dispôs-se a ouvi-los, perante compacta multidão.

O primeiro aproximou-se, fez larga reverência, e notificou:

— Meu pai e meu soberano, viajei em todo o centro do País e adquiri, para teu descanso, um admirável palácio, onde teu nome será venerado para sempre. Comprei escravos vigorosos que te sirvam e reuni, nesse castelo, digno de ti, todas as maravilhas de nosso tempo. Dessa moradia resplan­decente, poderás governar sempre honrado, forte e feliz.

O monarca pronunciou algumas palavras de agradecimento, mostrou amoroso gesto de aprova­ção e mandou que o segundo filho se adiantasse:

— Meu pai e meu rei! — exclamou, contente — trago-te a coleção de tapetes mais ricos do mundo. Dezenas de pessoas perderam o dom da vista, a fim de tecê-los. Aproxima-se da cidade uma caravana de vinte camelos, carregando essas preciosidades que te ofereço, ó augusto dirigente, para revelares tua fortuna e poder!...

O monarca expressou gratidão numa frase carinhosa e recomendou que o mais moço tomasse a palavra.

O filho mais novo, alquebrado e mal vestido, ajoelhou-se e falou, então:

— Amado pai, não trouxe qualquer troféu para o teu trono venerável e glorioso... Viajei pela terra que o Supremo Senhor te confiou, de NortE a Sul e de Leste a Oeste, e vi que os súditos esperam de teu governo a paz e o bem-estar, tanto quanto o crente aguarda a felicidade da Proteção do Céu... Nas montanhas, encontrei a febre devorando corpos mal abrigados e movimentei médi­cos e remédios, em favor dos sofredores. Ao Norte, vi a ignorância dominando milhares de meninos e jovens desamparados e instalei escolas em nome de tua administração justiceira. A Oeste, nas regiões pantanosas, fui surpreendido por bandos de lepro­sos e dei-lhes conveniente asilo em teu nome. Nas cidades do Sul, notei que centenas de mulheres e crianças são vilmente exploradas pela maldade hu­mana e iniciei a construção de oficinas em que o trabalho edificante as recolha. Nas fronteiras, conheci inúmeros escravos de ombros feridos, amar­gurados e doentes, e libertei-os, anunciando-lhes a magnanimidade de tua coroa!...

A comoção interrompeu-o. Fez-se grande si­lêncio e viu-se que o velho soberano mostrava os olhos cheios de lágrimas.

O rapaz côbrou novo ânimo e terminou:

— Perdoa-me se entreguei teu dinheiro aos necessitados e desculpa-me se regresso à tua pre­sença envolvido em extrema pobreza, por haver co­nhecido, de perto, a miséria, a enfermidade, a igno­rância e a fome nos domínios que o Céu conferiu às tuas mãos benfeitoras... A única dádiva que te trago, amado pai, é o meu coração reconhecido pelo ensinamento que me deste, permitindo-me contemplar o serviço que me cabe fazer... Não desejo descansar enquanto houver sofrimento neste reino, porque aprendi contigo que as necessidades dos filhos do povo são iguais às dos filhos do rei!...

O velho monarca, em pranto, muito trêmulo, desceu do trono, abraçou demoradamente o filho es­farrapado, retirou a coroa e colocou-a sobre a fronte —dele, exclamando, solene:

— Grande Príncipe: Deus, o Eterno Senhor te abençoe para sempre! É a ti que compete o direito de governar, enquanto viveres.

A multidão aplaudiu, delirando de júbilo, en­quanto o jovem soberano, ajoelhado, soluçava de emoção e reconhecimento.


8

O juiz reto

Ao tribunal de Eliaquim ben Jefté, juiz res­peitável e sábio, compareceu o negociante Jonatan

ben Caiar arrastando Zorobabel, miserável mendigo.

— Este homem — clamou o comerciante, fu­rioso — impingiu-me um logro de vastas propor­ções! Vendeu-me um colar de pérolas falsas, por cinco peças de ouro, asseverando que valiam cinco mil. Comprei as jóias, crendo haver realizado ex­celente negócio, descobrindo, afinal, que o preço delas é inferior a dois ovos cozidos. Reclamei dire­tamente contra o mistificador, mas este vagabundo já me gastou o rico dinheiro. Exijo para ele as penas da justiça! É ladrão reles e condenável!...

O magistrado, porém, que cultuava a Justiça Suprema, recomendou que o acusado se pronuncias­se por sua vez:

— Grande juiz — disse ele, timidamente —, reconheço haver transgredido os regulamentos que nos regem. Entretanto, tenho meus dois filhos estirados na cama e debalde procuro trabalho digno, pois mo recusam sempre, a pretexto de minha idade e de minha pobre apresentação. Realmente, enganei o meu próximo e sou criminoso, mas prometo res­gatar meu débito logo que puder.

O juiz meditou longamente e sentenciou:

— Para Zorobabel, o mendigo, cinco bastonadas entre quatro paredes, a fim de que aprenda a sofrer honestamente, sem assalto à bolsa dos semelhantes, e, para Jonatan, o mercador, vinte bastonadas, na praça pública, de modo a não mais abusar dos humildes.

O negociante protestou, revoltado:

— Que ouço? Sou vítima de um ladrão e devo pagar por faltas que não cometi? Iniqüidade! ini­qüidade!...

O magistrado, todavia, bateu forte com um martelo sobre a mesa, chamando a atenção dos presentes, e esclareceu, em voz alta:

— Jonatan ben Caiar, a justiça verdadeira não reside na Terra para examinar as aparências. Zorobabel, o vagabundo, chefe de uma família infeliz, furtou-te cinco peças de ouro, no propósito de socorrer os filhos desventurados, porém, tu, por tua vez, tentaste roubar dele, valendo-te do infortúnio que o persegue, apoderando-te de um objeto que acreditaste valer cinco mil peças de ouro ao preço irrisório de cinco. Quem é mais nocivo à sociedade, perante Deus: o mísero esfomeado que rouba um pão, a fim de matar a fome dos filhos, ou o homem já atendido pela Bondade do Eterno, com os dons da fortuna e da habilidade, que absorve para si uma padaria inteira, a fim de abusar, cal­culadamente, da alheia indigência? Quem furta por necessidade pode ser um louco, mas quem acumula riquezas, indefinidamente, sem movimentá-las no trabalho construtivo ou na prática do bem, com absoluta despreocupação pelas angústias dos po­bres, muita vez passará por inteligente e sagaz, aos olhos daqueles que, no mundo, adormeceram no egoísmo e na ambição desmedida, mas é malfeitor diante do Todo-Poderoso que nos julgará a todos, no momento oportuno.

E, sob a vigilância de guardas robustos, Zo­robabel tomou cinco bastonadas em sala de portas lacradas, para aprender a sofrer sem roubar, e Jo­natan apanhou vinte, na via pública, de modo a não mais explorar, sem escrúpulos, a miséria, a simpli­cidade e a confiança do povo.


9

O ricaço distraído

Existiu um homem devoto que chegou ao Céu e, sendo recebido por um Anjo do Senhor, implorou, enlevado:

— Mensageiro Divino, que devo fazer para vir morar, em definitivo, ao lado de Jesus?

— Faze o bem — informou o Anjo — e volta mais tarde.

— Posso rogar-te recursos para semelhante missão?

— Pede o que desejas.

— Quero dinheiro, muito dinheiro, para socor­rer o meu próximo.

O emissário estranhou o pedido e considerou:

— Nem sempre o ouro é o auxiliar mais efi­ciente para isso.

— Penso, contudo, meu santo amigo, que, sem ouro, é muito difícil praticar a caridade.

— E não temes as tentações do caminho?

— Não.

— Terás o que almejas — afirmou o men­sageiro —, mas não te esqueças de que o tesouro de cada homem permanece onde tem o coração, porque toda alma reside onde coloca o pensa­mento. Tuas possibilidades materiais serão mul­tiplicadas. No entanto, não olvides que as dádi­vas divinas, quando retidas despropositadamen­te pelo homem, sem qualquer proveito para os semelhantes, transformam-no em prisioneiro delas. A lei determina sejamos escravos dos ex­cessos a que nos entregarmos.

Prometeu o homem exercer a caridade, ser­vir extensamente e retornou ao mundo.

Os Anjos da Prosperidade começaram, então, a ajudá-lo.

Multiplicaram-lhe, de início, as peças de roupa e os pratos de alimentação; todavia, o devoto já remediado suplicou mais roupas e mais alimentos. Deram-lhe casa e haveres. Longe, contudo, de praticar o bem, considerava sempre escassos os dons que possuia e rogou mais casas e mais haveres. Trouxeram-lhe rebanhos e chá-caras, mas o interessado em subir ao paraíso pela senda da caridade, temendo agora a miséria, im­plorou mais rebanhos e mais chácaras. Não cedia

um quarto, nem dava uma sopa a ninguém, de­clarando-se sem recursos para auxiliar os necessitados e esperava sempre mais, a fim de distri­buir algum pão com eles. No entanto, quanto mais o Céu lhe dava, mais exigia do Céu.

De espontâneo e alegre que era, passou a ser desconfiado, carrancudo e arredio.

Receando amigos e inimigos, escondia gran­des somas em caixa forte, e quando envelheceu, de todo, veio a morte, separando-o da imensa fortuna.

Com surpresa, acordou em espírito, deitado no cofre grande.

Objetos preciosos, pedaços de ouro e prata e vastas pilhas de cédulas usadas serviam-lhe de leito. Tinha fome e sede, mas não podia servir-se das moedas; queria a liberdade, porém, as notas de banco pareciam agarrá-lo, à maneira do visco retentor de pássaro cativo.

— Santo Anjo! — gritou, em pranto —vem! Ajuda-me a partir, em direção à Casa Celestial!...

O mensageiro dignou-se baixar até ele e, reparando-lhe o sofrimento, exclamou:

— É muito tarde para súplicas! Estás sufo­cado pela corrente de facilidades materiais que o Senhor te confiou, porque a fizeste rolar tão sômente em torno de ti, sem qualquer benefício para os irmãos de luta e experiencia...

— E que devo fazer — implorou o infeliz —para retomar a paz e ganhar o paraíso?

O Anjo pensou, pensou... e respondeu:

- Espalha com proveito as moedas que ajuntaste inutilmente, desfaze-te da terra vasta que retiveste em vão, entrega à circulação do bem todos os valores que recebeste do Tesouro Divino e que amontoaste em derredor de teus pós, aten­dendo ao egoísmo, à vaidade, à avareza e àambição destrutiva e, depois disso, vem a mim para retomarmos o entendimento efetuado há sessenta anos...

Reconhecendo, porém, o homem que já não dispunha de um corpo de carne para semelhante serviço, começou a gritar e blasfemar, como se o inferno estivesse morando em sua própria cons­ciência.


10

O burro de carga

No tempo em que não havia automóveis, na cocheira de famoso palácio real um burro de carga curtia imensa amargura, em vista das pi­lhérias e remoques dos companheiros de apartamento.

Reparando-lhe o pêlo maltratado, as fundas cicatrizes do lombo e a cabeça tristonha e humilde, aproximou-se formoso cavalo árabe, que se fizera detentor de muitos prêmios, e disse, orgulhoso:

— Triste sina a que recebeste! Não invejas minha posição nas corridas? Sou acariciado por mãos de princesas e elogiado pela palavra dos reis!

— Pudera! exclamou um potro de fina origem inglesa — como conseguirá um burro entender o brilho das apostas e o gosto da caça?

O infortunado animal recebia os sarcasmos, resignadamente.

Outro soberbo cavalo, de procedência hún­gara, entrou no assunto e comentou:

— Há dez anos, quando me ausentei de pas­tagem vizinha, vi este miserável sofrendo rudemente nas mãos de bruto amansador. É tão covarde que não chegava a reagir, nem mesmo com um coice. Não nasceu senão para carga e pancadas. É vergonhoso suportar-lhe a companhia.

Nisto, admirável jumento espanhol acercou-se do grupo, e acentuou sem piedade:

— Lastimo reconhecer neste burro um pa­rente próximo. É animal desonrado, fraco, inú­til... Não sabe viver senão sob pesadas disci­plinas. Ignora o aprumo da dignidade pessoal e desconhece o amor próprio. Aceito os deveres que me competem até o justo limite; mas, se me constrangem a ultrapassar as obrigações, re­cuso-me à obediência, pinoteio e sou capaz de matar.

As observações insultuosas não haviam ter­minado, quando o rei penetrou o recinto, em companhia do chefe das cavalariças.

— Preciso de um animal para serviço de grande responsabilidade — informou o monar­ca —, animal dócil e educado, que mereça abso­luta confiança.

O empregado perguntou:

— Não prefere o árabe, Majestade?

Não, não — falou o soberano — é muito altivo e só serve para corridas em festejos oficiais sem maior importância.

— Não quer o potro inglês?

— De modo algum. É muito irrequieto e não vai além das extravagâncias da caça.

— Não deseja o húngaro?

— Não, não. É bravio, sem qualquer edu­cação. É apenas um pastor de rebanho.

— O jumento serviria? — insistiu o servi­dor atencioso.

— De maneira nenhuma. É manhoso e não merece confiança.

Decorridos alguns instantes de silêncio, o so­berano indagou:

— Onde está o meu burro de carga?

O chefe das cocheiras indicou-o, entre os demais.

O próprio rei puxou-o carinhosamente para fora, mandou ajaezá-lo com as armas resplandecentes de sua Casa e confiou-lhe o filho, ainda criança, para longa viagem.

Assim também acontece na vida. Em todas as ocasiões, temos sempre grande número de amigos, de conhecidos e companheiros, mas so­mente nos prestam serviços de utilidade real aqueles que já aprenderam a suportar, servir e sofrer, sem cogitar de si mesmos.


11

A lição inesquecível

Hilda, menina abastada, diariamente dirigia más palavras à pequena vendedora de doces que

lhe batia humildemente à porta da casa.

— Que vergonha! De bandeja! de esquina a esquina! Vai-te daqui! — gritava, sem razão.

A modesta menina se punha pálida e trêmula.

Entrementes, a dona da casa, tentando educar a filha, vinha ao encontro da pequena humilhada e dizia, bondosa:

— Que doces tão perfeitos! Quem os fez assim tão lindos?

A mocinha, reanimada, respondia, contente:

— Foi a mamãe.

A generosa senhora comprava sempre alguma coisa e, em seguida, recomendava à filha:

- Hilda, não brinques com o destino. Nunca expulses o necessitado que nos procura. Quem sabe o que sucederá amanhã? Aqueles que socorremos serão provavelmente os nossos benfeitores.

A menina resmungava e, à noite, ao jantar, o pai secundava os conselhos maternos, acrescentando:

- Não zombes de ninguém, minha filha! o trabalho, por mais humilde, é sempre respeitável e edificante. Por certo, dolorosas necessidades impelirão uma criança a vender doces, de porta em porta.

Hilda, contudo, no dia seguinte, fustigava a vendedora, exclamando:

- Fora daqui! Bruxa! bruxa!...

A mãe devotada acolhia a pequena descalça e repetia à filha as advertências carinhosas da véspera.

Correu o tempo e, depois de quatro anos, o quadro da vida se modificara.

O paizinho de Hilda adoeceu e debalde os médicos procuraram salvá-lo. Morreu numa tarde calma, deixando o lar vazio.

A viúva recolheu-se ao leito extremamente abatida e, com as despesas enormes, em breve a pobreza e o desconforto invadiram-lhe a residência. A pobre senhora mal podia mover-se.

Privações chegaram em bando. A menina, anteriormente abastada, não podia agora comprar nem mesmo um par de sapatos.

Aflita por resolver a angustiosa situação, certa noite Hilda chorou muitíssimo, lembrando-se do papai. Dormiu, lacrimosa, e sonhou que ele vinha do Céu confortá-la. Ouviu-o dizer, perfeitamente:

- Não desanimes, minha filha! vai trabalhar! Vende doces para auxiliar a mamãe!...

Despertou, no dia imediato, com o propósito firme de seguir o conselho.

Ajudou a mãezinha enferma a fazer muitos quadrinhos de doce de leite e, logo após, saiu a vendê-los. Algumas pessoas generosas compravam-nos com evidente intuito de auxiliá-la; entretanto, outras criaturas, principalmente meninos perversos, gritavam-lhe aos ouvidos:

- Sai daqui! Bruxa de bandeja!...

Sentia-se triste e desalentada, quando bateu à porta de uma casa modesta. Graciosa jovem atendeu.

Ah! que surpresa! era a menina pobre que costumava vender cocadas noutro tempo. Estava crescidinha, bem vestida e bonita.

Hilda esperou que ela a maltratasse por vingança, mas a jovem humilde fitou nela os grandes olhos, reconheceu-a, compreendeu-lhe a nova situação e exclamou, contente:

- Que doces tão perfeitos! Quem os fez assim tão lindos?

A interpelada lembrou os ensinamentos maternos de anos passados e informou:

- Foi a mamãe.

A ex-vendedora comprou quantos quadrinhos restavam na bandeja e abraçou-a com sincera amizade.

Desse dia em diante, a menina vaidosa transformou-se para sempre. A experiência lhe dera inesquecível lição.


12

A arma infalível

Certo dia, um homem revoltado criou um poderoso e longo pensamento de ódio, colocou-o numa carta rude e malcriada e mandou-o para o chefe da oficina de que fora despedido.

O pensamento foi vazado em forma de amea­ças cruéis. E quando o diretor do serviço leu as frases ingratas que o expressava, acolheu-o, des­prevenidamente, no próprio coração, e tornou-se furioso sem saber porquê. Encontrou, quase de imediato, o sub-chefe da oficina e, a pretexto de enxergar uma pequena peça quebrada, des­fechou sobre ele a bomba mental que trazia consigo.

Foi a vez do sub-chefe tornar-se neuras­tênico, sem dar o motivo. Abrigou a projeção maléfica no sentimento, permaneceu amuado vá­rias horas e, no instante do almoço, ao invés de alimentar-se, descarregou na esposa o perigoso dardo intangível. Tão só por ver um sapato imperfeitamente engraxado, proferiu dezenas de palavras feias; sentiu-se aliviado e a mulher passou a asilar no peito a odienta vibração, em forma de cólera inexplicável. Repentinamente transtornada pelo raio que a ferira e que, até ali, ninguém soubera remover, encaminhou-se para a empregada que se incumbia do serviço de calçados e desabafou. Com palavras indesejáveis inoculou-lhe no coração o estilete invisível.

Agora, era uma pobre menina quem detinha o tóxico mental. Não podendo despejá-lo nos pratos e xícaras ao alcance de suas mãos, em vista do enorme débito em dinheiro que seria compelida a aceitar, acercou-se de velho cão, dorminhoco e paciente, e transferiu-lhe o veneno imponderável, num pontapé de largas proporções.

O animal ganiu e disparou, tocado pela energia mortífera, e, para livrar-se desta, mordeu a primeira pessoa que encontrou na via pública.

Era a senhora de um proprietário vizinho que, ferida na coxa, se enfureceu instantânea-mente, possuída pela força maléfica. Em grita­ria desesperada, foi conduzida a certa farmácia; entretanto, deu-se pressa em transferir ao enfer­meiro que a socorria a vibração amaldiçoada. Crivou-o de xingamentos e esbofeteou-lhe o rosto.

O rapaz muito prestativo, de calmo que era, converteu-se em fera verdadeira. Revidou os

golpes recebidos com observações àsperas e saiu, alucinado, para a residência, onde a velha e devo­tada mãezinha o esperava para a refeição da tarde. Chegou e descarregou sobre ela toda a ira de que era portador.

— Estou farto! — bradou — a senhora é culpada dos aborrecimentos que me perseguem! Não suporto mais esta vida infeliz! Fuja de mi­nha frente!...

Pronunciou nomes terríveis. Blasfemou. Gri­tou, colérico, qual louco.

A velhinha, porém, longe de agastar-se, to­mou-lhe as mãos e disse-lhe com naturalidade e brandura:

— Venha cá, meu filho! Você está cansado e doente! Sei a extensão de seus sacrifícios por mim e reconheço que tem razão para lamentar-se. No entanto, tenhamos bom ânimo! Lembremo­-nos de Jesus!... Tudo passa na Terra. Não nos esqueçamos do amor que o Mestre nos legou...

Abraçou-o, comovida, e afagou-lhe os ca­belos!

O filho demorou-se a contemplar-lhe os olhos serenos e reconheceu que havia no carinho materno tanto perdão e tanto entendimento que começou a chorar, pedindo-lhe desculpas.

Houve então entre os dois uma explosão de íntimas alegrias. Jantaram felizes e oraram em sinal de reconhecimento a Deus.

A projeção destrutiva do ódio morrera, afi­nal, ali, dentro do lar humilde, diante da força infalível e sublime do amor.


13

O servidor negligente

À porta de grande carpintaria, chegou um rapaz, de caixa às costas, à procura de emprego.

Parecia humilde e educado.

O diretor da instituição compareceu, aten­cioso, para atendê-lo.

— Tem serviço com que me possa favore­cer? — indagou o jovem, respeitoso, depois das saudações habituais.

— As tarefas são muitas — elucidou o chefe.

— Oh! por favor! — tornou o interessa­do — meus velhos pais necessitam de amparo. Tenho batido, em vão, à porta de várias oficinas. Ninguém me socorre. Contentar-me-ei com sa­lário reduzido e aceitarei o horário que desejar.

O diretor, muito calmo, acentuou:

— Trabalho não falta...

E, enquanto o candidato mostrava um sor­riso de esperança, acrescentou:

— Traz suas ferramentas em ordem?

— Perfeitamente — respondeu o interpe­lado.

— Vejamo-las.

O moço abriu a caixa que trazia. Metia pena reparar-lhe os instrumentos.

A enxó se achava deformada pela ferrugem grossa.

O serrote mostrava vários dentes quebrados.

O martelo tinha cabo incompleto.

O alicate estava francamente desconjuntado.

Diversos formões não atenderiam a qualquer apelo de serviço, tal a imperfeição que apresentavam seus gumes.

Poeira espessa recobria todos os objetos.

O dirigente da oficina observou... obser­vou... e disse, desencantado:

— Para o senhor, não temos qualquer tra­balho.

— Oh! porquê? — interrogou o rapaz, em tom de súplica.

O diretor esclareceu, sem azedume:

— Se o senhor não tem cuidado com as fer­ramentas que lhe pertencem, como preservará nossas máquinas? se é indiferente naquilo em que deve sentir-se honrado, chegará a ser útil aos interesses alheios? quem não zela atentamente no “pouco” de que dispõe, não é digno de receber o “muito”. Aprenda a cuidar das coisas aparentemente sem importância. Pelas amostras, grandes negócios se realizam neste mundo e o menosprezo para consigo é indese­jável mostruário de sua indiferença perniciosa. Aproveite a experiência e volte mais tarde.

Não valeram petitórios do moço necessitado. Foi compelido a retirar-se, em grande abatimento, guardando a dura lição.

Assim também acontece no caminho comum.

Quem deseja o corpo iluminado e glorioso na espiritualidade, além da morte, cuide respeitosamente do corpo físico.

Quem aspira à companhia dos anjos, mostre boas maneiras, boas palavras e boas ações aos vizinhos.

Quem espera a colheita de alegrias no fu­turo, aproveite a hora presente, na sementeira do bem.

E quantos sonharem com o Céu tratem de fazer um caminho de elevação na Terra mesma.


14

O descuido impensado

No orfanato em que trabalhava, Irmã Clara era o ídolo de toda gente pelas virtudes que lhe adornavam o caráter.

Era meiga, devotada, diligente.

Daquela boca educada não saíam más pa­lavras.

Se alguém comentava faltas alheias, vinha solícita, aconselhando:

— Tenhamos compaixão... Inclinava a conversa em favor da benevo­lência e da paz.

Insuflava em quantos a ouviam o bom ânimo e o amor ao dever.

Além do mais, estimulava, acima de tudo, em todos os circunstantes a boa vontade de trabalhar e servir para o bem.

— Irmã Clara — dizia uma educadora —, tenho necessidade do vestido para o sábado próximo.

Ela, que era a costureira dedicada de todos, respondia, contente:

— Trabalharemos até mais tarde. A peça ficará pronta.

— Irmã — intervinha uma das criadas —, e o avental?

— Amanhã será entregue — dizia Clara, sorrindo.

Em todas as atividades, mostrava-se a des­velada criatura qual anjo de bondade e paciência.

Invariàvelmente rodeada de novelos de linha, respirava entre a agulha e a máquina de costurar.

Nas horas da prece, demorava-se longamente contrita na oração.

Com a passagem do tempo, tornava-se cada vez mais respeitada. Seus pareceres eram procurados com interesse.

Transformara-se em admirável autoridade da vida cristã.

Em verdade, porém, fazia por merecer as considerações de que era cercada.

Amparava sem alarde.

Auxiliava sem preocupação de recompensa.

Sabia ser bondosa, sem humilhar a ninguém com demonstrações de superioridade.

Rolaram os anos, como sempre, e chegou o dia em que a morte a conduziu para a vida espi­ritual.

Na Terra, o corpo da inesquecível benfeitora foi rodeado de flores e bênçãos, homenagens e cânticos e sua alma subiu, gloriosamente, para o Céu.

Um anjo recebeu-a, carinhoso e alegre, à

entrada.

Cumprimentou-a. Reportou-se aos bens que ela espalhara, todavia, sob impressão de assombro, Irmã Clara ouviu-o informar:

— Lastimo não possa demorar-se conosco senão por três semanas.

— Oh! porquê? — interrogou a valorosa missionária.

— Será compelida a voltar, tomando novo corpo de carne no mundo — esclareceu o mensageiro.

— Como assim?

O anjo fitou-a, bondoso, e respondeu:

— A Irmã foi extremamente virtuosa; en­tretanto, na posição espiritual em que se encon­trava não poderia cometer tão grande descuido. Desperdiçou uma enormidade de fios de linha, impensadamente. Os novelos que perdeu, por alhear-se à noção de aproveitamento, davam para costurar alguns milhares de vestidos para crian­ças desamparadas.

— Oh! Oh! Deus me perdoe! — exclamou a santa desencarnada — e como resgatarei a dívida?

O anjo abraçou-a, carinhoso, e reconfortou-a dizendo:

— Não tema. Todos nós a ajudaremos, mas a querida irmã recomeçará sua tarefa no mundo, plantando um algodoal.


15

O poder da gentileza

Eminente professor negro, interessado em fundar uma escola num bairro pobre, onde centenas de crianças desamparadas cresciam sem o benefício das letras, foi recebido pelo prefeito da cidade que lhe disse imperativamente, depois de ouvir-lhe o plano:

— A lei e a bondade nem sempre podem estar juntas. Organize uma casa e autorizaremos a providência.

— Mas, doutor, não dispomos de recursos... — considerou o benfeitor dos meninos desprote­gidos.

— Que fazer?

— De qualquer modo, cabe-nos amparar os pequenos analfabetos.

O prefeito reparou-lhe demoradamente a fi­gura humilde, fêz um riso escarninho e acres­centou:

— O senhor não pode intervir na adminis­tração.

O professor, muito triste, retirou-se e passou a tarde e a noite daquele sábado, pensando, pen­sando...

Domingo, muito cedo, saiu a passear, sob as grandes árvores, na direção de antigo mercado.

Ia comentando, na oração silenciosa:

— Meu Deus, como agir? Não receberemos um pouso para as criancinhas, Senhor?

Absorvido na meditação, atingiu o mercado e entrou.

O movimento era enorme.

Muitas compras. Muita gente.

Certa senhora, de apresentação distinta, aproximou-se dele e tomando-o por servidor vul­gar, de mãos desocupadas e cabeça vazia, ex­clamou:

— Meu velho, venha cá.

O professor acompanhou-a, sem vacilar.

À frente dum saco enorme, em que se amon­toavam mais de trinta quilos de verdura, a ma­trona recomendou:

— Traga-me esta encomenda.

Colocou ele o fardo às costas e seguiu-a.

Caminharam seguramente uns quinhentos metros e penetraram elegante vivenda, onde a senhora voltou a solicitar:

— Tenho visitas hoje. Poderá ajudar-me no serviço geral?

— Perfeitamente — respondeu o interpe­lado —, dê suas ordens.

Ela indicou pequeno pátio e determinou-lhe a preparação de meio metro de lenha para o fogão.

Empunhando o machado, o educador, com esforço, rachou algumas toras. Findo o serviço, foi chamado para retificar a chaminé. Conser­tou-a com sacrifício da própria roupa. Sujo de pó escuro, da cabeça aos pés, recebeu ordem de buscar um peru assado, à distância de dois quilômetros. Pôs-se a caminho, trazendo o gran­de prato em pouco tempo. Logo após, atirou-se à limpeza de extenso recinto em que se efetuaria lauto almoço.

Nas primeiras horas da tarde, sete pessoas davam entrada no fidalgo domicílio. Entre elas, relacionava-se o prefeito que anotou a presença do visitante da véspera, apresentado ao seu gabinete por autoridades respeitáveis. Reserva­damente, indagou da irmã, que era a dona da casa, quanto ao novo conhecimento, conversando ambos em surdina.

Ao fim do dia, a matrona distinta e auto­ritária, com visível desapontamento, veio ao servo improvisado e pediu o preço dos trabalhos.

— Não pense nisto — respondeu com sin­ceridade —, tive muito prazer em ser-lhe útil.

No dia imediato, contudo, a dama da véspera procurou-o, na casa modesta em que se hospedava e, depois de rogar-lhe desculpas, anunciou-lhe a concessão de amplo edifício, destinado à escola que pretendia estabelecer. As crianças usariam o patrimônio à vontade e o prefeito autorizaria a providência com satisfação.

Deixando transparecer nos olhos húmidos a alegria e o reconhecimento que lhe reinavam nalma, o professor agradeceu e beijou-lhe as mãos, respeitoso.

A bondade dele vencera os impedimentos legais.

O exemplo é mais vigoroso que a argu­mentação.

A gentileza está revestida, em toda parte, de glorioso poder.


16

A trilogia bendita

Em tempos remotos, o Senhor vinha ao mundo frequentes vezes entender-se com as cria­turas.

Certa vez, encontrou um homem irado e mau, que outra coisa não fazia senão atormentar os semelhantes. Perseguia, feria e matava sem piedade. Quando esse espírito selvagem viu o Senhor, aproximou-se atraído pela luz dEle, a chorar de arrependimento.

O Cristo, bondoso, dirigiu-lhe a palavra:

— Meu filho, porque te entregaste assim à perversidade? Não temes a justiça do Pai? Não acreditas no Celeste Poder? A vida exige fraternidade e compreensão.

O malfeitor, que se mantinha prisioneiro da ignorância, respondeu em lágrimas:

— Senhor, de hoje em diante serei um ho­mem bom.

Alguns anos passaram e Jesus voltou ao mesmo sítio. Lembrou-se do infeliz a quem havia aconselhado e buscou-o. Depois de certa procura, foi achá-lo oculto numa choça, extre­mamente abatido. Interpelado quanto à causa de tão lamentável transformação, o mísero res­pondeu:

— Ai de mim, Senhor! Depois que passei a ser bom, ninguém me respeitou! Fiz-me es­cárnio da rua... Tenho usado a compaixão e a generosidade, segundo me ensinaste, mas em troca recebo apenas o ridículo, a pedrada e a dilaceração...

O Mestre, porém, abençoou-o e falou.

— O teu lucro na eternidade não será pe­queno com o sacrifício. Entretanto, não basta reter a bondade. É necessário saber distribuí-la. Para bem ajudar, é preciso discernir. Realmente é possível auxiliar a todos. Contudo, se a muita gente devemos ternura fraterna, a numerosos companheiros de jornada devemos esclarecimento enérgico. Estimularemos os bons a serem melhores e cooperaremos, a benefício dos maus, para que se retifiquem. Nunca observaste o pomicultor? Algumas árvores recebem dele irri­gação e adubo; outras, no entanto, sofrerão a poda, a fim de serem convenientemente ampa­radas.

O Senhor retirou-se e o aprendiz retomou luta para conquistar o conhecimento.

Peregrinou através de muitos llvros, obser­vou demoradamente os quadros da vida e recebeu a palma da ciência.

Os anos correram apressados, quando o Cristo regressou e procurou-o, novamente.

Dessa vez, encontrou-o no leito, enfermo e sem forças.

Replicando ao Divino Amigo, explicou-se:

— Ai de mim, Senhor! Fui bom e recebi injustiças, entesourei a ciência e minhas difi­culdades cresceram de vulto. Aprendi a amar e desejar em sã consciência, a idealizar com o plano superior, mas vejo a ingratidão e a dis­córdia, a dureza e a indiferença com mais cla­reza. Sei aquilo que muita gente ignora e, por isto mesmo, a vida tornou-se-me um fardo in­suportável...

O Mestre, porém, sorriu e considerou:

- A tua preparação para a felicidade ainda não se acha completa. Agora, é preciso ser forte. Acreditas que a árvore respeitável conseguiria viver e produzir, caso não soubesse tolerar a tempestade? A firmeza interior, diante das expe­riências da vida, conferir-te-á o equilíbrio indispensável. Aprende a dizer adeus a tudo o que te prejudica na caminhada em direção da luz divina e distribuirás a bondade, sem preocupa­ções de recompensa, guardando o conhecimento sem surpresas amargas. Sê inquebrantável em tua fé e segue adiante!

O aprendiz reergueu-se e nunca mais expe­rimentou a desarmonia, compreendendo, enfim, que a bondade, o conhecimento e a fortaleza são a trilogia bendita da felicidade e da paz.


17

A conta da vida

Quando Levindo completou vinte e um anos, a Mâezinha recebeu-lhe os amigos, festejou a data e solenizou o acontecimento com grande alegria.

No íntimo, no entanto, a bondosa senhora estava triste, preocupada.

O filho, até à maioridade, não tolerava qual­quer disciplina. Vivia ociosamente, desperdiçando o tempo e negando-se ao trabalho. Apren­dera as primeiras letras, a preço de muita dedi­cação materna, e lutava contra todos os planos de ação digna.

Recusava bons conselhos e inclinava-se, fran­camente, para o desfiladeiro do vício.

Nessa noite, todavia, a abnegada Mãe orou, mais fervorosa, suplicando a Jesus o encaminhasse à elevação moral. Confiou-o ao Céu, com lágrimas, convencida de que o Mestre Divino lhe ampararia a vida Jovem.

As orações da devotada criatura foram ouvi-das, no Alto, porque Levindo, logo depois de arrebatado pelas asas do sono, sonhou que era procurado por um mensageiro espiritual, a exibir largo documento na mão.

Intrigado, o rapaz perguntou-lhe a que devia a surpresa de semelhante visita.

O emissário fitou nele os grandes olhos e respondeu:

— Meu amigo, venho trazer-te a conta dos seres sacrificados, até agora, em teu proveito.

Enquanto o moço arregalava os olhos de assombro, o mensageiro prosseguia:

— Até hoje, para sustentar-te a existên­cia, morreram, aproximadamente, 2.000 aves, 10 bovinos, 50 suínos, 20 carneiros e 3.000 peixes diversos. Nada menos de 60.000 vidas do reino vegetal foram consumidas pela tua, relacionan­do-se as do arroz, do milho, do feijão, do trigo, das várias raízes e legumes. Em média calculada, bebeste 3.000 litros de leite, gastaste 7.000 ovos e comeste 10.000 frutas. Tens explorado farta-mente as famílias de seres do ar e das águas, de galinheiros e estábulos, pocilgas e redis. O preço dos teus dias nas hortas e pomares vale por uma devastação. Além disto, não relacio­namos aqui os sacrifícios maternos, os recursos e doações de teu pai, os obséquios dos amigos e as atenções dos vários benfeitores que te rodeiam. Em troca, que fizeste de útil? Não restituiste ainda à Natureza a mínima parcela de teu débito imenso. Acreditas, porventura, que o centro do mundo repousa em tuas necessidades individuais e que viverás sem conta nos domínios da Cria­ção? Produze algo de bom, marcando a tua pas­sagem pela Terra. Lembra-te de que a própria erva se encontra em serviço divino. Não permitas que a ociosidade te paralise o coração e desfigure o espírito!...

O moço, espantado, passou a ver o desfile dos animais que havia devorado e, sob forte espanto, acordou...

Amanhecera.

O Sol de ouro como que cantava em toda parte um hino glorioso ao trabalho pacífico.

Levindo escapou da cama, correu até à ge­nitora e exclamou:

— Mãezinha, arranje-me serviço! arranje-me serviço!...

— Oh! meu filho — disse a senhora num transporte de júbilo —, que alegria! como estou contente!... que aconteceu?

E o rapaz, preocupado, informou:

— Nesta noite passada, eu vi a conta da vida.

Daí em diante, converteu-se Levindo num homem honrado e útil.


18

A amizade real

Um grande senhor que soubera amontoar sabedoria, além da riqueza, auxiliava diversos amigos pobres, na manutenção do bom ânimo, na luta pela vida.

Sentindo-se mais velho, chamou o filho à cooperação. O rapaz deveria aprender com ele a distribuir gentilezas e bens.

Para começar, enviou-o à residência de um companheiro de muitos anos, ao qual destinava trezentos cruzeiros mensais.

O jovem seguiu-lhe as instruções.

Viajou seis quilômetros e encontrou a casa indicada. Contrariando-lhe a expectativa, porém, não encontrou um pardieiro em ruínas. O domi­cílio, apesar de modesto, mostrava encanto e conforto. Flores perfumavam o ambiente e alvo linho vestia os móveis com beleza e decência.

O beneficiário de seu pai cumprimentou-o, com alegria efusiva, e, depois de inteligente palestra, mandou trazer o café num serviço agra­dável e distinto. Apresentou-lhe familiares e amigos que se envolviam, felizes, num halo enor­me de saúde e contentamento.

Reparando a tranquilidade e a fartura, ali reinantes, o portador regressou ao lar, sem en­tregar a dádiva.

— Para quê? — confabulava consigo mes­mo — aquele homem não era um pedinte. Não parecia guardar problemas que merecessem com­paixão e caridade. Certo, o genitor se enganara.

De volta, explicou ao velho pai, partículari­zadamente, quanto vira, restituindo-lhe a impor­tância de que fora emissário.

O ancião, contudo, após ouvi-lo calmamente, retirou mais dinheiro da bolsa, dobrou a quantia e considerou:

— Fizeste bem, tornando até aqui. Igno­rava que o nosso amigo estivesse sob mais amplos compromissos. Volta à residência dele e, ao invés de trezentos, entrega-lhe seiscentos cruzeiros, mensalmente, em meu nome, de ora em diante. A sua nova situação reclama recursos duplicados.

— Mas, meu pai — acentuou o moço —, não se trata de pessoa em posição miserável.

Ao que suponho, o lar dele possui tanto confor­to, quanto o nosso.

Folgo bastante com a noticia — excla­mou o velho.

E, imprimindo terna censura à voz conse­lheiral, acrescentou:

— Meu filho, se não é lícito dar remédio aos sãos e esmolas aos que não precisam delas, semelhante regra não se aplica aos companheiros que Deus nos confiou. Quem socorre o amigo, apenas nos dias de extremo infortúnio, pode exercer a piedade que humilha ao invés do amor que santifica. Quem espera o dia do sofrimento para prestar o favor, muita vez não encontrará senão silêncio e morte, perdendo a melhor opor­tunidade de ser útil. Não devemos exigir que o irmão de jornada se converta em mendigo, a fim de parecermos superiores a ele, em todas as circunstâncias. Tal atitude de nossa parte representaria crueldade e dureza. Estendamos-lhe nossas mãos e façamo-lo subir até nós, para que nosso concurso não seja orgulho vão. Toda gente no mundo pode consolar a miséria e par­tilhar as aflições, mas raros aprendem a acen­tuar a alegria dos entes amados, multiplicando-a para eles, sem egoísmo e sem inveja no coração. O amigo verdadeiro, porém, sabe fazer isto. Volta, pois, e atende ao meu conselho para que nossa afeição constitua sementeira de amor para a eternidade. Nunca desejei improvisar neces­sitados, em torno de nossa porta e, sim, criar companheiros para sempre.

Foi então que o rapaz, envolvido na sabe­doria paterna, cumpriu quanto lhe fora determinado, compreendendo a sublime lição de ami­zade real.


19

O ensinamento vivo

Em observando qualquer edificação ou ser­viço, Maria Cármen não faltava à crítica.

Ante um vestido das amigas, exclamava sem-cerimônia:

— O conjunto é tolerável, mas as particula­ridades deixam muito a desejar. A gola foi extremamente malfeita e as mangas estão defei­tuosas.

Perante um móvel qualquer, rematava as observações irônicas com a frase:

— Não poderiam fazer coisa melhor? E, à frente de qualquer obra de arte, encon­trava traços e ângulos para condenar.

A Mãezinha, preocupada, estudou recursos de dar-lhe proveitoso ensinamento.

Foi assim que, certa manhã, convidou a filha a visitar, em sua companhia, a construção de um edifício de vastas linhas. A jovem, que não podia adivinhar-lhe o plano, seguiu-a, surpreendida.

Percorreram algumas ruas e pararam diante do arranha-céu a levantar-se.

A senhora pediu a colaboração do enge­nheiro-chefe e passou a mostrar à filha os vários departamentos. Enquanto muitos servidores abriam acomodações para os alicerces, no chão duro, manobrando picaretas, veículos pesados transportavam terra daqui para ali, com rapidez e segurança. Pedreiros começavam a erguer pa­redes, suarentos e ágeis, sob a atenciosa vigilân­cia dos técnicos que orientavam os trabalhos. Caminhões e carroças traziam material de mais longe. Carregadores corriam na execução do dever.

O diretor das obras, convidado pela matrona a pronunciar-se sobre a edificação, esclareceu, gentil:

— Seremos obrigados a inverter volumoso capital para resgatar as despesas. Requisitare­mos, ainda, a colaboração de centenas de traba­lhadores especializados. Carpinteiros, estucado­res, vidraceiros, pintores, bombeiros e eletricis­tas virão completar-nos o serviço. Qualquer cons­trução reclama toda uma falange de servos de­dicados.

A menina, revelando-se impressionada, res­pondeu:

— Quanta gente a pensar, a cooperar e servir!...

— Sim — considerou o chefe, sorrindo expressivamente —, edificar é sempre muito difícil.

Logo após, mãe e filha apresentaram as despedidas, encaminhando-Se, agora, para velho bairro.

Vararam algumas travessas e praças menos agradáveis e chegaram à frente de antiga casa em demolição. Viam-se-lhe as linhas nobres, no estilo colonial, através das alas que ainda se achavam de pé. Um homem, apenas, ali se en­contrava, usando martelo de tamanho gigan­tesco, abatendo alvenaria e madeirame. Ante a queda das paredes a ruirem com estrondo, de minuto a minuto, a jovem observou:

— Como é terrível arruinar, deste modo, o esforço de tantos!

A Mãezinha serena interveio, então, e falou, conselheiramente:

— Chegamos, filha, ao fim do ensinamento vivo que buscamos. Toda a realização útil na Terra exige a paciência e o suor, o trabalho e o sacrifício de muita gente. Edificar é muito difícil. Mas destruir e eliminar é sempre muito fácil. Bastará uma pessoa de martelo à mão para prejudicar a obra de milhares. A crítica destru­tiva é um martelo que usamos criminosamente, ante o respeitável esforço alheio. Compreendeu?

A jovem fez um sinal afirmativo com a cabeça e, daí em diante, procurou ajudar a todos ao invés de macular, desencorajar e ferir.


20

O elogio da abelha

Grande mosca verde-azul, mostrando envai­decida as asas douradas pelo Sol, penetrou uma sala e encontrou uma abelha humilde a carre­gar pequena provisão de recursos para elabo­rar o mel.

A mosca arrogante aproximou-se e falou, vaidosa:

— Onde surges, todos fogem. Não te sentes indesejável? Teu aguilhão é terrível.

- Sim — disse a abelha com desaponta­mento —, creia que sofro muitíssimo quando sou obrigada a interferir. Minha defesa é, quase sempre, também a minha morte.

— Mas não podes viver com mais distinção e delicadeza? — tornou a mosca — porque ferretoar, a torto e a direito?

— Não, minha amiga — esclareceu a inter-locutora —. não é bem assim. Não sinto prazer em perturbar. Vivo tão somente para o trabalho que Deus me confiou, que representa benefício geral. E, quando alguém me impede a execução do dever, inquieto-me e sofro, perdendo, por vezes, a própria vida.

— Creio, porém, que se tivesses modos dife­rentes... se polisses as asas para que brilhassem à claridade solar, se te vestisses em cores iguais às minhas, talvez não precisasses alarmar a nin­guém. Pessoa alguma te recearia a intromissão.

— Ah! não posso despender muito tempo em tal assunto — alegou a abelha criteriosa. — O serviço não me permite a apresentação exterior muito primorosa, em todas as ocasiões. A produção de mel indispensável ao sustento de nossa colméia, e necessária a muita gente, não me oferece ensejo a excessivos cuidados comigo mesma.

— Repara! — disse-lhe a mosca, desdenho­sa — tuas patas estão em lastimável estado...

— Encontro-me em serviço — explicou-se a operária humildemente.

Não! não! — protestou a outra — isto émonturo e relaxamento.

E limpando caprichosamente as asas, a mos­ca recuou e aquietou-se, qual se estivesse em observação.

Nesse instante, duas senhoras e uma criança penetraram o recinto e, notando a presença da abelha que buscava sair ao encontro de companheiras distantes, uma das matronas gritou, nervosa:

— Cuidado! cuidado com a abelha! Fere sem piedade!...

A pequenina trabalhadora alada dirigiu-se para o campo e a mosca soberba passou a exi­bir-se, voando despreocupada.

— Que maravilha! — exclamou uma das senhoras.

— Parece uma jóia! — disse a outra.

A mosca preguiçosa planou... planou... e, encaminhando-se para a copa, penetrou o guar­da-comida, deitando varejeiras na massa dos pastéis e em pratos diversos que se preparavam para o dia seguinte. Acompanhou a criança, de maneira imperceptível, e pousou-lhe na cabeça, infeccionando certa região que se achava ligei­ramente ferida.

Decorridas algumas horas, sobravam preo­cupações para toda a família. A encantadora mosca verde-azul deixara imundície e enfermi­dade por onde passara.

Quantas vezes sucede isto mesmo, em plena vida?

Há criaturas simples, operosas e leais, de trato menos agradável, à primeira vista, que, à maneira da abelha, sofrem sarcasmos e desapon­tamentos por bem cumprir a obrigação que lhes cabe, em favor de todos; e há muita gente de apresentação brilhante, quanto a mosca, e que, depois de seduzir-nos a atenção pela beleza da forma, nos deixa apenas as larvas da calúnia, da intriga, da maldade, da revolta e do deses­pero no pensamento.


21

O carneiro revoltado

Certo carneiro muito inteligente, mas indis­ciplinado, reparou os benefícios que a lã espa­lhava em toda parte, e, desde então, julgou-se melhor que os outros seres da Criação, passando a revoltar-se contra a tosquia.

— Se era tão precioso — pensava —, por­que aceitar a humilhação daquela tesoura enorme? Experimentava intenso frio, de tempos a tempos, e, despreocupado das ricas rações que recebia no redil, detinha-se apenas no exame dos prejuízos que supunha sofrer.

Muito amargurado, dirigiu-se ao Criador, exclamando:

— Meu Pai, não estou satisfeito com a minha pelagem. A tosquia é um tormento... Modifica-me, Senhor!...

O Todo-Poderoso indagou, com bondade:

— Que desejas que eu faça?

Vaidosamente, o carneiro respondeu:

— Quero que a minha lã seja toda de ouro.

A rogativa foi satisfeita. Contudo, assim que o orgulhoso ovino se mostrou cheio de pêlos preciosos, várias pessoas ambiciosas atacaram-no sem piedade. Arrancaram-lhe, violentamente, to­dos os fios, deixando-o em chagas.

O infeliz, a lastimar-se, correu para o Altís­simo e implorou:

— Meu Pai, muda-me novamente! não posso exibir lã dourada.., encontraria sempre salteadores sem compaixão.

O Sábio dos Sábios perguntou:

— Que queres que eu faça?

O animal, tocado pela mania de grandeza, suplicou:

— Quero que a minha lã seja lavrada em porcelana primorosa.

Assim foi feito. Entretanto, logo que tornou ao vale, apareceu no céu enorme ventania, que lhe quebrou todos os fios, dilacerando-lhe a carne.

Regressou, aflito, ao Todo-Misericordioso e queixou-se:

— Pai, renova-me!... A porcelana não re­siste ao vento... estou exausto...

Disse-lhe o Senhor:

— Que desejas que eu faça?

— A fim de não provocar os ladrões e nem ferir-me com porcelana quebrada, quero que a minha lã seja feita de mel.

O Criador satisfez o pedido. Todavia, logo que o pobre se achou no redil, bandos de moscas asquerosas cobriram-no em cheio e, por mais corresse campo afora, não evitou que elas lhe sugassem os fios adocicados.

O mísero voltou ao Altíssimo e implorou:

— Pai, modifica-me... as moscas deixa­ram-me em sangue!

O Senhor indagou, de novo, com inexaurível paciência:

— Que queres que eu faça?

Dessa vez, o carneiro pensou mais tempo e considerou:

— Suponho que seria mais feliz se tivesse minha lã semelhante às folhas de alface.

O Todo-Bondoso atendeu-lhe mais uma vez a vontade e o carneiro voltou à planície, na caprichosa alegria de parecer diferente. No entan­to, quando alguns cavalos lhe puseram os olhos, não conseguiu melhor sorte, Os eqüinos prende­ram-no com os dentes e, depois de lhe comerem a lã, abocanharam-lhe o corpo.

O carneiro correu na direção do Juiz Su­premo, gotejando sangue das chagas profundas, e, em lágrimas, gemeu, humilde:

— Meu Pai, não suporto mais!...

Como soluçasse longamente, o Todo-Com­passivo, vendo que ele se arrependera com sin­ceridade, observou:

— Reanima-te, meu filho! que pedes agora?

O infeliz replicou, em pranto:

— Pai, quero voltar a ser um carneiro co­mum, como sempre fui. Não pretendo a supe­rioridade sobre meus irmãos. Hoje sei que os meus tosquiadores de outro tempo são meus verdadeiros amigos. Nunca me deixaram em fe­ridas e sempre me deram de comer e beber, carinhosamente... Quero ser simples e útil, qual me fizeste, Senhor!...

O Pai sorriu, bondoso, abençoou-o com ter­nura e falou:

— Volta e segue teu caminho em paz. Com­preendeste, enfim, que meus desígnios são justos. Cada criatura está colocada, por minha Lei, no lugar que lhe compete e, se pretendes receber, aprende a dar.

Então o carneiro, envergonhado, mas satis­feito, voltou para o vale, misturou-se com os outros e daí por diante foi muito feliz.


22

O pior inimigo

Um homem, admirável pelas qualidades de trabalho e pelas formosas virtudes do caráter, foi visto pelos inimigos da Humanidade que conhecemos por Ignorância, Calúnia, Maldade, Discórdia, Vaidade, Preguiça e Desânimo, os quais tramaram, entre si, agir contra ele, con­duzindo-o à derrota.

O honrado trabalhador vivia feliz, entre familiares e companheiros, cultivando o campo e rendendo graças ao Senhor Supremo pelas ale­grias que desfrutava no contentamento de ser útil.

A Ignorância começou a cogitar da perse­guição, apresentando-o ao povo como mau observador das obrigações religiosas. Insulava-se no trato da terra, cheio de ambições desmedidas para enriquecer à custa do alheio suor. Não tinha fé, nem respeitava os bons costumes.

O lavrador ativo recebeu as notícias do adversário que operava, de longe, sorriu calmo e falou com sinceridade:

— A Ignorância está desculpada.

Surgiu, então, a Calúnia e denunciou-o às autoridades por espião de interesses estranhos. Aquele homem vivia, quase sôzinho, para melhor comunicar-se com vasta quadrilha de ladrões. O serviço policial tratou de minuciosas averigua­ções e, ao término do inquérito vexatório, a ví­tima afirmou sem ódio:

— A Calúnia estava enganada.

E trabalhou com dobrado valor moral.

Logo após, veio a Maldade, que o atacou de mais perto. Principiou a ofensiva, incendiando-lhe o campo. Destruiu-lhe milharais enormes, prejudicou-lhe a vinha, poluiu-lhe as fontes. Todavia, o operário incansável, reconstruindo para o futuro, respondeu, sereno:

— Contra as sombras do mal, tenho a luz do bem.

Reconhecendo os perseguidores que haviam encontrado um espírito robusto na fé, instruíram a Discórdia que passou a assediá-lo dentro da própria casa. Provocações cercaram-no de todos os lados e, a breve tempo, irmãos e amigos da véspera relegaram-no ao abandono.

O servo diligente, dessa vez, sofreu bastante, mas ergueu os olhos para o Céu e falou:

— Meu Deus e meu Senhor, estou só, no entanto, continuarei agindo e servindo em Teu Nome. A Discórdia será por mim esquecida.

Apareceu, então, a Vaidade que o procurou nos aposentos particulares, afirmando-lhe:

— És um grande herói... Venceste afli­ções e batalhas! Serás apontado à multidão na auréola dos justos e dos santos!...

O trabalhador sincero repeliu-a, impertur­bável:

— Sou apenas um átomo que respira. Toda glória pertence a Deus!

Ausentando-se a Vaidade com desaponta­mento, entrou a Preguiça e, acariciando-lhe a fronte com mãos traiçoeiras, afiançou:

— Teus sacrifícios são excessivos... Vamos ao repouso! Já perdeste as melhores forças!...

Vigilante, contudo, o interpelado replicou sem hesitar:

— Meu dever é o de servir em benefício de todos, até ao fim da luta.

Afastando-se a Preguiça vencida, o Desâ­nimo compareceu. Não atacou de longe, nem de perto. Não se sentou na poltrona para conversar, nem lhe cochichou aos ouvidos. Entrou no coração do operoso lavrador e, depois de instalar-se lá dentro, começou a perguntar-lhe:

— Esforçar-se para quê? servir porquê? Não vê que o mundo está repleto de colaborado­res mais competentes? que razão justifica tama­nha luta? quem o mandou nascer neste corpo? não foi a determinação do próprio Deus? não será melhor deixar tudo por conta de Deus mesmo? que espera? sabe, acaso, o objetivo da vida? tudo é inútil... não se lembra de que a morte destruirá tudo?

O homem forte e valoroso, que triunfara de muitos combates, começou a ouvir as interrogações do Desânimo, deitou-se e passou cem anos sem levantar-se...


23

A decisão sábia

Em tempos recuados, existiu um rei pode­roso e bom, que se fizera notado pela sabedoria.

Convidado a verificar, solenemente, a inven­ção de um súdito, cuja cabeça era um prodígio na matemática, compareceu em trajes de honra à festa em que o novo aparelho seria apresen­tado.

O calculista, orgulhoso, mostrou a obra que havia criado pacientemente. Tratava-se de largo tabuleiro forrado de veludo negro, cercado de pequenas cavidades, sustentando regular coleção de bolas de madeira colorida. Acionadas por longos tacos de marfim, essas bolas rolavam na direção das cavidades naturais, dando ensejo a um jogo de grande interesse pela expectação que provocava.

Revestiu-se a festa de brilho indisfarçável.

Contendores variados disputaram partidas de vulto.

Dia inteiro, grande massa popular rodeou o invento, comendo e bebericando.

O próprio monarca seguiu a alegria geral, dando mostras de evidente satisfação. Serviu-se, ao almoço, junto às grandes bandejas de carne, pão e frutos, em companhia dos amigos, e aplau­dia, contente, quando esse ou aquele participante do novo e inocente jogo conseguia posição inve­jável perante os companheiros.

À tardinha, encerrada a curiosidade geral, o inventor aguardou o parecer do soberano, com inexcedível orgulho. Aglomerou-se o povo, igual­mente, a fim de ouvi-lo.

Não se cansava o público de admirar o jogo efetuado, através de cálculos divertidos.

Despedindo-se, o rei levantou-se, fêz-se visto de todos e falou ao vassalo inteligente:

— Genial matemático: a autoridade de mi­nha coroa determina que sua obra de raciocínio seja premiada com cem peças de ouro que os cofres reais levarão ao seu crédito, ainda hoje, em homenagem à sua paciência e habilidade. Essa remuneração, todavia, não lhe visa sômente o valor pessoal, mas também certos benefícios que a sua máquina vem trazer a muitos homens e mulheres de meu reino, menos afeitos às vir­tudes construtivas que todos devemos respeitar

neste mundo. Enquanto jogarem suas bolas de madeira, possivelmente muitos indivíduos, cujos instintos criminosos ainda se acham adormeci­dos, se desviarão do delito provável e muitos caçadores ociosos deixarão em paz os animais amigos de nossas florestas.

O monarca fêz comprida pausa e a multidão prorrompeu em aplausos delirantes.

Via-se o inventor cercado de abraços, quan­do o soberano recomeçou:

- Devo acrescentar, porém, que a sabedoria de meu cetro ordena que o senhor seja punido com cinquenta dias de prisão forçada, a fim de que aprenda a utilizar sua capacidade intelectual em benefício de todos. A inteligência humana éuma luz cuja claridade deve ser consagrada à cooperação com o Supremo Senhor, na Terra. Sua invenção não melhora o campo, nem cria trabalho sério; não ajuda as sementes, nem ampara os animais; não protege fontes, nem conserva estradas; não colabora com a educação, nem serve aos ideais do bem. Além disto, arrasta centenas de pessoas, qual se verificou neste dia, conosco, a perderem valioso tempo na expecta­tiva inútil. Volte aos seus abençoados afazeres mentais, mesmo no cárcere, e dedique sua inte­ligência a criação de serviço e utilidades em proveito de todos, porque, se o meu poder o recompensa, a minha experiência o corrige.

Quando o rei concluiu e desceu da tribuna, o inventor se fizera muito pálido, o povo não bateu palmas; entretanto, toda gente aprendeu, na decisão sábia do grande soberano, que nin­guém deve menosprezar os tesouros da inteli­gência e do tempo sobre a Terra.


24

O aprendiz desapontado

Um menino que desejava ardentemente residir no Céu, numa bonita manhã, quando se encontrava no campo, em companhia de um bur­ro, recebeu a visita de um anjo.

Reconheceu, depressa, o emissário de Cima, pelo sorriso bondoso e pela veste resplandecente.

Alucinado de júbilo, o rapazelho gritou:

— Mensageiro de Jesus, quero o paraíso! que fazer para chegar até lá?!

O anjo respondeu com gentileza:

— O primeiro caminho para o Céu é a obediência e, o segundo, é o trabalho.

O pequeno, que não parecia muito diligente, ficou pensativo.

O enviado de Deus então disse:

— Venho a este campo, a fim de auxiliar a Natureza que tanto nos dá.

Fixou o olhar mais docemente na criança e rogou:

— Queres ajudar-me a limpar o chão, car­regando estas pedras para o fosso vizinho?

O menino respondeu:

— Não posso.

Todavia, quando o emissário celeste se diri­giu ao burro, o animal prontificou-se a trans­portar os calhaus, pacientemente, deixando a terra livre e agradável.

Em seguida, o anjo passou a dar ordens de serviço em voz alta, mas o menino recusava-se a contribuir, enquanto o burro ia obedecendo.

No instante de mover o arado, o rapazinho desfez-se em palavras feias, fugindo à colabo­ração.

O muar disciplinado, contudo, ajudou quanto pôde, em silêncio.

No momento de preparar a sementeira, ve­rificou-se o mesmo quadro: o pequeno repousava e o burro trabalhava.

Em todas as medidas iniciais da lavoura, o pesado animal agia cuidadoso, colaborando eficientemente com o lavrador celeste; entretanto, o jovem, cheio de saúde e leveza, permaneceu amuado, a um canto, choramingando sem saber porquê e acusando não se sabe a quem.

No fim do dia, o campo estava lindo.

Canteiros bem desenhados surgiam ao cen­tro. ladeados por fios de água benfeitora.

As árvores, em derredor, pareciam orgulho­sas de protegê-los. O vento deslizava tão manso que mais se assemelhava a um sopro divino can­tando nas campânulas do matagal.

A Lua apareceu espalhando intensa clari­dade.

O anjo abraçou o obediente animal, agrade­cendo-lhe a contribuição. Vendo o menino que o mensageiro se punha de volta, gritou, ansioso:

— Anjo querido, quero seguir contigo, quero ir para o Céu!...

O emissário divino respondeu, porém:

— O paraíso não foi feito para gente pre­guiçosa. Se desejas encontrá-lo, aprende primeiramente a obedecer com o burro que soube rece­ber a bênção da disciplina e o valor da educação.

E assim esclarecendo subiu para as estrelas, deixando o rapazinho desapontado. mas disposto a mudar de vida.


25

A falsa mendiga

Zezélia pedia esmolas, havia muitos anos.

Não era tão doente que não pudesse traba­lhar, produzindo algo de útil, mas não se ani­mava a enfrentar qualquer disciplina de serviço.

— Esmola pelo amor de Deus! — clamava o dia inteiro, dirigindo-se aos transeuntes, sen­tada à porta de imundo telheiro.

De quando em quando, pessoas amigas, de­pois de lhe darem um níquel, aconselhavam:

— Zezélia, você não poderia plantar algum milho?

- Não posso... — respondia logo.

— Zezélia, quem sabe poderia você bene­ficiar alguns quilos de café?

— Quem sou eu, meu filho? não tenho forças...

— Não desejaria lavar roupa e ganhar al­gum dinheiro? — indagavam damas bondosas.

— Nem pensar nisto. Não agüento...

— Zezélia, vamos vender flores! — convi­davam algumas jovens que se compadeciam dela.

— Não posso andar, minhas filhas!... —exclamava, suspirando.

— E o bordado, Zezélia? — interrogava a vizinha, prestativa — você tem as mãos livres. A agulha é uma boa companheira. Quem sabe po­derá ajudar-nos? Receberá compensadora remuneração.

— Não tenho os dedos seguros — infor­mava, teimosa — e falta-me suficiente ener­gia... Não posso, minha senhora...

E, assim, Zezélia vivia prostrada, sem ânimo, sem alegria.

Afirmava sentir dores por toda parte do corpo. Dava notícias da tosse, da tonteira e do resfriado com longas palavras que raras pessoas dispunham de tempo para ouvir. Além das lamentações contínuas, clamava que não bebia café por falta de açúcar, que não almoçara por não dispor de alimentação.

Tanto pediu, chorou e se queixou Zezélia que, em certa manhã, foi encontrada morta e a caridade pública enterrou-lhe o corpo com muita piedade.

Todos os vizinhos e conhecidos julgaram que a alma de Zezélia fora diretamente para o Céu; entretanto, não foi assim.

Ela acordou em meio dum campo muito es­curo e muito frio.

Achava-se sem ninguém e gritou, aflita, pelo socorro de Deus.

Depois de muito tempo, um anjo apareceu e disse-lhe, bondoso:

— Zezélia, que deseja você?

— Ah! — observou, muito vaidosa — já sou conhecida na Casa Celestial?

— Há muito tempo — informou o emissário, compadecido.

A velha começou a chorar e rogou em pranto:

— Tenho sofrido muito!... quero o am­paro do Alto!...

— Mas, ouça! — esclareceu o mensageiro —o auxílio divino é para quem trabalha. Quem não planta, nada tem a colher. Você não cavou a terra, não cuidou de plantas, não ajudou os animais, não fiou o algodão, não teceu fios, não costurou o pano, não amparou crianças, não fêz pão, não lavou roupa, não varreu a casa, não cuidou de flores, não tratou nem mesmo de sua saúde e de seu corpo... Como pretende receber as bênçãos de Cima?

A infeliz observou, então:

— Nada podia fazer... eu era mendiga...

O anjo, contudo, replicou:

— Não, Zezélia! — você não era mendiga. Você foi simplesmente preguiçosa. Quando aprender a trabalhar, chame por nós e receberá o socorro celeste.

Cerrou-se-lhe aos olhos o horizonte de luz e, às escuras, Zezélia voltou para a Terra, a fim de renovar-se.


26

O grito de cólera

Lembra-se do instante em que gritou forte­mente, antes do almoço?

Por insignificante questão de vestuário, você pronunciou palavras feias em voz alta, desrespei­tando a paz doméstica.

Ah! meu filho, quantos males foram atraidos por seu gesto de cólera!...

A Mamãe, muito aflita, correu para o inte­rior, arrastando atenções de toda a casa. Voltou­-lhe a dor-de-cabeça e o coração tornou a des­compassar-se.

- As duas irmãs, que cuidavam da refeição, dirigiram-se precipitadamente para o quarto, a fim de socorrê-la, e duas terças partes do almoço ficaram inutilizadas.

Em razão das circunstâncias provocadas por sua irreflexão, o papai, muito contrariado, foi compelido a esperar mais tempo em casa, che­gando ao serviço com grande atraso.

Seu chefe não estava disposto a tolerar-lhe a falta e recebeu-o com repreensão áspera.

Quem o visse, erecto e digno, a sofrer essa pena, em virtude da sua leviandade, sentiria compaixão, porque você não passa de um jovem necessitado de disciplina, e ele é um homem de bem, idoso e correto, que já venceu muitas tem­pestades para amparar a família e defendê-la. Humilhado, suportou as consequências de seu gesto impulsivo, por vários dias, observado na oficina qual se fora um menino vadio e impru­dente.

Os resultados de sua gritaria foram, porém, mais vastos.

A Mãezinha piorou e o médico foi chamado. Medicamentos de alto preço, trazidos à pres­sa, impuseram vertiginosa subida às despesas, e o papai não conseguiu pagar todas as contas de armazém, farmácia e aluguel de casa.

Durante seis meses, toda a sua família lutou e solidarizou-se para recompor a harmonia que­brada, desastradamente, por sua ira infantil.

Cento e oitenta dias de preocupações e tra­balhos árduos, sacrifícios e lágrimas! Tudo por­que você, incapaz de compreender a cooperação alheia, se pôs a berrar, inconscientemente, re­cusando a roupa que lhe não agradava.

Pense na lição, meu filho, e não repita a

Todos estamos unidos, reciprocamente, atra­vés de laços que procedem dos desígnios divinos. Ninguém se reúne ao acaso. Forças superiores impelem-nos uns para os outros, de modo a aprendermos a ciência da felicidade, no amor e no respeito mútuos.

O golpe do machado derruba a árvore de vez.

A ventania destrói um ninho de momento para outro.

A ação impensada de um homem, todavia, émuito pior.

O grito de cólera é um raio mortífero, que penetra o círculo de pessoas em que foi pronunciado e aí se demora, indefinidamente, provocan­do moléstias, dificuldades e desgostos.

Porque não aprende a falar e a calar, a be­nefício de todos?

Ajude em vez de reclamar.

A cólera é força infernal que nos distancia da paz divina.

A própria guerra, que extermina milhões de criaturas, não é senão a ira venenosa de alguns homens que se alastra, por muito tempo, amea­çando o mundo inteiro.


27

Carta paterna

Meu filho, não tinhas razão em favor da cólera.

Vi, perfeitamente, quando o velhinho se aproximou para servir-te.

Trazia um coração amoroso e atento que não soubeste compreender

Deste uma ordem que o pobrezinho não ouviu tão bem, quanto desejavas. Repetiste-a e, porque novamente te perguntasse qualquer coisa, proferiste palavras feias, que lhe feriram as fi­bras mais íntimas.

Como foste injusto!...

Quando nasceste, o antigo servidor já ven­cera muitos invernos e servira a muita gente.

Enfraqueceram-se-lhe os ouvidos, ante as imperiosas determinações alheias.

Nunca refletiste na neblina que lhe enevoa o olhar? Adquiriu-a trabalhando à noite, enquan­to dormias, despreocupado.

Sabes porque traz ele as pernas trêmulas? Devorou muitas léguas a pé, solucionando problemas dos outros.

Irritas-te, quando se demora a movimentar-se a teu mando. Contudo, exiges o automóvel para a viagem de dois quilômetros.

Em muitas ocasiões, queixas-te contra ele. É relaxado aos teus olhos, tem as mãos íles­cuidadas e a roupa não muito limpa. Entretanto, nunca imaginaste que o apagado servidor jamais encontrou oportunidades iguais às que recebeste. Além disto, não lhe ofereces o ensinamento amigo e nem tempo para cogitar das próprias necessidades espirituais.

Reclamas longos dias para examinar pequenina questão, referente ao teu bem-estar; to­davia, não lhe consagras nem mesmo uma hora por semana, ajudando-o a refletir...

Respondes, enfadado, quando o velho compa­nheiro te pede alguns níqueis, mas não vacilas em despender pequenas fortunas com amigos ociosos, em noitadas alegres, nas quais te mergu­lhas em fantasioso contentamento.

Interrogas, ingrato: que fizeste do di­nheiro que te dei?

Esqueces que o servo de fronte enrugada não dispôs de tempo e recurso para calcular, com exatidão, os processos de ganhar além do necessário e não conseguiu ensejo de ilustrar o raciocínio com o refinamento que caracteriza o teu.

Ah! meu filho, quando a impaciência te visita o espírito, recorda que o monstro da ira indesejável te bate à porta do coração. E quando a ele te entregas, Imprevidente tuas conquistas mais elevadas tremem nos alicerces. Chego a des­conhecer-te porque a fúria dos elementos interiores te alteram a Individualidade aos meus olhos e eu não sei se passas a condição de criança ou de demônio!...

Se não podes conter, ainda, os movimentos impulsivos de sentimentos Perturbadores, chegado o instante do testemunho cala-te e espera.

A cólera nada edifica e nada restaura... Apenas semeía desconfiança e temor, ao redor de teus passos.

Não ameaces com a voz, nem te insurjas Contra ninguém.

É provável que guardes alguma reclamação contra mim, teu pai, Porque eu também sou ainda humano. No entanto, filho, acima de nós ambos permanece o Pai Supremo, e que seria de ti e de mim, se Deus, um dia, se encolerizasse contra nós?


28

A pregação fundamental

Um aprendiz de Nosso Senhor Jesus-Cristo entusiasmou-se com os ensinamentos do Evangelho e decidiu propagá-los, enquanto vivesse. Leu, atencioso, as lições do Mestre e começou a comentá-las por toda parte, gastando dias e noites nesse mister.

Chegou, porém, o momento em que precisou pagar as próprias despesas e foi compelido a trabalhar.

Empregou-se sob as ordens de um orienta­dor que lhe não agradou. Esse diretor de serviço achava-se muito distante da fé e, por isto, con­trariava-lhe as tendências religiosas. Controla­va-lhe as horas com rigor e observava-o com apontamentos acrimoniosos e rudes.

O pregador do Crucificado não mais se mo­vimentava com a liberdade de outro tempo. Era obrigado a consagrar largos dias a trabalhos di­fíceis que lhe consumiam todas as forças. Prosseguia, ensinando a boa doutrina, quanto lhe era possível; porém, não mais podia agir e falar, como queria ou quando pretendia. Tinha os mi­nutos contados, as oportunidades divididas, as semanas tabeladas e, porque se julgasse vítima das ordenações de sua chefia, procurou o diretor do serviço e despediu-se.

O proprietário que o empregara indagou do motivo que o levava a semelhante resolução.

Um tanto irônico, o rapaz explicou-se:

— Quero ser livre para melhor servir a Jesus. Não posso, pois, aceitar o cativeiro de sua casa.

Nesse dia de folga absoluta, sentiu-se tão independente e tão satisfeito que discorreu, animadamente, sobre a doutrina cristã, até depois de meia-noite, em várias casas religiosas.

Repousando, feliz, alta madrugada sonhou que o Mestre vinha encontrá-lo. Reparou-lhe a beleza celeste e ajoelhou-se para beijar-lhe a túnica resplandecente.

Jesus, porém, estampava na fisionomia dolo­rosa e indisfarçável tristeza.

O discípulo inquietou-se e interrogou:

- Senhor, porque te sentes amargurado?

O Cristo, respondeu, melancôlicamente:

— Porque desprezaste, meu filho, a prega­ção que te confiei?

— Como assim, Senhor? — replicou o jo­vem — ainda hoje abandonei um homem tirânico para melhor ensinar a tua palavra. Tenho dis­cursado em vários templos e comentado a Boa-Nova por onde passo.

— Sim — exclamou o Mestre —, esta é a pregação que me ofereces e que desejo continues fervorosamente; todavia, confiei ao teu espírito a pregação fundamental da verdade a um homem que administra os meus interesses na Terra e não soubeste executá-la. Classificaste-o de igno­rante e cruel; entretanto, olvidas que ele ignora o que sabes. E pretendes, acaso, desconhecer que o orientador humano que te dei somente poderia abordar-me os ensinos, nesta hora, atra­vés de teu exemplo? Tua humildade construtiva, no espírito de serviço, modificar-lhe-ia o cora­ção... Se lhe desses cinco anos consecutivos de demonstrações evangélicas, estaria preparado a caminhar, por si mesmo, na direção do Reino Divino!... E ele, que determina sobre o tempo de duzentos homens, se faria melhor, mais hu­mano e mais nobre, sem prejuízo da energia e da eficiência... Poderás ensinar o caminho ce­lestial a cem mil ouvidos, mas a pregação do exemplo, que converta um só coração ao Infinito Bem, estabelece com mais presteza a redenção do mundo!...

O aprendiz desejou perguntar alguma coisa; entretanto, o Cristo afastou-se num turbilhão de luminosa neblina.

Acordou, sobressaltado, e não mais dormiu naquela noite.

De manhã, pôs-se a caminho do estabeleci­mento em que trabalhara, procurou o diretor de quem se despedira e pediu humildemente:

— Senhor, rogo-lhe desculpas pelo meu ges­to impensado e, caso seja possível, readmita-me nesta casa! aceitarei qualquer gênero de tarefa.

O chefe, admirado, indagou:

— Quem te induziu a esta modificação?

— Foi Jesus — respondeu o rapaz —; não podemos servi-lo por intermédio da indisciplina ou do orgulho pessoal.

O diretor concordou sem vacilação, excla­mando:

— Entre! Estamos ao seu dispor.

Anotou a boa vontade e o sincero desejo de servir de que o empregado dava agora vivo testemunho e passou a refletir na grandeza da doutrina que assim orientava os passos de um homem no aperfeiçoamento moral. E o aprendiz do Evangelho que retomou o trabalho comum, intensamente feliz, compreendeu, afinal, que po­deria prosseguir na propaganda verbal que dese­java e na pregação básica do exemplo que Jesus esperava dele.


29

O barro desobediente

Houve um oleiro que chegou ao pátio de serviço e reparou com alegria em pequeno bloco de barro. Contemplou-o, enlevado, em face da cor viva com que se apresentava e falou:

— Vamos! Farei de ti delicado pote de labo­ratório. O analista alegrar-se-á com teu con­curso valioso.

Imensamente surpreendido, porém, notou que o barro retrucava:

— Oh! não, não quero! Eu, num laborató­rio, tolerando precipitações químicas? por favor, não me toques para semelhante fim!

O oleiro, espantado, considerou:

— Desejo dar-te forma por amor, não por ódio. Sofrerás o calor de forno para que te faças belo e útil... Entretanto, porque te recusas ao que proponho, transformar-te-ei numa caprichosa ânfora destinada a depósito de perfumes.

— Oh! nunca! nunca!... — exclamou o barro — isto não! Estaria exposto ao prazer dos inconscientes. Não estou inclinado a suportar essências, através de peregrinações pelos móveis de luxo.

O dono do serviço meditou muito na desobe­diência da lama orgulhosa, mas, entendendo que tudo devia fazer por não trair a confiança do Céu, ponderou:

— Bem, converter-te-ei, então, num pratO honrado e robusto. Comparecerás à mesa de meu lar. Ficarás conosco e serás companheiro de meus filhinhos.

— Jamais! — bradou o barro, na indisci­plina — isto seria pesada humilhação... Trans­portar arroz cozido e agüentar caldos gordurosos na face? assistir, inerme, às cenas de glutonaria em tua casa? não, não me submetas!...

O trabalhador dedicado perdoou-lhe a ofensa e acrescentou:

— Modificaremos o programa ainda uma vez. Serás um vaso amigo, em que a límpida água repouse. Ajudarás aos sedentos que se apro­ximarem de ti. Muita gente abençoar-te-á a co­operação. Despertarás o contentamento e a gra­tidão nas criaturas!...

— Não, não! — protestou a argila — não quero! Seria condenar-me a tempo indefinido nas

cantoneiras poeirentas ou nas salas escuras de pessoas desclassificadas. Por favor, poupa-me! poupa-me!...

O oleiro cuidadoso considerou, preocupado:

— Que será de ti quando te conduzirem ao forno? Não passarás de matéria endurecida e informe, sem qualquer utilidade ou beleza. Sem sacrifício e sem disciplina, ninguém se eleva aos planos da vida superior.

O barro, todavia, recusou a advertência, bra­dando:

— Não aceito sacrifício, nem disciplina...

Antes que pudesse prosseguir, passou o en­fornador arrebanhando a argila pronta, e o barro desobediente foi também conduzido ao forno em brasa.

Decorrido algum tempo, a lama vaidosa foi retirada e — ó surpresa! — não era pote de laboratório, nem ânfora de perfume, nem prato de refeição, nem vaso para água e, sim, feio pedaço de terra requeimada e morta, sem qual­quer significação, sendo imediatamente atirada ao pântano.

Assim acontece a muitas criaturas no mun­do. Revoltam-se contra a vontade soberana do Senhor que as convida ao trabalho de aperfei­çoamento, mas, depois de levadas pela experiên­cia ao forno da morte, se transformam em ver­dadeiros fantasmas de desilusão e sofrimento, necessitando de longo tempo para retornarem às bênçãos da vida mais nobre.


30

Dá de ti mesmo

Declaraste não possuir dinheiro para au­xiliar.

Acreditas que um pouco de papel ou um tanto de níquel te substituem o coração?

Esqueces-te, meu filho, de que podes sorrir para o doente e estender a mão ao necessitado?

A flor não traz consigo uma bolsa de ouro e entretanto espalha perfume no firmamento.

O céu não exibe chuvas de moedas, mas enche o mundo de luz.

Quanto pagas pelo ar fresco que, em bafejos amigos, te visita o quarto pela manhã?

O oxigênio cobra-te imposto?

Quanto te custa a ternura materna?

As aves cantam gratuitamente.

A fonte que te oferece o banho reconforta­dor não exige mensalidade.

A árvore abre-te os braços acolhedores, re­pletos de flor e fruto, sem pedir vintém.

A bênção divina, cada noite, conduz o teu pensamento a bendito repouso no sono e não fazes retribuição de espécie alguma. Habitual­mente sonhas, colhendo rosas em formoso jardim, junto de companheiros felizes; no entanto, ja­mais te lembraste de agradecer aos gênios espi­rituais que te proporcionam venturoso descanso.

A estrela brilha sem pagamento.

O Sol não espera salário.

Porque não aprenderes com a Natureza em torno?

Porque não te fazeres mais alegre, mais comunicativo, mais doce?

Tens a fisionomia seca e ensombrada por faltar-te dinheiro excessivo e reclamas recursos materiais para ser bom, quando a bondade não nasce dos cofres fortes.

Sê irmão de teu irmão, companheiro de teu companheiro, amigo de teu amigo.

Na ciência de amar, resplandece a sabedoria de dar.

Mostra um semblante sereno e otimista, aonde fores.

Estende os braços, alonga o coração, comu­nica-te com o próximo, através dos fios brilhan­tes da amizade fiel.

Que importa se alguém te não entende o gesto de amor?

Que seria de nós, meu filho, se a mão do Senhor se recolhesse a distância, por temer-nos a rudeza e a maldade?

Dá de ti mesmo, em toda parte.

Muito acima do dinheiro, pairam as tuas mãos amigas e fraternais.


31

A lenda do dinheiro

Conta-se que, no princípio do mundo, o Senhor entrou em dificuldades no desenvolvi­mento da obra terrestre, porque os homens se entregaram a excessivo repouso.

Ninguém se animava a trabalhar. Terra solta amontoava-se aqui e ali. Mine­rais variados estendiam-se ao léu. Águas estag­nadas apareciam em toda parte.

O Divino Organizador pretendia erguer la­res e templos, educandários e abrigos diversos, mas... com que braços?

Os homens e as mulheres da Terra, convi­dados ao suor da edificação por amor, respon­diam: — “para quê ?“ E comiam frutos silves­tres, perseguiam animais para devorá-los e dor­miam sob as grandes árvores.

Após refletir muito, o Celeste Governador criou o dinheiro, adivinhando que as criaturas, presas da ignorância, se não sabiam agir por amor, operariam por ambição.

E assim aconteceu.

Tão logo surgiu o dinheiro, a comunidade fragmentou-se em pequenas e grandes facções, incentivando-se a produção de benefícios gerais e de valores imaginativos.

Apareceram candidatos a toda espécie de serviços.

O primeiro deles pediu ao Senhor permissão para fundar uma grande olaria. Outro requeveu meios de pesquisar os minérios pesados, de ma­neira a transformá-los em utensílios. Certo trabalhador suplicou recursos para aproveitamento de grandes áreas na exploração de cereais. Outro, ainda, implorou empréstimo para produzir fios, de modo a colaborar no aperfeiçoamento do ves­tuário. Servidores de várias procedências vieram e solicitaram auxílio financeiro destinado à cria­ção de remédios.

O Senhor a todos atendeu com alegria.

Em breve, olarias e lavouras, teares rústicos e oficinas rudimentares se improvisaram aqui e acolá, desenvolvendo progresso amplo na inteli­gência e nas coisas.

Os homens, ansiosamente procurando o di­nheiro, a fim de se tornarem mais destacados e poderosos entre si, tràbalhavam sem descanso, produzindo tijolos, instrumentos agrícolas, máquinas, fios, óleos, alimento abundante, agasalho, calçados e inúmeras invenções de conforto, e, assim, a terra menos proveitosa foi removida, as pedras aproveitadas e os rios canalizados convenientemente para a irrigação; os frutos foram guardados em conserva preciosa; estradas foram traçadas de norte a sul, de leste a oeste e as águas receberam as primeiras embarcações.

Toda gente perseguia o dinheiro e guerrea­va pela posse dele.

Vendo, então, o Senhor que os homens pro­duziam vantagens e prosperidade, no anseio de posse, considerou, satisfeito:

- Meus filhos da Terra não puderam servir por amor, em vista da deficiência que, por en­quanto, lhes assinala a posição; todavia, o di­nheiro estabelera benéficas competições entre eles, em benefício da obra geral. Reterão provi­soriamente os recursos que me pertencem e, com a sensação da propriedade, improvisarão todos os produtos e materiais de que o aprimoramento do mundo necessita. Esta é a minha Lei de Empréstimo que permanecerá assentada no Céu. Cederei possibilidades a quantos mo pedirem, de acordo com as exigências do aproveitamento co­mum; todavia, cada beneficiário apresentar-me-ácontas do que houver despendido, porque a Morte conduzi-los-á, um a um, à minha presença. Este decreto divino funcionará para cada pessoa, em particular, até que meus filhos, individualmente, aprendam a servir por amor à felicidade geral, livres do grilhão que a posse institui.

Desde então, a maioria das criaturas passou a trabalhar por dedicação ao dinheiro, que é de propriedade exclusiva do Senhor, da aplicação do qual cada homem e cada mulher prestarão contas a Ele mais tarde.


32

A sentença cristã

Um juiz cristão, rigoroso nas aplicações da lei humana, mas fiel no devotamento ao Evan­gelho, encontrando-se em meio duma sociedade corrompida e perversa, orou, implorando a pre­sença de Jesus.

Tantas sentenças condenatórias devia pro­ferir diàriamente, que se lhe endurecera o co­ração.

Atormentado, porém, entre a confiança que consagrava ao Divino Mestre e as acusações que se acreditava compelido a formular, rogou, certa noite, ao Senhor, lhe esclarecesse o espírito angustiado.

Efetivamente, sonhou que Jesus vinha des­fazer-lhe as dúvidas aflitivas. Ajoelhou-se aos pés do Amoroso Amigo e perguntou:

— Mestre, que normas adotar perante um homicida? Não estará lõgicamente incurso nas penas legais?

O Cristo sorriu, de leve, e respondeu:

— Sim, o criminoso está condenado a rece­ber remédio corretivo, por doente da alma.

O juiz considerou estranha a resposta; con­tudo. prosseguiu indagando:

— Como agir, ante o delinqüente rude, Se­nhor?

— Está condenado a valer-se de nosso auxílio, através da educação pelo amor paciente e construtivo — explicou Jesus, bondoso e calmo.

— Mestre, e que corrigenda aplicar ao pre­guiçoso?

— Está condenado a manejar a enxada ou a picareta, conquistando o pão com o suor do rosto.

— Que farei da mulher pervertida? — in­terrogou o jurista, surpreso.

— Está condenada a beneficiar-se de nosso amparo fraterno, a fim de que se reerga para a elevação do trabalho e para a dignidade hu­mana.

— Senhor, como julgar o ignorante?

— Está condenado aos bons livros.

— E o fanático?

— Está condenado a ser ouvido e interpre­tado com tolerância e caridade, até que aprenda a libertar a própria alma.

— Mestre, e que diretrizes adotar, ante um ladrão?

— Está condenado à oficina e à escola, sob vigilância benéfica.

— E se o ladrão é um assassino?

— Está condenado ao hospício, onde se lhe cure a mente envenenada.

O magistrado passou a meditar gravemente e lembrou-se de que deveria modificar todas as peças do tribunal, substituindo a discriminação de castigos diversos por remédio, serviço, fraternidade e educação. Todavia, não se sentindo bem com a própria consciência, endereçou ao Senhor suplicante olhar, e perguntou, depois de longos instantes:

— Mestre, e de mim mesmo, que farei?

Jesus sorriu, ainda uma vez, e disse, sereno:

— O cristão está condenado a compreender e ajudar, amar e perdoar, educar e construir, distribuir tarefas edificantes e bênçãos de luz renovadora, onde estiver.

Nesse momento, o juiz acordou em lágrimas e, de posse da sublime lição que recebera, reconheceu que, dali em diante, seria outro homem.


33

Viveremos sempre

Filho, não humilhes os ignorantes e os fracos.

Todos somos viajores da vida eterna.

Do berço ao túmulo atravessamos apenas um ato do imenso drama de nossa evolução para Deus.

Por vezes, o senhor veste o traje pobre do operário humilde para conhecer-lhe as duras necessidades, e o operário humilde veste o suntuoso traje do senhor para conhecer-lhe as duras obri­gações na tarefa administrativa.

Quando um homem menospreza as oportu­nidades de tempo e dinheiro que o Céu lhe confia, volta ao mundo em outro corpo, experimentando a escassez de tudo.

Não escarneças do aleijado. Tua boca po­derá cobrir-se de cicatrizes.

Não recolhas os bens que te não pertencem. Teus braços são suscetíveis de caírem paralí­ticos, sem que possas acariciar o que é teu, provisoriamente.

Não caminhes ao encontro do mal, porque o mal dispõe de recursos para surpreender-te, talvez com a perturbação e com a morte.

Ajuda e passa adiante, expandindo um cora­ção compassivo para com todas as dores e cheio de amor e perdão para todas as ofensas.

Quando não puderes louvar, cala-te e espera, porque a língua viciada na definição dos defeitos alheios regressa ao mundo em plena mudez.

Quem chega através de um berço risonho, na maioria dos casos é alguém que torna ao campo da carne, a fim de restaurar-se e aprender.

Assim como a flor se destina ao fruto que alimenta, o teu conhecimento deve produzir a bondade que constrói e santifica.

Lembra-te de que longo é o caminho e que necessitaremos trocar de corpo, na direção da vitória final, tantas vezes quantas forem pre­cisas, até que a indispensabilidade da vestimenta física se desvaneça com as encarnações suces­sivas...

Colheremos da sementeira que fizermos.

Não desprezes, assim, os menos felizes.

O malfeitor e o vagabundo que se deixaram escravizar pelos demônios da preguiça são igualmente nossos irmãos. Ajudemo-los, através de todos os meios ao nosso alcance.

Nem sempre o verdadeiro infortunado éaquele que se debate num leito de sofrimento. Não olvides o infeliz bem trajado que cruza as avenidas da ignorância, sem paz e sem luz.

Filho meu, voltaremos ainda à Terra, pro­vàvelmente, muitas vezes...

O serviço de redenção assim o exige.

Ama a todos.

Auxilia indistintamente.

Semeia o bem, à margem de todas as estradas.

Recorreremos ao amparo de muitos. É da Lei do Senhor que não avancemos sem os braços fraternos uns dos outros.

Prepara, desde agora, a colaboração de que necessitarás, a fim de prosseguirmos, em paz, montanha acima! Sê irmão de todos, para que te sintas, desde hoje, no centro da grande família humana, e o Senhor Supremo te abençoará.


34

A galinha afetuosa

Gentil galinha, cheia de instintos maternais, encontrou um ovo de regular tamanho e espal­mou as asas sobre ele, aquecendo-o carinhosa­mente. De quando em quando, beijava-o, enter­necida. Se saia a buscar alimento, voltava apres­sada, para que lhe não faltasse calor vitalizante. E pensava, garbosa: — “Será meu pintainho! será meu filho!”

Em formosa manhã de céu claro, notou que o filhotinho nascia, robusto.

Criou-o, com todos os cuidados. No entanto, em dourado crepúsculo de verão, viu-o fugir pelas águas de um lago, sobre as quais deslizava contente. Chamou-o, como louca, mas não obteve resposta. O bichinho era um pato arisco e fujão.

A galinha, desalentada por haver chocado um ovo que lhe não pertencia à família, voltou muito triste, ao velho poleiro; todavia, decorrido algum tempo e encontrando outro ovo, repetiu a experiência.

Nova criaturinha frágil veio à luz. Pro­tegeu-a, com ternura, dedicou-se ao filho com todas as forças, mas, em breve, reparou que não era um pintainho qual fora, ela mesma, na in­fância. Tratava-se dum corvo esperto que a deixou em doloroso abatimento, voando a pleno céu, para juntar-se aos escuros bandos de aves iguais a ele.

A desventurada mãe sofreu muitíssiMo. En­tretanto, embora resolvida a viver só. foi surpreendida, certo dia, por outro ovo, de delicada feição. Recapítulou as esperanças maternas e chocou-o. Dentro em pouco, o filhote surgia. A galinha afagou-o, feliz, mas, com o transcurso de algumas semanas, observou que o filho já crescido persQguia ratos à sombra. Durante o dia, dava mostras de perturbado e cego; no en­tanto, em se fazendo a treva, exibia olhos corus­cantes que a amedrontavam. Em noite mais escura, fugiu para uma torre muito alta e não mais voltou. Era uma coruja nova, sedenta de aventuras.

A abnegada mãe chorou amargamente. Po­rém, encontrando outro ovo, buscou ampará-lo. Aninhou-se, aqueceu-o e, findos trinta dias, veio à luz corpulento filhote. A galinha ajudou-o como pôde, mas, em breve, o filho revelou crescimento descomunal. Passou a mirá-la de alto a baixo. Fez-se superior e desconheceu-a. Era um pavãozinho orgulhoso que chegou mesmo a maltratá-la.

A carinhosa ave, dessa vez, desesperou em definitivo. Saiu do galinheiro gritando e dispu­nha-se a cair nas águas de rio próximo, em sinal de protesto contra o destino, quando grande galinha mais velha a abordou, curiosa, a indagar dos motivos que a segregavam em tamanha dor.

A mísera respondeu, historiando o próprio caso.

A irmã experiente estampou no olhar linda expressão de complacência e considerou, cacarejando:

— Que é isto, amiga? não desespere. A obra do mundo é de Deus, nosso Pai. Há ovos de gansos, perus, marrecos, andorinhas e até de sapos e serpentes, tanto quanto existem nos­sos próprios ovos. Continue chocando e ajudando em nome do Poder Criador; entretanto, não se prenda aos resultados do serviço que pertencem a Ele e não a nós, mesmo porque a escada para

o Céu é infinita e os degraus são diferentes. Não podemos obrigar os outros a serem iguais a nós, mas é possível auxiliar a todos, de acordo com as nossas possibilidades. Entendeu?

A galinha sofredora aceitou o argumento, resignou-se e voltou, mais calma, ao grande parque avícola a que se filiava.

O caminho humano estende-se, repleto de dramas iguais a este. Temos filhos, irmãos e parentes diversos que de modo algum se afinam com as nossas tendências e sentimentos. Trazem consigo inibições e particularidades de outras vidas que não podemos eliminar de pronto. Estimaríamos que nos dessem compreensão e carinho, mas permanecem ixnantados a outras pessoas e situações, com as quais assumiram inadiáveis compromissos. De outras vezes, respiram nou­tros climas evolutivos.

Não nos aflijamos, porém.

A cada criatura pertence a claridade ou a sombra, a alegria ou a tristeza do degrau em que se colocou.

Amemos sem o egoísmo da posse e sem qual­quer propósito de recompensa, convencidos de que Deus fará o resto.


35

Na sementeira do amor

Ajuda sempre, filho meu.

Pensa no bem, exalta-lhe a grandeza e inten­sifica-lhe os dons na Terra.

A glória mais expressiva do perdão não re­side tanto na superioridade daquele que o dis­pensa, mas sim na soma de benefícios gerais que virão depois dele, O mais alto valor do concurso fraterno não está contido no socorro às necessi­dades materiais de ordem imediata e, sim, no estimulo à confiança e à fraternidade.

Somente os espíritos em desequilíbrio ex­tremo, fundamente cristalizados no mal, menos­prezam as manifestações do bem.

Sei que é difícil julgar o destino de uma dádiva e, por vezes, teu pensamento se perde, inutilmente, em complicadas conjeturas.

“Terei dado para o bem? terei dado para o mal ?“ — interrogas a ti mesmo.

Mas, se não deste quanto possuis, se apenas concedeste migalhas do tesouro que o Senhor te confiou, não poderás ajudar ao próximo, tranqui­lamente, em nome do mesmo generoso Senhor que tudo te emprestou no mundo, a título precário?

Claro que te não rogo favorecer o crime e a desordem visíveis ao nosso olhar. Entretanto, se te posso pedir alguma coisa, em tempo algum te negues à cooperação fraterna.

Não abandones o enfermo, receando aborre­cimentos, e nem fujas ao irmão desditoso que caiu nas malhas da justiça, temendo dissabores.

Se tua bondade não for compreendida, apren­de a esperar.

Não é mais cristão aquele que serve por amor de servir, sem qualquer expectativa de remuneração?

Não te esqueças de que o Mestre foi condu­zido ao madeiro da angústia, por ajudar e amar sempre...

Erra, auxiliando.

Será melhor assim, porque todos estamos sob o olhar da Vigilância Divina.

O homem que ajuda por vaidade e osten­tação, quase sempre, em pouco tempo, cria para si mesmo o hábito de auxiliar, atingindo subli­mes virtudes. Aquele, porém, que muito fiscaliza os beneficiados e raciocina com excesso quanto

ao “dar” e ao “não dar” converte-se, não raro, em calculista da piedade, a endurecer o coração, por séculos numerosos.

Ouve! Estamos à frente do tempo infinito...

É imprescindível cemear.

Não adubes o vício e o crime. Todavia, não olvides que é necessário plantar muito amor, para que o amor nos favoreça.


36

O maior pecado

Um sacerdote sábio, desejando ensinar o caminho do Céu aos crentes que confiavam nele, rogou a Jesus, depois de longas meditações e sacrifícios, lhe fôsse revelado qual o maior impe­dimento contra a iluminação espiritual.

Com efeito, de mente limpa, dormiu e sonhou que era conduzido à Porta Celestial.

Nimbado de esplendor, um anjo recebeu-o, benevolente.

- Mensageiro de Deus! — clamou o sacer­dote — venho rogar a verdade para as ovelhas humanas que me seguem...

— Que pretendes saber? — indagou a enti­dade angélica.

— Peço esclarecimento sobre o maior obstá­culo para a alma, na marcha para Deus. Sei que temos sete pecados mortais que aniquilam em nós a graça divina, na ascensão para o Alto. Sob a influência de semelhantes monstros, rola o espírito no despenhadeiro infernal. Entretanto, desejaria explicações mais claras, quanto ao pro­blema do mal, porque nossas faltas variam ao infinito.

O anjo sorriu e considerou:

— A solução é simples. Quais são os peca­dos a que te referes?

O ministro da fé movimentou os dedos e respondeu:

— Soberba, avareza, luxúria, ira, gula, in­veja e preguiça. Deles nascem as demais imperfeições.

O mensageiro, contudo, acrescentou:

— No fundo, porém, podemos reduzi-los àunidade. Todos os pecados, inclusive os mortais, procedem de uma fonte única.

O sacerdote, curioso, suplicou:

— Oh! anjo amigo, aclara-me o entendi­mento! Há muitos aprendizes, na Terra, aguar­dando-me a palavra!...

O emissário da Esfera Superior, sem qual­quer presunção de superioridade, passou a elu­cidar:

— Escuta e atende!

Se o soberbo trabalhasse para o bem de todos, não encontraria ensejo de cultivar o orgu­lho e a vaidade que o levam a acreditar-se ponto central do universo.

Se o avarento conhecesse a vantagem do suor, na felicidade dos semelhantes, não se entregaria à volúpia da posse que o obriga a acumu­lar dinheiro inütilmente.

Se o homem inclinado à tentação dos pra­zeres fáceis aprendesse a despender as próprias forças em favor da elevação coletiva, não dis­poria de ocasião para prender-se às paixões aniquiladoras que o arrastam ao crime.

Se as pessoas facilmente irascíveis estives­sem dispostas a servir de acordo com os desig­nios divinos, não envenenariam a própria saúde com remorsos e angústias injustificáveis.

Se o guloso vivesse atento à tarefa constru­tiva que lhe cabe no mundo, não se escravizaria aos apetites devastadores que lhe arruinam o corpo e a alma.

E se o invejoso utilizasse a existência, no trabalho digno, não gastaria tempo acompanhan­do maliciosamente as iniciativas do próximo, complicando o próprio destino...

Como vê, o maior dos pecados, a causa pri­mordial de todos os males, é a preguiça.

Dá trabalho edificante às tuas ovelhas e convence-te de que, na posse do serviço, não se afastarão do caminho justo.

O sacerdote não mais teve o que perguntar.

Despertou, edificado, e, do dia seguinte em diante, o povo reparou que o ministro modificara as pregações.


37

Apontamento

Manifestaste Indisfarçável aborrecimento, ante as observações paternas que te contraria­ram os propósitos impensados.

Ontem, abusaste da alimentação, hoje pre­tendias uma excursão inconveniente.

Referiu-se teu pai às necessidades do espí­rito, com acentuada tristeza; todavia, longe de lhe entenderes a nobreza do gesto, buscaste, in­tempestivo, os braços maternos, na ânsia incon­tida de aprovação aos teus caprichos juvenis.

Foste, porém, injusto.

O jovem que recusa a orientação acertada dos mais velhos que lhe desejam o bem, procede qual lavrador leviano que reprova a boa semente.

Estimas as longas incursões no pomar, quan­do as laranjeiras se cobrem de frutos e quando a parreira deita uvas doces.

Acreditas, no entanto, que as árvores exce­lentes teriam crescido sem cuidado? admites que a vinha não necessitou de amparo em pequena?

Todas as plantas, mormente as mais tenras, sofrem insistentes perseguições de detritos e vermes. Sem carinhosas mãos que as protejam, ser-lhes-ia impraticável o desenvolvimento e a frutificação; muitos dias de vigilância requerem do pomicultor antes de nos atenderem na chácara.

Ignoras que o mesmo acontece no campo do coração?

As más experiências de uma criança acom­panham-na a vida inteira.

Diz antigo provérbio: “com o tempo, a folha da amoreira converte-se em veludoso cetim”; mas não podemos esquecer que também com o tempo as águas desamparadas e esque­cidas se transformam em pântano.

Não te revoltes contra a sementeira de reflexão e bondade que o carinho paterno rea­liza em teu espírito.

Sobretudo, não te impressiones com a fan­tasiosa opinião de colegas da rua, O tempo dará corpo aos princípios inferiores ou superiores que abraçares e, enquanto o companheiro estranho ao teu lar pode ser o amigo de alguns dias, o papai ser-te-á o amigo e benfeitor de muitos anos.


38

O remédio imprevisto

O pequeno príncipe Julião andava doente e abatido.

Não brincava, não estudava, não comia. Per­dera o gosto de colher os pêssegos saborosos do pomar. Esquecera a peteca e o cavalo.

Vivia tristonho e calado no quarto, espar­ramado numa espreguiçadeira.

Enquanto a mãezinha, aflita, se desvelava junto dele, o rei experimentava muitos médicos.

Os facultativos, porém, chegavam e saíam, sem resultados satisfatórios.

O menino sentia grande mal-estar. Quando se lhe aliviava a dor de cabeça, vinha-lhe a dor nos braços. Quando os braços melhoravam, as pernas se punham a doer.

O soberano, preocupado, fêz convite público aos cientistas do País. Recompensaria nababescamente a quem lhe curasse o filho.

Depois de muitos médicos famosos ensaia­rem, embalde, apareceu um velhinho humilde que propôs ao monarca diferente medicação. Não exigia pagamento. Reclamava tão sômente plena autoridade sobre o doentinho. Julião deveria fazer o que lhe fôsse determinado.

O pai aceitou as condições e, no dia imediato, o menino foi entregue ao ancião.

O sábio anônimo conduziu-o a pequeno trato de terra e recomendou-lhe arrancasse a erva daninha que ameaçava um tomateiro.

— Não posso! estou doente! — gritou o menino.

O velhinho, contudo, convenceu-o, sem im­paciência, de que o esforço era viável e, em mi­nutos breves, ambos libertavam as plantas da erva invasora.

Veio o Sol, passou o vento; as nuvens, no alto, rondavam a terra, como a reparar onde estava o campo mais necessitado de chuva...

Um pouco antes do meio-dia, Julião disse ao velho que sentia fome, O sábio humilde sor­riu, contente, enxugou-lhe o suor copioso e le­vou-o a almoçar.

O jovem devorou a sopa e as frutas, gosto­samente.

Após ligeiro descanso, voltaram a trabalhar.

No dia seguinte, o ancião levou o príncipe a servir na construção de pequena parede.

Julião aprendeu a manejar os instrumentos menores de um pedreiro e alimentou-se ainda melhor.

Finda a primeira semana, o orientador tra­çou-lhe novo programa. Levantava-se de manhã para o banho frio, obrigava-se a cavar a terra com uma enxada, almoçava e repousava. Logo após, antes do entardecer, tomava livros e ca­dernos para estudar e, à noitinha, terminada a última refeição, brincava e passeava, em com­panhia de outros jovens da mesma idade.

Transcorridos dois meses, Julião era res­tituído à autoridade paternal, rosado, robusto e feliz. Ardia, agora, em desejos de ser útil, ansioso por fazer algo de bom. Descobrira, enfim, que o serviço para o bem é a mais rica fonte de saúde.

O rei, muito satisfeito, tentou recompensar o velhinho.

Todavia, o ancião esquivou-se, acrescentando:

— Grande soberano, o maior salário de um homem reside na execução da Vontade de Deus, através do trabalho digno. Ensina a glória do serviço aos teus filhos e tutelados e o teu reino será abençoado, forte e feliz.

Dito isto, desapareceu na multidão e ninguém mais o viu.


39

Dos animais aos meninos

Meu pequeno amigo:

Ouça.

Não nos faça mal, nem nos suponha seus adversários.

Somos imensa classe de servidores da Natu­reza e criaturas igualmente de Deus.

Cuidamos da sementeira para que lhe não falte o pão, ainda que muitos de nossa família, por ignorância, ataquem os grelos tenros da ver­dura e das árvores, devorando germens e flores. Somos nós, porém, que, na maioria das vezes, garantimos o adubo às plantações e defende­mo-las contra os companheiros daninhos.

Se você perseguir-nos, sem comiseração por nossas fraquezas, quem lhe suprirá o lar de leite e ovos?

Não temos paz em nossas furnas e ninhos, obrigados que estamos a socorrer as necessidades dos homens.

Você já notou o pastor, orientando-nos cuidadosamente? Julgávamo-lo, noutro tempo, um protetor incondicional que nos salvava do perigo por amor e lambíamos-lhe as mãos, reconhecidamente. Descobrimos, afinal, que sempre nos guiava, ao fim de algum tempo, até ao mata­douro, entregando-nos a impiedosos carrascos. Às vezes, conseguíamos escapar por momentos, tornando até ele, suplicando ajuda, e víamos, desiludidos, que ele mesmo auxiliava o verdugo a enterrar-nos o cutelo pela garganta a dentro.

A princípio, revoltámo-nos. Compreendemos, depois, que os homens exigiam nossa carne e resignamo-nos, esperando no Supremo Criador que tudo vê.

As donas de casa que comumente nos cha­mam, gentis, através de currais, pocilgas e galinheiros, conquistam-nos a amizade e a confiança, para, em seguida, nos decretarem a morte, arras­tando-nos espantados e semi-vivos à água fer­vente.

Não nos rebelamos. Sabemos que há um Pai bondoso e justo, observando-nos, de certo, os padecimentos e humilhações, apreciando-nos os sacrifícios.

De qualquer modo, todavia, estamos inse­guros em toda parte. Ignoramos se hoje mesmo seremos compelldos a abandonar nossos filhinhos

em lágrimas ou a separar-nos dos pais queridos, a fim de atendermos à refeição de alguém.

Por que motivo, então, se lembrará você de apedrejar-nos sem piedade?

Não nos maltrate, bom amigo.

Ajude-nos a produzir para o bem.

Você ainda é pequeno e, por isto mesmo, ainda não pode haver adquirido o gosto de matar. Não é justo, assim, colocarmo-nos de mãos pos­tas, ante o seu olhar bondoso, esperando de seu coração aquele amor sublime que Jesus nos ensinou?


40

A lenda da árvore

No princípio do mundo, quando os vários reinos da Natureza já se achavam apaziguados e enquanto o ouro e o ferro repousavam no sub-solo, o homem, os animais de grande porte, os passarinhos, as borboletas, as ervas e as águas viviam na superfície da Terra... E o Supremo Senhor, notando que os serviços planetários se desdobravam regularmente, chamou-os ao seu Trono de Luz, a fim de ouvi-los.

A importante audiência do Todo-Poderoso começou pelo Homem, que se aproximou do Altíssimo e informou:

— Meu Pai, o globo terrestre é nossa glo­riosa oficina. Minha esposa, tanto quanto eu, se sente muito feliz; entretanto, experimentamos falta de alguém que nos faça companhia, em torno do lar, e nos auxilie a criar os filhinhos.

O Todo-Misericordioso mandou anotar a re­ferência do Homem e continuou a ouvir as outras criaturas.

Veio o Boi e falou:

— Senhor, estou muito bem; contudo, va­gueio sem descanso durante as horas de sol. Grande é a minha fadiga e a resistência cada vez menor...

Veio o Cavalo e reclamou:

— Eu também, Grande Rei, sinto aflitivo calor cada dia...

Aproximou-se a Corça e rogou:

— Poderoso, estou exposta à perseguição de toda gente. Não terei a graça de um ser amigo que me proteja e defenda?

Logo após, surgiu gracioso passarinho e su­plicou:

— Celeste Monarca, recebi a bênção da vida, mas não tenho recursos para fazer meu ninho. Nas pastagens rasteiras, não posso construir a casa...

Adiantou-se a Borboleta e implorou:

— Meu Deus, tudo é belo no mundo; to­davia, onde repousarei?

Em último lugar, chegou o Rio e disse:

— Grande Senhor, venho cumprindo os meus deveres na Terra, escrupulosamente, mas preciso de alguém que me ajude a conservar as águas...

O Supremo Soberano ficou pensativo e pro­meteu providenciar.

No dia imediato, toda a Terra apareceu di­ferente.

As árvores robustas e acolhedoras haviam surgido, representando a sublime resposta de Deus.


41

O exército poderoso

O exército poderoso, à nossa disposição, está constituído, na atualidade, por vinte e três soldadinhos do progresso.

Separam-se, movimentam-Se, entrelaçam-se e dominam o grande país das ideias.

Sem eles, cresceríamos para a sombra, quan­do não para a brutalidade.

Em companhia desses auxiliares pequeninos, penetramos os santuários da ciência e da arte, aperfeiçoando a vida.

Quem os não conhece?

Estão nos documentos mais importantes.

Fazem as mensagens telegráficas e as re­ceitas dos médicos.

Dão notícias de outras regiões e de outros climas.

Contam as surpresas do Céu, explicam algu­ma coisa das estrelas longínquas.

Fornecem avisos preciosos.

São emissários do carinho entre os filhos e as mães distantes.

Raros recordam os benefícios imensos que todos devemos a esses ajudantes minúsculos. No entanto, eles nos servem sem recompensa. Nada reclamam pelo trabalho que nos prestam. Alimentam as raízes dos valiosos conhecimentos dos administradores, dos juizes, dos médicos, dos artistas, sem qualquer remuneração.

Instrumentos das luzes espirituais que se transmitem, de cérebro a cérebro, enriquecem a vida; porém, assim como quase nunca nos lem­bramos de louvar a água, o vento e a planta, que representam gloriosas dádivas do Altíssimo, muito raramente lhes observamos os serviços. Jamais se cansam. Vivem no pensamento, de onde se expandem, amparando-nos os interesses e as realizações.

Os maus se utilizam deles para fazer a guer­ra; os bons empregam-nos na edificação da paz e do conforto, para a redenção e felicidade do mundo.

Esses soldadinhos humildes e prestimosos são as letras do alfabeto. Sem a cooperação deles, o mundo não seria tão belo e a vida não seria tão boa, porque o acesso ao reino espiritual se tornaria extremamente difícil.

Aprender a trabalhar com esses pequenos auxiliares da inteligência é buscar tesouros imperecíveis.

O castelo da cultura humana começa sobre a colaboração deles e vai até à pátria divina, onde mora a sabedoria dos anjos.


42

O amigo sublime

É sempre o amigo sublime.

Educa sem ferir-nos.

Diverte, edificando-nos o caráter.

Revela-nos o passado e prepara-nos, diante do porvir.

Repete-nos o que Sócrates ensinou nas pra­ças de Atenas.

Descobre-nos ao olhar maravilhado as civi­lizações que passaram. O Egito resplandecente dos faraós, a Grécia dos filósofos e artistas, a Jerusalém dos hebreus, desfilam ante a nossa imaginação, ao seu toque espiritual.

Conta-nos o que realizou Moisés, o grande legislador.

Lembra-nos a palavra de Platão e Aris­tóteles.

Junto dele, aprendemos quanto sofreram nossos antepassados, na conquista do bem-estar de que gozamos presentemente.

Descreve-nos a inutilidade das guerras nas­cidas do ódio que devastaram o mundo. Aconse­lha-nos quanto à sementeira de tranqüilidade e alegria. Ajuda-nos no entendimento de nós mes­mos e na compreensão de nossos vizinhos. Dá-nos coragem para o trabalho, e humildade no caminho da experiência.

Sem ele, perderíamos as mais belas notícias de nossos avós e a obra da vida não alcançaria a necessária significação; passaríamos na Terra, em pleno desconhecimento uns dos outros, e a lição preciosa dos homens mais velhos não che­garia aos ouvidos dos mais novos; a religião e a ciência provavelmente não surgiriam à luz da realidade; os mais elevados ideais do espírito humano morreriam sem eco; a indústria, o co­mércio e a navegação não possuiriam pontos de apoio.

É o traço de união, entre os que ensinam e aprendem, entre os milênios que já se foram e o dia que vivemos agora.

É, ainda, a esse amigo abençoado que deve­mos a coleção de notícias e ensinamentos de Jesus, que renovam a Terra para o Reino Divino.

Esse inesquecível benfeitor do mundo é o livro edificante. Por isto, não nos esqueçamos

de que todo livro consagrado ao bem é um com­panheiro iluminado de nossa vida, merecendo a estima e o respeito universal.


43

O peru pregador

Um belo peru, após conviver largo tempo na intimidade duma família que dispunha de vastos conhecimentos evangélicos, aprendeu a transmitir os ensinamentos de Jesus, esperan­do-lhe também as divinas promessas. Tão ver­sado ficou nas letras sagradas que passou a propagá-las entre as outras aves.

De quando em quando, era visto a falar em sua estranha linguagem “glá-glé-gli-gló-glu”. Não era, naturalmente, compreendido pelos homens. Mas os outros perus, as galinhas, os gansos e os marrecos, bem como os patos, entendiam-no perfeitamente.

Começava o comentário das lições do Evan­gelho e o terreiro enchia-se logo. Até os pintainhos se aquietavam sob as asas maternas, a fim de ouvi-lo.

O peru, muito confiante, assegurava que Jesus-Cristo era o Salvador do Mundo, que viera alumiar o caminho de todos e que, por base de sua doutrina, colocara o amor das criaturas umas para com as outras, garantindo a fórmula de verdadeira felicidade na Terra. Dizia que todos os seres, para viverem tranquilos e contentes, deveriam perdoar aos inimigos, desculpar os transviados e socorrê-los.

As aves passaram a venerar o Evangelho; todavia, chegado o Natal do Mestre Divino, eis que alguns homens vieram aos lagos, galinheiros, currais e, depois de se referirem excessivamente ao amor que dedicavam a Jesus, laçaram fran­gos, patinhos e perus, matando-os, ali mesmo, ante o assombro geral.

Houve muitos gritos e lamentações, mas os perseguidores, alegando a festa do Cristo, distribuíram pancadas e golpes à vontade.

Até mesmo a esposa do peru pregador foi também morta.

Quando o silêncio se fez no terreiro, ao cair da noite, havia em toda parte enorme tristeza e irremediável angústia de coração.

As aves aflitas rodearam o doutrinador e crivaram-no de perguntas dolorosas.

Como louvar um Senhor que aceitava tantas manifestações de sangue na festa de seu natalício? como explicar tanta maldade por parte dos

homens que se declaravam cristãos e operavam tanta matança? não cantavam eles hinos de homenagem ao Cristo? não se afirmavam dis­cípulos dEle? precisavam, então, de tanta morte e tanta lágrima para reverenciarem o Senhor?

O pastor alado, muito contrafeito, prometeu responder no dia seguinte. Achava-se igualmente cansado e oprimido. Na manhã imediata, ante o Sol rutilante do Natal, esclareceu aos companheiros que a ordem de matar não vinha de Jesus, que preferira a morte no madeiro a ter de justiçar; que deviam todos eles continuar, por isso mesmo, amando o Senhor e servindo-o, acrescentando que lhes cabia perdoar setenta vezes sete. Explicou, por fim, que os homens degola­dores estavam anunciados no versículo quinze do capítulo sete, do Apóstolo Mateus, que esclarece: — “Acautelai-vos, porém, dos falsos pro­fetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores”. Em seguida, o peru recitou o capítulo cinco do mes­mo evangelista, comentando as bem-aventuranças prometidas pelo Divino Amigo aos que choram e padecem no mundo.

Verificou-se, então, imenso reconforto na comunidade atormentada e aflita, porque as aves se recordaram de que o próprio Senhor, para alcançar a Ressurreição Gloriosa, aceitara a morte de sacrifício igual à delas.


44

Somos chamados a servir

O legislador, com a pena, traça decretos para reger o povo.

O escritor utiliza o mesmo instrumento e escreve livros que renovam o pensamento do mundo.

Mas, não é só a pena que, manejada pelo homem, consegue expressar a sabedoria, a arte e a beleza, dentro da vida.

Uma vassoura simples faz a alegria da lim­peza e, sem limpeza, o administrador ou o poeta não conseguem trabalhar.

O arado arroteia o solo e traça linhas das quais transbordarão o milho, o arroz, a batata e o trigo, enchendo os celeiros.

A enxada grava sulcos abençoados no chão, a fim de que a sementeira progrida.

A plaina corrige a madeira bruta, coope­rando na construção do lar.

A janela é um poema silencioso a comuni­car-nos com a natureza externa; o leito é um santuário horizontal, convidando ao descanso.

O malho toma o ferro e transforma-o em utilidades preciosas.

O prato recolhe o alimento e nos sugere a Caridade.

O moinho recebe os grãos e converte-os no milagre da farinha.

O barro desprezível, nas mãos operosas ao oleiro, em breve surge metamorfoseado em vaso precioso.

Todos os instrumentos de trabalho no mun­do, tanto quanto a pena, concretizam os ideais superiores, as aspirações de serviço e os impulsos nobres da alma.

Ninguém suponha que, perante Deus, os grandes homens sejam sômente aqueles que usam a autoridade intelectual manifestada. Quando os políticos orientam e governam, é o tecelão quem lhes agasalha o corpo. Se os juizes se congregam nas mesas de paz e justiça, são os lavradores quem lhes ofertam recurso ao jantar.

Louvemos, pois, a Divina Inteligência que dirige os serviços do mundo!

Se cada árvore produz, segundo a Sua espe­cialidade a benefício da Prosperidade comum, lembremo-nos de que Somos todos chamados a servir na obra do Senhor, de maneira diferente

Cada trabalhador em seu campo seja hon­rado pela Cota de bem que produza e cada servo Permaneça Convencido de que a maior homenagem suscetível de ser prestada por nós ao Senhor é a correta execução do nosso dever, Onde esti­vermos.


45

O anjo da limpeza

Adélia ouvira falar em Jesus e tomara-se de tamanha paixão pelo Céu que nutria um desejo único — ser anjo para servir ao Divino Mestre.

Para isso, a boa menina fez-se humilde e crente, e, quando se não achava na escola em contacto com os livros, mantinha-se na câmara de dormir em preces fervorosas.

Cercava-se de lindas gravuras, em que os artistas do pincel lembram a passagem do Cristo entre os homens, e, em lágrimas, repetia: — “Se­nhor, quero ser tua! quero servir-te!...”

A Mãezinha, em franca luta doméstica, em­balde convidava-a aos serviços da casa.

Adélia sorria, abraçava-se a ela e reafirmava o propósito de preparar-se para a companhia do Divino Amigo.

A bondosa senhora, observando que o ideal da filha só merecia louvores, deixava-a em paz com os estudos e orações de cada dia.

Meses correram sobre meses e a jovem pros­seguia inalterável.

Orando sempre, suplicava ao Senhor a trans­formasse num anjo.

Decorridos dois anos de rogativas, sonhou, certa noite, que era visitada pelo Mestre Amoroso.

Jesus envolvia-se em vasta auréola de cla­ridade sublime. A túnica luminosa, a cair-lhe dos ombros com graça e beleza, parecia de neve coroada de sol.

Estendendo-lhe a destra compassiva, o Cris­to observou-lhe:

— Adélia, ouvi tuas súplicas e venho ao teu encontro. Desejas realmente servir-me?

— Sim, Senhor! — respondeu a pequena, inflamada de comoção jubilosa, convencida de que o Salvador a conduziria naquele mesmo ins­tante para o Céu.

— Ouve! — tornou o Mestre, docemente.

Ansiosa de pôr-se a caminho do paraíso, a jovem replicou, reverente:

— Dize, Senhor! estou pronta!... Leva-me contigo, sinto-me aflita para comparecer entre os que retêm a glória de servir-te no plano celestial!...

O Cristo sorriu, bondoso, e considerou:

Não, Adélia. Nosso Pai não te colocou inutilmente na Terra. Temos enorme serviço nes­te mundo mesmo. Estimo tuas preces e teus pen­samentos de amor, mas preciso de alguém que me ajude a retirar o lixo e os detritos que se amontoam, não longe de tua casa. Meninos Cruéis prejudicaram a rede de esgoto, a pequena dis­tância do teu lar. Aí se concentra perigoso foco de moléstias, ameaçando trabalhadores despre­venidos, mães devotadas e crianças incautas. Vai, minha filha! Ajuda-me a salvá-los da morte. Estarei contigo, auxiliando-te nessa meritória tarefa.

A menina preocupada quis fazer perguntas, mas o Mestre afastou-se, de leve...

Acordou sobressaltada.

Era dia.

Vestiu-se à pressa e procurou a zona indicada. Corajosa muniu-se de desinfetantes, armou-se de enxada e vassoura pediu a contribuição materna, e o foco infeccioso foi extinto.

A discípula obediente, todavia, não parou mais.

Diariamente, ao regressar da escola, pu­nha-se a colaborar com a Mamãe, em casa, zelan­do também quanto lhe era Possível pela higiene das vias públicas e ensinando outras crianças a serem tão Cuidadosas, quanto ela mesma. Tanto trabalhou e se esforçou que, certo dia, o diretor do grupo escolar lhe conferiu o título de Anjo da Limpeza. Professoras e colegas comemoraram festivamente o acontecimento.

Chegada a noite, dormiu contente e sonhou que Jesus vinha encontrá-la, de novo.

Nimbado de luz, abraçou-a, com ternura, e disse-lhe brandamente:

— Abençoada sejas, filha minha! agora, que os próprios homens te reconhecem por benfeitora, agradeço-te os serviços que me prestas dià­riamente. Anjo da Limpeza na Terra, serás Anjo de Luz no Paraíso.

Em lágrimas de alegria intensa, Adélia des­pertou, feliz, compreendendo, cada vez mais, que a verdadeira ventura reside em colaborar com o Senhor, nos trabalhos do bem, em toda parte.


46

No passeio matinal

Dionísio, o moleiro, muito cedo partiu em companhia do filhinho, na direção de grande milharal.

A manhã se fizera linda.

Os montes próximos pareciam vestidos em gaze esvoaçante.

As folhas da erva, guardando, ainda, o orva­lho noturno, assemelhavam-se a caprichoso tecido verde, enfeitado de pérolas. Flores vermelhas, aqui e ali, davam a ideia de jóias espalhadas no chão.

As árvores, muito grandes, à beira da estra­da, despertavam, de leve, à passagem do vento.

O Sol aparecia, brilhante, revestindo a pai­sagem numa coroa resplandecente.

Reinaldo, o pequeno guiado pela mão pa­terna, seguia num deslumbramento. Não sabia o que mais admirar: se o lençol de neblina muito alva, se o horizonte inflamado de luz. Em dado momento, perguntou, feliz:

— Papai, de quem é todo este mundo?

— Tudo pertence ao Criador, meu filho —esclareceu o moleiro, satisfeito —; o Sol, o ar, as águas, as árvores e as flores, tudo, tudo, é obra dEle, nosso Pai e Senhor.

— Para que tudo isto? — continuou o petiz contente.

— A fim de recebermos esta escola divina, que é a Terra.

— Escola?

— Sim, filho — tornou o genitor pacien­te —, aqui devemos aprender, no trabalho, a amar-nos uns aos outros, aprimorando senti­mentos, quanto devemos aperfeiçoar o solo que pisamos, transformando colinas, planícies e pe­dras em cidades, fazendas, estábulos, pomares, milharais e jardins.

Reinaldo não entendeu, de pronto, o que significava “aprimorar sentimentos”; contudo, sabia perfeitamente o que vinha a ser a remoção dum monte empedrado. Surpreso, voltou a in­dagar:

— Então, papai, somos obrigados a traba­lhar tanto assim? Como será possível modificar este mundo tão grande?

O moleiro pensou alguns instantes e ob­servou:

— Meu filho, já ouvi dizer que uma ando­rinha vagueava só, quando notou que um incên­dio lavrava em seu campo predileto, O fogo consumia plantas e ninhos. Em vão, gritou por socorro. Reconhecendo que ninguém lhe escutava as súplicas, pôs-se rápida para o córrego não distante, mergulhando as pequenas asas na água fria e límpida; daí, voltava para a zona incen­diada, sacudindo as asas molhadas sobre as chamas devoradoras, procurando apagá-las. Re­petia a operação, já por muitas vezes, quando se aproximou um gavião preguiçoso, indagando-lhe com ironia: — “Você, em verdade, acredita com­bater um incêndio tão grande com algumas gotas dágua?“ A avezinha prestativa, porém, respondeu, calma: — “É provável que eu não possa fazer a obra toda; entretanto, sou imensa­mente feliz cumprindo o meu dever.

O moleiro fêz uma pausa e interrogou o filho:

— Não acredita você que podemos imitar semelhante exemplo? Se todos procedêssemos como a andorinha operosa e vigilante, em pouco tempo toda a Terra estaria transformada num paraíso.

O menino calou-se, entendendo a extensão do ensinamento e, no íntimo, contemplando a beleza do quadro matinal, desde as margens do caminho até a montanha distante, prometeu a si mesmo que procuraria cumprir no mundo todas as obrigações que lhe coubessem na obra sublime do Infinito Bem.


47

O ensino da sementeira

Certo fazendeiro, muito rico, chamou o filho de quinze anos e disse-lhe:

— Filho meu, todo homem apenas colherá daquilo que plante. Cuida de fazer bem a todos, para que sejas feliz.

O rapaz ouviu o conselho e, no dia imediato, muito carinhosamente alojou minúsculo cajueiro em local não distante da estrada que llgava o vilarejo próximo à propriedade paternal.

Decorrida uma semana, tendo recebido das mãos paternas um presente em dinheiro, foi àvila e protegeu pequena fonte natural, construin­do-lhe conveniente abrigo com a cooperação de alguns poucos trabalhadores, aos quais recom­pensou generosamente.

Reparando que vários mendigos por ali pas­savam, ao relento, acumulou as dádivas que recebia dos familiares e, quando completou vinte anos, edificou reconfortante albergue para asilar viajores sem recursos.

Logo após, a vida lhe impôs amargurosas surpresas.

Sua Mãezinha morreu num desastre e o Pai, em virtude das perseguições de poderosos inimigos na luta comercial, empobreceu ràpidamente, falecendo em seguida. Duas irmãs mais velhas casaram-se e tomaram diferentes rumos.

O rapaz, agora sôzinho, embora jamais es­quecesse os conselhos paternos, revoltou-se con­tra as idéias nobres e partiu mundo afora.

Trabalhou, ganhou enorme fortuna e gas­tou-a, gozando os prazeres inúteis.

Nunca mais cogitou de semear o bem.

Os anos se desdobraram uns sobre os outros.

Entregue à idade madura, dera-se ao vício de jogar e beber.

Muita vez, o Espírito de seu pai se aproxi­mava, rogando-lhe cuidado e arrependimento. O filho registrava-lhe os apelos em forma de pensa­mentos, mas negava-se a atender. Queria sômente comer à vontade e beber nas casas ruidosas, até à madrugada.

Acontece, porém, que o equilíbrio do corpo tem limites e sua saúde se alterou de maneira lamentável. Apareceram-lhe feridas por todo o corpo. Não podia alimentar-se regularmente. Perdeu a fortuna que possuia, através de viagens e tratamentos caros. Como não fizera afeições,

foi relegado ao abandono. Branquejaram-se-lhe

os cabelos. Os amigos das noitadas alegres fu­giram dele; envergonhado, ausentou-se da cidade

a que se acolhera e transformou-se em mendigo. Peregrinou pôr muitos lugares e por muitos

climas, até que, um dia, sentiu imensas saudades do antigo lar e voltou ao pequeno burgo que o vira crescer.

Fez longa excursão a pé. Transcorridos mui­tos dias, chegou, extenuado, ao sítio de outro tempo.

O cajueiro que plantara convertera-se em árvore dadivosa. Encantado, viu-lhe os frutos tentadores. Aproveitou-os para matar a própria fome e seguiu para a vila. Tinha sede e buscou a fonte. A corrente cristalina, bem protegida, afagou-lhe a boca ressequida.

Ninguém o reconheceu, tão abatido estava.

Em breve, desceu a noite e sentiu frio. Dois homens caridosos ofereceram-lhe os braços e con­duziram-no ao velho asilo que ele mesmo cons­truíra. Quando entrou no recinto, derramou muitas lágrimas, porque seu nome estava gravado na parede com palavras de louvor e bênção.

Deitou-se, constrangido, e dormiu.

Em sonho, viu o Espírito do pai, junto a ele, exclamando:

- Aprendeste a lição, meu filho? Sentiste fome e o cajueiro te alimentou; tiveste sede e a fonte te saciou; necessitavas de asilo e te aco­lheste ao lar que edificaste em favor dos que passam com destino incerto...

Abraçando-o, com ternura, acrescentou:

— Porque deixaste de semear o bem?

O interpelado nada pôde responder. As lá­grimas embargavam-lhe a voz, na garganta.

Acordou, muito tempo depois, com o rosto lavado em pranto, e, quando o encarregado do abrigo lhe perguntou o que desejava, informou simplesmente:

— Preciso tão somente de uma enxada... Preciso recomeçar a ser útil, de qualquer modo.


48

O Espírito da Maldade

O Espírito da Maldade, que promove aflições para muita gente, vendo, em determinada manhã, um ninho de pássaros felizes, projetou destruir as pobres aves.

A mãezinha alada, muito contente, acari­ciava os filhotinhos, enquanto o papai voava, à procura de alimento.

O Espírito da Maldade notou aquela imensa alegria e exasperou-se. Mataria todos os passarinhos, pensou consigo. Para isto, no entanto, necessitava de alguém que o auxiliasse. Aquela ação exigia mãos humanas. Começou, então, a buscar a companhia das crianças. Quem sabe algum menino poderia obedecê-lo?

Foi a casa de Joãozinho, filho de Dona Lau­ra, mas Joãozinho estava muito ocupado na assistência ao irmão menor, e, como o Espírito da Maldade sômente pode arruinar as pessoas insinuando-se pelo pensamento, não encontrou meios de dominar a cabeça de João. Correu à residência de Zelinha, filha de Dona Carlota. Encontrou a menina trabalhando, muito aten­ciosa, numa blusa de tricô, sob a orientação ma­terna, e, em vista de achar-lhe o cérebro tão cheio das idéias de agulha, fios de lã e peça por acabar, não conseguiu transmitir-lhe o propósito infeliz. Dirigiu-se, então, à chácara do senhor Vitalino, a observar se o Quincas, filho dele, estava em condições de servi-lo. Mas Quincas, justamente nessa hora, mantinha-se, obediente, sob as ordens do papai, plantando várias mudas de laranjeiras e tão alegre se encontrava, a me­ditar na bondade da chuva e nas laranjas do futuro, que nem de leve percebeu as idéias vene­nosas que o Espírito da Maldade lhe soprava na cabeça. Reconhecendo a impossibilidade de absorvê-lo, o gênio do mal lembrou-se de Mar­quinhos, o filho de Dona Conceição. Marquinhos era muito mimado pela mãe, que não o deixava trabalhar e lhe protegia a vadiagem. Tinha doze anos bem feitos e vivia de casa em casa a reinar na preguiça. O Espírito da Maldade procurou-o e encontrou-o, à porta de um botequim, com enorme cigarro à boca. As mãos dele estavam desocupadas e a cabeça vaga.

— “Vamos matar passarinhos?” — disse o espírito horrível aos ouvidos do preguiçoso.

Marquinhos não escutou em forma de voz, mas ouviu em forma de idéia.

Saiu, de repente, com um desejo incontro­lável de encontrar avezinhas para a matança.

O Espírito da Maldade, sem que ele o per­cebesse, conduziu-o, fàcilmente, até à árvore em que o ninho feliz recebia as carícias do vento. O menino, a pedradas criminosas, aniquilou pai, mãe e filhotinhos. O gênio sombrio tomara-lhe as mãos e, após o assassínio das aves, levou-o a cometer muitas faltas que lhe prejudicaram a vida, por muitos e muitos anos.

Somente mais tarde é que Marquinhos com­preendeu que o Espírito da Maldade sômente pode agir, no mundo, por intermédio de meninos vadios ou de homens e mulheres votados à preguiça e ao mal.


49

O Divino Servidor

Quando Jesus nasceu, uma estrela mais brilhante que as outras luzia, a pleno céu, indicando a manjedoura.

A princípio, pouca gente lhe conhecia a missão sublime.

Em verdade, porém, assumindo a forma duma criança, vinha Ele, da parte de Deus, nosso Pai Celestial, a fim de santificar os homens e iluminar os caminhos do mundo.

O Supremo Senhor que no-lo enviou é o Dono de Todas as Coisas. Milhões de mundos estão governados por suas mãos. Seu poder tudo abrange, desde o Sol distante, até o verme que se arrasta sob nossos pés; e Jesus, emissário dEle na Terra, modificou o mundo inteiro. Ensi­nando e amando, aproximou as criaturas entre si, espalhou as sementes da compaixão fraternal, dando ensejo à fundação de hospitais e escolas, templos e instituições, consagrados à elevação da Humanidade. Influenciou, com seus exemplos e lições, nos grandes impérios, obrigando príncipes e administradores, egoístas e maus, a modificarem programas de governo. Depois de sua vinda, as prisões infernais, a escravidão do homem pelo homem, a sentença de morte indiscriminada a quantos não pensassem de acordo com os mais poderosos, deram lugar à bondade salvadora, ao respeito pela dignidade humana e pela redenção da vida, pouco a pouco.

Além dessas gigantescas obras, nos domínios da experiência material, Jesus, convertendo-se em Mestre Divino das almas, fêz ainda muito mais.

Provou ao homem a possibilidade de cons­truir o Reino da Paz, dentro do próprio coração, abrindo a estrada celeste à felicidade de cada um de nós.

Entretanto, o maior embaixador do Céu para a Terra foi igualmente criança.

Viveu num lar humilde e pobre, tanto quan­to ocorre a milhões de meninos, mas não passou a infância despreocupadamente. Possuiu com­panheiros carinhosos e brincou junto deles. No entanto, era visto diariamente a trabalhar numa carpintaria modesta. Vivia com disciplina. Tinha deveres para com o serrote, o martelo e os livros.

Por representar o Supremo Poder, na Terra, não se movia à vontade, sem ocupações definidas. Nunca se sentiu superior aos pequenos que o cercavam e jamais se dedicou à humilhação dos semelhantes.

Eis porque o jovem mantido à solta, sem obrigações de servir, atender e respeitar, permanece em grande perigo.

Filho de pais ricos ou pobres, o menino desocupado é invariàvelmente um vagabundo. E o vagabundo aspira ao titulo de malfeitor, em todas as circunstâncias - Ainda que não possua orientadores esclarecidos no ambiente em que respira, o jovem deve procurar o trabalho edifi­cante, em que possa ser útil ao bem geral, pois se o próprio Jesus, que não precisava de qualquer amparo humano, exemplificou o serviço ao pró­ximo, desde os anos mais tenros, que não deve­mos fazer a fim de aproveitar o tempo que nos é concedido na Terra?


50

Oração dos jovens

Mestre Amado!

Aceita-nos o coração em teu serviço, e, Se­nhor, não nos deixes sem a tua lição.

Ensina-nos a obedecer na extensão do bem, para que saibamos administrar para a glória da vida.

Corrige-nos o entusiasmo, a fim de que a paixão inferior não nos destrua.

Modera-nos a alegria, afastando-nos do pra­zer vicioso.

Retifica-nos o descanso, para que a ociosi­dade não nos domine.

Auxilia-nos a gastar o Tesouro das Horas, distanciando-nos das trevas do Dia Perdido.

Inspira-nos a coragem, sustando-nos a queda nos perigos da precipitação.

Orienta-nos a defesa do Bem, do Direito e da Justiça, a fim de que não nos convertamos em simples joguetes da maldade e da indisciplina.

Dirige-nos os impulsos, para que a nossa força não seja mobilizada pelo mal.

Ilumina-nos o entendimento, de modo a nos curvarmos, felizes, ante as sugestões da Experiência e da Sabedoria, a fim de que a humildade nos preserve contra as sombras do orgulho.

Senhor Jesus, nosso Valoroso Mestre, aju­da-nos a estar contigo, tanto quanto estás conosco!

Assim seja.

Fim