A DESCIDA DOS IDEAIS
Autor: Pietro Ubaldi
Tradutor: Manuel Emygdio da Silva
P R E F Á C I O
Para compreender o significado do presente livro devemos vê-lo enquadrado no seio da Obra da qual faz parte. Esta é composta de 24 volumes, ligados sucessivamente um ao outro como anéis de uma cadeia. Cada um deles representa uma fase da construção, um por andar, de um edifício único que é a Obra. Tal estrutura não foi premeditada e se deve ao fato de que cada volume foi vivido pelo autor, e o desenvolvimento da sua série representa o espontâneo amadurecimento do seu pensamento e personalidade.
Vejamos, pois, em que ponto da Obra, em relação aos outros, se encontra o presente escrito. O termo central dela é o livro: O Sistema, preparado pelo outro: Deus e Universo, sendo o leitor conduzido através desse último, e completado por A Grande Síntese que o precede, projetando uma visão mais próxima e acessível, isto é, o aspecto evolutivo do nosso universo. Colocadas assim as bases teóricas da doutrina, o volume O Sistema é desenvolvido mais detalhadamente por outro: Queda e Salvação.
Chegados a este ponto, e havendo sido exposta toda a teoria, com os volumes que se seguem, entra-se na fase das suas conseqüências e aplicações; ele é agora transportada ao terreno prático da sua realização como controle de sua verdade. Entramos na fase de conclusão da Obra. Assim nasceu o volume: Princípios de Uma Nova Ética, que se refere a problemas de moral, psicanálise, personalidade humana etc. a ele se segue o presente volume: A Descida dos Ideais, que aborda ao invés, o problema religioso. Tema importante, dado que é através das religiões que se realiza na terra a descida dos ideais, tema que interessa à vida no seu ponto central: a evolução (a salvação com retorno a Deus). Estamos preparando o volume sucessivo a este: Um Destino Seguindo Cristo, no qual se avança sobre as conseqüências mais concretas e realísticas aplicações das teorias básicas, sendo apresentadas em forma vivida por um indivíduo que as aplica, transportando-as para a mesa das experiências e provas da realidade cotidiana, em contato com os fatos, tal como se verificam em nosso mundo. A visão global das verdades universais é observada de novo em particular, transferida para outro nível e dimensão, em função de outros pontos de referencia situados em nosso plano de evolução. Assim esta atual zona de pensamento torna-se complementar da anterior, porque aquela é teoria longínqua da realidade de nosso mundo, enquanto que esta, pelo contrário, propõe-se, ao submetê-la a controle experimental, de demonstrar-lhe a verdade. Com Um Destino Seguindo Cristo a segunda Obra vai chegando ao fim.
Os outros volumes, surgidos ao longo do caminho, representam ramificações dos conceitos fundamentais, exposições colaterais exemplificativas e complementares, para melhor iluminar, demorando-se em problemas secundários. Trata-se de digressões saídas do tema central que, no entanto, o comprovam e o aprofundam, porque ele é o ponto de referencia de toda a Obra. O quadro completa-se não só em sentido universal, como também particular, composto de tantos elementos quantos são os vários volumes, ligados ao longo da linha de desenvolvimento de um processo lógico “único”, exposto por continuidade. Só agora, que estamos no final e com um olhar retrospectivo abarcamos todo o caminho percorrido, pode aparecer de maneira evidente, sendo possível formar uma visão de conjunto, a unidade fundamental de toda a Obra.
Os volumes finais dos quais o presente faz parte, são importantes não só porque derivam de um sistema conceptual orgânico, mas também porque, em de vez de se apoiarem numa doutrina particular, se apóiam sobres bases positivas e universais, como o são as leis que regem a vida e representam o pensamento de Deus, tal como se manifesta em ação em nosso plano de evolução. Estas leis existem e, para funcionarem, como de fato sucede, não necessitam de modo algum, de nossas opiniões. Elas caminham independentemente das verdades sustentadas por qualquer grupo humano, seja partido ou religião, e vemos que continuam funcionando indiferentes ao fato de as negarmos ou ignorarmos. Elas abraçam a vida integralmente, inclusive a vida espiritual monopolizada pelas religiões. O ponto de referencia é portanto sólido e está aí visível, atual, objetivamente controlável, sem necessidade de mistérios, de revelações, de fé, de reconstruções históricas, de fatos longínquos. É um pensamento sempre presente, que sabe falar e fazer-se entender nos fatos, castigando-nos com as suas reações vivas e a sua lógica inflexível.
Só com tal visão realista que abarca todos os aspectos da vida, incluindo os espirituais, se podem convencer as novas gerações. Com esta finalidade de bem, a usamos e oferecemos, para salvação dos valores espirituais, apresentando-a numa forma positiva, tal como hoje se exige para que uma idéia possa ser aceita. Novas correntes de pensamentos estão agora amadurecendo rapidamente. O Catolicismo, obrigado a mover-se para não ficar atrás, abandonado, está chegando em último lugar, ofegante, e apressa-se em atualizar-se. Lança Concílios, neles vota a favor do princípio da liberdade de consciência, procura um diálogo com as outras Igrejas cristãs, abre os braços aos irmãos separados, mas para que eles façam o esforço maior de aproximação em seu favor. Em resumo, agita-se para salvar a sua posição de domínio.
Por outro lado, o autor, a quem não interessa esta luta de grupo para defesa própria, vê-se constrangido a resolver seus graves problemas, que são de outra natureza e trata de solucioná-los por si mesmo. Ele começa a pensar e não se adapta mais a representar o papel da tradicional ovelha do rebanho, só pelo fato de ser um fiel, obrigado à obediência da autoridade; assim não se detém em inúteis dissensões teóricas, dispondo-se pelo contrário, a enfrentar e resolver por sua conta os seus próprios problemas. Pode achar inoportuno que uma religião, que ele vê que não é competente na matéria, como o é a ciência, deva imiscuir-se, sem ser consultada, nos seus assuntos. Ele pensa: sobre que bases positivas apoia-se o direito com que eles se arrogam de invadir a sua consciência, de entrar num terreno que é dele, onde, portanto, é ilícita qualquer intromissão de estranhos? Para falar com Deus não se necessita de intérpretes e tradutores. Isto é violação de domicílio espiritual. O indivíduo consciente rebela-se a esta falta de respeito ao seu direito de pensar segundo a sua consciência e conhecimento, tanto mais que semelhante invasão autoritária se faz em nome de Deus.
Por tudo isto nestes livros oferecemos o conhecimento para que o indivíduo pense e compreenda por si mesmo, e forme uma consciência própria para sua vantagem e não a serviço dos interesses de um grupo. Sem nenhuma imposição nem obrigação de crer, ele aceitará livremente, apenas se quiser, porque compreendeu e está convencido. Não pedimos fé, nem apresentamos mistérios, nem sequer um alto nível teológico. Explicamos tudo claramente para que cada um veja e julgue por si próprio. O jogo medieval da obediência baseada no princípio da autoridade, não impressiona mais. Hoje, à adesão não se chega por sugestão ou obrigação, mas por demonstração e convicção. Perante a não solicitada intromissão de terceiros na sua consciência, o indivíduo, por direito de legítima defesa, protege-se, como em pleno direito protege a sua casa e haveres contra qualquer invasor, até mesmo com maior direito porque a casa do espírito vale muito mais. Deve-se respeitar a propriedade individual e não há razões históricas ou teológicas que possam autorizar a violá-la. E no entanto, estas violações por parte de quem possuía a autoridade, foram realizadas até ontem. Depois ela se atualiza e tudo fica como se nada tivesse sucedido, porque a autoridade, uma vez reconhecida, porque é a mais forte, pode fazer e desfazer a sua verdade como melhor lhe convém. Isto pode suceder na mente humana, não porém nas leis da vida, em virtude das quais cada erro não se apaga gratuitamente, mas ao contrário, tem de suportar as suas conseqüências.
O presente volume, por tratar de problemas religiosos, é de atualidade. Com ele a Obra, depois de longo caminho, chega às suas conclusões também neste terreno. Isto no momento em que o mundo se encontra perante problemas graves que exigem urgentemente solução, e por isso se pôs a pensar e tem necessidade de conhecimento. Encontramo-nos todos numa gravíssima hora histórica de grandes decisões e transformações. Já não serve o velho e cômodo método de esperar que a autoridade espiritual decida para descarregar sobre ela as responsabilidades que nos pertencem. O indivíduo deve chamá-las a si, colocando-se de olhos abertos e ânimo sincero com os seus problemas, perante as honestas e sábias leis da vida. Nestes livros procuramos iluminá-los imparcialmente para que ele encontre, por si próprio, o seu caminho. mas deve ser ele a pensar, a compreender, a decidir. Não buscamos obediência, senão compreensão. Queremos ajudar, mas a vida exige que tudo seja ganho com o próprio esforço. Ela hoje chegou a uma curva do seu caminho, depois do qual será diferente e por isso exige métodos diversos. É para este novo trabalho que nestes livros procuramos preparar o leitor para enfrentar o futuro. Por isto aqui falamos de ideais e sua descida e o fazemos em forma positiva, porque agora trata-se de realizá-los a sério, passando das palavras aos fatos. Os ideais estão precisamente colocados neste futuro próximo, que se aproxima a grandes passos, e eles são a realidade insuprimível, porque suprimi-los significa estancar o desenvolvimento da humanidade.
Neste futuro próximo, a ciência prepara-se para demonstrar positivamente que o homem é também espírito e que, como tal, ele sobrevive a morte; voltando depois a ter experiências no plano de nossa vida física, até percorrer todo o caminho evolutivo, afastando cada vez mais em ascensão, que se realiza com o retorno a Deus. Por este caminho se chegará a uma religião científica que eliminará tanto o materialismo ateu como as religiões fideísticas. A ciência dominará positivamente o terreno que hoje ainda se encontra nebuloso, nas mãos das religiões. Em vez de lutarem, para eliminar-se, a ciência e fé se completarão inteligentemente e de forma recíproca. Teremos assim uma religião científica e uma ciência religiosa. A natureza universal da ciência positiva eliminará o espírito exclusivista que separa as religiões atuais, para fazer delas, em vez de diversos aspectos de verdades em luta, uma só verdade universal.
Não é pelas vias tentadas do atual ecumenismo católico que se chegará à unificação do pensamento religioso mundial. Este ecumenismo tende a uma unificação muito mais restrita, entre parentes da mesma família religiosa. Ele pode, em substância, reduzir-se a um chamado à casa paterna no sentido da absorção de ortodoxos e protestantes no catolicismo, para que se submetam a Roma. Por outro lado a antítese plurissecular Reforma-Contra-reforma, prova que no seio da Cristandade, seja católica ou protestante, prevaleceu o princípio involuído da rivalidade e luta, e não o espiritualmente superior do amor. Estamos, pois, situados no pólo oposto daquela unificação à qual o Amor Cristão devia estar. Eis que à grande unidade de pensamento religioso não se poderá chegar senão pelas vias da ciência. E espiritualmente isto representa uma grande vantagem, porque uma ciência sincera e honesta, esclarecendo as posições, reforçará o verdadeiro espírito de religiosidade, que nas religiões empíricas atuais está desaparecendo. A religião científica, porque demonstrada como verdadeira, não pode permanecer no estado de hipocrisia, impossibilitando ser tomada a sério. Esta será a religião do Terceiro milênio, feita não de autoridade e palavras, mas de livre convicção e de fatos. Não será proselitista, sectária, fideísta, dogmática, exclusivista, mas positiva, racional, demonstrada, convicta, universal. Nossa Obra será compreendida quando o homem chegar a este mais avançado grau de evolução.
A isto se chegará não só pela ação positiva e construtiva das forças do Sistema, mas também pela ação negativa e destrutiva das forças do Anti-Sistema, ambas ativas em nosso mundo. Do lado oposto ao de agora observado, vemos dois fatos convergentes que tendem a levar a uma guerra atômica. De um lado o velho egoísmo, o espírito de domínio e o instinto de violência, não obstante as religiões, ficaram intactos no homem ainda fechado na lei da luta, qualidade involuída do plano animal situado no lado do Anti-Sistema. Do outro lado, com semelhante natureza, o homem chegou de improviso a ter em seu poder meios de destruição que, se antes eram limitados e portanto não podiam produzir senão efeitos limitados, hoje, sendo poderosíssimos instrumentos de extermínio, podem chegar ao aniquilamento da humanidade. O homem não se encontra absolutamente preparado para saber usar com sabedoria semelhante poder novo, não tendo a sua forma mental progredido com a mesma rapidez e na medida daqueles poderes, antes ficando igual à do primitivo e em grande parte dirigida por velhos instintos. Em tais condições, é muito duvidoso que ele saiba fazer bom uso de tais meios. As duas condições, de fato, estão conectadas: imensos poderes e instintos atrasados. As divergências entre os povos não sabem resolver-se senão com a força, base de todo o direito. As religiões aceitam este estado de fato. Para quem ainda não se armou, não resta senão esperar a sorte dos vencidos. É assim que a posse da bomba atômica se tornou uma necessidade defensiva para todos. Hoje a guerra transferiu-se para esta nova dimensão. Assistimos uma corrida universal de produção dessas bombas, de maneira que o mundo se enche cada vez mais delas. Assim, cada dia aumenta a probabilidade de que se inicie uma explosão em cadeia, impossível de ser detida, o que significa uma carreira para a morte.
A Obra surge neste momento histórico para explicar como funciona tudo isso, e assim levar à compreensão e à sabedoria. É mais fácil não considerá-la. Mas não se pode impedir que os fatos continuem a verificar-se segundo nossa ótica, conduzindo-nos às mencionadas conclusões. De resto, segundo as leis da vida, o involuído tarda em compreender e não sabe aprender a evoluir senão através da dor. A vida o sabe e assim o trata. Com semelhante biótipo não se pode chegar à compreensão por outro caminho. a tal resultado conduzirão dois fatos: 1) a evolução que impulsiona o homem para a frente, amadurecendo sua mente; 2) a dor que o castiga, obrigando-o a pensar. É em tal momento histórico e sobre semelhante quadro de acontecimentos apocalípticos que aparece a Obra da qual o presente volume faz parte.
S. Vicente – Natal de 1965.
I
A DESCIDA DOS IDEAIS – ESTRUTURA DO FENÔMENO
Observaremos neste volume, sob vários de seus aspectos, um fato fundamental da técnica de realização da evolução, isto é, o fenômeno da descida dos ideais. Que significa isto, porém? Descida de onde? Costuma-se dizer do alto. Mas, que é o alto? O alto é o Sistema, que na cisão do dualismo representa o lado positivo, Deus, em oposição ao lado negativo, dado pelo Anti-Sistema, posição antagônica de anti-Deus. Para abreviar, indicaremos com a letra S o Sistema, e com AS o Anti-Sistema. O fenômeno central de nosso universo é a evolução, que representa o trabalho de reconstrução do Sistema, a partir das sua ruínas, que constituem o AS. Segue-se em conseqüência que, então, a evolução contém diversos graus de aproximação ao S. O homem ocupa um desses graus; o animal, um mais atrasado; o super-homem, um mais adiantado.
O alto significa portanto um grau mais evoluído, em comparação com um menos evoluído, que em relação ao primeiro pode-se definir de involuído. Descida dos ideais do alto significa transferir a lei de um nível biológico mais avançado a um menos avançado; significa, para quem vive neste nível, uma antecipação da evolução, porque a influência do ideal permite realizar a passagem para aquele mais alto nível biológico. Ao conceito de descida dos ideais podemos dar uma base positiva, aderente à realidade da vida, e aos efeitos daquele fenômeno, se poderá dar depois um sentido espiritual, não só de evolução biológica positiva, mas também de ascese ideal de almas em direção ao céu. Usam-se neste caso outras palavras e imagens. Mas podemos saber-lhes o significado num positivo ponto de vista biológico.
Uma tal colocação do problema dá-nos a chave para compreender a estrutura e o desenvolvimento do fenômeno desta descida. Se de um lado temos o alto, que significa níveis de evolução mais avançados, de outro temos o nosso mundo que representa os mais atrasados. O fenômeno da descida dos ideais é dado pela conjunção destes dois termos, que se aproximam um do outro tomando corpo, o do lado S, no biótipo evoluído, e o do lado AS, no biótipo involuído. Na realidade trata-se de duas idéias ou princípios distintos que, incorporando-se nestes dois biótipos opostos, entram em contato, através das ações e reações de cada um deles, com a finalidade de realizar o fenômeno da evolução. Nesta descida está empenhada a Lei de Deus que o dirige, como estão também os destinos do ser que trabalha apoiado naquela Lei que quer levá-lo a salvação.
Para compreender o fenômeno da descida é necessário, antes de tudo, compreender como funciona a lei biológica terrestre no nível humano e com que técnicas evoluem as suas formas. A existência no plano animal-humano baseia-se na lei da luta pela vida. No entanto não é uma lei universal e definitiva, mas relativa a este plano, por isso destinada a desaparecer com a evolução. Como pode isto suceder?
Eis o que se apresenta na realidade. O ser quer viver e por isso luta. Mas por que motivo, para viver, é necessário lutar? Porque o ambiente é hostil, a vida, com o fim de assegurar-se a continuidade, cria com superabundância, para depois selecionar os melhores, abandonando os outros à morte. Assim, para cada espécie se encontra oportunidade e a favorece um ambiente adequado, é potencialmente capaz de ocupar todo o planeta. Mas eis então que, além da adversidade dos elementos, surge a competição entre indivíduos e raças, justamente, como conseqüência daquela superabundância no gerar. Ora, quanto mais faltar a cada um o espaço vital e os meios para sobreviver, tanto mais se torna feroz a luta à sua conquista. É assim que a luta se torna inevitável e assume uma forma tanto mais feroz quanto mais primitivo é o ser, porque quanto mais ele é primitivo, tanto mais lhe é hostil o ambiente que ele ainda não transformou para adaptá-lo às suas necessidades. E quanto mais hostil é o ambiente, tanto mais dura e violenta, feroz e desapiedada, é a luta para sobreviver. Além disso, corresponde aos princípios que regem a estrutura de nosso universo o fato de que a vida seja tanto mais carregada de dificuldades e dores, quanto mais involuída, isto é, longe do S e próxima do AS. com a transformação do ambiente e conseqüente melhor satisfação das próprias necessidades, diminui a necessidade de lutar, isto é, a violência e a ferocidade necessárias para sobreviver. Com o diminuir das resistências hostis à vida do homem, pode diminuir para ele, sem perigo, a soma de energia que ele deve consumir na luta. É assim que o sistema de violência tende pouco a pouco a ser eliminado.
Mas a luta com isso cessa por completo? Não. A luta, para transformar o AS em S, não pode cessar senão no ponto final da evolução, quer dizer, ao alcançar o S, com a anulação do AS. A luta nasceu da cisão no dualismo e não pode desaparecer até que esta cisão seja sanada e o dualismo reabsorvido na reunificação de tudo no S, com o retorno de tudo a Deus.
A luta não cessa, transforma-se. Quando a humanidade começa a reunir-se em grupos sempre mais vastos, a organizar-se em sociedade, a ajuda recíproca no comum interesse da defesa torna menos dura a luta contra o ambiente, tendendo, portanto, a fazer desaparecer, como menos urgente, o sistema da força e da violência, que tão profundas feridas deixa em quem lhes sofre os efeitos. Nesse momento começa, com a disciplina das leis, um processo de ordenação da vida e de cerco daquele sistema, o qual, se pode momentaneamente beneficiar a quem o pratica, é constante ameaça para aqueles contra quem é praticado. Que pode fazer então o indivíduo que desta maneira se encontra a lutar sempre menos contra um ambiente já dominado, sobretudo, pelos seus semelhantes que o cercam e o oprimem para torná-lo inócuo, procurando guarnecê-lo e prejudicá-lo.
A luta se torna mais sutil, processa-se de forma legal e moral, tornada astúcia, fraude, engano, dissimulação. Esta é a fase atual na qual a violência, pelo menos dentro dos limites de um país, é condenada como delinqüência, ainda que, se tiver lugar fora dele durante a guerra, é considerada um ato honorífico e de valor. Se no entanto hoje a violência é condenada, a astúcia e o engano estão em plena vigência, como método de luta pela vida. Com este método, perante as leis, não se procura obedecer mas evadir-se, e perante o próximo, não se procura colaborar, mas explorar. Todavia ser agredido e roubado legalmente representa já um certo progresso em comparação com o ser assassinado na estrada. A própria técnica do delito está assim submetida à evolução e hoje podemos observar que com isso se evita sempre mais a violência e o derramamento de sangue, que agravam a pena legal, e com artes mais sutis se procura a posse do que é mais útil, isto é, o saque.
Vejamos agora aonde nos levará este processo de evolução da luta. A razão fundamental dela é sempre a mesma, a de sobreviver, com menos esforço possível. A vida está pronta a aceitar tudo o que leva a este fim, isto é, o máximo rendimento em termos de bem-estar, com o mínimo dano próprio. Ora, o sistema astúcia-engano contém ainda um mal, se bem que menor do que o da violência: o prejuízo para os vencidos, os escravizados e os esmagados. A violência mata a vítima. A astúcia a deixa viva, mas arruinada. As feridas permanecem impressas no subconsciente e não se esquecem. Os vencidos, como antigamente, se queriam sobreviver, eram obrigados a fortalecer-se cada vez mais; agora, pela mesma razão, são obrigados a tornar-se cada vez mais astutos e inteligentes. Eis que também aqui, ainda uma vez o mal é automaticamente levado à sua auto-destruição.
Manifesta-se assim uma tendência a cercar e circunscrever gradualmente o sistema da astúcia, por duas razões: 1o) porque o homem se dará conta de quanto é custoso, como dispêndio de energia, o conseqüente método de desconfiança que impõe um controle contínuo, e de quão contraproducente é tal método pelos atritos que produz e os danos que provoca no vencido, o que representa um material negativo que fica circulando na atmosfera que todos respiram e que não podem acabar senão caindo em cima de alguém; 2o) porque existindo a probabilidade de que todos sofram estas duras conseqüências, se compreenderá que ameaça contínua e que falta de segurança tal método representa, e quão mais vantajoso é para todos, seguir pelo contrário, o método da sinceridade e colaboração.
É por este caminho que por fim o sistema de luta acabará por ser superado. Esta transformação corresponde a um processo de saneamento do separativismo, fruto da queda, alcançando a unificação, fruto da reconstrução evolutiva. Neste processo os elementos separados tendem sempre mais a reunir-se até se fundirem, reconstruindo o seu estado orgânico. Temos, pois, três fases, nas quais o homem se encontra nestas possíveis posições:
1o) Homem isolado, em luta contra a natureza. Método da força e violência.
2o) Homem que se reagrupa em sociedade, deve portanto lutar menos contra a natureza, mas é rival dos outros componentes do grupo. Desuso do método força-violência e a sua substituição pelo da astúcia-fraude.
3o) Homem que vive no estado orgânico de coletividade. Havendo com o método precedente desenvolvido a inteligência, acabou por compreender quanto é contraproducente o sistema astúcia-fraude e como é vantajoso superá-lo. Então, para alcançar com menor esforço maior bem-estar, adota o método da sinceridade-colaboração.
O problema é o de desenvolver a inteligência para chegar a compreender qual é o método de maior vantagem. Mas é precisamente para alcançar este objetivo que o erro produz sofrimento, a ignorância significa dano, até que, com uma conduta reta, se aprenda a eliminá-lo. Vive-se e sofre-se precisamente para aprender.
A humanidade atual encontra-se na segunda das três referidas posições. Assim se explica como na terra, hoje, os ideais, incluindo os representados pelas religiões, tendem a manifestar-se em forma de hipocrisia e assim existe a indústria da exploração do sentimento religioso.
Este desenvolvimento em três graus pode parecer também destruição de egoísmo a favor do altruísmo, mas em realidade trata-se de uma sua dilatação e ampliação, e não destruição. A vida, sempre utilitária, não permite desperdícios inúteis para os seus fins; assim não admite altruísmos somente negativos, totalmente improdutivos. Ela não passa, portanto, do egoísmo a um altruísmo como fim em si mesmo, mas apenas quando isso representa uma vantagem. É por essa razão que ela supera o método da luta entre egoísmos rivais e o substitui pelo método mais produtivo da solidariedade humana. A vida alcança o altruísmo, não através de sacrifícios contraproducentes, porque são renúncia antivital, mas através de um egoísmo vital porque utilitário, sempre mais vasto. Então o altruísmo não é mais um automutilar-se em favor do egoísmo dos outros, mas torna-se um ver-se a si mesmo refletido nos outros e incluindo-os no seu próprio egoísmo. Assim se forma o primeiro núcleo destinado a dilatar-se sempre mais. Começa com um pequeno egoísmo do casal, do qual nasce depois o do grupo familiar, de onde se chega depois a grupos sempre mais vastos: a aldeia, a casta, o partido, a nação e por fim a humanidade. Trata-se de um progressivo processo de unificação segundo o princípio das unidades coletivas. Fora do grupo, isto é, do recinto da confraternização, existe a guerra, mas dentro há liames de interesses comuns, e não prover também a sobrevivência dos outros é atraiçoar-se a si mesmo. Quanto mais o grupo de que se faz parte aumenta, tanto mais o egoísmo se dilata e a guerra é afastada para mais longe, para limites cada vez mais distantes. Quando esta aliança de egoísmos se tornar universal, não haverá mais lugar para a guerra. Terá desaparecido aquilo que chamamos de egoísmo, isto é, aquele egoísmo restrito a um só indivíduo, porque ele se haverá estendido tanto até abraçar todos num egoísmo universal, que então chamamos altruísmo. Hoje, o multiplicar-se dos contatos, devido aos novos meios de comunicação, começa a encaminhar a humanidade para ampliações altruístas cada vez maiores do velho egoísmo.
Segundo as três mencionadas fases de evolução, verifica-se igualmente um outro fato: sucede que os meios fraudulentos substituem os violentos e depois os métodos colaboracionistas substituem os fraudulentos. Agora a humanidade se encaminha para entrar nesta terceira fase. Assim se transformará também para o homem a lei da luta pela vida. Trata-se, de resto, de uma fase já alcançada, se bem que em forma mais simples e limitada, por exemplo, pelas abelhas e pelas formigas, o que prova que a vida já conhece tais métodos. A cada passo em frente no caminho da evolução, diminui primeiro a violência em favor da fraude, mal menor que substitui o maior, a fraude, por sua vez, diminui em favor da sinceridade e colaboração. Com isto se explica também porque, em nosso mundo, existe a mentira, portadora de uma função biológica, e como a evolução levará à sua futura eliminação.
Será uma grande conquista e um alívio para todos libertar-se do peso da hipocrisia, da fadiga de praticá-la e de suportá-la. Com o desenvolvimento da inteligência a humanidade chegará também a isto, como acontecerá em relação à guerra. As religiões e a moral representam a descida dos ideais e trabalham neste sentido, para libertar a humanidade dos métodos fraudulentos da luta pela vida, substituindo-os por um sentimento de solidariedade social, de ajuda recíproca num estado de colaboração e convivência pacífica. O que impede de se chegar a viver numa posição para todos mais vantajosa, é somente a ignorância. E não há outro método para eliminá-la, senão sofrer as duras conseqüências do estado atual. Sofrer até ser obrigado a procurar melhor aquela posição e, com a experiência adquirida encontrá-la mais facilmente. Depois, para permanecer aí, com o desenvolvimento da inteligência, compreender que isso é o melhor. Trata-se de conquistar novas qualidades, porque não adianta sobrepor novos sistemas econômicos, sociais, políticos a indivíduo imaturos. Desenvolvendo o espírito de associação, trata-se de eliminar o atávico antagonismo individual, de modo que as forças dos indivíduos isolados não se eliminem, destruindo-se numa luta recíproca, mas ao contrário, se possam somar num estado de cooperação. Assim se obtém um rendimento imensamente maior e é muito fácil resolver o problema da sobrevivência, biologicamente fundamental.
Na terceira das três referidas fases, a orgânica, a atividade que se substitui à luta de tipo 1 e 2, é o trabalho. O ambiente onde vive foi gradualmente domesticado com a civilização, com as leis e a educação. A violência se eliminou da vida social, tendo-se compreendido por fim, como é contraproducente agitar-se tanto para enganar-se reciprocamente. Pode-se então alcançar a terceira fase, num ambiente não mais hostil, entre companheiros não mais rivais, não há necessidade de usar o método da luta, que inicialmente era necessário para sobreviver, porque agora, trabalhando todos juntos, o problema da sobrevivência está resolvido. Mas adiante observaremos que outros problemas possam depois surgir, quando se supere também esta fase. Veremos quais perigos oferece um bem estar assegurado, para um biótipo a isso ainda não habituado, provido da velha forma mental proporcionada aos métodos de vida precedente. Neste capitulo basta haver constatado a necessidade biológica pela qual a evolução deve levar à realização do princípio de solidariedade social, baseado sobre o fato positivo, da utilidade de associar-se para melhor vencer na luta pela sobrevivência. É assim que se passa da fase de antagonismos entre egoísmos rivais, à da colaboração. Nesta nova posição, o indivíduo se sentirá muito mais protegido e com mais potencialidade, porque se encontrará não mais isolado dentro de uma natureza hostil e entre companheiros inimigos, mas como elemento funcionando dentro de um grande organismo.
A utilidade de associar-se para vencer na luta pela vida é um fato positivo. Já que é utilitária, é inevitável que ela evolua nesta direção. Por isso, é fatal que se acabe passando ao sistema orgânico de cooperação, em substituição ao atual de guerras econômicas, luta entre classes sociais, guerras armadas para a destruição universal. Mas como poderá, na prática, surgir uma substituição tão radical de método? O da força, como o da astúcia, mesmo que o segundo seja mais refinado que o primeiro, são sempre dois sistemas baseados, num egoísmo, fechado em si mesmo, e na conseqüente desonestidade para com o próximo. Ora, abrir este egoísmo em direção ao próximo, com a conseqüente honestidade para com ele, constitui uma profunda transformação de tipo biológico, um salto evolutivo para um nível superior, um amadurecimento que leva a um modo de conceber a vida totalmente diverso, o que não é fácil realizar. De que meios dispõe a natureza e que métodos ela usa para alcançar o objetivo?
O processo já está em ação, é o que podemos observar. Para eliminar o atual regime de rivalidade não há outro meio senão a reação das vítimas, as quais deverão impor com a persuasão dos meios coercivos, o sistema da honestidade, de modo que quem pratica o regime da rivalidade fique ferido, único processo para compreender que não é salutar repetir o erro. Quando os débeis e os ingênuos não se deixarem mais enganar, tendo a indústria da mentira deixado de dar fruto, não haverá mais razão para que ela continue sendo praticada, e então ela será abandonada como se faz com todas as coisas que já não dão proveito. Mas, para que isso seja assimilado como qualidades do indivíduo, é necessário que, por longa repetição, os desonestos constatem pela sua experiência, os resultados danosos do seu método para eles próprios, adaptando-se, então, a outro método que não produz aqueles resultados, e muito ao contrário, oferece vantagens anteriormente desconhecidas, tornando-se por fim, deste modo, vantajoso para todos. Trata-se de vencer todas as resistências da ignorância que faz acreditar no contrário, trata-se de mudar de forma mental, passando para uma nova, o que representa uma verdadeira criação biológica. Para fixar-se na raça, tudo isso deve entrar nos hábitos sociais através de um esforço tenaz de imposição, um impulso constante nesta direção.
O Evangelho entendido apenas no seu aspecto negativo, de sacrifício, santifica o indivíduo que o pratica, mas encoraja os desonestos com o seu método de exploração. Enquanto os prejudicados não reagirem, a sua paciência funcionará como fabrica de vítimas. Se os crucificadores de Cristo tivessem recebido uma lição imediata, não teriam ficado encorajados pelo seu fácil sucesso, que lhes ensinou uma verdade totalmente diferente, isto é, que não é o amor, mas a força e o engano que são premiados. Estamos na terra e não nos céus, e aqui a realidade biológica ensina-nos que o ideal, para enxertar-se na vida, deve seguir as suas leis neste seu nível. Em relação à terra, a crucificação de Cristo pode ter tido a função de um escândalo, mostrando ao mundo, durante milênios a vergonha da humanidade, para que compreenda a má ação e deixe de repetir semelhantes crimes. O que representa aquela crucificação perante o céu? Ao mundo não lhe interessa sabê-lo. Hoje se culpa os judeus por deicídio, como se pudesse matar Deus. Se isto fosse certo eles seriam os seres mais poderosos do universo. No entanto aquele delito não foi apenas de um povo, mas de toda a humanidade, que o repetiu até hoje, perseguindo inocentes, inclusive em nome de Deus. Segue-se que esse escândalo tão grande não deu resultados positivos.
As resistências das coisas velhas são imensas. E enquanto o egoísmo das vitimas, seguindo as leis do plano humano, não conseguiu organizar-se para impor ao egoísmo dos que provocam os danos e obrigá-los a respeitar os direitos de todos, haverá sempre lugar para os desonestos, para sua vantagem e prejuízo dos demais, e jamais se passará à fase de acordo e equilíbrio em que se supere esse sistema. Este fato justifica e torna necessária a presença das leis e as respectivas sanções punitivas para estabelecer uma ordem na sociedade. Mas justifica, também, a rebelião quando essas leis não respondem à justiça, estão feitas por um grupo dominante a seu favor: revoltar-se para estabelecer uma ordem que dê vantagem cada vez menos a uma parte e seja mais universal, que defenda os interesses de um número sempre maior de pessoas, até chegar a abranger a todos. Então se terá realizado o salto biológico e se viverá num regime de altruísmo, justiça, honestidade. Permanece então, de pé o princípio fundamental de que a vida não dá nada gratuitamente e oferece apenas aquilo que ganhamos com nosso esforço. O ser quis realizar a descida do S para o AS e agora são suas as conseqüências. Para executar a subida do AS para o S, cabe-nos o trabalho de conquistar e construir. Cristo apenas nos mostrou o caminho, colocando-se à frente com o exemplo. Compete-nos percorrê-lo com os nossos pés. Isto significa que o ideal nos é oferecido do céu como uma proposta de trabalho. Cabe pois ao homem traduzí-lo em realidade, vencendo todas as resistências que se oponham à reconstrução.
Agora que examinamos as bases positivas do fenômeno da descida dos ideais, podemos melhor compreendê-lo e ver porque eles descem ao ambiente humano, cuja lei fundamental é a luta pela vida; e poderemos compreender por que, não obstante tanta diversidade, eles procuram enxertar-se num ambiente que é a sua absoluta negação. Isto se explica, porém, com a lei da evolução. Aquele que no caminho da ascensão está em posição mais adiantada é submetido a um processo que para ele é retrocesso involutivo, a fim de que seja possível realizar aquilo que para o mundo, que em relação a ele está em posição atrasada, constitui um avanço evolutivo. Dizemos “ele” porque os ideais tomam corpo (dado que tudo na terra adquire uma forma), numa pessoa viva que os afirma e os lança, e em seguida nas instituições que os representam e os transmitem. Precisamente assim se organizam as religiões, que são o canal mais importante da descida dos ideais à terra. Como se realiza então o fenômeno, que sucede quando a realidade, verdadeira do céu, pretende enxertar-se naquela tão diferente realidade biológica, verdadeira em nosso mundo?
Na terra, de fato, está o homem sujeito a leis bem diferentes, que nada tem de ideal, que o obrigam a ocupar-se em primeiro lugar do problema da sobrevivência. É natural portanto que para este objetivo ele procure utilizar-se do que encontra, inclusive os ideais, os quais, pelo contrário, querem utilizá-lo para os seus fins, que são totalmente diferentes. Aos ideais interessa a salvação da alma, a grandeza do espírito, mesmo que seja com o sacrifício da vida terrena; ao homem interessa sobretudo aquela vida, porque é concreta e presente, e só quando se trata de deixá-la é que se interessa pela outra. As duas posições estão invertidas, uma em relação à outra. É natural, então, que cada um dos dois princípios para não se perder nesse antagonismo, deve buscar o interesse mútuo. É assim que quando uma religião dita normas de vida para transformar o homem, este procure transformá-las num meio para satisfazer as suas necessidades de vencer na sua luta pela vida. Deste modo ele adapta a religião às suas próprias comodidades, de maneira que lhe sirva e, se não lhe serve, não a aceita. Se a memória de Cristo chegou até nós, isto se deve em grande parte à concessão do imperador Constantino, que permitiu o poder temporal dos papas, pelo que o sacerdócio se tornou hierarquia, administração de bens, atividade política, e carreira. Mas para que se continuasse a falar de Cristo não havia outro meio senão transformá-lo em algo deste mundo. Mal necessário, tanto mais grave quanto mais primitiva a humanidade, mas que com o tempo vai desaparecendo, porque é tarefa da evolução eliminá-lo. É inevitável portanto que, para que a aceitação de um ideal seja possível na Terra, ele deva baixar ao nível daquele que vai aceitá-lo, que é o dono do ambiente terrestre onde o fenômeno deve realizar-se. Isto deve acontecer para que ele não fique excluído da vida.
Os seres nos quais tomam forma os dois princípios opostos são por um lado o biótipo do gênio, do santo, do profeta, do super-homem, isto é, o evoluído e por outro lado o biótipo normal animal-humano. O primeiro é o motor da evolução, o elemento ativo; o segundo é o elemento passivo, que se deixa arrastar pelo primeiro. Um ideal demora milênios para ser assimilado. Quando já cumpriu a sua função, porque o ideal foi todo utilizado num sentido evolutivo, então aparece outro mais adiantado, de maneira que a humanidade possa continuar progredindo. No fundo trata-se de uma troca, em que cada um dos dois termos dá e em compensação pede alguma coisa: o ideal oferece-se pedindo ao homem o esforço necessário para progredir, e o homem, trata de ganhar o mais que pode com a menor fadiga possível, mesmo materialmente, utilizando apenas o ideal na Terra para esta finalidade. É assim que surgem os seus representantes, os ministros de Deus, a casta sacerdotal, que, pelo fato de cumprir um serviço, estabelece a indústria da religião, que é a base terrena indispensável para que o ideal possa tomar forma no plano humano.
Para os cidadãos da Terra tudo está em seu lugar, conforme a lei do seu plano. Deste modo se explica como os ideais não se nos apresentam íntegros na Terra, mas torcidos e adaptados por terem sido levados ao nível humano. Naturalmente isto é adequado ao homem normal que fez para si o trabalho desta adaptação, mas não para quem assume os ideais a sério e por esta razão se encontra isolado e, inclusive, excluído e condenado. Nestes escritos tomamos o partido deste último, perante a destruição dos valores morais, tratando de salvar o que se possa. Quem se encontra deslocado na Terra não é o involuído que está em sua casa, no seu ambiente, mas sim o evoluído, que procura levar para ali o ideal. Para poder realizar a sua missão, encontra-se ele na posição não merecida de condenado a um retrocesso involutivo, o que é um castigo tremendo. É o mesmo que condenar um homem culto e civilizado a viver entre antropófagos, transformados em seus semelhantes, e a cujos hábitos deve adaptar-se. Ele, que tem por instinto a prática da sinceridade e da colaboração, deve viver submerso num mundo de hipocrisia e fraude. Anteriormente vimos quais são os diversos graus de evolução.
Podemos assim entender o que significa transportar um indivíduo do terceiro grau ao segundo, o martírio necessário para que ele possa realizar, no seio de um ambiente biológico involuído, o trabalho de arrastá-lo a um nível mais alto.
Transportando ao mundo dos involuídos, o evoluído encontra-se em condições de inferioridade na luta para a sobrevivência. Se para ele existem compensações celestiais, isto é coisa que para o mundo não interessa. O mundo entendeu de Cristo apenas as duas coisas que lhe serviam: matá-lo quando estava vivo, explorá-lo depois de morto. O homem do terceiro grau evolutivo, de tipo evangélico, seguidor de Cristo, pelo fato de repelir o método força-violência, bem como o de astúcia-fraude, não é apto para sobreviver no ambiente terrestre. Então o ideal será somente levado a termo por poucos pioneiros, rapidamente liquidados, e nunca se poderá realizar no seio de nossa humanidade. Isto no entanto significaria o fracasso dos planos de evolução. Mas se isto não pode acontecer, como a vida soluciona o problema?
Os primeiros seguidores do ideal são poucos, mas têm de arrastar consigo, com a palavra e o exemplo, a muitos. A descida dos ideais terá alcançado o seu objetivo quando, por terem sido aceitos em massa, eles tenham chegado a ser um fenômeno coletivo. Antes desta última fase do seu desenvolvimento, os ideais se encontrarão no mundo apenas no estado de germe. Cristo até agora é apenas uma semente que busca crescer. Quantos milênios faltarão para que possa chegar a ser uma árvore.
Daí se conclui que a moral evangélica, pelo que respeita à evolução, isto é, não à salvação dos poucos casos isolados, mas da humanidade, é de tipo coletivo, ou seja, não é realizável senão numa sociedade de tipo inferior, formada de involuídos, aquela moral, como sucedeu com Cristo, rapidamente liquida o indivíduo que a vive. Ora, a vida pode sacrificar na sua economia a poucos indivíduos quando isto lhe sirva para os seus superiores fins evolutivos, mas não pode perder toda a massa a favor de quem precisamente se realiza este sacrifício. O problema fundamental da vida é o da sobrevivência e só secundariamente, quando haja uma oportunidade, é o da evolução. Eis que o Evangelho para poder verdadeiramente realizar-se, não como pregação, mas como prática, presume um estado de reciprocidade que é possível aparecer, somente quando a humanidade, por evolução, haja alcançado a terceira fase, a da organização coletiva, na qual a moral do dever não se resolve numa espoliação por parte de quem não a aplica em prejuízo de quem a aplica, mas resulte de um equilíbrio dado pela correspondência dos direitos e deveres de cada um com os direitos e deveres do próximo. Somente então o Evangelho será aplicável em grande escala, porque representará não uma ameaça mas uma ajuda para a sobrevivência.
Se praticar o Evangelho pode ser antivital para o evoluído isolado no atual mundo involuído, que de fato tem o cuidado de não o aplicar, esse Evangelho pode, pelo contrário, outorgar vantagem e bem-estar num mundo de evoluídos, onde só se pode usar o método da terceira fase, o da sinceridade e colaboração, que é o único que pode permitir a eliminação da luta com o método da não-resistência. Transformar-se por si só em cordeiro entre os lobos, serve apenas para ser devorado por eles e assim engordá-los. Por isto o evoluído não pode tornar-se involuído, já que o seu destino está marcado. Seria absurdo que a vida, a longo prazo, desperdiçasse as suas energias com o fracasso daquilo que ela possui de melhor. Eis que todo este jogo sobre o qual se baseia a descida dos ideais não poderá terminar senão alcançando o objetivo para o qual existe, isto é, uma deslocação da humanidade em sentido evolutivo.
Por todos estes motivos, apesar do evoluído realizar uma grande função biológica, o ideal evangélico transportado para o terreno da realidade da vida, torna-se uma utopia, como coisa fora do lugar. A sociedade humana funciona com princípios opostos. Não é o estado orgânico colaboracionista que prevalece, mas o sistema de grupos dentro do qual se entrincheiram os interesses, espécie de castelo medieval, fechado e armado contra todos os outros castelos. Então uma pessoa não é apreciada pelo seu valor, mas conforme esteja dentro ou fora do próprio grupo. Eis a primeira pergunta que se formula: ele, é um dos nossos? Se o é, perdoa-se-lhe muita coisa. Se não o é, ainda que seja santo, ele é sempre um inimigo, estando portanto no erro e por isso devendo ser condenado. Se, se apreciam as qualidades de um indivíduo, isto não se faz imparcialmente, senão em função da possibilidade de ser explorado ao serviço de um grupo. Porque o objetivo maior é a sobrevivência e tudo se concebe e se faz em função dela. O grupo formou-se e existe precisamente para este fim, no qual todos os membros estão sumamente interessados. Esta é a força que os mantém unidos, porque é a união que os fortifica para defenderem-se e vencer. Assim, a apreciação de uma pessoa é muito diferente, conforme ela se encontre dentro ou fora do grupo. As valorizações humanas são deste modo torcidas em função desta necessidade de luta. Se quisermos julgar objetivamente um indivíduo pelo que realmente é, deveríamos, primeiro, despojá-lo das suas atribuições exteriores, prescindir da sua posição social, despi-lo de todos o arreios com que se cobre e se esconde, porque só então poderá aparecer sua verdadeira pessoa em vez dos seus sucessos sociais.
Na Terra tudo existe portanto em função da luta. O indivíduo deve ocupar-se, em primeiro lugar, deste trabalho. Ele vale na medida em que é utilizado para este fim. Eis que a parte mais dolorosa da vida do evoluído, se não morre antes, é a da glorificação, porque, se com isto ele conseguiu enxertar um pouco de ideal na vida, começa então a sua exploração, sendo submetido a finalidades humanas, buscando-se a sua adaptação quando nasce o seu emborcamento, a serviço do mundo. A maior paixão de Cristo não foi certamente a do Gólgota, mas a sua crucificação longuíssima, que já dura dois mil anos, a serviço dos interesses dos homens. Para o evoluído a vida não pode ser senão missão e sacrifício, e o seu triunfo está na morte, que o liberta do grande sofrimento do retrocesso involutivo e o restitui ao seu plano de vida. É assim que a sua posição negativa no mundo torna-se positiva no céu. Ele trabalhou para a realização da evolução, explicou com a palavra, contribuiu com o exemplo, para que se compreendesse a utilidade do método da honestidade e colaboração em vez do da força e do engano. O mundo se riu dele tratando-o como um ingênuo, e quando abria os braços para colaborar, os outros farejando nele o honesto inócuo, o escravizaram e espoliaram. A morte liberta o evoluído de tudo isto e o restitui ao seu mundo, feito, pelo contrário de justiça. Lá ele deixa de ser um inepto, porque lá a sabedoria do indivíduo consiste em conhecer o mistério do ser e consequentemente em atuar com retidão, e não na descoberta dos enredos do próximo para tirar proveito.
Que podia fazer ele na Terra? A sua posição aqui é clara. Na Terra ele é estrangeiro. Tivemos que falar dele, porque é o instrumento da descida dos ideais, nosso tema atual. Continua sendo cidadão do Seu mundo tão diferente e desce para viver a sua verdade que não pode ser desmentida. Se esta sua posição lhe impõe tremendos deveres, desconhecidos do involuído, para ele representa ela também um direito e uma força. Cada ser funciona segundo a lei do seu plano ao qual fica ligado, e que seja como utilidade ou como fardo, ele leva consigo para onde for. O evoluído que, por sua natureza não entra na luta do mundo, e no entanto tem de resolver o problema da sua sobrevivência, para que seja possível o comprimento de sua missão, deve possuir os seus meios de defesa e proteção. Trata-se de um cordeiro que tem de sobreviver entre os lobos, de um evangélico que usa o método da não resistência num campo de batalha. E a defesa deste indivíduo interessa à vida, porque ela dele necessita, tendo-lhe entregue a tarefa, para ele fundamental, de promover a evolução. Será possível que ao involuído inconsciente e destruidor tenha sido deixado o poder de liquidar o evoluído, impedindo assim o desenvolvimento da evolução? Será possível que o mal vença realmente o bem, e o que é inferior vença o superior? Mas se é certo que o evoluído é um exilado em Terra estrangeira, verdade é também que a lei de sua pátria o segue e o protege a fim de que se cumpra a sua missão. Se aquela lei permite que o involuído o elimine, o permite só quando chegou a hora em que o evoluído convém ir-se embora, porque a sua missão se cumpriu. A Lei de Deus é a verdadeira dona de tudo, inclusive do involuído e do mundo. Ninguém pode deter o processo da descida dos ideais à Terra, que realizam os objetivos da evolução. Os obstáculos ficam limitados no espaço e no tempo, e lhes foi dado o poder de resistir, mas não de vencer.
Eis o significado, a técnica, os instrumentos e as conseqüências da realização na Terra do fenômeno da descida dos ideais.
II
A HUMANIDADE EM FASE DE TRANSIÇÃO EVOLUTIVA
É inevitável que as concepções humanas sejam antropomórficas porque foram conquistadas por um cérebro humano, como resultado das experiências vividas e portanto em função dos conhecimentos adquiridos no ambiente terrestre. Como pode a mente humana, que é um produto de nossa vida, conter elementos de juízo e unidade de medida que ultrapassem os limites dela? A nossa capacidade de conceber baseia-se e eleva-se sobre elementos oferecidos pelos nossos sentidos, que representam uma abertura para o exterior circunscrito somente uma amplitude determinada do real e a uma determinada ordem de fenômenos. Tudo o que estas vias de comunicação não deixam passar, não é percebido, e para nós, portanto, é como se não existisse. É por conseguinte com um material bem limitado, ou seja, aquele que nós podemos obter deste modo, que foi construída no passado a nossa forma mental, que é o instrumento com o qual hoje julgamos. Não podemos pois elevar as nossas construções ideais senão com este instrumento e sobre estas bases simples, dado que não possuímos outros elementos. Daí, tudo o que está mais além destes limites encontra-se fora de nossa mente, isto é, não é concebido, nem concebível. E, se pretendemos elevar-nos a concepções superiores, não podemos fazê-lo senão com estes nossos meios, ou seja, com a nossa mente limitada, que tende a reduzir tudo às formas do seu concebível, porque, por força das coisas, não pode e não sabe pensar senão antropomorficamente.
Se nós percebemos só uma pequena parte da realidade, o que haverá mais além desta? Apenas recentemente, com meios indiretos, pelas vias da ciência, o homem começou a dar-se conta de tudo isto. E viu, também, que nem sequer esta parte que percebemos é realidade, mas apenas uma interpretação dela, porque obtida através dos nossos sentidos limitados, e pensada com o instrumento de nossa mente, relativa ao ambiente terrestre. Pode acontecer, então, que o produto de nossa interpretação seja somente uma distorção da realidade, e o que julgamos ser não passa de uma projeção antropomórfica construída por nós com as idéias fornecidas pela nossa vida.
Mas há ainda um outro fato que influi sobre o nosso modo de conceber. Se tudo o que existe está englobado no transformismo universal, nem sequer as nossas concepções lhe podem escapar, o que faz com que elas sejam relativas e progressivas. É indiscutível que se o universo se transforma por evolução, também por evolução, se transforma o órgão mental com o qual o percebemos e julgamos. Portanto, tudo é visto sucessivamente de diversos modos, cada um dos quais representa uma realidade, relativa a quem observa e ao momento em que observa. Eis que não possuímos das coisas senão estas nossas sucessivas e relativas representações, feitas por nós mesmos, julgamos ter alcançado uma realidade, mas esta é a realidade que o observador alcança por si mesmo naquele dado momento, e que varia com o observador e o momento, isto é, de um observador para outro, e, com o decorrer do tempo, para o mesmo observador. É assim que as nossas verdades não expressam outra coisa senão a maneira pela qual são vistas e concebidas para cada um, num dado momento. Elas são, portanto, relativas ao observador e progressivas no tempo.
Uma vez que isto depende da estrutura do ser humano, tudo permanece verdadeiro também no campo das verdades filosóficas, religiosas, morais, sociais etc. Todas as formas de existência parece não serem possíveis se não forem consideradas como um vir-a-ser, e o homem deu-se conta de que tudo é movimento, tanto no universo físico, no dinâmico, como no espiritual. No campo das verdades acima mencionadas, o transformismo evolutivo é ainda mais evidente, porque a psique é mais móvel e varia mais rapidamente com a evolução em função das fases sucessivas que ela atravessa. Também aquelas verdades estão em contínuo movimento, são relativas e progressivas. Este é o patrimônio mental que nos é dado possuir: limitadas representações antropomórficas e verdades em marcha.
No entanto, este mesmo progressivo relativismo leva consigo implícita a sua compensação. A idéia do transformismo em marcha exige a idéia de um ponto de chegada, que é também ponto de referência, sem o qual qualquer movimento não se pode apreciar. Então, a idéia mesma de verdade relativa e progressiva nos leva necessariamente à idéia oposta e complementar, de verdade absoluta e imutável. O movimento exige uma meta, um ponto situado fora dele, em função do qual se realize. Transformismo e relatividade progressiva por si sós não se mantém, necessitando de um absoluto que cumpra a função oposta, servindo de suporte. A isso leva o próprio princípio do dualismo universal, pelo qual cada posição existe em função do seu oposto, com cuja união somente é possível reconstruir a unidade, reunindo assim as duas metades divididas. É como o reencontrar-se do positivo e negativo e ao contrário, para formar um só e mesmo circuito.
A fugidia mobilidade contínua se apoia na solidez do imóvel, do qual necessita para que tudo não se perca num futuro imenso sem equilíbrio, orientação e significado. Esta fluidez deve ser um movimento na ordem, pois de outra forma levaria ou mesmo já teria levado, tudo há muito tempo a naufragar no caos. A instabilidade não é admissível senão em função de uma estabilidade, assim como a relatividade não se sustém senão em relação a um absoluto. Na lógica da estrutura e funcionamento do universo, há necessidade de um ponto Ômega, que não seja somente o ponto final da evolução, como um seu ponto cósmico, último produto do processo ascensional, mas que seja ponto de partida e de chegada, o Alfa e o Ômega de todo o transformismo dado pela existência; seja ainda o centro de todo este imenso fenômeno que o abrace, o dirija, o resuma e o justifique; um ponto no qual se inicie e se resolva a instabilidade do vir-a-ser, a corrida do movimento, a relatividade de tal transformístico modo de existir em formas e dimensões sempre mutáveis, enfim um ponto no qual tudo deve finalmente deter-se, porque alcançou a sua plenitude no aperfeiçoamento total do imperfeito, completando o incompleto, na superação final de todas as dimensões.
É a própria idéia do relativo no qual vivemos que nos leva por reflexo à idéia do absoluto, mesmo que não nos seja dado conhecê-la diretamente. Se o nosso relativismo nos nega a concepção do absoluto, e se o nosso antropomorfismo não pode alcançá-lo, nem por isso ele deixa de existir. Pelo contrário, é justamente a nossa posição unilateral, e por isso mesmo incompleta que, exigindo seja completada, nos indica a oposta, somente na qual isto pode realizar-se. É precisamente o fato de estarmos colocados num lado do ser, que se faz sentir a necessidade da presença do seu outro lado, só em função do qual se pode completar o nosso tipo de existência.
A esta concepção de uma estabilidade definitiva o homem pode haver chegado também porque alguns aspectos da realidade acessível a ele lhe indicaram , se bem que em sentido relativo. O transformismo em que ele está submergido pode de fato apresentar-lhe algumas zonas ou fases de imobilidade, a qual pode, no entanto, verificar-se, apenas como temporário descanso, uma aparente pausa no caminho, uma suspensão momentânea do movimento. Este movimento, apesar disso, continua, mas em vez de se verificar numa manifestação exterior, verifica-se como amadurecimento profundo no qual a existência prepara as suas mutações, perceptíveis só quando elas chegam a manifestar-se na forma exterior. É assim que o vir-a-ser da existência pode parecer suspenso, dado a ilusão da imobilidade definitiva, e é também que, no meio da relatividade, podem surgir pontos que pareçam fixos e definitivos, momentos de estabilidade, que podem fazer crer terem alcançado a imutabilidade, apesar de não serem mais do que repousos e paragens passageiros no transformismo. Verdadeiramente não passavam de transitórias posições de equilíbrio, prontas a romper-se para retomar o caminho, não são senão um momentâneo estabilizar-se de forças contrárias que no equilíbrio dos impulsos se neutralizam. É nesta posição estática de movimento relativo que, sem a desintegração atômica, a matéria parecerá eternamente estável conforme se julgou no passado. Isto não impede que ela esteja pronta a transformar-se em energia, ao serem rompidos os seus equilíbrios atômicos internos.
O vir-a-ser da existência não se detém jamais. Não é possível, porém, um transformismo que não seja um meio para alcançar um fim, um processo sem solução, um movimento eternamente numa determinada direção. Possível somente será um transformismo compensado com um movimento contrário e complementar, em função de um ponto de partida e de chegada, dentro dos limites de um dado percurso ou processo transformístico. Se queremos aprofundar para compreender a natureza daquele movimento, temos de chegar ao conceito de involução e evolução, entendidos como os dois períodos opostos e complementares do mesmo ciclo. Só assim tal movimento não se anula no vazio, mas complementa-se com a sua fase contrária, em função do seu ponto de referencia fixo, de partida e de chegada, que lhe imprime uma direção sem a qual ele não pode existir. Assim a simples idéia de movimento vir-a-ser aperfeiçoa-se, mudando-se naquela mais exata de transformismo em direção involutiva e de transformismo em direção evolutiva. Tal é então o duplo movimento no qual consiste o vir-a-ser e a existência. Isto significa que em nosso universo não se pode existir senão movendo-se em direção involutiva ou movendo-se em direção evolutiva: ou progredindo ou retrocedendo, ou afastando-se ou avizinhando-se de Deus, princípio e fim, porque é em função de Deus que tudo existe. A estase, neste processo de ida e volta, não pode ser constituída senão por períodos transitórios, que tarde ou cedo são retomados no movimento da existência.
O transformismo não é pois uma qualquer mutação desordenada, ao acaso, mas sim um movimento bem regulado, fechado dentro de normas de um processo fenomênico bem definido e disciplinado. Sem um tal princípio de ordem que o dirige, é difícil imaginar como ele se possa realizar. Ora tudo isto implica a existência de um esquema diretivo, de um plano pré-estabelecido que determina o caminho e, ao longo dele, as fases de descida e de ascensão. Deve haver então diferentes níveis de evolução, diversas alturas ou graus progressivos no modo de existir, posições biológicas mais ou menos avançadas, conforme o caminho executado para cada ser em relação ao ponto final de todo o processo, em direção ao qual tudo converge. Eis como pôde nascer e o que significa a idéia de progresso. Eis como transcorre o fenômeno do gradual desenvolvimento do ser por evolução. Vimos estes conceitos desenvolverem-se, ligados uns aos outros num progressivo concatenamento lógico.
Chegados a este ponto, podemos explicar melhor o significado do conceito de verdades relativas e progressivas de que falamos anteriormente. O que estabelece o grau de nosso conhecimento é o nível de evolução alcançado pelo instrumento que possuímos para este fim, ou seja, nossa mente. O conhecimento existe portanto em função da evolução, progride com o aperfeiçoar-se deste instrumento e a sua amplitude é dada por seu desenvolvimento. Na natureza tudo já está compreendido e resolvido, e tanto é assim que nós já encontramos tudo no estado de funcionamento. Somos nós que temos ainda de chegar a compreender e a resolver. No indivíduo mais evoluído a dificuldade não reside tanto no compreender quanto no fazer compreender aos menos evoluídos do que ele, os quais, às vezes, levam séculos antes de chegarem à compreensão. Esta é a história dos gênios incompreendidos.
O que impede o conhecimento são os próprios limites do instrumento mental que o indivíduo tem de utilizar para alcançá-lo. E superá-los representa um esforço ao qual o ser se rebela. A agilidade para executar tal trabalho é tanto menor quanto mais involuído é o ser. Quanto mais atrasado, mais se aproxima da inércia da pedra, da qual se encontra mais perto evolutivamente. Tem horror às mudanças, opõe resistência a toda renovação de idéias, uma vontade anti-esforço, para paralisar a ascensão que o incomoda. Esta tendência à estagnação chama-se misoneísmo e é devida ao impulso que tem o subconsciente de ficar agarrado ao que armazenou no passado, que representa a linha de conduta mais segura porque já foi provada pelo existência, e forma o seu patrimônio que tanto esforço lhe custou para conquistar. Prefere assim, por preguiça, não construir outro patrimônio, quando para viver basta o que já possui.
Os vários graus de conhecimento que a evolução nos oferece alcançam-se com tipos variados de inteligência, proporcionados ao nível biológico conquistado pelo indivíduo. Para as formas superiores de conhecimento os primitivos estão completamente imaturos. Podem recebê-lo, aprendê-lo, repeti-lo, possuí-lo em aparência, mas uma coisa é a erudição e outra é saber pensar. O involuído não é um estúpido, mas é necessário compreender qual é o seu tipo de inteligência. Esta é sempre a do seu nível evolutivo animal-humano, possuindo assim a relativa sabedoria, para ser utilizada no seguinte: sabedoria dirigida à defesa da vida, resultado do caminho percorrido no passado, limitada a fins imediatos, feita para resolver os problema práticos, próximos, e não os altos, teóricos, longínquos. A tal biótipo basta-lhe a sagacidade comum, a habilidade do engano e saber tirar proveito de tudo. Com isto ele se crê inteligente e de fato esta é a sua inteligência.
Mas o tipo de inteligência se transforma com a evolução e se eleva para enfrentar e resolver outros problemas bem diferentes, que para o tipo precedente ficam fora do concebível. Assim entre evoluído e involuído poderá encontrar-se o mesmo desnível de compreensão que existe entre um homem e um animal. Com a evolução, a inteligência coloca problemas sempre mais vastos, gerais, mais próximos dos princípios diretores, no centro do conhecimento. É em direção a este centro que avança o ser, afastando-se da periferia ou superfície, onde funciona a realidade prática exterior. Temos assim outro tipo de inteligência, feita para outros trabalhos e dirigida a outros fins. Ela abraça horizontes e concentra visões imensas, reúne em si, em síntese, espaços conceptuais amplíssimos, libertando-se por abstração da infinita multiplicidade do particular. Poder-se-ia chamar a isto olho telescópico, feito para ver longe, em comparação com outro que se poderia chamar olho microscópico, feito para ver perto. Trata-se de fato de uma inteligência pequena, limitada ao contingente, descentrada na multiplicidade do particular, desorientada e dispersa em mil fatos pequenos dos quais escapa o significado no seu plano diretor. Mas evoluindo, com a capacidade de vê-los, se ampliam sempre mais também os horizontes percebidos.
Os dois tipos de inteligência não se compreendem. O primitivo, justamente porque é ignorante, crê possuir toda a verdade, completa e definitiva. O evoluído, pelo fato de saber, chega a compreender quanto mais amplo é o conhecimento, para além das limitadas possibilidades humanas, e portanto quanto ele ainda desconhece. O primitivo liquida rapidamente todos os maiores problemas do conhecimento, suprimindo-os, limitando-se aos da vida animal. Para ele só são importantes estes. Para ele o pensador é um inepto para a vida, perdido entre nuvens, fora da realidade, uma coisa inútil, que se deve eliminar. Forma mental, desejos, emoções e dores são diversos.
Os problemas em que o primitivo se coloca e tem de resolver são os mais simples dos que os do evoluído, mas como acontece com este, são sempre proporcionais à sua inteligência. Quem se encontra ainda envolvido nas necessidades materiais deve, para sobreviver, ocupar-se destas. O interesse por outros problemas mais adiantados pode surgir somente quando os primeiros já tenham sido resolvidos, isto é, numa fase de civilização mais alta, na qual a vida seja menos violenta e feroz, direitos e deveres estejam estabelecidos e garantida para o indivíduo a satisfação das necessidades materiais, de maneira que estas não o ataquem e o distraiam e ele possa dirigir-se a outros trabalhos, construindo uma forma mental adequada a estes.
Continuemos seguindo o fio de nossa lógica, para ver até onde nos leva. Vimos no universo uma previsão e coordenação de trabalho, o que implica a presença de um pensamento diretor. Este plano no qual se move o processo involutivo-evolutivo não pode ser outra coisa senão o produto de uma inteligência, suprema neste caso, que somente pode ser a de Deus. E isto porque tudo isso pode derivar e depender somente de Quem esteja por sobre toda a criação, de Quem, para poder discipliná-la, esteja em condição de compreendê-la com a Sua mente e possuí-la com a Sua potência, o que só Deus pode fazer. Eis então que aquele plano não é outra coisa senão a Lei de Deus, imposta como regra da existência, base da ordem do universo.
Esta Lei não é letra morta, escrita em palavra, mas, pelo contrário, está viva e em ação, porque é pensamento e vontade, é idéia e realização. Quando a criatura de desvia dela, a Lei volta a chamar para o caminho reto o desviado que dela se afastou. Impele-o a voltar a ela para seu bem, mesmo porque não é tolerável uma infração à Lei, que representa um atentado à integridade do plano de Deus, uma tentativa de destrui-lo, a fim se substituir a vontade suprema pela vontade da criatura rebelde. Eis que a reação da Lei tem a sua função, que é a da defesa deste plano que quer e deve permanecer absolutamente íntegro para ser realizado. Porque é nele que está a salvação do universo, dado que determina o caminho de regresso de tudo a Deus, enquanto o ser procura sair da órbita traçada pela Lei, para impor o seu desvio. Esta saída do plano estabelecido para tentar uma órbita diversa anti-Lei, deve ser liquidada. Este é o princípio fundamental e na Terra cada lei o repete, reagindo seja com a prisão, seja com o inferno, porque a reação punitiva é a única coisa que o involuído é capaz de compreender e o que o pode induzir a obedecer. Se não tivesse em questão o seu dano, o transgressor não se ocuparia para nada da lei, que permaneceria uma afirmação teórica, sem nenhum resultado prático. Assim a reação da Lei assume forma de dor para o violador, que se justifica da parte da Lei como sua legítima defesa, porque ela representa o plano de Deus, anteposto a salvação do ser. Eis que em última análise a dor é santa e sábia porque é uma medida providencial de proteção, que obriga assim a criatura a tomar o caminho da sua salvação, que consiste no regresso a Deus.
O plano da Lei guia o caminho da evolução e determina que ele deve avançar em direção a Deus, seu ponto final. Evoluir significa progredir num processo de divinização, o que quer dizer aquisição de qualidades mais altas do ser, colocadas no cimo da escadaria da subida, isto é, potência de pensamento, inteligência, sabedoria, bondade, espiritualidade, que são as qualidades de Deus. Se esse caminho avança nesta direção, ele tem de consistir num desenvolvimento mental e espiritual. Este é de fato o caminho que vemos ter a evolução percorrido até hoje, subindo desde a matéria, através da vida vegetal e animal até o homem, que justamente se distingue pelo seu desenvolvimento cerebral. A história de nossa passada evolução nos mostra que por aquele trecho, tal era a direção impressa ao caminho do plano diretor, o que nos autoriza a crer que, uma vez estabelecido que esta é a lei que guia o fenômeno, ela tem de continuar a desenvolver-se no mesmo sentido, segundo o mesmo princípio.
A conseqüência desta lógica é que a humanidade, não por comando de castas religiosas ou de teorias filosófico-morais, mas por lei positiva de evolução, pelos princípios de uma biologia mais ampla, do passado, presente e futuro, tem de continuar a seguir o seu caminho já traçado, que consiste em divinizar-se cada vez mais, o que significa avançar em direção à espiritualidade. E se isto é o que a Lei quer, cada desobediência levará fatalmente à reação, como vimos, isto é, à sanção contra quem tente desvios fora da linha traçada. É portanto no sentido da espiritualização que deve realizar-se o crescimento evolutivo. A história do passado mostra-nos qual deve ser o nosso futuro. Se o crescimento evolutivo no trecho percorrido até agora foi dirigido neste sentido, é evidente e justamente esta qualidade que terá de acentuar-se cada vez mais no trecho a percorrer no futuro, porque a evolução é um processo único e agora estamos realizando a continuação dele.
Descoberta importante esta, porque nos mostra qual deve ser a direção a seguir agora em nosso caminho evolutivo, e a Lei quer que nos movamos neste sentido, sob pena das suas reações dolorosas em caso de desobediência. O passo atual é perigoso, porque o homem alcançou uma madureza mental que o coloca ante o dever de tomar sobre si as responsabilidades que tal madureza acarreta. O homem, neste momento, chegou a um desenvolvimento mental e de consciência que o capacita a assumir-se a si mesmo, não funcionando mais como um animal guiado pelo instinto, mas com conhecimento do plano diretivo da vida, a direção do processo evolutivo no seu planeta, fazendo-se operário inteligente de Deus, colaborador na execução da Sua Lei. O homem agora não pode mais aceitar cegamente, só por fé, a descida dos ideais do Alto, concedida por revelação, mas deve inteligentemente compreender o seu significado e a função, e obrar ativamente para traduzi-los em realidade na Terra.
Os fatos confirmam estas afirmações. Hoje, realmente a humanidade encontra-se numa curva ou virada biológica, em fase de transição evolutiva, pelo fato dela passar de um tipo de trabalho, inferior, que lhe é imposto pela necessidade da luta pela sobrevivência física num ambiente hostil, a um tipo de trabalho superior, dirigido ao desenvolvimento da mente e do espírito, em ambiente civilizado. A ferocidade e a força bruta servem agora cada vez menos para os fins da vida, à qual interessam cada vez mais a cultura, o pensamento, a inteligência, porque lhe são mais úteis. E a vida, sem hesitar, escolhe sempre o mais útil para a sua afirmação e para a sua continuação .
O tipo de vida que nos espera no futuro está então evidentemente traçado: é este não outro. Este é aquele que a Lei quer no momento atual de nosso desenvolvimento evolutivo; estas são hoje para nós as diretivas do plano de Deus; este é o comando ao qual Ele exige que se obedeça. Se o homem não seguir esta linha de conduta, se situará numa posição anti-Lei, com as conseqüências dolorosas que vimos. Então, se o homem, aproveitando o progresso alcançado e as descobertas que o libertam do trabalho físico e de tantas duras necessidades materiais, utilizar tudo isto somente para divertir-se e dirigir a inteligência em sentido destrutivo em lugar de criador, para o mal em vez de para o bem, então certamente a Lei reagirá enchendo o mundo de dor, porque, como vimos, cada violação leva ao correspondente pagamento doloroso. Então a humanidade ficará fora da Lei, abandonada a si mesma para destruir-se com as suas próprias mãos.
A conclusão a que chegamos aqui é que a humanidade hoje se encontra na encruzilhada: ou ela segue a linha da evolução segundo o plano de Deus, que é o da espiritualização, avançando em direção ao Sistema para adquirir as suas qualidades, ou pelo contrário, continuando a seguir a psicologia do passado, feita de egoísmo e agressividade destrutiva, se prestará a fazer um uso louco dos novos potentíssimos meios dos quais dispõe. No primeiro caso, poderá alcançar uma verdadeira civilização; no segundo se autodestruirá e a supremacia da vida sobre o planeta passará a outras raças animais inferiores que substituirão a humana. Espiritualização significa consciência, sentido de responsabilidade e da justiça no uso dos novos poderes; significa assumir inteligentemente as diretrizes da vida sobre a Terra, a do homem e a dos seus co-inquilinos, não já com a forma mental tradicional do involuído, mas com a do evoluído. Insistir na psicologia do passado agora pode significar a morte.
Impulsionar a humanidade em direção à sua inteligente espiritualização pode significar salvá-la da destruição. Daí conclui-se como é grande a importância do trabalho que realizam todos os que na Terra trabalham para a descida dos ideais que contêm o programa do desenvolvimento futuro da humanidade e nos indicam de que modo deve continuar a atuação do plano de Deus, agora na Terra, para realizar esta nova fase do processo evolutivo. No entanto o mundo considera muitas vezes estes indivíduos como iludidos, fora da realidade e os condena, os chama de sonhadores carentes de sentido prático, enquanto eles, neste momento, representam por ventura a única salvação para a humanidade na sua atual fase de transição evolutiva.
III
O CRÍTICO MOMENTO HISTÓRICO ATUAL. INÍCIO DE UMA NOVA ERA
Tratemos de compreender em profundidade o significado do momento histórico atual. O que salta primeiro à vista é o seu aspecto negativo, que é o mais próximo e se encontra já em ação. Trata-se de um processo de destruição de valores do passado, conquistados com tanto esforço nos últimos milênios. Assistimos à dispersão dos mais preciosos tesouros da espiritualidade, que é premissa indispensável para uma sábia direção da conduta humana. E paralelamente vemos que nada se reconstrói no lugar do que se vem destruindo espiritualmente, que não surgem e não se afirmam novos valores daquele tipo em substituição aos antigos, de maneira que se fica num vazio. A espiritualidade está em liquidação porque as suas velhas formas não convencem mais, porque se adaptam cada vez menos à mente moderna, e não se sabe ainda substituí-las por outras novas, racionais e científicas. As religiões apresentam suas verdades num modo fideístico, à base de mistérios, e absolutista-autoritário, com o que se trata de suprir a falta de provas, o que afasta o homem de hoje, que assim vai em busca de outras verdades: as científicas, mais positivas, demonstradas, praticamente utilizáveis. Hoje se pretende impor o problema da vida em forma diferente do passado, sobre bases claras e concretas e não sobre abstrações teóricas colocadas fora da realidade da vida. Entretanto, entre o velho que não serve mais e o novo por construir, sucede que a conduta humana fica desorientada e, faltando-lhe diretivas superiores, vai à deriva, retrocedendo involutivamente em direção à animalidade. Assim os progressos da técnica são usados ao inverso, não se fazendo dele um meio para alcançar fins superiores, mas sim para engordar no bem-estar ou para se matarem todos com a guerra atômica. Assim, no meio de tanto progresso, o mundo fica a mercê dos impulsos elementares, adequados mais a perdê-lo do que a salvá-lo.
Procuremos compreender o que está acontecendo. Quando um fenômeno chega à sua maturação, tende irresistivelmente a precipitar-se na conclusão. Ele é então como um parto e deve necessariamente realizar-se. A vida, no entanto, oferece-lhe os meios, estimula os impulsos, prepara tudo para que o fenômeno se cumpra com facilidade. Se o indivíduo, em vez de seguir a Lei até o fundo, se nega, então todo o processo no qual se encontra envolvido desmorona-se sobre ele e o que estava preparado para um progresso em direção ao melhor se transforma num retrocesso em direção ao pior. Este é o tremendo perigo que pesa sobre a humanidade de hoje, isto é, que ela se arruíne por não querer fazer bom uso dos novos poderes conquistados. Ora, precisamente sucede que, enquanto eles, para não se tornarem mortíferos nas mãos de um inconsciente, teriam a necessidade de ser dirigidos por uma nova sabedoria, ainda mais consciente e decisiva do que a dos séculos passados, neste momento não temos nada além dos rudimentos da antiga, sem saber como substituí-la. O perigo é grave enquanto a humanidade, absorvida no detalhe e sem dar-se conta do que acontece nas linhas gerais, está arriscando o seu futuro,, está jogando o seu futuro destino. Neste ponto do caminho da evolução ela se encontra numa bifurcação: se responder ao apelo ascensional da vida, subirá a um plano biológico ou nível evolutivo mais avançado, e portanto de maior civilização e menos luta, dificuldade e dor; se não responder, retrocederá a um plano biológico ou nível evolutivo mais atrasado, isto é, ao estado selvagem do primitivo e à correspondente dura forma de existência. O momento é crítico porque está em jogo a salvação, a imediata, positiva, controlável neste mundo, aquela que todos compreendem e tomam a sério, porque não é uma fé discutível, mas sim uma realidade biológica. Se não se aceita, se não se atende ao convite, amanhã a humanidade poderá chorar sobre as suas ruínas, porque em vez de dar um passo adiante para evoluir em direção ao melhor, terá querido retroceder um passo para involuir em direção ao pior. Quem conhece a estrutura das leis da vida sabe que tudo isto pode suceder.
O tema da descida dos ideais interessa sobretudo neste momento; porque eles nos apresentam o programa a realizar, enquanto evolutivamente representam uma antecipação de estados mais avançados que esperam ser realizados por nós no futuro. Chegou a hora da escolha, o momento da curva decisiva, do salto numa direção ou noutra. Procuremos fazer compreender o que está acontecendo, orientados pelo tratado nos precedentes volumes da nossa Obra, porque sem a premissa de um sistema filosófico-científico completo não é possível chegar a conclusões positivas. As espetaculares realizações da ciência mostram-nos que se está preparando algo de excepcional na historia da humanidade. Algo se está movendo nas vísceras do fenômeno evolutivo e por isso inconscientemente o mundo se encontra numa ansiosa agitação, desconhecida no passado. Se falha o salto, não se sabe como e onde se irá cair. E é perigoso tentar às cegas. Seria necessário mover-se orientados no seio do organismo fenomênico universal dentro do qual existimos e de cujas reações não podemos prescindir, para saber o que se deve fazer, sabendo quais são as conseqüências do que se faz. É necessário sermos sábios e previdentes, e só com conhecimento e consciência poderemos sê-lo. Tentando em nossos volumes realizar uma síntese universal, tratamos de dar uma contribuição neste sentido. tudo isto é urgente porque o fenômeno evolutivo está exercendo pressão para realizar-se e por isto corre em direção à conclusão do atual período e início de um outro, para resolver, de qualquer maneira, à nossa escolha, ou a favor da humanidade com o seu progresso, ou de seu dano com o retrocesso. A deslocação em direção a novos equilíbrios já está iniciada. Enquanto a vida avança, o homem não compreende o que está sucedendo e resiste amarrado ao passado com a sua velha forma mental. Adiante dele há uma estrada cheia de luz, ao longo da qual a vida o impulsiona, mas ele continua olhando para trás, para um mundo cheio de trevas. Tal é o tempestuoso contrate entre os impulsos opostos do momento atual. Mas ninguém pode mudar a fundamental razão do ser que é evoluir, nem pode paralisar o irrefreável anseio de progresso, de que é constituída a vida. Quem tem inteligência, consciência e meios, deveria ajudar a avançar o mais rapidamente possível neste caminho que leva à salvação com a superação.
A humanidade deve escolher entre as duas direções a tomar. O caminho é um só: o da evolução. Mas se pode percorrê-lo para frente ou para trás. Adiante se encontram os mais requintados valores de ordem psíquica e espiritual. O homem tem hoje nas mãos poderes jamais possuídos. Que uso fará deles? Servir-se-á para tornar-se sempre mais rico, egoísta, corrompido, permanecendo no plano animal, ou, pelo contrário, servir-se-á para ascender a um plano mais alto, transformando-se cada vez mais num ser de pensamento e consciência? Estes poderes podem ser utilizados nestas duas direções. Eles permitem um salto para a frente, de grandes proporções, mas se mal usados podem levar a um grande retrocesso involutivo. Ou se constrói um novo edifício, ou se fica a descoberto entre as ruínas do velho. Estes é um desses momentos da evolução em que o ideal e sua realização assumem um valor especial, diferente do costumeiro. Melhor dizendo, o ideal não é mais, como se julga normalmente, algo de utópico, não positivo, estranho à realidade prática, mas ao contrário, introduz-se nesta realidade como um necessidade vital, com um programa a ser realizado com urgência. Um programa necessário para a salvação, para não perder-se no retrocesso, mas principalmente para continuar a avançar ao longo do caminho da evolução.
O que está em jogo é imenso. Existe a perspectiva de um novo tipo de civilização, de uma era de bem-estar, de libertação da escravidão do trabalho e com isto de novas atividades muito mais altas e inteligentemente orientadas, realizadas por um biótipo humano mais evoluído, com outra forma mental. Isto é o que está amadurecendo na profundidade do fenômeno da evolução. É verdade que a vida não apresenta ao ser tais problemas, nem solicita desenvolvimentos semelhantes quando não chegou à hora. Antes que esta chegue, a vida prepara longamente o fenômeno para que possa realizar-se, rodeia-o de condições adequadas, depois o protege e ajuda para que chegue a realizar-se. Mas quando tudo está pronto e amadureceu o momento da sua realização, a vida exige do ser um esforço proporcional às suas capacidades e o responsabiliza se da sua parte falta a resposta adequada, deixando nesse caso recair sobre ele as conseqüências. Então a Lei de Deus se apropria do fenômeno e dela não é possível fugir. É permitido somente alterar as posições de cada um em relação a ela, isto é, violar-se a si mesmo. Verifica-se o dito fenômeno do retrocesso involutivo. Ela automaticamente castiga quem, chegado o momento em que tudo amadureceu e está pronto para avançar, não aceita a oferta, dela quer fazer mau uso, segue o impulso evolutivo em direção inversa, e em vez de utilizar os novos meios dirigindo-se em direção ao S, aproveitando-os dirigindo-se em direção ao AS. Querendo assim repetir o motivo da revolta inicial, é inevitável que as conseqüências sejam as mesmas; o precipitar-se de cabeça no abismo, para ficar ali sepultado, emborcado, como sucedeu a primeira vez, até que não tenha sido realizado o trabalho de regresso ascensional.
Não há dúvida que hoje em dia a técnica científica e a organização industrial permitem cada vez com menor trabalho alcançar uma maior produção, isto é, com menor esforço um maior bem-estar. Já se fala de dar, além do Sábado, também a Sexta-feira, e de reduzir as horas de trabalho dos outros quatro dias. Ora, o perigo reside no fato de que tal abundância de tempo e enriquecimento de meios não seja usado em sentido evolutivo, isto é, não como um capital utilizado para realizar um trabalho mais alto, mas em sentido involutivo, ou seja, capital dissipado em satisfações de tipo inferior, não para facilitar um impulso mental e espiritual, mas para abandonar-se, em descida, embrutecendo-se em materialidade. Saberá o homem fazer bom uso do aumento de poder que ele hoje tem nas mãos? Depois de longos estacionamentos de milênios durante os quais a humanidade jazia em posição estática que julgava definitiva, chegou a hora na qual tudo tende a dinamizar-se para pôr-se em movimento seguindo um princípio oposto e deslocar-se para alcançar novas posições. Mas o caminho está traçado pela Lei e, como já deixamos entrever, não pode verificar-se a não ser ao longo do percurso involutivo-evolutivo. Ou se avança em direção ao S, ou se retrocede em direção ao AS. O perigo reside no fato de que, em vez de melhorar dirigindo-se em direção ao S, este movimento deslize em direção ao pior, deslocando-se para o AS. No 1º caso caminha-se para a salvação; no 2º caso, para a perdição.
O fato não é novo na história, e se bem que em proporções menores, já se verificou. Poderia suceder para toda a humanidade aquilo que sucedeu no passado para as classes sociais chegadas à fase de aristocracia, que é a da vitória segura e posição privilegiada estabilizada na riqueza e no ócio. Então aquelas classes sociais, chegadas àquele ponto de sua ascensão, em vez de continuar o esforço evolutivo, se deixaram descansar, gozando o fruto do passado trabalho de conquista. Sucedeu então que, terminado o esforço e o exercício, perderam a capacidade e com isto o poder. Iniciou-se a corrupção, o enfraquecimento e a descida, para dar lugar a outras classes sociais que sobem do fundo onde se sofre e se luta, mas se aprende e se avança. Esta é a história da ascensão, florescimento e queda das civilizações. Antigamente este fenômeno abarcava só um limitado grupo humano, deixando a outro a possibilidade de substituí-lo logo que aquele decaía. Mas no caso atual o fenômeno se estenderia a toda a humanidade, já que brevemente, com a técnica e o trabalho, ela acabará por encontrar-se nas condições de abundância nos quais se encontrava o império romano no seu apogeu ou a aristocracia francesa antes da revolução. O perigo está em que agora, se toda a humanidade chegar a elevar o seu nível econômico, se difundam nela as perigosas características dos ricos, anteriormente limitadas a uma só classe social, as que corrompem e destroem, por inconsciência dilapidadora, no ócio e bem-estar gratuito. Isto é o que poderá suceder para a humanidade se ela não souber transformar a abundância, fruto dos seus novos poderes produtivos, num instrumento para um renovado esforço a fim de continuar avançando, em vez de preguiça e gozo.
Superado o trabalho material, o novo labor deveria ser de tipo intelectual, cultural, espiritual. Havendo-se libertado o homem da antiga forma de esforço penoso, que o embrutecia, atando-o à necessidade de satisfazer as suas necessidades mais elementares, seria indispensável, para não retroceder, que ele continuasse ainda a sua atividade, mas dirigindo-a a conquistas mais altas. O homem no entanto é o mesmo de antes, com idêntica forma mental. Subsiste portanto o perigo de que ele continue comportando-se como no passado, isto é, que em vez de encaminhar-se em direção a mais altas conquistas, comece a exceder-se em satisfações de tipo inferior, seguindo os seus impulsos de involuído, entregando-se assim ao abuso com a excessiva satisfação dos instintos mais atrasados, em vez de se entregar à conquista de um progresso ulterior. Pode-se chegar, então, ao despertar e fortalecimento da besta em vez da construção do anjo ou do super-homem.
O bem-estar, posto assim nas mãos de um dado tipo biológico ainda não bastante consciente para saber fazer bom uso dele, poderá produzir mais mal que bem. Constituirá portanto para ele não uma vantagem mas um dano, porque então a sua atividade, encaminhada em direção extrovertida em vez de introvertida, se dirigirá não ao desenvolvimento da parte espiritual, mas apenas à multiplicação de comodidades do corpo, com o fim em si mesmo, evolutivamente de escassa importância. Tomar o bem-estar material não como meio de progresso, mas como o maior objetivo da vida, é prostituição do espírito, emborcamento de posições, continuação do caminho em descida em vez de em ascensão. Assim ao ideal se substituirá o utilitarismo; à fé criadora, o céptico cinismo; à fraternidade, o egoísmo; ao progresso, o estacionamento. O perigo está em que ele termine transformando-se em regresso, num requinte e potencialização de animalidade. Tanto progresso será inútil se a humanidade quiser entregar-se ao ideal de viver somente para gozar a vida, e se ela se detiver numa exteriorização com o fim em si mesma, em vez de fazer do progresso um meio para alcançar uma interiorização que utilize os valores materiais para desenvolver os espirituais.
Se o momento é perigoso, ele é no entanto também maravilhoso porque oferece possibilidades desconhecidas noutros tempos. O que impele a vida sempre para diante é um irrefreável anseio em direção a felicidade. É o S que sempre chama e atrai desde longe. A felicidade não se pode encontrar senão evoluindo em direção ao S. O erro consiste em buscá-la no inverso, isto é, involuindo em direção ao AS. Caminhando para trás para satisfazer-se com o pior em vez de com o melhor, se acaba por encontrar, em lugar de alegria, dor. Ora, necessita-se muito mais de sabedoria, a fim de não matar ninguém, para dirigir um automóvel numa corrida, ou um avião, do que uma simples carroça! Eis o que se pode conseguir com tais meios! Existirá no entanto hoje, tal sabedoria ou teremos de conquistá-la duramente, errando e pagando? Temos, com a libertação do trabalho material, a possibilidade de dispor de muito tempo; mas que uso saberemos fazer de semelhantes vantagens? Rara é a oportunidade presente e cumpre-nos aproveitar as circunstâncias atuais, que não será fácil venham a repetir-se. O homem encontra-se perante perspectivas ilimitadas, com liberdade e poder, mac também com uma responsabilidade desconhecida nos séculos passados, lançado velozmente em direção a radicais mudanças de vida, com imensa possibilidade de novas realizações e proporcionadas conseqüências de alegria ou dor. Damo-nos conta porventura de que desastre representaria para a humanidade o não saber fazer bom uso de tais possibilidades e usá-las pelo contrário no sentido de degradação? Que imensa dor, pois, constituiria haver caído e ter de ficar em baixo, e que tremendo trabalho seria necessário para sair e voltar a subir, a fim de reconquistar a posição atual! Tudo isto não é fantasia, mas, pelo contrário, está estabelecida pelas leis que regulam a técnica da evolução.
O esforço para evoluir não deve nunca deter-se. O suprimir as dificuldades a superar e o esforço necessário para vencer e fazer avançar a vida, acaba por corrompê-la e corroê-la. Estabelecida a satisfação de todas as necessidades e desejos, resta o vazio, a inaptidão, a decadência por falta desse dinamismo vital no qual se apóia a técnica construtiva das qualidades. Quem renuncia à sua contínua autoconstrução se destrói. Pode-se controlar, na vida individual assim como na história, que resultados produz o fácil bem-estar. Tal posição de favor que no passado liquidou apenas uma classe social, hoje pode estender-se a toda a humanidade, o que será a sua destruição em massa. A salvação está em continuar o trabalho com atividades mais elevadas, de caráter intelectual e espiritual; em utilizar a libertação das necessidades materiais para levar a vida a um plano mais alto. Saberá o homem fazê-lo? Ou preferirá corromper-se na inércia, em vez de acelerar o passo em direção a mais elevados níveis biológicos? Neste sentido, a prosperidade pode constituir um perigo, um alimento grato, mais venenoso. Saber ser rico é muito mais difícil e arriscado do que ser pobre. Seria uma coisa nova na história ver uma sociedade rica que não se arruíne.
Cada conquista perde valor, se não serve para avançar. O caminho da subida está feito para ser percorrido. A lei é progredir. A evolução é uma pista onde não é possível deitar-se para dormir. A vida reside no movimento. Se pára, chega a morte. Todo o universo é movimento e apoia-se no movimento. Hoje o homem possui os meios para realizar um grande progresso. Se isto não suceder, a responsabilidade será sua, assim como as conseqüências. Que o momento esteja madura para mutações profundas o mostra o estado de agitação em que a humanidade se encontra. Sente-se, difundida, uma insatisfação em relação ao passado e uma preocupação em renovar-se a todo custo; todos os valores tradicionais são sujeitos a revisão e, mesmo que não se saiba qual deva ser o novo, o velho está em liquidação. Faz-se o vazio com a indistinta avidez de encher a vida com novos modos de pensar e agir. Estamos ainda na fase da tentativa: as novas formas, nas quais querem modelar a nossa existência, não apareceram; caminha-se ainda às cegas à procura de alguma coisa completamente diferente a que um vago instinto nos leva, e que não sabemos o que seja. Mas a ânsia de renovação é indubitável, apesar de não se saber onde ela quererá desembocar. Por esta estrada se deverá chegar a um novo tipo de vida, no qual os fermentos agora em ebulição, tendo-se desenvolvido, se afirmarão e fixarão. Nota-se em tudo isto a agitação febril do momento crítico, o esforço da conquista, a incerteza perante o desconhecido. Isto acontece em todos os campos, em cada manifestação do pensamento e das atividades humanas. Desde as descobertas científicas até às ideologias políticas, da técnica à moral, das religiões à arte, está amadurecendo todo um novo modo de ver as coisas e de conceber a vida. Tudo isto ainda se induz em forma de uma ansiedade indistinta nos espíritos, e assalta o homem como uma febre em que ferve a ânsia da hora crítica na qual ele deve decidir se avança ou retrocede. A evolução faz pressão de dentro instando o homem a ir para frente, obessionando-o com a avidez de avançar confusamente, que explode no inconsciente. É ânsia de chegar ao novo estado em expectativa para o qual tudo está pronto, mas que ainda espera, porque para seu aparecimento necessita ser fecundado pela adesão do homem e do seu indispensável esforço. Está incitando todo o passado que trouxe a vida até aqui e agora está fazendo pressão para que esta possa ascender mais.
Este esforço deve ser nosso e livremente desejado. A Lei guia o fenômeno, prepara tudo e no momento decisivo, dá-nos um impulso para a frente. Mas nós devemos assumir o esforço de subida, a isto nos decidindo espontaneamente. A vida sabe que agora, se quisermos, existem as condições para conseguir o objetivo, realizando o salto para a frente. Chegou portanto o momento de usar as nossas forças. Alcançado este ponto da evolução, existe a possibilidade de superar o fosso. Devemos saber superá-lo. Semelhantes condições favoráveis nos colocam na posição de responsáveis. A vida sabe que, se desejarmos, podemos vencer as dificuldades. Devemos portanto saber vencê-las. E não o quisermos, a culpa será nossa, com as suas conseqüências.
Tudo está pronto. Falta somente a nossa boa vontade, a nossa adesão e decisão. Logo, a conquista e o resultado serão nossos. É justo então que o esforço também seja nosso. Quando tudo está pronto, as condições favoráveis existem para assegurar o êxito, ajudando o esforço, e negar-se é culpável. Esta é a hora. Amanhã tais condições poderiam não encontrar-se mais e não restaria senão o prejuízo com o qual se paga o erro. Agora o fenômeno está maduro, a Lei fez a sua parte para preparar a sua chegada. O resto corresponde ao homem que, com o seu esforço, deve realizá-lo.
Eis aí a gravidade do momento histórico, a posição em que a humanidade se encontra ao longo do caminho de sua evolução. O que está em jogo é a sua felicidade futura, que pode, pelo contrário, chegar a ser a sua infelicidade. Se o homem não souber decidir-se a subir mais, cairá. A Lei quer ascensão e o delito de lesa-evolução paga-se em forma de dor, tanto maior quanto mais baixo se caiu. Então, dada a estrutura da Lei, não resta senão pagar duramente. Podia-se haver subido e se desceu, podia-se haver melhorado e se piorou. Uma alegria superior estava à mão e não resta outra coisa senão a tristeza do paraíso perdido. Lamentavelmente, parece que tal sistema de agir está mesmo nos hábitos humanos. Mas isto é lógico para quem compreendeu que o nosso mundo é o resultado de uma queda do S no AS. O grave perigo atual é que o homem queira repetir outra vez este motivo, fazendo prevalecer o impulso do emborcamento em direção ao AS, e assim, por evolução perdida, precipitar-se na involução.
É difícil saber quando e se a experiência poderá ser repetida, quantos milênios de esforço serão necessários para preparar novamente as atuais condições adequadas para se verificar o fenômeno. O inconsciente coletivo sente confusamente a gravidade da hora, há no ar uma inquietude vaga, como de quem se sente preso nas formas do passado e trata de libertar-se, há como um ensaio de vôo que se tenta com asas ainda não formadas ou inexperientes, um nervosismo incompreendido no seu verdadeiro significado de vago pressentimento apocalíptico. Estes sintomas são interpretados com patológicos e procura-se acalmá-los atordoando-se em distrações, para fugir a compreensão, ao esforço, ao peso da responsabilidade. Procura-se então satisfazer o impulso vital andando para baixo, em vez de subir, fugindo aos deveres e à introspecção que no-los indica, procurando eximir-se com escapatórias e as acomodações tradicionais, resvalando-se pelo caminho fácil da descida. A humanidade encontra-se perante uma bifurcação da evolução, sem ter plena consciência da gravidade do momento em que se impõe a escolha, que terá, depois, imensas conseqüências, seja no sentido da salvação como da perdição. E uma vez encaminhados por um destes dois canais, será difícil retroceder e mudar de estrada.
Eis o significado do atual momento histórico. Esta é a hora da maior conquista da humanidade, mas também da sua maior batalha, a hora das maiores possibilidades, mas também dos maiores riscos e perigos. Estão se deslocando as posições de base de nossa vida, desmoronam-se as muralhas do tempo do passado, nos quais não há mais espaço para o nosso pensamento, para edificar-se outros maiores; construtores de nosso eterno destino nos aprontamos para subir outro degrau ao longo da escala da evolução em direção a um mais alto plano biológico. A revolução já esta em ação, a verdadeira, a que é feita pela vida, por cima de todas as outras feitas pelo homem, de interesses ou de política. A voz de Deus, de dentro, grita: avante, avante! A sua mão está estendida para ajudar a humanidade a realizar o grande salto da transição evolutiva, ajudá-la a vencer as forças do mal que lutam para sufocar este desenvolvimento, e transformar a subida em descida, a vencer as forças do egoísmo, do cálculo, da negação, que quereriam que, uma vez mais, o AS prevalecesse sobre o S.
O presente volume, como conclusão dos restantes da Obra, é, na hora decisiva, um sério apelo a quem tenha ouvidos para ouvir, para que seja realizado o esforço da superação e se escolha o caminho da salvação em vez do caminho da perdição.
Compreendido o significado do atual momento histórico, vejamos como prever o que de fato poderá suceder.
Seguindo a configuração celeste como se apresenta no fim de 1964, enquanto escrevo estas páginas, os astrólogos observam que a conjugação entre Urano e Plutão tem uma influencia de tipo revolucionário, destruidor das velhas formas. Isto é útil como meio para libertar o terreno para novas construções e prepararia o advento da nova era. Plutão representa a influência demolidora do passado, das suas estruturas materiais e mentais. Urano representa a influência explosiva, o dinamismo criador do novo. Isto indica um contraste entre um despertar espiritual que quer realizar-se e a resistência de forças negativas que procuram impedi-lo. O momento atual seria, portanto, uma fase de laboriosa preparação de novos estados futuros.
Com influência menor, Saturno indica, pela sua posição a passagem entre duas eras, com a função de rendição de contas, pelo que se resolve o Carma com a liquidação do balanço passado e a preparação do futuro. Tudo portanto se moveria em direção a uma nova era. Ao trabalho de tal íntima elaboração deve-se aquela agitação febril, de que falávamos anteriormente, própria do momento crítico e que se manifesta em distúrbios neuro-psíquicos.
Há portanto três elementos em jogo: uma parte negativa de resistência, devida à influencia do AS; uma parte positiva, expressa por um dinamismo psíquico-espiritual, devida à atração por parte do S; e uma parte representada pelo esforço que o homem tem de fazer para realizar o salto para a frente. Estes são os impulsos que constituem o fenômeno. Isto pode levar a desmoronamentos, a revoluções, deslocações e reconstruções, mas o caminho da evolução caminha em direção ao alto.
Observemos agora, por via da lógica, como tudo isto poderá realizar-se. O fato positivo decisivo para profundas mutações que já está atuando e atuará sempre mais no ambiente e tipo de vida humana, é o moderno tecnicismo. Com uma mais fácil abundante produção de bens, ele deveria levar-nos a fase evolutiva de tipo econômico à de tipo intelectual-cultural-espiritual, que representa um nível biológico mais avançado. A evolução da vida se encontraria, assim num momento decisivo de seu transformismo, aquele que, segundo a terminologia de Teilhard de Chardin, leva à passagem da biosfera à noosfera.
Vejamos as causas pelas quais o fenômeno amadurece. Até hoje as bases da vida humanidade foram de caráter econômico. O possuir, sendo a coisa mais necessária para viver, foi sempre o ponto fundamental de referencia em função do qual se orientou o modo de pensar e de atuar. É assim que se formou uma forma mental humana que, em contradição com todos os ideais pregados, de fato venera, como supremo valor, o deus – possuir. Sem meios materiais não podendo fazer-se nada de exterior que é o que a maioria entende, também os ideais e as religiões permanecem ainda em terra sujeito ao domínio destes meios, não podendo realizar-se senão em posição subordinada a eles. O tecnicismo, com a abundância da produção, tende hoje a levar a humanidade para a libertação de tal escravidão econômica. Isto significa que outro será já o ponto de referencia segundo o qual se orientará o nosso modo de pensar e agir, o modo no qual se construirá e funcionará a nova forma mental humana. O homem, libertado do assalto das necessidades materiais, deverá então encontrar um outro tipo de trabalho, dirigido à produção de outro tipo de bens, de outro modo úteis a vida, agora que ela virá encontrar-se noutra posição ao longo do caminho da evolução. Estes bens são os valores de um mais avançado nível biológico, até então incompreendidos pelos involuídos, mas cuja importância agora se entenderá. Eles são os valores espirituais, fundamentais no novo plano de vida, como, no precedente, eram fundamentais os econômicos. Verdade, moral, escala de valores, tudo é relativo ao grau de evolução alcançado.
Antigamente a luta pela vida material era demasiado dura para que ela não dominasse todas as atividades humanas, físicas ou mentais. Ainda agora as religiões continuam pregando a renúncia aos bens terrenos. Mas elas, em primeiro lugar, se baseiam sobre estes bens, em desacordo com o que elas pregam e condenam. Em pleno acordo, crentes e ateus lutam pelos mesmos fins concretos, com os mesmos métodos, porque todos sabem que desinteressar-se dos bens próprios, para sonhar com ideais, pode significar a morte. Assim, as próprias religiões são as primeiras a constituir-se em organizações terrenas que possuem, administram os seus interesses como todos, também no caso de ordens religiosas baseadas no voto de pobreza. A fase economista está ainda em pleno vigor e a nova face culturalista, que tende pelo contrário ao enriquecimento no espírito, é coisa ainda que está para chegar. Hoje o problema fundamental do homem não é o dos bens espirituais, mas sim o dos bens materiais. Estes dominam tudo e, sem eles, pouco de pode realizar na Terra. Assim o mundo está cheio de igrejas freqüentadas por gente que, com os fatos, demonstra crer em algo bem diferente.
O problema humano mais vivo é o do “meu” e o do “teu”. A luta mundial entre imperialismo comunista e imperialismo capitalista, é luta do “meu” e o do “teu”. O comunismo é uma ideologia de assalto ao sistema do “meu”, que é o da propriedade e capital; no entanto, com semelhante ideal tomou posse do que pertence aos outros, tira-o também do próprio povo, para concentrar todo nas mãos da classe dirigente. O jogo é sempre o mesmo: o mais forte tira dos outros para si. Assim é a natureza humana e não é uma ideologia que pode transformá-la. Os fenômenos políticos e sociais não são senão um momento do fenômeno biológico, cuja expressão é uma conseqüência do grau de evolução alcançada. É por isso que o culto da posse hoje é universal, mesmo dentro dos ideais políticos e religiosos que se proclamam isentos dele. Não há nada que lhe escape. Diz-se: minha mulher, meu marido, meus filhos, meus parentes, dependentes, clientes, minha cidade, minha pátria, meu partido, minha religião, até meu Deus. Tudo é meu, em função de mim que sou o dono. O homem vale não pelo que é, mas pelo que possui. Esta é a estrutura da nossa forma mental, a base de nossa verdadeira moral.
Isto é o que o novo tecnicismo, com uma superabundante produção de bens nos poderá permitir superar, conseguindo assim deslocar o valor do eu, daquilo que ele possui àquilo que ele é. Mas para passar da tradicional valorização exterior à interior, será necessário aproveitar-se das novas condições de vida para deslocar a atividade de um trabalho de tipo econômico-produtivo, a outro de tipo intelectual-cultural-espiritual, dirigido não ao bem-estar material, que estará assegurado, mas à formação da mais evoluída personalidade do super-homem consciente. Trata-se de uma mutação evolutiva, aquela pela qual, segundo Teilhard de Chardin o ser desemboca da biosfera na noosfera, e segundo a A Grande Síntese se entra na 3ª fase do físio‑dínamo‑psiquismo. Quando o homem tiver superado e organizado em definitivo o dinamismo dirigido à produção econômica de bens, através do tecnicismo haverá fixado o funcionamento em forma automática, de maneira que essa produção continuará a fazer-se por si mesma. Então este homem, realizada esta obra, que já agora é sua, poderá dedicar-se à construção de si próprio num plano superior do edifício biológico, e através de outro tipo de dinamismo dirigir-se à produção de outros bens de caráter espiritual. Tudo isto é lógico porque faz parte do plano geral do desenvolvimento da evolução que vai do AS ao S, isto é, da matéria ao espírito. Tudo isto aparece mais evidente no período atual porque nos encontramos no momento da passagem de uma era a outra, da mudança de posições na qual, devido ao impulso para a frente, o transformismo se faz mais rápido, intenso e portanto mais visível.
Porque se trata de uma transição biológica. Transformar-se-á o tipo de vida da humanidade nas suas várias manifestações, como economia, política, literatura, arte, filosofia, ética, religiões, direito etc., porque mudarão a forma mental, o tipo de trabalho, as condições do ambiente. Assim as verdades consideradas absolutas mas que são relativas em relação aos séculos passados, se transformarão noutras verdades que se julgarão absolutas e serão relativas com referencia aos séculos futuros: tudo mudando e sempre em relação ao grau de evolução alcançado.
A nova grande ocupação do homem não será a de conquistar, para possuir, luta que já não terá razão de existir quando for superado o estado de necessidade; será pelo contrário um trabalho dirigido à conquista de conhecimento e à formação da consciência. Tudo isto será aceito pela vida porque representa um valor biológico ao mesmo tempo que constitui um modo mais seguro e completo de defesa e garante melhor a sobrevivência. É que estaremos diante de um tipo de luta praticada com meios mais inteligentes e portanto mais eficientes. De fato, não temos mais o indivíduo em completa ignorância, manobrado só pelos instintos e por eles arrastados como um cego ao longo do caminho da evolução, mas um iluminado pelo conhecimento, o qual assume as diretivas da sua vida e do fenômeno evolutivo no seu planeta. A luta pela ascensão continuará, mas dado o progresso realizado, será sempre mais de tipo S e sempre menos de tipo AS. e sabemos o que significa tipo S e tipo AS.
De tudo isto se pode compreender que desta vez não se trata de uma das habituais revoluções escalonadas em série ao longo do caminho da história para realizar pequenas e graduais transformações, mas da conclusão de uma destas séries para iniciar uma de outro tipo. Em resumo, trata-se de um salto de uma era a outra, trata-se de um processo de transformação que tende à criação de um biótipo mais evoluído. Hoje estamos quase no fim de uma fase de amadurecimento, pelo qual o fenômeno se precipita na fase seguinte. Estamos na hora do parto. O feto está pronto. Teremos um recém-nascido, o homem novo ainda menino, que os futuros milênios levarão à maturidade. Processo lento e longo, mas inexoravelmente construído pelo tempo que marca o ritmo do transformismo sem nunca se deter. Então, não mais o involuído de hoje, mas o evoluído de amanhã é que dominará e, como maioria, imporá as suas leis bem diversas. Explicamos suficientemente em nossos livros quão diversa é a sua forma mental, a sua ética, religião, tipo de trabalho, o seu fim a alcançar. Ele hoje é exceção e, perante a atual realidade biológica, é utopia. Amanhã ele será esta realidade. Hoje é uma antecipação isolada, um mártir pisado para abrir caminho aos piores; amanhã estará no vértice como mente diretora da evolução biológica do planeta.
Este é o esplêndido desenvolvimento que nos espera, programado pela leis da evolução, se o homem não quiser ser louco até o ponto de querer se precipitar num retrocesso involutivo, abusando no mal, na direção do AS, daquelas condições favoráveis que o impulsionam para o bem, em direção ao S, dilapidando assim o fruto da laboriosa maturação dos milênios passados.
Observemos ainda este fenômeno que a evolução está agora amadurecendo, seja nos seus elementos, seja na técnica e lógica que a vida usa ao desenvolvê-los. Falamos agora do culto da posse e da sua correlativa forma mental. É precisamente a esta nova forma mental que transformará o homem do futuro. É natural que, passando ele a uma mais avançada fase de evolução, mude também o seu modo de conceber a vida, segundo o seu modo de viver e funcionar.
Observemos como o homem se está preparando para entrar nesta sua mais avançada fase de evolução, e a que novo modo de existência está se encaminhando. A transformação evolutiva que na estrutura da massa humana, ainda está em grande parte amorfa, está amadurecendo, consiste em levá-la cada vez mais para o estado orgânico; mais exatamente, consiste em passar do atual (ainda vigente) estado ou modo de existir de tipo individualista-separatista a um outro, pelo contrário, de tipo orgânico colaboracionista.
Independentemente do comunismo, e fora da sua zona de influencia no mundo, hoje se afirma cada vez mais uma tendência geral à socialização. O comunismo não é mais do que um aspecto da expressão mais ousada, ativa e evidente deste fenômeno, o socialismo, que assalta toda humanidade. Tratando-se de um fato que se encontra por toda a parte, mesmo em terreno politicamente oposto, como também de profundas mutações no modo de conceber e colocar os problemas, de agir, de regular as relações entre os vários elementos da coletividade, enquadrando-os numa nova ordem, pode-se verdadeiramente falar de transformação evolutiva e de fenômeno biológico. Assim o comunismo, mais do que um consciente iniciador, seria só um instintivo seguidor, obediente realizador das leis da vida, as únicas que sabem onde a humanidade deve chegar e que portanto são as que verdadeiramente dirigem a história. Trata-se de fato, de passar a novas formas de vida, coletiva, inteligentemente organizada, isto é, a um modo de viver mais completo, complexo e perfeito, como é o estado orgânico. Quem entende o significado da atual tendência da humanidade à coletivização, compreende que se trata de uma transformação profunda que transcende o problema político e ideológico, e assume a importância de conquista de uma nova posição biológica, situada numa mais avançada fase de evolução.
É natural que tal transformação, atuando em profundidade, seja também psicológica e se estenda a vários setores da atividade e natureza humana. É natural que o instituto da propriedade, baseado ainda sobre o velho modelo social individualista-separatista, se ressinta deste novo modo de conceber a vida coletiva. Como reação a tal sistema, em razão da nova maturação evolutiva, explica-se a universal tendência, mesmo nos países capitalistas, a limitar cada vez mais o conceito individualista – separatista de propriedade absoluta; explica-se a vontade de uma progressiva circunscrição dos seus abusos, permitidos pelo princípio atávico de poder ilimitado pelo dono. No caso extremo do comunismo o ataque é frontal, para destruir definitivamente o próprio instituto da propriedade. Nos países capitalistas ela é atacada em forma mais moderada, por sucessivas aproximações, não para destruí-la, mas para discipliná-la. Acontece então que a antiga forma absoluta vai-se lentamente corroendo por ser rodeada, limitada condicionada. A propriedade da fase individualista-separatista não pode sobreviver em nova fase de evolução, senão transformando-se num tipo de propriedade orgânico-colaboracionista, porque toda a sociedade humana se está transformando neste sentido, e todas as suas manifestações devem seguir o ritmo da evolução que tudo arrasta consigo. É assim que vai desaparecendo o conceito de propriedade exclusivista-absolutista e ela se atualiza paralelamente com tudo o mais, fazendo-se assim cada vez menos abuso de egoísmos e sempre mais função social.
Se bem que em diversos graus, este fenômeno universal de assalto destrutivo ou de limitação da propriedade, tem um significado próprio. Ele nasceu e justifica-se como reação aos abusos que dela se fizeram no passado e que a humanidade, havendo amadurecido por evolução, agora consegue ver e não está mais disposta a suportar. É necessário compreender que a evolução, avançando em direção a um estado mais perfeito que o anterior, tem a função de polir o passado, libertando-se de todas as suas superestruturas que a desviaram e das incrustações parasitárias, erguendo-se por sobre as suas culpas e defeitos, sem o que não é possível ascender. Esta relação verifica-se numa intensidade proporcional ao abuso que a instituição degenerou. Então, para libertar-se da doença, procura-se matar o enfermo, isto é, combate-se uma instituição que, corrompendo-se, acabou por tornar-se prejudicial. Sucedeu o mesmo com o assalto violento do ateísmo contra as religiões. A culpa está no abuso que elas fizeram em nome de Deus. No caso do comunismo o ataque contra a propriedade, e portanto contra quem possui, é violento, em razão da total resistência da parte oposta. Isto é o que obriga a evolução, que ninguém consegue deter, a usar a força para progredir, quando esta se torna necessária para avançar. Neste caso o motivo da violência está na resistência do passado que não quer renovar-se, e é por isso que, para dar o salto para a frente, periodicamente a história deve recorrer às revoluções. Se elas acontecem, é porque são úteis à vida que de outra maneira não as produziria. E pode-se ver como elas são úteis ao progresso, mesmo que isso se verifique muito tempo depois. Ninguém admite hoje que seria um bem regressar ao regime anterior à revolução francesa ou ao poder temporal dos papas. Mas quem podia condenar naqueles tempos tais regimes? Por isso o ocidente capitalista vai acompanhando, se bem que lentamente e de longe, o extremismo reformador do comunismo. Pode-se entender também o fenômeno num sentido completamente diferente do político, isto é, como um instrumento nas mãos de Deus (para o cético traduzir: meio com o qual se realiza o pensamento e a vontade da evolução) quando não existe outro meio, a não ser a destruição, para realizar os supremos fins da vida. Só por ignorância se pode chegar a crer que aos interesses egoístas de um grupo ou classe social seja permitido, num universo em que tudo está regulado, deter o movimento ascensional da humanidade. E hoje isto se tem verificado com particular intensidade.
As transformações acima referidas não podem ser consideradas como um fenômeno isolado, mas que arrastam consigo, envolvido na mesma corrente, tudo o que se encontra perto dele, paralelo, afim, influenciável de qualquer modo. Tudo está conexo e se repercute comunicando-se pelas vias físicas, dinâmicas e espirituais do universo. Eis então que destas deslocações se ressente o vigente método de luta pela sobrevivência. Até agora ele baseava-se sobre a posse dos bens, sobre a sua conquista, defesa e conservação. Tudo isto acaba por transformar-se com a evolução do conceito de propriedade. É certo que permanece a fundamental necessidade de procurar-se os meios de subsistência. Mas agora tal problema deve ser resolvido por outras vias. Se no passado as bases da vida se apoiavam na propriedade, o que implicava numa perpétua luta contra os excluídos, ávidos de empossar-se, porque ser dono era tudo, em nova fase elas se apoiarão sobre a capacidade e dever do indivíduo de produzir para a coletividade, e no seu correspondente direito implícito na fase orgânico-colaboracionista, de receber daquela sociedade a defesa e a ajuda necessária para sobreviver, como justa recompensa do trabalho realizado para vantagem dela. Surge assim, favorecido pelo tecnicismo, um conceito novo: a valorização do trabalho que se substitui ao valor da propriedade. A produtividade toma o lugar e assume a função que primeiramente realizava a posse. Tudo isto sacode a vida humana da sua posição estática e a dinamiza, exaltando a função criadora em vez da conservadora. Tudo isto significa um método diverso de enfrentar e resolver o problema da existência, de se procurar os meios de subsistência, de conduzir a luta pela vida. Esta transformação fixa na raça dois importantes conceitos: o da necessidade de trabalho para todos e o conceito paralelo da necessidade da previdência social.
Veremos ainda que a transformação se torna cada vez mais vasta, invadindo outros aspectos da vida. Valorização do trabalho significa valorização do homem, agora dinamizado e com isto elevado a uma nova potência e mais alta dignidade. Criando com a sua atividade e inteligência, ele passa agora da sua precedente posição de servo das coisas possuídas, máximo valor do passado, ao qual ele tinha que se subordinar, para dominador delas, reduzidas nas suas mãos a um instrumento criador. Tudo isso significa que esses meios que chamamos propriedade e riqueza, para o homem futuro deverão ser de tipo diferente, porque o valor não será medido pelas posses, mas pelas qualidades pessoais e capacidade de produção; não se basearão no poder de bens com o trabalho dos outros, mas no rendimento da habilidade própria e da atividade. Então o indivíduo não valerá por ser proprietário de terras e capitais, mas porque é proprietário de um cérebro, de um conhecimento e consciência e de muita vontade de trabalhar. Eis o conceito novo que leva o elemento humano ao primeiro plano.
De tudo isto se vê quão profunda, importante e plena de conseqüências é a atual transformação evolutiva. Muda completamente a unidade de medida e o ponto de referência em função dos quais se julga o indivíduo e se estabelece o seu valor. Ele não vale por aquilo que possui, mas pelo que sabe fazer, não pela sua riqueza, mas pelas suas qualidades, não em relação à propriedade, mas em relação ao trabalho e à produção. É natural que cada transformação evolutiva, deslocando a posição do ser a um outro nível ao longo da escala da evolução, traga consigo também uma deslocação na posição dos termos da escala de valores. Trata-se de um verdadeiro avanço biológico enquanto nasce um valor novo: o homem, anteriormente em estado de germe aguardando nascimento, valor este que se substitui ao tradicional constituído nos bens possuídos. Ele, assim, consegue libertar-se da escravidão das coisas das quais dependia como de um valor máximo, para transformar-se ele mesmo em valor máximo. Como se vê, a revolução é profunda, porque chegas às raízes da personalidade humana, mudando a sua forma mental, ao mesmo tempo que desloca as bases econômicas sobre as quais se apóia a estrutura da sociedade e a atual técnica da luta pela vida.
Esta transformação traz consigo outras conseqüências. O instituto da propriedade historicamente representa uma posterior legalização, para estabelecer juridicamente a favor do proprietário um aleatório estado de fato ou posse, formado no início, fora de qualquer lei, por um livre ato de apropriação. É natural portanto que quantos tenham ficados excluídos de tal conquista e não compartilhando de suas vantagens, com o mesmo método sejam a repetir o mesmo ato, à custa de quem o realizou primeiramente. Eis como surgem os ladrões e a necessidade de uma propriedade armada em contínua defesa contra eles. Eis que o furto e propriedade são duas forcas opostas que se equilibram no seio do mesmo fenômeno. Uma implica na outra, leva-a consigo, fazendo-a nascer logo que ela nasce; porque ambas fazem parte do mesmo regime e se apóiam sobre a mesma forma mental da avidez egoísta, e seguem inseparáveis. Proprietário e ladrão no fundo são como dois cães à volta do mesmo osso. O primeiro luta para continuar sendo dono. Esta é a substância das defesas jurídicas. E o segundo luta por tornar-se dono. Esta é a substância dos assaltos, em pequena escala com o furto, em grande com as revoluções. Eis que para transformar este segundo termo num outro, eliminando-o nesta sua forma, é necessário transformar também o primeiro termo porque enquanto este continuar sendo o que é hoje, ele não poderá separar-se do seu fiel companheiro.
Ora, sucede que a atual transformação evolutiva procura precisamente transformar aquele regime num outro, de outro tipo, o que implicitamente leva à eliminação de todas as conseqüências do primeiro. Esta dissertação não teria sentido se existisse uma propriedade verdadeiramente justa, exclusivamente fruto de trabalho e economia. Esta, em pequena escala, poderá também existir. Mas, não é certamente com este método que se fazem as riquezas. Eis que para os males atuais não existe outro remédio senão uma mudança de método, e isto é o que se está hoje preparando. É certo que, se se quiser obter paz e libertar-se do furto e das revoluções, será necessário chegar a um acordo entre quem tem e quem não tem. Até esse momento, o que não tem andará a caça do que tem, o qual por sua vez deverá viver armado em seu castelo. Esta é a luta entre comunismo e capitalismo. Não estamos aqui tomando partido por nenhum programa político. Isto é só uma constatação imparcial do funcionamento das leis da vida e das inevitáveis conseqüências do tipo de forma mental que dirige o atual animal humano. Dia virá em que o conteúdo do “meu” será diferente, isto é, quando já não será o que possuo como tesouro acumulado, mas sim o que sei fazer, o que possuo como proprietário da minha própria capacidade de produzir. Neste dia cairão automaticamente as ameaças que hoje pesam sobre a propriedade. Este novo tipo de propriedade será assim inerente à pessoa e ninguém poderá roubar, nem por furto nem por revolução. Os ladrões nunca poderão levar as nossas qualidades pessoais.
Esta transformação pode levar a conseqüências ainda mais vastas. Superada a fase do regime separatista do “meu” e do “teu”, acaba por cessar o estado de guerra que dela deriva. Tanto para os indivíduos como para as nações, isso é inevitável conseqüência de uma propriedade nascida da posse e praticada com fins exclusivistas, gerando assim a classe dos esfomeados, prontos ao assalto. Todos os momentos de cada fenômeno estão conexos, um contido em germe no outro, com todas as suas conseqüências. Com os referidos problemas está conexo também o da multiplicação não controlada, sobre a qual voltaremos mais adiante. Até hoje a vida foi induzida à conquista com o método da multiplicação das massas humanas, lançando-as ao assalto dos povos mais ricos. É assim que propriedade e reprodução são fenômenos interdependentes, porque a segunda leva à custa da primeira, à necessidade de conquista de um espaço vital, e a primeira representando os meios para a existência, estabelece os limites da segunda. Numa sociedade civil e ordenada, estes fenômenos deveriam ser inteligentemente regulados e não deixados ao arbítrio dos inconscientes. As guerras não poderão ser eliminadas com as destruições e dores que custam, se não se eliminar a causa primaria. Vivemos num mundo de leis, constituído por uma engrenagem de causas e efeitos de onde não se pode sair. Cada tentativa neste sentido é um erro pelo qual se paga. A liberdade que conduz para fora da ordem, que viola os equilíbrios da vida em prejuízo dos outros, não pode levar a uma conquista mas principalmente à reação do ofendido, isto é, não à vitória mas à guerra.
Por que isto? Parece um destino maléfico que persegue o homem desde que ele apareceu sobre a terra. É o seu baixo grau de evolução, isto é, a sua posição ainda de involuído, que o prende dentro da prisão do seu estreito egoísmo, ligando-o assim a uma forma mental que, como uma condenação, o persegue, colocando-o em luta com todos. A causa primária está naquela forma mental, na natureza humana atrasada, está no fato de o homem ainda não ter sabido evoluir até formar-se uma consciência coletiva que o leve a disciplinar-se numa ordem e todos espontaneamente a colaborar em paz para o proveito comum.
Mas por que o involuído é egoísta e possui semelhante forma mental, causa de tantos dos seus males? Na raiz destes há uma razão mais profunda: o ser, pela sua revolta, é um decaído mergulhado na cisão. Do estado orgânico unitário ele, na origem dos tempos, se emborcou e se fragmentou no separatismo em que ficará enquanto não conseguir, evoluindo, reconstruir-se neste originário estado orgânico unitário. A vida, chegada com a humanidade ao mais alto nível evolutivo do planeta, está agora tentando os seus primeiros passos para se reaproximar da reconstrução daquele estado originário. Eis o mais remoto e profundo significado do coletivismo hoje na moda, visto em função das grandes transformações desejadas pela evolução. Por isso à hora presente toma esta direção no desenvolvimento da história, por isso também este é o trabalho que agora cabe ao homem realizar para passar a um grau de civilização mais avançada. Eis as razões da condenação à luta pela vida e às guerras entre os povos, e o seu remédio. Só a evolução nos pode permitir libertar-nos dos trabalhos forçados de tal tipo de existência que está esperando os involuídos. A vida terrestre já conhece este tipo de vida organizada, porque realizou os seus primeiros esboços nas colônias de insetos (abelhas, formigas), e melhor nas colônias de células (organismo humano). Nelas nenhum elemento se levanta contra o outro e todos estão espontaneamente ligados por um egoísmo coletivo unitário e não individual separatista.
Hoje assistimos ao início de um processo unificador da humanidade, o que implica a formação de um biótipo funcionando com outra forma mental, que leva a atuar e a viver de modo diferente. Tal unificação é então o resultado de uma coletivização convencida que naturalmente implica, por formar parte do novo sistema, a abolição das revoluções e das guerras. Novo biótipo, nova forma mental, nova concepção da vida, novo modo de comportar-se, estas são as sucessivas mudanças ligadas em cadeia que poderão levar a uma nova civilização feita para perdurar, fixando-se na raça humana. A evolução no passado deu prova de saber realizar transformações bem mais profundas. Com ela, gradualmente, tudo pode mudar. O homem se civiliza, se faz mais inteligente e menos feroz. A atividade humana se torna mais pacificamente produtora e sempre menos de tipo guerreiro, porque os novos cérebros conseguirão compreender quão prejudicial para todos é o método da agressividade. De resto, está na lógica de todo o processo evolutivo que se deve realizar um passo mais em frente na obra de reordenação que vai do AS ao S.
A vida segue vias utilitárias e o ser aceita o que lhe traz vantagem. Na prática não há quem não veja a conveniência concreta de dirigir as energias próprias em sentido produtivo de bens, em vez de um sentido destrutivo no tormentoso esforço das guerras. Com o novo método a vida se torna muito mais rica e defendida e isto com muito menor desperdício de energias, do que com o velho método ainda vigente. Não se poderá fugir a compreensão da facilidade que é resolver o tremendo problema da sobrevivência, desenvolvendo-se como inteligência pacífica produtora, e não como capacidade de furto e agressão. É precisamente por estas vias que a evolução tende a levar o ser em direção a contínuos melhoramentos, reabsorvendo a dor e criando a felicidade.
Observemos agora um outro aspecto deste fenômeno evolutivo tendente à unificação. É incontestável hoje que o aprofundar-se do conhecimento leva à especialização. E pode parecer que tal método leva à separação em vez de levar à unificação. Ele se difunde porque permite a cada um aperfeiçoar-se no seu ramo, oferecendo assim a possibilidade de realizar um trabalho melhor dentro da própria capacidade e função. No entanto, a especialização oferece o perigo de um afastamento e portanto isolamento de cada cérebro especializado. Surge então uma paralela necessidade de coordená-los, para não se acabar no caos de uma torre de Babel, em vez de chegar ao estado que a vida aspira, isto é, ao de colaboração, próprio da fase orgânica. Se a vida não corrigisse o impulso divisionista da especialização com um equivalente impulso unificador, o resultado seria desagregante em vez de construtivo, e a evolução retrocederia para o separatismo em vez de avançar para a unificação. Mas a tendência unificadora é mais forte do que o impulso separatista e por isso está destinada a vencer. Vemo-la manifestar-se na formação das grandes unidades políticas, agora já no mundo reduzidas só a duas principais, que um dia deverão acabar por formar uma só. É assim que hoje, junto com a tendência compensadora à unificação, pelo que se sente a necessidade de uma síntese universal orientadora. Até as religiões procuram aproximar-se com um colóquio para chegar a uma compreensão unificadora.
Por evolução nada pode deixar de dirigir-se à unificação. É este o princípio das unidades coletivas, já noutro lugar explicado por nós[1], pelo qual os elementos, em vez de se separarem com a especialização das suas funções, são retomados no circulo de organizações cada vez mais vastas, incluindo as organizações componentes menores, escalonadas por grandeza e complexidade ao longo do caminho da evolução. Eis que a crescente diversidade a que conduz o aperfeiçoamento, acaba por tornar-se não um elemento de cisão mas de unificação, porque sujeita a um misturar-se contínuo que funde todos e cada um dos elementos componentes. Vemos que a vida utiliza este método de aproximação colaboracionista no que se poderia chamar uma simbiose universal. Os elementos constitutivos do átomo dentro dele fundem-se num sistema; os átomos depois, se juntam noutros sistemas mais complexos nas combinações químicas dos corpos; as moléculas por sua vez coordenam-se nos sistemas celulares, e as células se unem a outras para funcionarem em conjunto, formando órgãos e organismos. Estas unidades coletivas já tão complexas são os primeiros elementos constitutivos de unidades ainda mais vastas. Assim no homem a união de indivíduos faz a família, depois o grupo familiar, a cidade, o partido, a nação, a raça, e por fim a humanidade. Pensemos que o processo unificador não pode deter-se neste ponto, e que tem de continuar com uma união de todas as humanidades, até chegar a um estado orgânico unificador de todas as formas de existência do universo.
Temos estado observando por quantos caminhos a evolução humana de está hoje amadurecendo. Cada desenvolvimento está conectado com outro, provoca-o ou está por ele condicionado. O fenômeno base é uma transformação do tipo humano que agora evolui no que respeita às qualidades cerebrais, o que significa transformação de forma mental, isto é, do modo de conceber, de resolver os problemas e, em conseqüência, da forma de agir, que será mais inteligente, pacífica, eficiente. Agora a evolução não é mais orgânica, de formas, mas chegada com o homem ao seu mais alto nível, começa a tornar-se de tipo espiritual. O amadurecimento se faz cada vez mais profundo, penetra no interior, em direção à substância do existir, atua por dentro nas raízes do ser, assalta os órgãos diretivos para que depois seja o próprio homem a projetar os resultados para o exterior, realizando com a sua ação o seu pensamento no plano concreto. Nasce daí, assim, uma transformação de ambiente, a qual depois reage oferecendo condições de vida diferentes, que por sua vez permitem uma evolução mais avançada. Assim nasceu a ciência, desta a técnica que facilita a produção de bens e enriquece o homem libertando-o das duras necessidades materiais e do estado de luta feroz para sobreviver. A técnica produziu os meios de comunicação utilíssimos para aproximar os elementos distantes e mantê-los em contato, sem o que não é possível chegar a compreensão recíproca, à colaboração, e por fim ao estado orgânico unitário. Quantos gênios no passado realizaram, sem resultados, esforços desesperados nesta direção evolucionista, porque lhes faltavam os numerosos meios que oferece a técnica! Só hoje se começa a compreender a possibilidade de uma civilização mundial única, porque foram abertas todas as estradas do mundo, o que significa circulação e comunicação não só de mercadorias e de pessoas, mas também de pensamento. Hoje busca-se concretizar ideais, como a unificação econômica de vários Estados, coisa anteriormente inconcebível. É a evolução que exerce pressão para arrombar as portas do separatismo; a mesma que arrombou as portas e abateu os muros que fechavam as cidades medievais, hoje destrói alfândegas, limites, nacionalismos e racismos separatistas, para aproximar cada vez mais da fusão num só organismo. Assim também o progresso da mecânica pode ser útil ao desenvolvimento do pensamento.
Então as coisas mais díspares, aparentemente distantes, acabam por convergir e cooperar para o mesmo fim. O progresso da medicina, o conhecimento das leis da vida, poderão permitir ao homem tomar a direção do fenômeno da evolução biológica do planeta, o que é indispensável numa humanidade chegada ao estado orgânico. Em tal regime de ordem não será admissível uma multiplicação não controlada, que não tenha em conta as suas imensas conseqüências demográficas, econômicas, sociais. Uma sociedade orgânica será responsável em cada um dos seus elementos das conseqüências de cada ato, e nada será abandonado à liberdade dos inconscientes. Então serão isolados, como elementos de desordem, todos o que, dando nascimento desordenado a novos seres, atentam contra a ordem coletiva; serão considerados como um perigo social quantos procurem lançar no seio da coletividade – que depois terá de suportar o seu peso – loucos, doentes, incapazes de serem arrastados; ou esfaimados, desviados, criminosos, estes últimos prontos a conquistar a vida para si, assaltando o próximo. Uma vida melhor não poderá ser alcançada senão numa posição de ordem, de previdência, de disciplina.
Nestas novas condições de vida variarão muitos conceitos. Como se passará cada vez mais do conceito de propriedade – exploração egoísta ao de propriedade em função do interesse coletivo, mas do que individual, assim se passará do conceito de autoridade entendida como posição de domínio sempre em vantagem de quem a detém, ao conceito de autoridade entendida como serviço a favor da coletividade e função social. Alterações interiores profundas, de convicções e forma mental, com importantes conseqüências no funcionamento da organização social. Dessa forma o princípio de autoridade, nascida como opressão escravagista, transforma-se em benéfica potência diretriz e protetora da vida.
A relação de tais transformações poderia continuar, com diversas alterações delas decorrentes. É toda uma frente de amadurecimento que avança. Na base de todas essas maturações está a maturação evolutiva do biótipo humano, na sua mente, da sua capacidade de compreender, é o que dirige a sua atividade criadora e representa o centro genético das suas obras. É esta maturação que, com a ciência que dela derivou, levará ao completo domínio das forças da natureza. Isto significa não só potencialização e valorização do trabalho do homem que o realiza, mas também um caminhar em direção a um tipo de trabalho de técnica especializada, o qual exige uma prévia cultura e implica assim um processo de intelectualização, dado que a atividade se transfere do plano do esforço material do servo ao plano da função mental do dirigente. Mas este novo tipo de vida não será possível senão no seio de uma nova civilização, deixando com a sua organização, o indivíduo liberto do assalto das necessidades materiais, às quais hoje tudo se encontra subordinado, permitir-lhe-á dedicar-se a coisas mais elevadas que a procura do dinheiro, que atualmente se impõe como finalidade principal de toda a sua atividade. Isto será facilitado pelo fato de que o estado orgânico implica o nascimento de uma nova função social, através da qual a coletividade se converte em protetora do indivíduo, até agora abandonado às suas próprias forças, em luta contra os seus semelhantes. Esta função de proteger coube, até agora, somente ao grupo em favor dos seus componentes, enquanto cada grupo luta com os demais. Deste sistema de castelos armados sempre em guerra entre eles, sejam partidos políticos, religiões, coligações de interesses, nações etc., deste primitivo sistema separatista medieval se passará ao já mencionado princípio das unidades coletivas, através de sucessivos reagrupamentos cada vez maiores, até ao máximo que os abraçará a todos, fundidos dentro da mesma unidade: a humanidade. Não mais luta entre indivíduos que não se conhecem senão em termos de rivalidade, cada qual indiferente aos problemas dos outros, mas antes colaboração para que estes sejam resolvidos. O progressivo aumento das providências sociais em todos os países do mundo e em todos os setores da vida humana, expressa o desenvolvimento deste fenômeno.
Tudo isto se manifesta a fase de superação em que hoje o mundo se encontra, a qual o leva em direção a um desenvolvimento mental que conduz à espiritualização no mais vasto sentido. qualquer tipo de capacidade mental representa sempre um valor superior ao de caráter físico, guerreiro, material, isto é, àquele velho estilo ainda tão apreciado em nosso mundo. Também a ciência é conhecimento, e por isso não pode deixar de conduzir à consciência e a um progresso em direção ao espírito. É para este tipo de progresso que se move a evolução. Tudo isto que é atividade de intelecto, é vida no seu mais alto grau de desenvolvimento. O fato de que as máquinas substituam o trabalho muscular e a atividade passe às funções nevosas e cerebrais, representa pelas suas conseqüências uma transformação de alcance biológico. Agora o maior problema da vida que é o de assegurar-se a continuação somente se resolverá confiando-se na inteligência e não na violência. A conseqüência será a formação de um novo biótipo espiritualizado no mais vasto sentido, filho destas novas condições de existência. É assim que do involuído poderá nascer o evoluído, do animal humano do passado poderá nascer o verdadeiro homem.
Não é possível aqui passar em revista todos os momentos desta complexa maturação. Podemos apenas concluir que este quadro confirma que se trata de uma curva no caminho da evolução, da passagem de uma era a outra, por um processo de maturação chegado ao seu momento critico. Ele tende à formação de um tipo humano mais evoluído, que será o elemento constitutivo de uma nova civilização baseada sobre outros princípios, alcançados com uma forma mental. Quem tem olhos para ver e cérebro para pensar, compreende que estamos num momento crucial e decisivo de tremendo esforço, de grave perigo e excepcional potência criadora. A nossa época parece de destruição, mas esta representa o trabalho necessário de limpeza do terreno, sem o que não se pode reconstruir. Para que a vida possa desenvolver-se em novas formas mais avançadas é necessário libertar-se das coisas velhas que o impedem, ocupando o espaço disponível.
Cada século deve criar alguma coisa, segundo suas capacidades tão diversas, de acordo com as possibilidades do momento histórico. Mesmo nos períodos de decadência, a vida consegue criar algo, ainda que seja um fruto corrompido por demasiada maturação. Mas hoje estamos em decadência só como função necessária de eliminação do passado. Sob este terreno coberto de despojos, ferve e está despontando um mundo novo, compete a nós fazê-lo nascer. Somos nós, seres viventes, que incorporamos as forças da vida em ação; nós, humanos, somos os construtores de nosso destino. A vida, inteligência que pensa e dirige, não é uma abstração fora da realidade, mas é também vontade de realização que se concretiza no homem, que se torna o seu braço executor. Em épocas mais avançadas um homem mais evoluído compreenderá e realizará esta íntima colaboração entre a grande inteligência que dirige o funcionamento do universo e a sua pequena inteligência que serve de operário inteligente.
O atual esforço criador desta geração corresponde a nós e dele devemos ser instrumentos heróicos, numa nova época de conquistas sobre-humanas. Nesta, como em todas as horas apocalípticas, as grandes diretivas estão nas mãos de Deus, enquanto o trabalho pequeno da execução está nas mãos do homem; a ele caberá o esforço, a luta, o perigo, para que seja seu e merecido o resultado.
Agora que falamos de um tão esplêndido desenvolvimento em expectativa, mudemos em relação a ele o ponto de vista, para olhar não o futuro do mundo mas o presente. Damo-nos por ventura conta do atual tipo biológico e quais as condições de ambiente a que tudo isto deve ser aplicado? O certo é que o involuído atual, dada a sua natureza, não está, de modo nenhum, pronto a dar de imediato salto tão grande para a frente. Sem dúvida o tecnicismo transformará o ambiente terrestre e as condições de vida do homem produzindo depois profundas alterações também em sua natureza. Mas quanto tempo será necessário para que tudo isto possa tornar-se realidade? Falar hoje em abundância de meios e de cada tipo de trabalho superior intelectual em países subdesenvolvidos onde se morre de fome e reina o analfabetismo, pode parecer uma trágica mentira e um insulto a miséria. Mas o progresso, com o ritmo hoje alcançado, deverá no entanto chegar até lá e levar todo o mundo a este nível. Por estas razões, agora que observamos o fenômeno como amplas perspectiva futura em relação aos seus desenvolvimentos longínquos, procuremos compreendê-lo também segundo uma perspectiva mais estreita, em relação aos seus desenvolvimentos mais próximos num futuro mais imediato, tendo sobretudo em conta o homem atual e quão longe está ainda de tais conquistas.
Que valor tem na Terra as coisas superiores do espírito? Em nosso mundo o ideal pode existir enquanto pode ser explorado. Mas isto, neste nível, é justo porque, antes de pensar em evoluir, é necessário assegurar-se a continuação da vida. Só quando o necessário esteja garantido e este problema resolvido, será possível enfrentar outros mais altos. Quem é assaltado pela fome não pode ocupar-se de cultura e espiritualidade. De fato, a realidade que existe debaixo de toda a pregação de qualquer ideal é a feroz luta pela vida que em nosso nível representa a mais profunda verdade. Na realidade tributa-se grande admiração e veneração pelos valores espirituais, mas em teoria, enquanto na prática se apreciam e se buscam os valores materiais. Os ideais se utilizam então para outros fins, como o de fazer uma criação boa e mansa e com isto um rebanho sujeito à obediência, para ordenhar como é função dos pastores. Este é o ambiente no qual o involuído se encontra ao seu gosto, por ser proporcional aos seus instintos e necessidades. Quando tropeça nos ideais pregados aos quatro ventos e que para a sua vida terrena não lhe servem, que pode fazer o involuído senão tratar de utilizá-los como instrumentos para sobreviver na luta pela existência? Um selvagem que encontrasse um aparelho de televisão não saberia utilizá-lo senão como uma caixa vulgar para meter dentro o que lhe pudesse servir, porque mais não compreenderia.
Assim a exploração dos ideais por parte do involuído não é mentira, porque ele não pode compreender-lhes a significação. Para ele não há margem para coisas que não lhe servem para viver na Terra, seu problema premente de cada minuto. Exigir que, em tais condições, ele se ponha a evoluir, a lutar pelos ideais, enquanto tem de lutar por coisas bem mais urgentes, representa um atentado à sua vida e é natural então que ele se defenda como pode. Tudo o que lhe vem à mão deve utilizá-lo para sobreviver num mundo hostil que não admite sonhos. O evoluído rebela-se contra o que julga prostituição; o involuído considera-o tonto, porque por olhar para o céu se arruína na terra. O antecipador do futuro por mais nobremente que atue, é julgado um inepto por quem quer primeiro resolver o problema de viver no presente. Quem, para sobreviver, necessita em primeiro lugar das coisas concretas que servem ao corpo, não sabe o que fazer dos maiores valores do espírito. Nas duras condições de luta do ambiente terrestre, quem esquece este fato e, em vez de cuidar dos reais problemas da vida prática, se perde indo atrás do espírito, é um louco que procura a morte. É assim que na Terra, reino dos involuídos, está tacitamente convencionado que o ideal deve ser explorado para fins materiais, porque para outra coisa ele não pode servir.
Depois de haver projetado neste quadro as condições espirituais de nosso mundo e haver visto como ele está ainda submerso no seu baixo nível evolutivo e não preparado para um salto de improviso para a frente, nos perguntamos: agora que a técnica poderá permitir uma abundância de bens, menor trabalho e mais tempo livre, bastará isto para que o involuído posa compreender o valor dos ideais? Para que sinta o gosto das coisas superiores do espírito, mude de forma mental, assumindo uma nova que o induza a praticar um tipo de esforço totalmente diverso, dirigido a conquistas que até agora tão pouco interessam? O instintivo fundo do atual subconsciente humano formou-se como conseqüência das ferozes condições do ambiente nas quais o homem teve de viver no passado, e é o produto destas. Se elas mudam, certamente aquele subconsciente irá adaptando-se a elas, experimentando e aprendendo. Mas para adaptar-se à nova situação, assimilar a mudança e transformar-se definitivamente até fazer de tudo isto qualidades e instinto próprios, será necessário muito tempo. Dever-se-á formar uma nova simbiose com o ambiente, um novo tipo de convivência coletiva.
Se tomarmos um tosco aldeão e o colocarmos num trono, tornar-se-á um senhor requintado? E de quanto tempo necessitará para que isso possa acontecer? Não basta enriquecer um primitivo para que este possa de repente transformar-se num ser civilizado. O primeiro uso que ele vai fazer da riqueza será desperdiça-la em disparates. Antes que possa aprender a atuar de maneira diversa, ele deverá atravessar e assimilar novas experiências: se entregará a abusos, pagará as suas conseqüências, até aprender à sua custa a saber fazer sábio uso dos novos meios. Como pode conhecer os perigos da riqueza e abundância quem não provou senão as duras conseqüências da miséria? A experiência é “aquela coisa que nos permite reconhecer o erro logo que se recai nele”. Mas a primeira vez, quando ainda não foram provadas as suas tristes conseqüências, como pode reconhecê-lo e não cair, sobretudo quando ele se apresenta como salutar correção de erro oposto cujos tristes efeitos já se conhecem? Como fazer compreender a quem suporta as dores da fome, a necessidade de evitar as dores a que leva a uma indigestão?
Vejamos o que sucede quando se oferece abundância de tempo disponível e de bem-estar a indivíduos não preparados, incapazes de saber dirigir pela própria disciplina interior. O regime a que estavam habituados no passado era trabalho forçado e miséria, de maneira que o seu mais alto ideal consistia na supressão destes dois males, para compensá-los em sentido oposto, com ócio, licenciosidade e abundância, isto é, com demasia de tudo quanto antes lhes faltava. Antes de chegar à mudança, o primitivo vive adaptando às suas duras condições de vida, que com o tempo formou uma natureza adaptada a elas. Formou-se entre indivíduo e ambiente uma determinada regra de convivência. Ora, quando o valor de um dos dois termos se desloca, nasce um desequilíbrio entre eles e a necessidade de adaptação para harmonizar-se em novos equilíbrios. É natural que, quando o indivíduo viva debaixo de uma determinada pressão, suprimida esta, salte a mola da reação. Isto é inevitável e é o que sucede nas revoluções. Para evitá-lo seria necessário manter a pressão ou, melhor ainda, não dar lugar a tal estado de pressão. Uma repentina alteração de condições de vida em indivíduos despreparados para saber bem utilizá-los, não pode deixar de provocar instintivas reações de abuso, tendentes em primeiro lugar a compensar as dolorosas carências precedentes com a imediata realização desse ideal de gozo por tanto tempo comprimido no subconsciente. Sucede no entanto que tais reações, dirigindo-se fora de toda e qualquer medida e em sentido não evolutivo, devem ser depois corrigidas para voltarem a ser levadas à ordem, com uma reação proporcional ao erro, em termos de sofrimento.
O primeiro uso que o involuído poderá fazer do novo bem-estar será o abuso. Terminada a compressão forçada da privação, o impulso instintivo saltará para o abuso, em sentido oposto, isto é, o super saciar-se de tudo aquilo cuja falta antes se sentia, porque dessa forma se concebia a felicidade no passado. Assim o primeiro movimento de um involuído é a procura de uma super-satisfação dos instintos primitivos: gula, orgulho, ócio, sexo etc. É natural que o animal uma vez livre da opressão que o disciplinava, a restitua em sentido oposto àquele que o pressionava.
O momento seguinte é o da escola que ensina a assimilar os frutos da experiência. Tem-se de suportar os prejuízos que se seguem ao abuso, até que se aprenda a eliminá-lo. Assim o indivíduo aprende a autodiciplinar-se fazendo sábio uso das coisas. Pouco a pouco, com a regular satisfação, se forma o hábito, o que acalma a ansiedade e leva à saciedade. Chegados a este ponto o impulso inferior em direção ao excesso pode ser eliminado, porque se formam novos equilíbrios, as novas posições se normalizam, a sociedade se faz constante, exigindo sempre menos abuso, que assim automaticamente vai diminuindo até desaparecer. Então foi aprendida a nova lição e o indivíduo, superada a oscilação entre carência e excesso, pode deixar de lado o problema, já resolvido, das necessidades materiais, e cuidar através de outras experiências, da solução de problemas mais complexos e da conquista de valores mais altos.
Assim a transformação biológica de involuído a evoluído alcança-se gradualmente através destas oscilações e adaptações sucessivas. Só quando o indivíduo tiver superado o passado, eliminado suas carências e saciado os seus velhos desejos com uma regular satisfação, poderá nele surgir outro tipo de desejos e a necessidade de satisfazê-los. É assim que, pouco a pouco, emergem primeiramente as aristocracias e depois as seguem, subindo de baixo, outras classes sociais, seguindo todos o mesmo caminho ascensional e atravessando o mesmo processo de transformação. Em princípio a alteração das condições de vida levará, como primeiro efeito, ao desencadeamento dos velhos impulsos até então comprimidos. Uma vez que se lhes ofereceu a possibilidade de desafogar-se livremente, o primeiro resultado não poderá ser senão uma satisfação excessiva. Portanto num primeiro momento não teremos a passagem a uma vida superior, mas sim um reforçar-se da vida inferior. Isto automaticamente leva a outro resultado, que é primeiro o de ter de suportar as dolorosas conseqüências do abuso, e depois, através destes sofrimentos, o de aprender uma autodisciplina e construir uma consciência, elementos base para a conquista dos valos espirituais. Estas são as fases do fenômeno.
Num primeiro momento ele não é, portanto, evolução, mas um reforçar-se do precedente estado de involução. Este depois não pode ser superado enquanto não for cumprido o esforço necessário para dele se libertar, a isto induzido pela dor, a qual, decorrente do abuso, faz desaparecer toda a satisfação. No previdente jogo de forças que determinam o fenômeno, esta satisfação automaticamente é levada ao excesso para que a dor a transforme em insatisfação e assim recebendo um contragolpe, o indivíduo será levado por ela à superação. Eis que, na economia da evolução, o nascimento espontâneo do abuso tem uma função na medida em que conduz a uma inversão de valores, com a morte dos velhos e o surgir dos novos. Sabemos que o sofrimento representa o agente corretivo do erro, com a função de endireitar as posições. Somente assim o homem poderá aprender a viver num plano mais elevado. Apenas depois de tal série de experiências, a técnica moderna poderá dar fruto em sentido evolutivo. esta análise mostra-nos que é muito provável que o primeiro resultado imediato seja de um retrocesso involutivo, já que em princípio se tenderá a usar novos meios com a velha forma mental, o que levará a uma retomada dos defeitos do passado, potencializada pelos novos poderes. Por exemplo: o primeiro uso que se faz das invenções modernas é com finalidades de guerra. Quantos estragos serão necessários antes que o homem aprenda a usar tudo isso de um modo melhor? Depois, como acontece com todos os erros, este também será corrigido pela dor, da qual assim se compreende a função e a necessidade. Reabsorvido o erro, o mal ficara neutralizado e o fenômeno se concluirá num progresso evolutivo.
Não esperemos portanto que o progresso técnico transforme o homem num átimo, e que por si só seja suficiente para determinar o seu avanço mental, cultural, espiritual, de que falamos. O novo bem-estar poderá ser utilizado neste sentido pelo já maduros, encaminhados de há tempo. Mas para muitos, ainda involuídos, tal elevação de nível de vida poderá levar primeiramente ao ócio, aos gozos de tipo inferior, aos vícios, a um desencadeamento de novos baixos desejos, a um requinte no mal. Quando o centro espiritual de um indivíduo esta em baixo, naquele nível ficam as sua manifestações. Não se pode pretender que um primitivo saiba responder diversamente daquilo que ele é, e que utilize os seus meios com um cérebro diferente daquele que possui. Cada ser, quando se encontra em condições que lhe favorecem o desenvolvimento, poderá desenvolver apenas o tipo que já apresenta. Depois então o adapta às novas condições de vida. Mas no princípio só poderá aumentar e fortalecer-se segundo aquilo que já é. Se damos a uma planta venenosa meios para prosperar, isto a levará a fazer-se mais potente no seu veneno. Assim, ajudados, um escorpião, uma serpente, um macaco, se tornarão cada vez mais escorpião, mais serpente, mais macaco. A construção espiritual, o elevar-se a um mais alto plano de existência, é fenômeno lento e complexo, é uma maturação em profundidade. Para alcança-la é necessário lutar, sofrer e vencer. Não basta para fazer o homem, a gratuita ampliação das mais favoráveis condições de vida exterior. A evolução é uma laboriosa conquista; ela leva em direção à felicidade, mas esta deve ser ganha e merecida.
IV
ENCONTRO COM TEILHARD DE CHARDIN
I – Os Pontos Básicos
Quando na vida encontramos um indivíduo que tem as nossas mesmas idéias e sentimentos e vemos que passou pelas mesmas vicissitudes que passamos, sentimo-nos irresistivelmente atraídos para ele, movidos pelo sentimento de simpatia fraterna. Por este motivo falo de Teilhard de Chardin.
Os pontos de contato são três: 1) as teorias defendidas; 2) os sofrimentos morais causados pela dolorosa posição de incompreensão e condenação por parte das autoridades religiosas; 3) a paixão pelo Cristo, concebido racionalmente como ponto de convergência da evolução da vida. Observemos os três pontos para compreender o pensamento e a nobre figura moral deste cientista, filósofo e crente, assim como o significado da sua obra perante a renovação atual do mundo. Este exame poderá levar-nos mais além do caso particular, para observações de caráter e interesse geral.
1) As teorias defendidas por Teilhard de Chardin e pelo autor.
Em Teilhard encontramos os seguintes conceitos: transformismo, evolucionismo, estrutura orgânica do universo e tendência do ser a alcançar um estado cada vez mais orgânico, de unificação. O homem é um elemento consciente que existe em função de um todo organizado, destinado a tornar-se sempre mais consciente desse todo e dessa organicidade. A evolução é orientada, por um íntimo impulso telefinalístico, em direção a um ponto conclusivo: Deus. O fim supremo da existência é a convergência das diversas consciências individuais na consciência única e total do centro Ômega, último momento e fim da evolução: Deus. Teilhard não acrescenta nada mais. Mas isto implica e deixa entrever a possibilidade lógica de que este ponto possa ser também o Alfa de todo o processo que, para ser completo, deve conter ainda a sua contrapartida involutiva precedente, como demonstramos claramente no volume: O Sistema.
Continuemos escutando o que nos diz Teilhard. O universo está completamente impregnado de pensamento, que se torna cada vez mais patente com a evolução da vida, através da crescente complexidade estrutural que a matéria desse modo alcança. Eis um pan-psiquismo que é um pan-espiritualismo e um monismo, que pode parecer materialista, mas que não é, porque aqui o materialismo é impulsionado até tornar-se espiritualismo. O condenadíssimo evolucionismo darwiniano não é expulso, mas antes adotado, e resulta implícito e logicamente enquadrado neste evolucionismo tão vasto que compreende também o espírito. A função da vida consiste em fazer surgir este espírito avançado em direção a ele através de um transformismo biológico (o darwiniano), cuja função não é senão a de veste exterior e de um instrumento de expressão, experimentação e laboração de um outro transformismo mais substancial, de tipo psíquico, escondido na profundidade e que anima a forma.
Teilhard intuiu uns laivos de consciência incipiente mesmo nos graus ínfimos da existência, no plano físico do universo. Para ele, a matéria inorgânica é antes uma matéria pré-vivente, e num sentido lato, pré-consciente. A evolução levou esta consciência a revelar-se imensamente mais avançada e potente no homem. Ora, dado que a organicidade do todo implica uma lógica, seria absurdo determo-nos neste ponto do caminho sem continuá-lo. Teremos um fenômeno partido ao meio, que de repente pára, sem completar toda a sua trajetória e alcançar a necessária conclusão, ambas implícitas na lógica do desenvolvimento do próprio fenômeno. E que imensos horizontes nos abre para o futuro conceito, necessário, de um prolongamento do processo evolutivo!
Hoje, portanto, um cientista nos confirma que a matéria esta cheia de vida e a vida cheia de inteligência. Nós acrescentamos: então Cristo pode ser proposto à ciência positiva como superbiótipo do futuro, como supremo modelo que a raça humana poderá atingir com a evolução, e o Evangelho como a lei social da unidade coletiva representada pela super-humanidade do futuro.
Não obstante as tentativas humanas de conciliação, o Evangelho apresenta-nos Cristo e o mundo como dois inimigos inconciliáveis, os quais no entanto devem coexistir na Terra. Mas é necessário compreender o que entendia Cristo por mundo. Isto não quer dizer que Ele seja contrário à vida. Ele referia-se a um estado de fato que o mundo era e é, ou seja, imerso ainda num estado primitivo animal, pleno de egoísmos e lutas ferozes. Cristo condenava somente esta forma de vida inferior. A inconciliabilidade não se refere a um mundo de evoluídos e civilizados, pois que Ele quer transformar a humanidade atual precisamente num tipo mais avançado de vida, que o Evangelho chama de reino dos céus. Com um tal mundo Cristo está plenamente de acordo, tanto é assim que justamente nele se realiza toda a Sua Lei. Ele veio para ensinar-nos qual é este novo modo de viver, dando-nos as normas no Evangelho.
Tornando a Teilhard, vemos que, orientado assim, ele resolve o dualismo espírito-matéria, no qual parece encontrar-se dividida a obra de Deus num antagonismo bem-mal, Deus-Satanás, em que o Cristianismo se debateu durante milênios. Teilhard o resolve a favor do espírito, ao qual ele chega partindo do materialismo científico e levando-o até às suas mais audazes conseqüências; isto é, partindo da teoria da evolução para desenvolvê-la até atingir os seus mais altos resultados. Ele não nega a matéria como a ciência a viu, mas acrescenta o que a ciência não viu, a alma de um sopro espiritual que explica as suas funções e mostrando-nos as suas razões, justifica a sua existência. Assim a torna transparente, luminosa de conceito, elevada de negação a expressão do pensamento de Deus. Tudo se fez e continua sendo feito por este pensamento. Isto representa a afirmação racional e a descoberta científica da sua presença em tudo o que existe, isto é, a imanência de Deus.
Fica assim esclarecido o sentido de todo o processo da evolução, numa síntese lógica e harmônica na qual concordam as verdades provadas pela ciência com os princípios finalísticos da concepção religiosa. Chega-se a uma conciliação de extremos opostos, a uma fusão orgânica, a uma unificação. Tudo isto pode parecer um materialismo místico, mas pode significar também as bases científicas do Cristianismo, que delas se aproveitaria porque atualmente não as possui, fato que o mantém fora do terreno positivo da ciência. É assim que Teilhard foi julgado por alguns um novo S. Tomás, cristianizador já não de Aristóteles mas sim de Marx e de Darwin. Poderia deste modo ser sanada a cisão entre ciência e fé, para passarem da inimizade à colaboração. Muito teriam que dizer-se uma à outra. Então a fé teria finalmente bases positivas, e a ciência poderia ser iluminada e vivificada pelo espírito.
O evolucionismo darwiniano ficaria, mas só exteriormente, limitado à forma. Intimamente ele é constituído pela evolução de um pensamento, é impregnado e orientado por um se exato telefinalismo, nele imanente. Naquele evolucionismo, até agora entendido materialmente, há lugar de sobra, existe inclusive a necessidade da presença de um Deus, centro de um pensamento continuamente criador. Assim a matéria, de inimiga inerte do espírito, vincula-se, logo nos primeiros graus, ao processo universal da revelação do espírito, verdadeira e fundamental realidade do universo. O homem, no seu nível, faz parte deste processo. Num plano de existência muito mais alto, a evolução realiza-se no homem, através do homem que exprime uma fase dela, arrastando também ele pelo movimento de todo o processo, em direção a planos de existência cada vez mais altos. O progresso social revela então a sua mais profunda natureza, que é a de um processo biológico cuja direção o homem deve tomar, agora mais que nunca, guiando com sua inteligência a evolução. Até hoje ela realizou-se apenas mediante um jogo de determinismos, estabelecidos e impostos pelas leis da natureza. Trata-se agora, não já de aceitar passivamente a evolução, mas antes conduzi-la, tornando-nos conscientes dos seus fins, como operários de Deus, seus colaboradores na obra de construção do nosso setor de existência. O homem não viverá mais à mercê das leis da natureza, mas, consciente e responsável, dirigirá o seu próprio destino
Teilhard trata assim de chegar a uma “Nova Teologia” em que tudo se santifica por meio da universal presença do pensamento de Deus imanente. Chega-se a uma “Santa evolução”, que corrige o velho criacionismo pueril antropomórfico, não mais adaptado à mente moderna. É um novo evolucionismo consagrado no altar de Deus. O mundo move-se e, ainda os que não o queiram, têm de mover-se por força. O transformismo substitui a velha imobilidade. Podemos ver assim o que há de verdade no panteísmo evolucionista, condenado sem discriminação. Mas que haverá de mais vital do que ver Deus por toda a parte e, através de uma visão evolucionista do universo, não poder concluir senão com a sua espiritualização? Não poderá tudo isto conduzir-nos a um cristianismo racionalmente mais aceitável para quem pense, a um Evangelho mais demonstrado e convincente, ao mesmo tempo que a uma ciência espiritualizada, mais nobre e santa?
Eis a vida levada à sua verdadeira essência. A substância da existência, a estrutura mais íntima do ser é de natureza psíquica, a vida é pensamento coberto de morfologia; a espiritualidade, base das religiões, é colocada no ápice da evolução. Cristo então é um super-ego hoje transcendente, mas amanhã ponto de chegada para a raça humana, ponto no qual o egoísmo separatista, vigente na luta pela sobrevivência, será substituído pela solidariedade coletiva unitária do amor evangélico universal. Assim Teilhard apresenta-nos uma maravilhosa espiritualização do universo, elevada sobre bases científicas. O Evangelho representa uma transformação de leis biológicas, e significa a imensa revolução operada pela passagem da vida de um nível de evolução a outro superior.
Quisemos reproduzir em traços genéricos o pensamento fundamental de Teilhard com a alegria de ver que ele corresponde plenamente ao nosso pensamento, exposto na obra chegada até agora no seu 21o volume, em mais de 8000 páginas. Uma tal concordância de conceitos com os de um cientista de tão grande valor, com um cristão honesto e convencido, cheio de bondade e de cultura, significa que as idéias por nós sustentadas não podem estar nem cientificamente erradas, nem serem moral e teologicamente condenáveis, como já se pretendem. Os escritos das duas partes são contemporâneos (Teilhard 1881-1955)[2], e aparecem sem que tivesse havido conhecimento recíproco, em ambientes e países completamente diferentes. O mundo começa a compreendê-los só agora. Este fato parece mostrar-nos que o pensamento humano, na primeira metade de nosso século, quis exprimir os mesmos conceitos por estes dois caminhos, e em forma tão diversa, porque o mundo está chegando a uma nova maturação, e deles tem necessidade. Tanto é assim que a religião mais conservadora prepara-se, com Teilhard, a examiná-los, pela necessidade de se atualizar. Por isso, o seu caso é importante e desperta interesse, porque pode ser útil às religiões para alcançarem o nível das últimas descobertas científicas, perante as quais elas ficaram atrasadas.
Se é certo que as conclusões coincidem no conjunto, há no entanto uma diferença entre os dois casos, pelo fato de que eles se desenvolveram em posições e com métodos diversos. Como religioso, Teilhard estava preso, a priori, às afirmações categóricas da sua fé, de que ele não podia afastar-se, e a favor das quais, sem possibilidade de escolha, tinha de concluir a todo o custo. Isto podia pesar sobre a interpretação dos fatos, tendendo a torcê-la num determinado sentido, em prejuízo da verdade objetiva. Ora, a investigação do cientista deve ser livre. A ela não se podem antepor e impor premissas axiomáticas. Então, mais do que à descoberta se tende à conciliação, a objetividade está comprometida pelo preconceito, a realidade deve ser vista através de uma particular forma mental pré-estabelecida. O recinto dentro do qual se permite ao pensamento mover-se, para investigar e concluir, é limitado por barreiras. Tudo isto paralisa a investigação, e não é científico. Em nosso caso, pelo contrário, tínhamos a liberdade de chegar a qualquer conclusão que os fatos nos indicassem e exigissem de uma forma positiva. A nossa finalidade era apenas descobrir a verdade e não concordar com uma religião. Foi assim possível chegar a conclusões mais vastas, aceitáveis mesmo fora das religiões, até pelo materialismo ateu, apesar delas serem de natureza ideal e espiritual.
Nos dois casos não só as condições de trabalho mas também os métodos foram diferentes. Normalmente parte-se da constatação positiva dos fatos, alcançada com a observação e a experiência, para poder depois, construindo e verificando as hipóteses com as quais tratamos de explicá-los, obter e fixar então uma teoria provada por eles como verdadeira, ou seja, os princípios gerais segundo os quais os fenômenos observados funcionam. O pensador vai assim sempre subindo do particular ao universal, tratando de elevar-se para conseguir uma visão de conjunto mais vasta possível e assim mais apta a orientar-nos.
Em nosso caso o método seguido foi o oposto, pelo menos no princípio. Foi dedutivo e não indutivo. Procedeu-se do universal para o particular, em vez do particular para o universal, seguidos, assim desde o princípio, e não em busca de orientação. Não obstante, um segundo momento, os mesmos fatos, que para a ciência são um ponto de partida, nós, com o seu mesmo método de observação e experiência os examinamos, mas apenas para verificar se eles confirmam a visão geral, e se ela corresponde a estes fatos. No primeiro caso ela está orientada em duas direções: teoria em direção aos fatos, e fatos em direção à teoria. Assim eles são utilizados para o controle da teoria, que não permanece deste modo visão destituída de provas racionais, mas que através dos fatos, demonstra-se ser verdadeira, respondendo à realidade.
Só com este segundo método, que chamamos intuição, se pode chegar a uma visão universal do todo, movendo-se com mentalidade positiva no terreno onde a ciência, com o seu método, não pode chegar; quer dizer: pode-se chegar ao terreno das maiores visões teológicas, obtidas com o único método possível, o da intuição. É certo que se trata de um vôo. Mas sem vôo não se alcançam os princípios universais da existência. Trata-se de um vôo logo em seguida ao qual se baixa à Terra, trazendo a fotografia da visão obtida, para, colocando-a em contato com os fatos, verificar se é verdadeira. Procedemos assim e vimos que eles a confirmam, de modo que podemos dizer que ela responde à realidade. Não havia outra maneira para obter a síntese universal, coisa de que a ciência está ainda muito longe.
Teilhard se orientou e já se começa a poder raciocinar com a ciência sobre problemas espirituais, e com as religiões sobre problemas científicos. Podia-se chegar ao ponto de admitir que o produto da revelação, contido no Cristianismo, poderia ser tomado seriamente em consideração pela ciência como hipótese de trabalho, para aceitar a parte que os fatos demonstraram corresponder à realidade. Assim uma revelação positivamente controlada poderia ser aceita pela ciência. A última confirmação de cada verdade pode ser confiada somente a uma verificação que demonstre que os fatos funcionam realmente como essa verdade afirma. Apenas deste modo as intuições ou revelações podem dar garantias de segurança.
O mundo apesar de tudo caminha, e ninguém tem o poder de pará-lo. A teoria da evolução foi combatida, até há poucos anos, nos ambientes religiosos. Hoje, para a quase totalidade dos biólogos, a evolução é um fato estabelecido, universalmente aceito, não mais uma hipótese. A maior parte dos cientistas já não põe em dúvida que biologicamente o homem provém do mundo animal superior. Mas a evolução não é fenômeno que possa ser limitado à vida, porque numa visão universal, tudo deve estar nela incluído, todas as formas de existência, se não quisermos ficar fechados num só setor do fenômeno da evolução, limitados a um só trecho do seu desenvolvimento.
Teilhard nos apresenta uma evolução universal, dividida em três grandes etapas: matéria, vida, espírito, como também o Prof. Marco Todeschini, de Bérgamo (Itália) falou de Psicobiofísica. O universo astronômico, com a matéria, oferece-nos a base física, constituindo a geoesfera, coberta nos planetas de revestimento vivente, que representa a bioesfera, cuja função, através da vida, consiste na revelação da consciência, que constitui a nooesfera, novo revestimento de pensamento e consciência. Trata-se, pois, de três fases sucessivas, cada uma das quais se eleva sobre as precedentes, depois de alcançada e vivida.
Este conceito de um crescente psiquismo e progressiva cerebralização do ser, reproduz em palavras científicas o conceito da progressiva espiritualização cristã, de ascese da alma em direção a Deus. Encontramos o fio condutor de toda a evolução: ela é um caminho que conduz ao espírito. A cosmogênese inicia o processo que continua porque se prolonga na biogênese, a qual por sua vez desemboca na noogênese. Assim, finalmente, se pode compreender o significado do processo evolutivo, alinhado ao longo deste seu eixo principal, que nos mostra o início, o desenvolvimento, a meta, desde o princípio até o fim. O ponto Ômega, de chegada, está hoje presente entre nós em forma de ideal que está esperando a nossa evolução para realizar-se no futuro, que representa o seu resultado e a compensação de tantas das nossas fadigas, dores e perigos. A escalada evolutiva, descoberta e provada pela ciência, vai em direção a Deus, como já, com outras palavras as religiões o ensinaram. Agora já não vivemos e não ascendemos como cegos. E devido a tudo isto, tendo a ciência conseguido conhecer o caminho percorrido que nos trouxe até aqui, podemos deduzir qual será o de amanhã, e até onde nos levará. No terreno das nossas conquistas espirituais, à fé das religiões, sucede agora a certeza científica.
Voltando à comparação com a nossa obra e às suas concepções, constatamos que a cosmo-bio-noogênese de Teilhard corresponde ao físio-dínamo-psiquismo de A Grande Síntese. Ele também tentou uma síntese ou fenomenologia do universo até no campo filosófico e teológico, ou, pelo menos, dos seus escritos transparece uma tentativa de orientação universal neste sentido. Ele, no entanto, concebeu os três momentos ao longo dos quais se desenvolve o eixo central da evolução, como matéria, vida e espírito, e não como: matéria, energia e espírito. Isto se explica pelo fato de que, sendo ele sobretudo geólogo e paleontólogo, não valorizou adequadamente na economia do universo a importância da física nuclear e do fenômeno da desintegração atômica, coisas que então acabavam de aparecer. Teilhard passou da matéria à vida sem ver o termo intermediário, a energia, sem a qual não se explica a origem da vida por evolução. Ele não explica a passagem da química inorgânica à química orgânica, que representam formas exteriores e não a substância do fenômeno. Escapou-lhe a continuidade do processo evolutivo: matéria, desintegração atômica (base da gênese dinâmica), eletricidade que é forma de energia mais evoluída, da qual se passa àquela que é a substância da vida, que não é dada pela forma orgânica, mas pelo psiquismo que a constrói e rege, psiquismo de origem elétrica, como o demonstra a sua base de apoio, que é nervosa e cerebral.
Quando se escreveu A Grande Síntese, por volta de 1933, com uma física nuclear ainda no início, tais afirmações podiam parecer fantasia. Mas hoje experimentalmente se procura provar a verdade da teoria das origens elétricas da vida. Em 1952 o químico americano S. L. Miller, pensando que a vida pudesse estar relacionada com a descarga elétrica do raio, tratou de reproduzir em laboratório as condições em que deveria encontrar-se a Terra antes que aparecesse a vida. Infelizmente não pôde adiantar suficientemente as suas experiências. Ora, o bioquímico inglês Cyril Pannamperuma, através das suas experiências, concluiu que a matéria inorgânica, sob a ação das descargas e raios cósmicos, pode transformar-se em matéria orgânica. O raio daria a energia necessária.
Existem, pois, algumas diferenças com Teilhard. Mas o ponto novo e central, isto é, que a vida serve para desenvolver e revelar o espírito, foi captado também por ele e admitido plenamente, o que não é pequena revolução dentro do Cristianismo. Acrescentemos que com a nossa teoria podemos explicar também a tremenda lei da luta pela vida, que leva ao devorar-se recíproco. Ela, se bem que feroz, justifica-se como meio para o desenvolvimento da inteligência, processo que se inicia desde os primeiros planos da existência, obrigando ao esforço para a defesa, e em que se revelará em forma cada vez mais evidente um processo de espiritualização, quanto mais avance o ser no caminho da evolução.
Há ainda uma outra diferença com Teilhard. Ainda que falando de “nova teologia”, ele não atinge as primeiras origens do universo, da criação e suas conseqüências, como o resultado final de imensa obra. Fica, assim, sem explicação como das mãos de um Deus sapiente, bom, perfeito, haja podido sair o mal, a dor, a morte, e como a Sua unidade possa ter sido (por Ele ou por outros?) despedaçada no dualismo em que existimos. Teilhard, no seu volume: L’activation de l’ernegie, chega a definir o mal como um efeito secundário, subproduto inevitável, do caminho do universo em evolução. O problema do mal, diz ele, não se coloca já, porque é estatisticamente impossível que uma multidão de fenômenos, em vias de acomodação, procedendo por tentativas, como se desenvolve a evolução, não se verifiquem os casos incompletos, mal terminados, discordantes da ordem geral. Mas respondemos: o mal, a dor, a morte, não são incidentes menores da evolução aos quais não se dê importância, antes pelo contrário estão de tal modo profundamente radicados no fenômeno da existência tentando comprometê-la a cada passo, que para salvá-la desta ameaça é necessária a presença contínua e atividade saneadora da potência criadora de Deus.
Teilhard, como sistema filosófico e teológico, portanto, deveria ser pelo menos completado, para esgotar o assunto. Mas ele era sobretudo cientista e, além disso, neste outro terreno, devido à sua posição eclesiástica, estava ligado a uma ordem estabelecida da qual era difícil libertar-se e proibido de sair.
O significado e importância do pensamento de Teilhard está, sobretudo, nesta tentativa do Cristianismo de aproximar-se da ciência e assimilar suas conclusões até ontem condenadíssimas. As religiões representam uma massa enorme, a maioria das quais com um forma mental elementar, lentíssima a compreender e evoluir. Assim cada alteração de pensamento deve ser feita com extrema prudência para não perder o equilíbrio, ultrapassando os limites da compreensão. Mas a evolução está hoje apressando o passo. E temos aqui um sacerdote acusado de panteísmo, monismo, materialismo, evolucionismo, darwinismo, marxismo e até comunismo, em muitos aspectos comparável a Rosmini, e por isso o ouvimos falar e escutamos com interesse.
Eis, em ambiente eclesiástico, uma tentativa semelhante à nossa, de realizar uma síntese na qual se unem, como elementos complementares, os dois termos até agora em antítese, ciência e fé, matéria e espírito. A nossa tentativa foi, não obstante, mais livre, como pesquisa da verdade, porque, como já assinalamos, não estávamos obrigados a concluir conforme a premissas já estabelecidas. Todavia, não se pode deixar de reconhecer em Teilhard um grande mérito: o de haver tratado de santificar o pecado de ser evolucionista (de que tantas vezes foi acusado), agora transformado em santa evolução. Estranho modo de avançar nas religiões, apesar de afirmarem que permanecem imóveis! Mas ao divino impulso da evolução não há conservadorismo que possa resistir.
Assim já não se pode dizer que Darwin esteja errado, agora que a evolução se tornou um fato inegável. Ele é aceitável porque agora a evolução pode ser considerada como um fato interior e a sua substância como um desenvolvimento de consciência; porque a sua mutação morfológica se julga como o transformar-se de uma veste exterior que acompanha uma evolução mais profunda, a qual representa a sua verdadeira substância, que é uma ascensão espiritual em direção a um estado de perfeitíssima consciência, destinada a juntar-se a Deus. Assim a vida se move e dinamiza, transformando-se num caminho em direção a uma meta; aparece a visão de um imenso destino que corresponde ao homem realizar no futuro.
A evolução se santifica porque agora dela se vê também uma outra face – além da natural, a divina. O natural é aceito como elemento que conduz ao divino, e o divino como levedura imanente e razão final do natural. O processo evolutivo é assim entendido em sentido lato, isto é, como um processo que faz avançar a matéria, transubstanciando-a espiritualmente, santificando-a, assim, até que no homem e mais acima dele, conquiste cada vez mais consciência, e assim o alfa se reúna ao ômega, a criação volte ao criador. Desta maneira o crescimento geológico e biológico desemboca na noogênese, isto é, termina na vitória final do espírito puro – pensamento já expresso por Carrel quando fala de “emersão do espírito da matéria”.
O que consola é ver como um catolicismo que nos meus escritos colocou no “Index” estas idéias, hoje, se bem que por outras vias, prepara-se para aceitá-las. Ele é constrangido pela lógica persuasiva dessas idéias e pela sua difusão nos ambientes culturais, para salvar do ateísmo em expansão, porque hoje se pensa mais, e quem pensa, para aceitar exige ser convencido, pois a verdade, como hoje é apresentada, não satisfaz mais esta exigência da mente moderna. Não obstante, hoje parte do “rebanho” é constituída por ignorantes e supersticiosos, e outra parte de ateus que exteriormente são ótimos praticantes. É necessário que o catolicismo se torne mais convincente, para resolver o problema da sobrevivência de uma fé que ameaça ser superada.
2) Os sofrimentos morais devido à dolorosa posição de incompreensão e condenação
Teilhard foi mandado para Nova York para lá morrer em condições de verdadeiro exílio, depois de uma vida cheia de amargura pela dificuldade cada vez maior de fazer conhecer os seus escritos. O seu problema era de consciência, o de um cientista que, havendo descoberto a verdade, trata de levá-las para o terreno religioso a fim de iluminar os crentes honestamente desejosos de conhecer mais além da fé, para ficarem convencidos.
Sem dúvida que vivemos num momento de transição evolutivo no qual a ciência avança vertiginosamente no conhecimento, transpondo as portas do mistério. Com isto muda a velha forma mental pela qual o modo tradicional de apresentar as verdades de fé as torna de difícil aceitação. Em Teilhard, o drama é duplo: o de ter de admitir, em consciência, mesmo que não ortodoxas, as novas verdades que lhe apareceram e das quais estava convencido; e o de dever fazê-las conhecidas de todos os que tinham necessidades delas para sair da dúvida, da falta de fé, da insatisfação em que se encontra a mente moderna perante problemas insolúveis ou não resolvidos com clareza convincente. O drama foi devido à sufocação destes dois santos impulsos, sofrido em nome do bem, quando o bem é progresso, é da lei de Deus.
Muitos não querem cansar-se, pensar, arriscar-se, preferindo permanecer seguros nas concepções tradicionais. Na própria preguiça, então, considera-se elemento perturbador quem parece rebelde à velha ordem porque tem sede de luz, quer conhecer e fazer conhecer, subir e fazer subir, porque arde uma contínua tensão espiritual que incomoda os que dormem quietos numa aquiescência passiva, que chamam fé e ortodoxia. A muitos não interessa um maior conhecimento e a conquista da verdade, mas sim o grupo humano de que cada um faz parte, o seu poder terreno, o seu engrandecimento pela conquista de prosélitos. Entretanto não há nada na vida que não se baseie na luta, o que leva cada grupo humano a tomar uma posição de defesa, de encastelar-se no sectarismo, intransigência, dogmatismo, qualidades necessárias para poderem resistir e sobreviver. O problema não é de religiões, mas de tipo biológico, porque esta é a lei da vida no seu atual grau de evolução.
Para além e para cima do universo físico, Teilhard viu, movido mais pela razão do que pela fé, o universo psíquico, isto é, o universo numa nova dimensão, a do espírito, que é o terreno supersensível das religiões. O cosmo para ele é um organismo funcionando e em evolução, orientado no sentido de fazer surgir e desenvolver a inteligência. Com isto ele realiza uma espiritualização da matéria e da ciência, estendendo assim ao infinito o terreno das religiões e fazendo delas um problema de interesse universal. Eis então que estas, em vez de fecharem neste caso as portas como perante um inimigo, deveriam abri-las para conseguir a sua imensa expansão. O problema para o cientista crente não é tanto o de compreender tudo isto, para ele evidente, mas o de fazer os outros compreender assim como para o evoluído o problema maior foi e será sempre o de fazer avançar os involuídos
Como Santo Agostinho resumiu Platão e S. Tomás resumiu Aristóteles, cada um deles, formulando o Cristianismo segundo a linguagem do seu tempo, assim é de esperar que as religiões admitam igualmente em seu favor, que Teilhard formule as mesmas verdades, segundo a linguagem racional-científica de nosso tempo. Ele sentia a necessidade de realizar um exame crítico do pensamento teológico para atualizar-se perante as conquistas da ciência que o deixavam ficar para trás, enquanto as religiões, encaminhando-se para Deus, deviam estar logicamente na vanguarda, em vez se serem as últimas a chegar, arrastadas, a seu pesar, pelo progresso do pensamento laico. Estando em contato com Deus, em Quem se inspiram, as religiões deveriam ser as primeiras a compreender a verdade e não as últimas. E quem sente, como Teilhard, tais exigências, sente também o dever de falar, oferecendo a sua contribuição. E se as religiões não entendem e resistem, ele a oferece à humanidade, que hoje dela tem necessidade, para poder progredir, mesmo que as religiões não queiram interessar-se por tais problemas.
Teilhard costumava dizer: “se não escrevesse, sei que atraiçoaria”. Procuremos explicar o caso com duas imagens. Ofereceram a um homem uma semente preciosa para que plantasse no seu vaso, mas aquela semente não agradava àquele vaso porque era diversa das outras que continha, e deste modo a atirou num campo. No vaso aquela semente poderia crescer defendida, mas em terreno limitado que a teria impedido de desenvolver-se. Ali teria permanecido como idéia fechada num ambiente restrito, sem poder expandir-se. No campo, pelo contrário, a semente pôde desenvolver-se livremente, até tornar-se uma grande árvore, o que dentro do vaso não podia acontecer. Foi portanto um bem para a semente ter sido lançada para fora. A idéia que ela representava só assim podia tornar-se, e de fato se tornou, universal. Eis o que acontece quando um grupo humano de idéias restritas rejeita uma idéia fecunda, capaz de novos desenvolvimentos.
Outra imagem. Dois galos fechados numa gaiola estavam se bicando com o fim de se destruírem um ao outro, cada um pensando: se venço, serei dono da capoeira. E não percebiam que os levavam ao mercado, e que pouco depois acabariam os dois na panela. Assim se comporta as religiões rivais enquanto se avizinha o cilindro compressor do comunismo ateu, que se prepara para nivelá-las todas na mesma liquidação.
Que fazer? Este é o grau de evolução da humanidade atual, e explicar não serve para nada. O nível de unificação hoje alcançado não vai mais além da família e de grupos particulares, sejam religiosos, econômicos ou políticos, mas sempre limitados em função de determinados interesses comuns. Grupos mais vastos, nacionais ou raciais, estão apenas em formação. Cada unificação na terra não chega a alcançar senão o grau de partido ou castelo fechado, armado e em luta contra os vizinhos, eles também em estado de guerra para não serem destruídos, que é aquilo que cada um deles quereria fazer do outro para seu triunfo. Enquanto a humanidade não superar esta fase de sua evolução, deverá ficar submetida às leis de tal plano biológico inferior. O evoluído que trate de elevá-la a um nível superior, para funcionar com outras leis e segundo uma outra compreensão da vida. Em semelhante mundo ele será sempre um intruso, um solitário, um condenado, como foi Teilhard de Chardin.
Tal biótipo, justamente devido à sua posição avançada encontra-se fora dos grupos, porque o seu fim não é a defesa de nenhum deles dentro do qual se encontraria encerrado, mas sim o progresso da humanidade. O indivíduo, então, perante ao grupo, pode escolher dois caminhos, segundo a sua própria natureza: o da liberdade ou da obediência, no primeiro caso pode conseguir o seu ideal segundo a sua consciência, entregar-se na busca da verdade, pensar e falar livremente, cumprir a sua missão. Ele se encontra, porém, isolado. Não tendo declarado sua adesão a nenhum grupo, não depende de ninguém, mas tampouco recebe, da sua adesão e obediência, a defesa que necessita para viver trabalhando pelo seu ideal. Se ele não se une aos fins de algum outro, ninguém está disposto a fazer-lhe gratuitamente o trabalho de protegê-lo. São estas as leis da vida no plano humano, e é necessário ter a honestidade de reconhecê-las e declará-las tais quais são. Se esse indivíduo não pagar com sua submissão o seu pão, qualquer atividade intelectual lhe será impedida pela necessidade de ter, ele próprio, de lutar pela existência.
No segundo caso não haverá esta necessidade e se gozará da vantagem de uma proteção que garante a vida e a tranqüilidade para trabalhar. Mas pensamento e atividade ficarão submetidos ao qual se pertence. Deve-se por isso pensar e trabalhar no interesse do grupo que, por fornecer o pão, tem o direito de exigir obediência espiritual e física. Quem dá e protege o faz por si próprio e portanto tende a escravizar. Quem recebe deve dar em troca obediência. Isto porque ao trabalho espiritual é dado o valor zero no mercado das coisas humanas, de modo que a liberdade de pensamento e atividade correspondente é coisa permitida apenas, a quem possua independência econômica.
Observando porém as coisas do lado oposto, vemos que o grupo não é culpado de tudo. Este, por sua vez, está empenhado na luta pela sua existência, e por isso deve fazer dos seus membros os seus soldados para manterem a sua unidade, defendendo-a dos assaltos exteriores. A ele não interessa a evolução, mas apenas o mais urgente: a sobrevivência. A isto ele é constrangido pelas condições da vida terrestre. O evoluído, pelo contrario, antecipa a evolução e, em vez de conservar e consolidar as posições, tende a fazê-la avançar. Por esta oposição de intenções, ele é temido e combatido como um perigo. Ele não representa a conservação mas sim a arriscada aventura do progresso, que é precisamente aquilo que os imaturos, acomodados na sua preguiça, não querem. O reformador, desejando implantar uma ordem nova, sacode as bases do castelo no qual o grupo se aninha, leva desordem às sua filas, fato do qual os inimigos estão prontos a se aproveitar. É necessário compreender que a vida é um estado de guerra pela sobrevivência. Urge, portanto, como primeira coisa, a defesa e, só depois como luxo de ricos, é admitida a evolução. Tais tentativas de avançar são deslocações perigosas, dissipação de forças em tentativas que debilitam o grupo e são consideradas saltos na escuridão. Quem os provoca deve, portanto, ser eliminado.
Perante o idealista atraído pelo céu, está a dura realidade da vida. Não é lícito esquecer, nem por um minuto, que se trata de uma luta desesperada. Para quem é especializado nessa luta e não sabe fazer outra coisa, poderá parecer que não é verdade. Mas para o idealista dotado de outras qualidades e dedicado a outros trabalhos, o problema é bem diverso. Ele quereria desesperadamente gritar: na Terra não há lugar para o ideal. A humanidade deveria ajudar estes indivíduos que trabalham pelo seu progresso. Mas com que a humanidade se importa? Ela tem outras coisas para fazer. Deve pensar em matar e destruir tudo com guerras, em enriquecer, e gozar a vida.
O problema que o caso de Teilhard nos fez recordar, é principalmente de biologia e interessa a humanidade, porque constitui o problema de evolução da vida. O ideal, antecipação da evolução, realiza-se na Terra através de diversos tipos de instrumentos. Não interessa condenar a ninguém, mas conhecer a técnica desta realização. Assim, de um lado temos os mártires do ideal, do outro os administradores e usufrutuários do ideal. Os primeiros, pouquíssimos, trabalham pela conquista de posições mais avançadas; os segundos, a maioria, ocupam-se em conservá-las, utilizando-as para si. Neste processo que vai desde o sacrifício do mártir à mecânica burocrática e ao parasitismo, o impulso do iniciador se desfaz, se cansa, se esgota, afundando-se no lodo humano, túmulo do ideal.
A massa, que forma o corpo da humanidade, é constituída por homens do segundo tipo. E eles lutam contra os do primeiro para reduzi-los ao seu nível. O inovador, por sua própria natureza e pela posição na qual esta o coloca já fixou o seu destino de incompreensão, isolamento e perseguição. Ele terá de trabalhar em condições difíceis, porque não segue os interesses imediatos do grupo, aqueles que os componentes melhor vêem e sentem, e não os interesses superiores e longínquos, que não vêem e por isso não entendem. Para poder trabalhar em paz ele deveria concordar com o grupo, mas então teria que renunciar à sua iniciativa, à independência espiritual, ao seu ideal. O drama existe por que o mundo não quer ser incomodado e assim afasta os indivíduos que tratam de o fazer progredir. Este é o drama de Teilhard de Chardin. É fácil constatar historicamente que a humanidade, antes de santificar, dá-se o gosto de sacrificar: trabalho nada espiritual da parte de quem o executa, mas que indubitavelmente faz parte da técnica da santificação. Isto nos é demonstrado em nosso tempo pelo caso do Padre Pio de Pietralcina (Itália).
O que deve fazer então o indivíduo? Como se deverá resolver o caso, e como o resolveu Teilhard? Se o mundo não quer ser salvo, o indivíduo, no entanto, deverá salvar-se a si mesmo. Para compreendermos, devemos referir-nos à moral positiva contida nas leis da vida. Primeiro de tudo, por que razão a autoridade possui o direito de condenar? Tê-lo-ia, se correspondesse a um critério da justiça. Mas não corresponde quando a condenação do que hoje se considera prejudicial fica contraditada pela aprovação de amanhã, quando o mesmo fato acaba sendo considerado vantajoso. Este dizer e desdizer, à mercê das circunstâncias e das mudanças de opinião dos indivíduos que julgam, tem muito de provisório, incoerente e irresponsável, e não está de acordo com um tribunal de justiça. Será honesto aprovar somente uma idéia nova quando todos a aceitaram, e para defendê-la não representa mais nenhum risco ideológico? Assim se chega sem perigo algum de enganar-se, mas é deprimente ser o último a chegar, arrastado pelos outros, a quem se deixa a responsabilidade das novas afirmações, a fadiga da pesquisa, a incerteza da tentativa, exceto o apropriar-se dos resultados quando tudo leva ao êxito.
Quem é imparcial, porém, justifica tudo isto. A vida se baseia na luta; o grupo tem necessidade de defesa para sobreviver. Ele luta contra as coisas novas para a sua conservação, e nelas vê uma tentativa de destruição do passado sobre o qual se baseia a sua existência. Trata-se, portanto, de um caso de legítima defesa contra um perigo, uma ameaça de morte. O direito de julgar e condenar se baseia nos fatos: 1) a posição do grupo perante o indivíduo é a do mais forte. Na Terra basta isto para conferir o direito de estabelecer qual é a lei e, portanto, o de julgar. O grupo é mais forte porque é maioria perante o indivíduo que está isolado, em minoria, e quem como tal, é mais débil, não tem direitos. 2) A necessidade em que o grupo se encontra de defender-se para sua conservação e o sagrado direito de todos à vida.
E o indivíduo? Por que ele é minoria, por que não possui o poder que provém do número, porque está só? Para ele não haverá justiça, possibilidade de trabalhar para realizar o ideal, e assim fazer progredir a vida? O drama consiste no seguinte conflito: de um lado tal indivíduo, por intuição e raciocínio, compreende a importância e a verdade das suas novas afirmações, e, sendo honesto, sente que deve comunicá-las aos seus próprios semelhantes, para seu futuro progresso, ele viu e não pôde fazer outra coisa senão enunciar a nova verdade; do lado oposto a autoridade encarregada da defesa dos interesses do grupo, preocupada pela sua conservação e pela conservação do grupo, mais do que pela pesquisa da verdade, quer ficar fiel às coisas velhas nas quais baseia a sua posição, e assim rejeita e condena cada novidade.
Os fins são opostos. O do reformador é o progresso, o do grupo e da autoridade que o dirige é continuar a viver com a menor fadiga e riscos possíveis. Em virtude disto, é lógico que a autoridade imponha silêncio ao inovador. Assim o proíbem de falar, publicar, impedem-no de pensar e de compreender, como defender a verdade da qual está convencido. Então as duas partes em conflito transformam-se em dois inimigos em luta, cada um com boas razões para agir à sua maneira. O inovador atenta contra a tranqüilidade e segurança do grupo, que assim se defende. A autoridade atenta contra a liberdade do espírito, quer dentro dele para deter ou torcer o pensamento, paralisando as mais nobres funções do ser. Isto não é senão um aspecto da luta entre o evoluído, que quer fazer progredir o mundo, e o involuído que não se quer deixar redimir com este progresso.
Isto é contra Deus e pode ser feito em nome de Deus. Isto é sufocação espiritual, é negação de ascensão, mas a autoridade pode fazê-lo porque é o mais forte e assim tem razão contra o indivíduo, que, isolado, é mais débil. Por isso ele deve submeter-se, apesar de lutar por um fim muito mais alto do que aquele pelo qual luta a autoridade. Todavia trata-se de duas funções, ambas necessárias, uma perante os homens por necessidade terrena, outra perante Deus por necessidade do ideal. Disto se deduz que, se a autoridade, do seu ponto de vista, tem o direito de condenar, o condenado, do seu ponto de vista, tem o dever moral, perante Deus e a sua consciência, de não renegar o seu pensamento e de continuar a sua obra. Foi exatamente assim que agiu Teilhard. Mais acima quisemos simplesmente encontrar e expor as razões que justificam a sua conduta, para nos convencermos de que se trata de um bom exemplo. Baseamo-nos na observação das leis biológicas do grupo, que são verdadeiras para cada grupo, portanto também para o religioso.
Teilhard obedeceu à autoridade, sofrendo em silêncio, mas sem nunca renunciar às suas idéias. Às almas simples do povo ele não ofereceu o escândalo da desobediência, que estamos mais dispostos a imitar, o exemplo que a tantos oferece a oportunidade de sentir-se autorizados a seguir o caminho do mal. Para o homem do ideal, lançado em direção ao futuro, isto é martírio, mas a ignorância humana assim o exige. Ele o sabe e aceita. A posteridade depois julgará com outros critérios, e a autoridade tem tempo de entender e inverter o seu juízo. É assim que hoje se vai reabilitando para ir utilizando o que pode ser útil e aceitar o que já não se pode deixar de admitir. Assim se vai desenterrando o condenado ao silêncio, com cautelosas sondagens da opinião pública, para ver até onde será possível atualizar-se sem perigo.
Aqui estamos só como observadores imparciais do fenômeno, para nos explicar o seu funcionamento. Havia também um outro lado de Teilhard. Ele comia o pão da Ordem religiosa de que fazia parte e à qual estava moralmente comprometido de ficar fiel. Sendo honesto, sentia o dever de não se rebelar contra a família a que passara a pertencer, que o havia criado e agora o protegia no seu seio. Obrigações práticas de dar e haver, pequena contabilidade terrena, que no entanto os honestos têm em conta, porque receber sem dar em troca é explorar. Mas nem todos têm um sentido tão perfeito de honestidade. Outros, feridos no orgulho, revoltam-se abertamente para satisfazer a própria reação pessoal. Passam então para outro grupo no qual, conservando o mesmo espírito sectário, continuam lutando contra o grupo que primeiramente os hospedara. Então se trata de um homem de partido que, esteja de um lado ou do outro, permanece sempre igual, sem sair da sua velha forma mental.
Que aconteceu então no espírito do inovador honesto, que não obstante respeita a autoridade? Quais são os seus direitos, as suas compensações? Para ele existe o caminho da paciência, do trabalho, do martírio, caminho que é também o da sua santificação. Observemo-lo. Ele pode servir de exemplo e guia a quem se encontre em semelhantes situações.
Lemos no volume : O Jesuíta Proibido de G. Vigorelli: “Não está ainda escrita a história secreta da “redução ao silêncio” de Teilhard de Chardin. Dos dois interlocutores um está sempre ausente; e, mesmo quando se faz presente, castiga, mas não entra no diálogo; a mão, a cada vez que castiga, se esconde (....). drama sumamente cruel que durou mais de quarenta anos, mais ardente porque ficou coberto pelas cinzas”.
O seu confrade Padre Pierre Leroy, no seu livro Pierre Teilhard de Chardin tel que je l’ai connu, testemunha: “Incompreendido e condenado ao silêncio, sofre de angústias, que algumas vezes o aniquilam (. . . .). com paciência suportava uma prova que esmagaria os corações mais fortes. Quantas vezes, na intimidade dos nossos encontros, o havíamos visto abatido (. . . .). Sofria de crises de angústia, que mais tarde deveriam tornar-se mais agudas (. . . .). Tinha crises de choro que o destroçavam.
Continua Vigorelli: “(. . . .) além do silencio foi-lhe imposto o exílio (. . . .). morria de dor por aquele exílio prolongado. Suplicou muitas vezes aos superiores um regresso, ainda que breve, à Europa, à França (. . . .), as perseguições não cessavam (. . . .). não lhe era proibida qualquer tomada de posição teológica e filosófica, mas se chegou, depois do seu último afastamento de Paris, a negar-lhe também o livre exercício da sua atividade científica (. . . .). Objetavam-lhe: “Porque levanta todos estes problemas e não se contenta a ensinar o catecismo? (. . . .). Mas aqueles problemas não era Teilhard que os levantava, eram os seus contemporâneos a propô-los, e ele não podia iludi-los”.
“Morreu em 19555 em Nova York, seu último exílio depois de outros longuíssimos (. . . .). O seu enterro não foi acompanhado por mais de dez pessoas (. . . .), ali ficou, uma vez mais no exílio, e não foi ainda permitido trazer para a pátria os seus despojos mortais (. . . .)”.
Ele obedeceu e não se revoltou nunca; mas ao mesmo tempo Teilhard tampouco renunciou à sua verdade negando-se a considerá-la uma heresia, porque a ciência a legitimava e demonstrava (. . . .), obedecia, baixava a cabeça (. . . .), mas não aceitou, na menor coisa, renegar as suas idéias ou sequer suavizá-las. A solução que Teilhard deu a crise foi: nenhuma rotura; nem intolerância, nem desobediência, velhos recursos, táticas lesivas (. . . .). o importante era permanecer fiel às suas próprias idéias (. . . .). As idéias devem esperar o seu momento apropriado. A paciência se é secundada pela intrepidez, pode valer mais que a revolta. Teilhard não se revoltou, mas nunca se deteve. Não abdicou. Rejeitou qualquer compromisso (. . . .). Teilhard não foi nunca contra a Igreja: quem sabe se neste momento é a Igreja que não pode mais ir contra ele (. . . .). “Não posso mudar”, dizia, e não mudou nunca; a esperança nunca o abandonou, nem a certeza, que um dia os seus adversários mudariam; e um pouco de tudo isto já está acontecendo”.
Vimos, assim, com respeito a Teilhard, a sua vida de condenado, a sua atitude perante a autoridade. Penetremos agora no seu espírito para compreender “os segredos mais profundos que se debatiam somente na sua própria consciência, um diálogo direto com Deus”. Em Teilhard existe uma “exaltação religiosa, até mesmo mística, que chega à exuberância, que investe e transcende a sua obra, à qual ficou ligado toda a vida, e que, não lhe servindo de salvo conduto para a Igreja, seguramente o seria perante Deus”.
Que nos ensinam estes fatos relatados aqui? Perante ao mundo incompreensão, condenação, martírio. Perante as idéias próprias das quais em consciência se está convencido, fidelidade absoluta. Obediência, submissão, humildade, tudo aquilo que de exterior e formal o mundo exige, mas inviolável liberdade do espírito, tudo o que de interior e substancial o mundo não vê. Perante Deus: comunhão, exaltação, segurança. Qual é portanto o balanço de quem se encontra como Teilhard? Não passivo está o ataque do mundo (o silêncio imposto, o exílio) a suportar com paciência, mas fazendo dele um meio de santificação. Não existe nada tão grande como a inocência perseguida, que sofre para respeitar um ideal de ordem e disciplina. Este castigo tem valor e dá o seu fruto. É lógico que aquilo que é culpa e dano perante o mundo se transforme em virtude e recompensa perante Deus. Existe assim também o ativo dado pela própria santificação, pela afirmação da inviolabilidade da liberdade do espírito, e sobretudo por sentir-se puro perante Deus e pela satisfação de gozar no íntimo da própria consciência, do Seu consentimento, vizinhança e ajuda. É segundo a sua natureza, e assim a revelando, que o indivíduo escolhe colocar-se do lado do mundo ou do lado de Deus. Estes são problemas que não interessam à maioria, que não está nestas condições, mas que são graves e vivíssimos para o homem espiritual que nelas se encontra.
O que queremos conhecer bem é qual o ativo, de que consegue viver tal indivíduo, com que forças ele pode sustentar-se para resistir àquela sufocação de alma. Se o dever da obediência procura matá-lo nas suas mais altas inspirações, deve ele aceitar a sua morte espiritual, o que equivale a consentir no seu próprio suicídio? Não. Ele tem dois imensos recursos para sobreviver, não obstante a renúncia espiritual e obediência que se lhe impõem: tem para si a inviolabilidade do espírito, no qual nenhuma autoridade humana pode penetrar e a sua consciência tranqüila perante Deus, convencida da sua própria retidão e inocência. Deste modo ele traz consigo a sensação da presença de Deus e a segurança do seu consentimento e ajuda. Ele sabe que existe um outro tribunal superior a todos os do mundo, uma justiça que não erra. Nesta confia e a ela se entrega. Vê-se possuindo uma riqueza de potência, de segurança e de paz que ninguém lhe pode tirar. Refugia-se em Deus e nenhum tribunal humano poderá alcança-lo. Esta é a força do mártir: a derrota terrena, que diante de Deus é triunfo.
Mas há ainda mais. As leis da vida garantem, pois o triunfo final do ideal, pelo qual o homem espiritual se sacrifica. Diz o citado volume: “Depois de cinqüenta anos de proibições e de admoestações, as idéias revolucionárias de Teilhard abrem caminho: O Concílio Ecumênico, que está em curso, no fundo está precisamente entrando no sulco salutar daquelas idéias; e a Igreja terá tudo a ganhar e nada a perder, se se decidir a absolver Teilhard, depois de ser ignorado, contrariado, condenado (. . . .). Está em execução a liquidação da era constantiniana e do espírito sectário da Contra-Reforma (. . . .). É um programa indubitavelmente teilhardiano”.
Quem conhece as leis da vida sabe que o fenômeno deve realizar-se deste modo, já que esta é a linha natural de seu desenvolvimento. Então ele se submete a estas leis e espontaneamente aceita tudo isto por convicção. A evolução deve ser o resultado de um esforço; a sua realização, o prêmio de uma fadiga. Esta pertence, por direito, ao mais evoluído que avança à frente dos outros, que representam por sua vez a resistência a vencer, o obstáculo a superar, as trevas a iluminar. Em baixo está o mundo, na retaguarda da evolução; em direção ao alto se lança o evoluído, para a frente, avançando em direção a Deus distanciando-se do mundo. Ele está não do lado do mundo, mas do lado de Deus, que o espera, o convida, o impulsiona para diante, atraindo-o e ajudando-o. A grande força, a potente indenização do condenado, mesmo que o tenha sido em nome de Deus, é estar ao lado da verdade, do justo, de Deus; é encontrar-se ao lado da Sua Lei que estabelece que no fim o bem vence o mal, a afirmação domina a negação. A força de quem sofre lutando pela verdade está no fato que este indivíduo trabalha para avançar na direção que a evolução determina, sendo portanto arrastado em cheio pela sua corrente. O idealista, hoje condenado, sabe que a ele pertence o futuro. Leva consigo o impulso irresistível da divina vontade da evolução que exige a ascese. É precisamente através dele que tal impulso se realiza, para conduzir tudo e todos onde quer, isto é, em direção a Deus. E que poder têm os homens contra quem tem a seu favor as leis da vida e a ajuda de Deus? Quem alcançou o plano do espírito vive por cima do mundo. Nenhuma pressão ou submissão pode agora alterar tal estado de fato. Quem viveu tais experiências pode compreender o que estes conceitos significam.
Mas, observando as coisas de outro ponto de vista, se poderia perguntar: têm os tribunais humanos o direito de infligir dores a um inocente? Mesmo segundo as leis do mundo, não é abuso de autoridade? Mas isto se justifica pelo fato de que a sua função é a de defender o grupo, e na desesperada luta pela vida, não há lugar para a debilidade. O grupo reclama o seu direito à legítima defesa de sua existência e portanto é justo que esmague a todo aquele que atente contra ele. As forças em defesa do inovador condenado não devem vir da Terra. Esta representa a parte inferior da existência, a parte negativa, adequada à resistência. Aquele indivíduo pertence, ao contrário, ao céu, que representa a parte superior, mais vizinha de Deus, a parte positiva e dinamizante. Neste caso se verifica o mesmo antagonismo que imediatamente se estabeleceu entre Cristo, o maior dos inovadores em favor da evolução humana, e o mundo que se dispôs a ser seu inimigo, e que à redenção respondeu com a crucificação.
Para quem compreendeu a estrutura do fenômeno tudo está portanto no seu lugar; cada um atua e com isto revela a sua natureza. Dado o estado involuído da humanidade não é possível obter melhor do que isto. Certamente, amanhã graças ao trabalho de mártires inovadores, o mundo será diferente. Mas lhes corresponde o trabalho de transformar a humanidade com o seu próprio sacrifício. O caso de Cristo nos mostra que também com Ele, em idênticas condições, se verificou o mesmo fenômeno, e o que compreender a classe sacerdotal no momento em que se propõem as inovações. Mas, que mais pode pedir o condenado senão estar do lado de Cristo, ser tratado como Ele foi tratado, sofrer como Ele pelo progresso, que é a redenção, junto a Ele, irmanado na mesma dor pela mesma causa? Que honra, que alegria, que amor existe maior do que este? Que se pode pedir mais?
Cada um reage segundo a sua natureza, assim a demonstrando. O primitivo rebela-se contra a autoridade, atua imediatamente segundo a lei da luta, que é a lei do seu plano, manifestando com isso a sua involução. O evoluído, pelo contrário, pensa no “perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”, e obedece. Mas ele pode refugiar-se no céu, onde a autoridade não o alcança, perante o tribunal de Deus, onde os homens não são admitidos a julgar.
Uma humanidade mais inteligente e civilizada um dia saberá evitar tais conflitos dolorosos de consciência, saberá defender a fé mais por convicção do que por obrigação, saberá abrir os braços, compreendendo os novos problemas e necessidades, a quem tem sede de verdade e honestamente a busca, em vez de afastar a quem pede mais luz. Tais casos, como o de Teilhard, não deviam mais poder surgir. Se eles se verificam, se o investigador honesto tem de refugiar-se em Deus, apelando a Ele, é porque há alguma coisa que não funciona no sistema atual. Por que sepultar, enterrar no silêncio, oprimindo as consciências, certos problemas novos que o mundo tem necessidade de resolver para poder continuar a crer como deseja, e não pode porque não chega a ver claro, como hoje a mente mais madura o exige? Não se pode impedir de pensar a quem tem cabeça, que não pode ser cortada somente porque a que não a tem não lhe apetece pensar. E quando pensar se torna uma coisa proibida, pensa-se então por conta própria, fora das religiões, que assim ficam a um canto como coisa inútil. Para elas isto significa falência e morte. o investigador honesto, por sua vez está obrigado por consciência, para resolver os problemas que mais o preocupam, a discordar de quem entende a fé como inércia espiritual e a construir uma por sua conta. Ele é condenado por delito da preguiça, e no entanto ele representa a levedura do espírito e é mais crente e religioso do que os ortodoxos. Obtém-se com isto um rebanho de adormecidos, agradáveis porque obedientes, mas passivos e inúteis perante Deus.
Um espírito antievolucionista pode representar as forças negativas cuja função é de deter a ascensão em direção a Deus. Querer ficar quieto, abaixando todos ao nível dos mais inertes, pode constituir um delito contra a evolução espiritual, que devia ser a maior finalidade das religiões. É certo que se deve controlar e disciplinar para não gerar anarquia, mas paralisar, mesmo que isso seja feito em nome de Deus, é contra o próprio Deus. A função das religiões termina e elas atraiçoam o seu fim quando o indivíduo, para encontrar a luz e compreensão, deve dirigir-se a outro lugar. A autoridade é espiritualmente derrotada quando surge um conflito entre ela e a consciência, e o honesto se encontra convencido do seu dever de obedecer a Deus em vez de obedecer à autoridade humana. Não é lícito violar o sagrado direito de pensar e de procurar a verdade. Pode até mesmo acontecer que, quem formalmente esteja fora de uma religião seja mais religioso e esteja mais próximo de Deus do que quem esteja dentro, em plena ortodoxia.
As reabilitações póstumas não podem sanear a condenação. Como são tardias, não servem para a obra do missionário, mas somente aos outros para seus fins. Aquele tem necessidade do consenso de seus contemporâneos, de uma ajuda em vida, de uma compreensão imediata do seu próprio tempo, que o mantenha na função de produzir. Acercar-se do próximo com compreensão pode ser uma forma de caridade cristã, de amor evangélico, sendo anti-cristão o contrário.
Nas religiões deveria existir uma seção de livres investigadores, uma espécie de laboratório para as experiências do espírito, um instituto de investigação religiosa. Diz Teilhard: “Estou preocupado com o fato de que à Igreja falta um órgão de investigação (diferente de tudo o que existe e se desenvolve à sua volta) (. . . .). Esta investigação é uma questão de vida ou de morte ( . . . .). Fato que pode surpreender os teólogos na sua vida tranqüila (. . . .). Há, hoje, problemas que queimam, que ninguém coloca claramente, nem defronta senão nalguma conversa privada. Existem idéias, ainda em bruto e parcialmente equivocadas, mas libertadoras, que germinam e morrem no espírito dos indivíduos isolados. Necessitaria, penso, de um órgão para recolher, centralizar, purificar tudo isto; quase diria um “laboratório” dedicado a estas experiências (. . . .). Isto para prevenir um cisma entre a vida humana natural e a Igreja”.
De fato o cisma atual é o mais perigoso, porque não se apresenta na forma já conhecida, ou seja, com o surgir de uma nova religião inimiga que se pode combater como no passado, mas aparece com morte do espírito e do sistema de todas as religiões, como seu apagar-se no materialismo e na ciência, que simplesmente não as tomam mais em consideração. Assim no meio da indiferença geral, o pensamento dirigente não se interessa mais, e as abandona.
O objetivo da intuição antes mencionada deveria ser, ao lado do reconhecimento da necessidade de conservar, também o da necessidade de progredir. Como na ciência, também nas religiões, a investigação deveria ser livre, não fechada e condenada. As várias doutrinas deveriam ter, como tudo o que existe, também uma porta aberta para o caminho da evolução. Seria necessário superar aquela psicologia morta, pela qual comodamente se afirma que todos os casos possíveis já foram vividos, que por experiência dos séculos a todas objeções já foi dada resposta, de modo que tudo já está previsto e resolvido. O fato é que, enquanto as religiões procuram detê-lo, o pensamento humano caminha e, porque estas o querem deter, ele se pôs a caminhar por sua conta, fora das religiões que são deixadas para trás e esquecidas, com todo o devido respeito, no meio das coisas velhas que não servem mais e se põe no museu. Assim nasceu a indiferença, o materialismo, o ateísmo e outros males semelhantes. Os micróbios patogênicos estão por toda a parte; mas o seu ataque vitorioso depende da nossa predisposição e debilidade orgânica ninguém pode fugir às leis da vida, que está pronta a liquidar tudo o que não serve mais para a função que cada um deve cumprir.
3) A paixão por Cristo, racionalmente concebido como ponto de convergência da evolução da vida.
Também em Teilhard encontramos uma concepção mais ampla de Cristo. Aparece-nos assim a visão de um Cristo universal, quase diria super-religioso, num sentido que está por cima do sectarismo separatista na qual tendem a dividir-se as religiões; um Cristo que, em vez de isolar-se numa delas em oposição às demais, tende a uni-las todas, sendo concebido com a forma mental da imparcialidade científica, em termos vastíssimos em relação com as leis biológicas, como ponto de convergência e última meta divina da evolução da vida.
Trata-se de um Cristo muito maior, eixo espiritual do mundo, alcançável pelas vias do misticismo, como pelas vias da ciência, ponto Ômega desta como o é da fé, significado e conclusão da história, princípio, guia e cume da evolução, só hoje concebível desta maneira devido à atual maturação do pensamento humano. Um Cristo total, não só religioso, fechado no passado, mas também progressista, atual, social, um Cristo que aceita a luz que vem do pensamento científico, que reconhece o caráter sagrado da investigação, e a nobilita e santifica, porque é santo todo o conhecimento, como função e produto do espírito; um Cristo que não está contra mas com a ciência, com a ânsia de saber, com o espírito da indagação, com a paixão de evoluir; um Cristo que agora se desenvolva em dimensões vastíssimas, dentro da mente humana, hoje apta a concebê-Lo com outras medidas, mais racional presente, dinâmico, universal, unitário, síntese suprema de fé, de pensamento, de vida.
É necessário assim refazer o nosso conceito do Cristo, que permaneceu entre nós como imagem feita de matéria, o Cristo crucificado e morto, para recordar-nos, para vergonha nossa, daquilo que fizemos Dele. É necessário fazê-Lo sair dos esconderijos onde parece ter-se refugiado, escapando do mundo, e onde jaz coberto de pó, atrás dos utensílios de culto, a fim de que ressuscite vivo entre nós; um Cristo que está conosco em todas as horas, com quem convivemos dia e noite, que assiste a todos os nossos pensamentos e obras, toma parte em nossas alegrias e dores, e não um Cristo com o qual nos encontramos em horas fixas, ou quando decidimos penetrar no recinto dos templos, onde o isolamos fora de nosso mundo. Um Cristo imanente, próximo, que conosco enfrenta os nossos problemas e nos ajuda a resolvê-los, em vez de desaparecer transcendente nos céus, inalcançável na sua glória; um Cristo orientador da dinâmica da vida, operando junto de nós no imenso esforço criador da era moderna, potencializando-o com os seus imensos valores espirituais. Um Cristo não mais monopolizado nas mãos dos seus ministros e fechado no âmbito de uma só religião; um Cristo que se possa venerar sem ter que litigar com as outras religiões, amar noutras formas ainda que não ortodoxas; um Cristo que se avizinha dos espíritos com amor, e não apenas para julgar e punir; que não os afasta com os raios da vingança; um Cristo feito de concórdia para fundir e não de rivalidade para dividir, que é seguido porque convence e convence porque fala com compreensão à inteligência, em vez de apenas condenar como perseguidor de heréticos. Um Cristo refúgio da pureza, fora de toda a sujidade humana, mesmo da que está escondida sob as aparências de religião.
Eis algumas palavras de Teilhard de Chardin na sua Messe sur le Monde: “Já que, Senhor, aqui nas estepes da Ásia, eu não tenho nem pão, nem vinho, nem altar, mas elevarei por sobre os símbolos, até à pura Majestade do Real, e vos oferecerei, eu, vosso sacerdote, em cima do altar da terra inteira, o trabalho e a dor do mundo (. . . .). O meu cálice e a minha patena são a profundidade de uma alma amplamente aberta a todos os esforços que se estão elevando de todos os pontos do globo a fim de convergirem no espírito (. . . .). A oferta que Vós, Senhor, verdadeiramente esperais, não é outra senão o engrandecimento do mundo agitado pelo transformismo universal”.
Cristo pertence a toda a humanidade, e nenhuma religião pode possuí-Lo com exclusividade. Não se pode isolar num templo particular, num grupo humano, porque Ele está no centro da biologia universal do espírito. É este Cristo de dimensões cósmicas, superior a todas as formas e dimensões humanas, situado no centro de uma super-religião de substância, no vértice da evolução da vida no planeta, nos antípodas da nossa baixa existência terrena, sempre presente para sanar com o Seu divino esplendor a nossa cegueira, e com a Sua potência e bondade as misérias de nosso pobre mundo: este é o Cristo que, junto a Teilhard, eu venero e amo.
IV – Ciência e Religião
Voltamos a falar, para compreendê-lo melhor, do pensamento de Teilhard de Chardin. Observando os fenômenos, sobretudo no seu íntimo significado, ele chegou a uma visão do plano geral da existência, no qual domina o princípio da evolução, que faz do ser um transformismo em marcha. O conhecimento do passado hominal fez entrever a Teilhard as perspectivas em direção às quais se encaminha aquela marcha e, portanto, aquilo que o homem poderá no futuro realizar na Terra. Então Teilhard se sentiu iluminado por uma súbita luz orientadora. Se tudo caminha, é porque tudo se dirige a uma meta que com este movimento se deverá alcançar; tudo tende a completar-se e aperfeiçoar-se, porque sobe de encontro a um centro, em direção ao qual tudo quanto existe se eleva à medida que vai evoluindo. Não se trata de um centro físico do universo, mas de um centro-síntese, no qual a pulverização fenomênica se coordena, se organiza, chegando assim, da dispersão periférica a um estado unitário, orientado em direção àquele centro. A evolução se nos revela como fenômeno múltiplo, se síntese, que realiza muitas coisas: não apenas a ascese, o aperfeiçoamento, o melhoramento; não só alcança a complexidade e a organicidade, mas também a unificação. O ponto de chegada é o todo-uno.
Quando a consciência de uma verdade tão vasta e poderosa lampejou no seu espírito, Teilhard não pôde deixar de gritar: Eureka! Tinha-o conduzido até ali a ciência com o seu passo seguro, apoiada nos fatos. Não podia, portanto, duvidar. Tudo isto lhe diziam os fatos com mil vozes concordantes e convergentes. Então ele, tendo-se dado conta que este era o significado da existência, não pôde deixar de ver as conseqüências desta sua descoberta. Eis como acabou por dedicar-se, além da ciência, à filosofia, à metafísica e à teologia.
Ora, todo grupo humano de qualquer espécie, toda escola filosófica, religiosa, teológica etc. têm o seu patrimônio de idéias e terminologia própria, a sua linguagem particular, a sua forma mental, que enquadram o pensamento, cristalizando-o; e dentro dela pretendem encerrar e limitar também o pensamento de quem ataque de frente os problemas por eles tratados. Se depois, aquele pensamento chegou a uma fase avançada de velhice e de conseqüente cristalização, e fixou-se numa codificação de normas mecânicas para uso de uma determinada organização humana, tudo se estanca e, naquele campo, a evolução pára. Então o novo é simplesmente julgado errado e portanto condenado. As verdades tratadas por aquele grupo e escola tornam-se propriedade sua, e portanto reservadas e intocáveis. De resto, isto é justo porque foram construídas por eles, que assim têm o direito de possuí-las em exclusividade e de defendê-las como coisa própria. O erro está em querer dar à posse da verdade um sentido diverso e maior do que de legítima propriedade reservada para uso e vantagem de quem a possua. O erro está no fato de que os grupos e escolas pretendem dar um valor universal, eterno, absoluto, às suas verdades particulares que, como tudo na Terra, não podem ser mais do que relativas e progressivas no tempo.
O que aconteceu então a Teilhard? Aconteceu o que acontece a todos inovadores que viram mais longe do que os outros aos quais quiseram fazer ver mais longe também, para além dos limites das verdades já vistas e codificadas por eles. É neste ponto que aparecem as condenações. Os precursores, desde Cristo a Galileu etc., são condenados como heréticos. Estamos observando imparcialmente um fenômeno que se apresenta o mesmo em todos os tempos e lugares, religiões e partidos, porque se trata de um fenômeno biológico que se verifica segundo uma lei da vida, toda vez que um indivíduo mais progressista queira arrastar os mais atrasados para frente no caminho da evolução.
Eis o que aguardava Teilhard quando, uma vez iluminado pela visão de uma verdade muito mais vasta e convincente, se sentiu impulsionado a gritá-la ao mundo. Foram novos conceitos, com nova linguagem, porém dissonantes para os ouvidos habituados à velha terminologia tradicional, estranhos e inaceitáveis para a forma mental acostumada aos destilados processos lógicos da filosofia e teologia, um terremoto numa cidade adormecida, uma tempestade de absurdos sobre um lago tranqüilo ou sobre um jardim bem tratado. Então os conservadores se precipitam em levantar barreiras de defesa, para calar aquele escandaloso “eureka” que pretendia tudo resolver, fazendo abandonar a velha estrada sobre a qual caminhava tão bem a sua antiga sapiência.
Este foi o martírio de Teilhard, como o é de todos os inovadores: tropeçar nestes obstáculos colocados no meio do caminho para que a evolução se detenha. Tropeçar, cair, lacerar-se a carne, porque quem é velho teve tempo de tornar-se poderoso na Terra, e tem bem agarrado nas mãos o fruto do trabalho executado no passado, a propriedade adquirida de conceitos, doutrinas, organizações, instituições, leis, autoridades etc., e quem é velho, está por lei biológica, pronto a usar estas suas forças como arma para defender a sua sobrevivência.
Mas a visão de Teilhard é esplêndida. Ele a vê e fica por ela fascinado. Os outros não a vêem e a negam. Mas porque as autoridades condenam com tanta pressa? Talvez porque tenham medo do novo? Certamente que, dada a estrutura das leis da vida, o novo deve representar para o velho uma ameaça contínua porque tende a superá-lo para substituí-lo. É a vida que avança. Assim se explica esta reação. Mas Teilhard viu e não pôde calar. Discute-se nos ambientes tradicionais se ele podia ou queria fazer teologia ou filosofia. Ora, se é justo que a solução de determinados problemas constitua uma propriedade reservada porque é o produto de certos ambientes particulares, nem por isso se pode declarar que tudo seja reservado como propriedade com o propósito de excluir os outros de um dado terreno fenomênico, de um dado tipo de investigações e conclusões, de um setor do conhecimento. Como é possível pôr limites ao pensamento humano, com que direito proibir ao cientista de ultrapassar os resultados imediatos, como impedi-lo de olhar mais longe do que eles e assim sair do terreno da ciência para expandir-se no da filosofia, metafísica e teologia? É impossível seccionar o conhecimento em compartimentos estanques, isolar um problema dos outros, deter-se no exame de um fenômeno e de uma lei sem ver em cada campo todas as conseqüências. Isso é impossível num universo unitário, regido por um princípio central único, mesmo que depois deste se vá tudo subdividindo em infinitas ramificações.
Como pretender de quem tenha visto o novo não seja imediatamente levado a colocá-lo na vida, no lugar do velho? Impedi-lo é atentar contra o progresso, é delito de lesa-evolução. Quem viu é levado a transformar-se em reformador, para fazer progredir o mundo. Eis uma razão mais para reforçar a condenação por parte dos poderes constituídos.
O problema é que se trata de indivíduos mais evoluídos, e por isso mesmo é difícil que possam ser subitamente compreendidos e aceitos. Eles, porque mais avançados, vêem que muitas posições estão ultrapassadas e que necessitam renovar-se. Os outros, menos evoluídos, não se dão conta de nada. Para eles o mundo encontra-se bem, e deve permanecer como está. Ressurge sempre o princípio biológico da luta. Os jovens rebentos devem abrir caminho à força entre as ruínas das velhas árvores decadentes, que não cedem o posto à nova vida enquanto têm forças para resistir.
Como pode um cientista que viu, não fazer da sua ciência também uma filosofia e teologia, invadindo mesmo que não o queira, estes terrenos reservados? Ele sente que sua filosofia e teologia são as do futuro, aquelas que o mundo procura, porque quer viver e resolver cada vez melhor os seus problemas. Instintivamente sente que se renunciasse a ocupar-se deles, adormecendo sem lutar para avançar, ficaria abandonado, à margem do caminho da vida.
Quando num terreno encontramos escrito: “propriedade reservada”, “proibido o ingresso a estranhos”, seguimos para outro lado. E a bela propriedade fica intacta e deserta. Mas ela se torna vazia e morta, porque então a vida que ninguém pode deter, vai desenvolver-se noutro lugar, porque não é habitável uma casa que foi reduzida a um museu de antiguidades. Foi para evitar tudo isto, se bem que, por obediência, lhe era proibido, que Teilhard quis entrar nos terrenos reservados à filosofia e teologia, e entrar neles como cientista, com conceitos novos e vivificantes.
A teoria evolucionista dá-nos um conceito novo do universo e da existência. O todo não foi feito por Deus de uma só vez para sempre, de improviso, num dado momento, mas antes se está continuamente formando. O todo é resultado de uma criação contínua, obra de um Deus sempre ativo e presente, não de um Deus que uma vez o construiu, se afastou da criação para ficar inerte a contemplá-la do alto da Sua glória, separado do fruto do Seu trabalho, que continua estaticamente a existir por si mesmo, agora independente da obra do Seu criador. Para imaginar a atividade de Deus, o homem não tinha na sua mente outro modelo senão aquele que ele podia ver na Terra, quando alguém constrói qualquer coisa; e o homem inconscientemente aplicou a Deus esta sua concepção antropomórfica, da qual de resto não lhe era possível sair, porque não lhe era possível superar os limites dentro dos quais estava encerrado o seu concebível, fixados pela sua experiência.
Hoje a concepção antropomórfica e estática da Bíblia tende-se a substituir outra dinâmica, mais verossímil, que melhor convence a mente moderna, mais madura. É certamente laboriosa mas fatal a superação dos velhos conceitos tradicionais. O homem não é já considerado segundo uma concepção egocêntrica, que o torna único objetivo da criação, situado num planeta que é o centro do universo. O orgulho pode ser considerado culpa quando há um rival que por ele se sente lesado, e por isso o condena. Mas quando o orgulho é de todos, torna-se uma auto-exaltação coletiva; ao faltar a reação contrária ele é aceito por consenso universal e, sendo vantagem para todos, torna-se verdade. Hoje vemos o homem como elemento de uma imensa unidade orgânica. Ele não nasceu de uma vez, feito num só momento, é antes o resultado de um longo caminho percorrido, de formas biológicas inferiores superadas, que o precedem e que encontram nele a razão da sua existência, a continuação do seu caminho, a coroação da sua obra evolutiva.
Concepção nova, tanto mais vasta e dinâmica e que nos abre a mente para horizontes imensos. Ora, já que a ciência no-lo mostrou, saibamos que existe um caminho evolutivo, e que grandiosa visão se abre diante de nós se pensarmos até onde aquele caminho poderá levar-nos! Religião, ética, espiritualidade, ideais, tudo adquire um significado positivo, uma possibilidade de atuação concreta. Estas abstrações entram vivas e atuantes em nossa existência, não só como aspirações, mas para se realizarem em função do grande fenômeno da evolução. Só assim poderemos retirar as velhas concepções filosóficas e teológicas das estantes poeirentas, onde têm sido respeitosamente conservadas, e trazê-las para junto de nós para que se transmudem em formas de vida. Deveríamos compreender que o novo não surge para matar o velho, mas somente para substituí-lo, a fim de que a vida, que fatalmente lhe escapa, continue em novas formas, que não o excluem, mas somente o completam e fazem avançar o passado. Não há doutrina religiosa que possa deter estas leis, que são as leis da vida. Eis o que querem os inovadores, e através deles com seus instrumentos, eis o que irresistivelmente impõe a evolução.
Do evolucionismo nasce uma moral dinâmica para o lugar da velha moral estática. A nova ciência diz-nos que a vida evolui em direção à espiritualização e que nela consiste o nosso futuro. O passado mostra-nos qual deverá ser o futuro, porque este não pode ser senão o prolongamento daquele, a sua continuação lógica. Eis que a nossa vida adquire um significado profundo porque existe na direção de uma meta que podemos racionalmente prever qual seja. Caminha-se e sabe-se para onde vai. Do que nos mostra a nossa história geológica e paleontológica, podemos positivamente deduzir qual será o nosso futuro. Caminhamos em direção a novas grandes afirmações no campo intelectual e espiritual, com infinitas conseqüências de todo o gênero. Tudo assume um valor construtivo. O processo evolutivo tem as suas leis, mas o trabalho de realizá-lo está em nossas mãos. Somos nós que temos de executá-lo. Nós próprios somos os construtores de nós mesmos, cooperando com a contínua obra criadora de Deus. Nunca estamos sozinhos. Todas as outras formas de existência estão junto de nós e vão avançando conosco no mesmo caminho. a ciência já começa a coser os retalhos da especialização em que se ramifica e subdivide, e se dirige para uma síntese. Ligando os vários momentos do conhecimento, orienta-se em direção à unificação de todos os fenômenos num princípio central. Fatos isolados, dos quais primeiramente não se conhecia o nexo recíproco, se integram numa complexidade orgânica e funcional até formar uma imensa sinfonia, na qual se sente que deve consistir a suprema visão do universo.
Será irreligioso tudo isto? Mas esta é precisamente a mais elevada religião do futuro, a do homem inteligência e consciente, que substituirá o homem ignorante e instintivo de hoje. E a ética se transformará paralelamente. A esta religião maior, será possível que as atuais façam resistência. Vivemos hoje no momento crítico do emborcamento, isto é, no ponto em que o homem, por haver avançado ao longo da evolução, se vê obrigado a inverter a sua posição, porque não gravita mais em direção ao pólo negativo do ser, representado pelo fundo da involução que chamamos de anti-sistema (AS), mas em direção ao pólo positivo, representado pelo vértice da evolução, seu ponto de chegada, que chamamos sistema (S). Isto é, o homem, à força de subir, evoluindo do anti-sistema para o sistema, acaba por entrar no campo gravitacional prevalentemente positivo, saindo e afastando-se cada vez mais do que é prevalentemente negativo.
Esta é a mais profunda revolução da vida, porque agora muda o seu centro de atração e se inverte do negativo ao positivo o sinal do seu campo de ação. De hoje em diante tenderá a prevalecer o positivo sobre o negativo. Positivo e negativo significam dois tipos de existência oposta, sendo o segundo o dos planos inferiores, e o do primeiro o dos planos superiores, mais evoluídos.
Claro que se trata de conceitos novos, que também nós, junto com Teilhard, sustentamos, diferentes apenas nos detalhes, e não é de surpreender que desconcertem as velhas formas mentais que a eles não estão habituadas. Se bem que a maneira de ver de cada um seja diferente, o pensamento fundamental que rege o universo é uno, e não pode deixar de se perceber uma vez que o indivíduo tenha os olhos adaptados e saiba abri-los para ver. É natural que conceitos e terminologia sejam diferentes. Não mais oposição entre espírito e matéria. Estes não são mais do que pontos diversos de um mesmo transformismo fenomênico. Física e moral baseiam-se num princípio comum. Ciência e espírito, conhecimento e moral, têm as mesmas raízes. E Teilhard não podia deixar, ele também, de ver a unidade fundamental de todas as coisas. Quem viu compreende, e ama a Teilhard porque também viu. Quem não viu não compreende e condena porque não sabe usar a sua pequena e velha medida feita para medir limitados conceitos antropomórficos da Terra, e não as ilimitadas concepções galácticas do homem do futuro.
É natural, partindo de gigantescas premissas, que já não seja possível concluir unicamente em favor de um grupo particular humano. Superada a forma mental egocêntrica, que criou para si um universo antropomórfico, já não é possível dos princípios ideais fazer um meio para sustentar interesses humanos. Deverá assim automaticamente desaparecer o sectarismo partidário e o separatismo religioso. Estas são as fases primitivas do pensamento religioso que para descer à Terra, foi obrigado a submergir-se na sua lei, que é a luta de todos contra todos pela sobrevivência. A religiosidade do futuro transcende a Terra, o nosso mundo, as sua organizações, e não pode encerrar-se nas fórmulas de uma qualquer particular religião, isolada das outras, num clima de divisionismo, pela sua diversa interpretação da mesma verdade, rivais, dispostas a combater-se umas às outras. A cosmogênese não pode culminar e exaurir-se num só profeta. Trata-se de uma religiosidade tão vasta que pode abarcar todas as formas de vida, incluindo a que se encontra na matéria, incluindo a dos outros seres que vivem nos planetas das mais longínquas galáxias. Os conceitos tradicionais não servem mais. Mas isto não significa destruição; é ampliação. Está para surgir um novo testamento de todas as religiões, que inicialmente, as fundirá, ou, pelo menos, as aproximará uma das outras, irmanando-as como se constituíssem aspectos diversos e complementares da mesma verdade. Sem destruí-lo, este novo testamento não só continuará o velho, respeitando-o, mas o ampliará, completando-o ele será oferecido pela ciência a uma humanidade que sentirá a necessidade e terá a capacidade de compreender, a qual sucederá à humanidade do passado, que sem tal necessidade e capacidade, e não sabendo fazer outra coisa, limitava-se a crer.
O que pode impressionar o homem é a angustiosa sensação de sentir-se um átomo perdido na imensidade do universo. No passado foi o medo das feras, do inimigo, dos elementos desencadeados. Hoje a ciência lhe fez ver um infinito cheio de novos mistérios, de vazios, de possíveis perigos ainda maiores. E quer chegar até à lua para saber o que lá existe. Deste medo nasceram as religiões para nos dar uma proteção, tornando-se propícia a divindade; foi delas que nasceu a fé para consolar-nos, suprindo com isso tudo que ainda não se sabe. Mistérios, religiões e fé estão de fato unidos por estrito parentesco.
Ora, a tarefa da evolução humana é aquela que a ciência hoje está realizando, isto é, a de substituir cada vez mais o mistério e a respectiva fé pelo conhecimento; é a de mudar a posição do homem afastando-o cada vez mais das trevas, da ignorância (AS), em direção à luz e ao conhecimento (S). Crer segundo as religiões, mas conhecer cada vez mais segundo a ciência; isto é, crer cada vez menos com os olhos fechados, como ignorantes, e cada vez mais com os olhos abertos, conhecendo; empurrar sempre o mistério para mais longe de nós, iluminando a estrada com a nossa inteligência. Fazer isto significa descer Deus cada vez um pouco mais à Terra, e nós não ficamos passivos na expectativa. Devemo-nos tornar ativos, manifestando a nossa vontade e esforço de conquista. No entanto vemos que do mistério se procurou fazer um cômodo refúgio para que nele se aninhem os preguiçosos, inimigos de toda a febre de pesquisa e de toda a novidade que perturbe o seu sono. Mas Deus quer o nosso progresso, quer que seu pensamento e sua vontade se realizem cada vez mais em nossa vida; quer que O compreendamos e com ele colaboremos como seus operários, para subir. Mas Deus não desce a Terra gratuitamente. O homem deve realizar o esforço de elevar-se em direção a Ele, para Dele extrair aquilo que pode sentir e compreender. Cabe-nos subir a montanha da evolução com nossas pernas. Devemos carregar a cruz da redenção em nossos ombros, porque é absurdo servirmo-nos dos ombros de Cristo para que seja ele o crucificado em vez de nós.
A ciência é um esforço da inteligência para subir a Deus, mesmo quando O nega, porque nesse momento ela representa a tarefa de resolver os problemas e descobrir a verdade com seu próprio trabalho, por si mesma, em vez de aceitar tudo pela fé, gratuitamente, já resolvido, sem labor a não ser o de abandonar-se passivamente nas mãos de um Deus, invocado por nós para nos socorrer. A época da concepção estática do universo e da vida está superada, a que encorajava a nossa inércia mental, qualificando-a como virtude. Hoje abre-se o caminho para a concepção dinâmica, que nos diz que o paraíso não se conquista só negando a vida terrena com a renúncia, mas sobretudo afirmando-se de um modo positivo, com o trabalho e a conquista no terreno do pensamento e do espírito. Então, se a ciência foi em princípio considerada inimiga das religiões, porque perturbava o sono de quem se tinha dentro delas acomodado (inimigo das descobertas destrutivas do mistério, elemento de domínio). Hoje a ciência representa o caminho para chegar à religião do futuro que, como a ciência, será universal, sem possibilidade de escapatórias, verdadeira para todos, convincente porque demonstrada pela lógica e pelos os fatos. Uma religião que, por ser demonstrada pela lógica e pelos fatos. Uma religião que, por ser mais inteligente e consciente, representará uma posição espiritual mais avançada, um maior grau de compreensão do pensamento de Deus.
Se Teilhard de Chardin não pôde deixar de gritar: “Eureka”, quando teve a visão da unidade orgânica do universo, assim também não pode deixar de gritar “Eureka” quem, tendo obtido por sua conta a mesma visão, se apercebeu de que já não se encontra mais só, porque viu que também outro o havia tido, e, percorrendo a mesma estrada, nele encontrou um companheiro e um amigo. De resto é natural que sejam vários a ver a mesma coisa. A verdade em si é uma só. A nova realidade pré-existe à nossa descoberta. Esta não cria nada, apenas revela o que já está resolvido pela natureza e funciona sem que tivéssemos consciência disso.
Eis que começa a delinear-se a nova religião científica, racional, comprovada, convincente, aquela que as religiões terão de referir-se e alcançar, se quiseram sobreviver na mente moderna. Já não mais apenas revelação, tradição, mas também ciência, ciência que se prolonga na religião, que se eleva e continua no plano espírito, que se completa com critérios positivos no terreno ético e social. Esta é a tendência atual, isto é, um desenvolver-se da ciência para dilatar-se cada vez mais, invadindo todos os campos do pensamento e da ação. Não se trata, apenas, de transformar as religiões para que sejam concebidas diversamente; trata-se, também, de transformar a ciência atual para que dela se adquira um novo conceito. Então o materialismo, o agnosticismo, o cepticismo, o ateísmo, tornam-se coisas superadas. A mente humana, pelo menos nas suas grandes linhas e orientação geral, avança em direção à solução do problema do conhecimento e assim, implicitamente, de muitos outros problemas menores. É inegável que as barreiras do mistério, anteriormente imóveis, está retrocedendo. Isto é fruto, não obstante, de um trabalho que se realiza fora das religiões, sem elas, porque a sua maior preocupação não é a pesquisa de mais vastas e profundas verdades, mas antes a conservação das velhas sobre as quais se baseiam as suas posições terrenas. Sucede então que, dado que não se pode parar o progresso do pensamento, ele continua a avançar por sua conta, deixando para trás as religiões.
Já o mesmo Teilhard afirma a possibilidade de um novo método de pesquisa, por nós já sustentado e praticado, que é a superação do racional por meio da intuição. O problema do conhecimento não se esgota mais no estudo dos aspectos positivos e científicos da natureza, mas exige que a investigação seja levada até o prolongamento espiritual e místico daqueles aspectos. Quando se chegou a compreender que matéria e espírito, hoje concebidos como dois termos antagônicos inconciliáveis, são redutíveis à mesma substância fundamental, os atritos entre a forma mental da ciência e a das religiões podem desaparecer, e é possível fundir, numa só, as duas concepções do ser. Elas, em vez de se excluírem, se integram indispensáveis uma à outra, como duas partes da mesma unidade. Hoje estes dois aspectos parciais e complementares da mesma verdade se estão combatendo, cada um pretendendo constituir o todo e não uma parte; estão-se negando reciprocamente quando são apenas duas afirmações incompletas, que se procuram uma à outra para completar-se; não são senão duas perspectivas da mesma realidade, diversas porque observadas sob dois pontos de vista diferentes, em função de distintos pontos de referência.
O conhecimento está hoje entrando numa nova dimensão de cosmogênese. A mente humana é levada pela evolução a amadurecer até chegar à compreensão de novas concepções. Daí nasce uma forma mental nova da qual deriva uma transformação da vida do homem em todos os campos. Até um passado recente, o homem se julgava nascido rei do mundo, a obra prima de Deus, num universo feito para ele. Hoje o nosso planeta tornou-se um grão invisível num universo que milhares de anos-luz não bastam para atravessar; e a nossa humanidade perante a vida universal espalhada nas galáxias, pode reduzir-se a uma microscópica cultura de bacilos. A humanidade está superando a forma mental no antropomorfismo que representava a sua interpretação pueril, a representação que ela refazia do universo. Começa-se a pensar tudo outra vez, em termos de uma nova cosmogênese, de dimensões imensamente mais amplas. Somente no início, tudo isto podia levar ao ateísmo os principiantes da ciência, demasiadamente apresados em concluir. Hoje tudo isto leva a Deus, mas através de um modo mais elevado e completo de O conceber. A tendência mais adiantada não é de destruir a idéia de Deus, mas apenas a de superar aquela idéia especialmente humana que o homem, até agora, com a sua cabeça produziu, limitando-se a projetar-se a si próprio. A luta é apenas contra o antropomorfismo; mas as religiões a entenderam como se fosse contra elas, porque se identificavam com este antropomorfismo. Combatê-lo era interpretado como combater essas religiões, quando o que se combatia era o modo de conceber Deus, ilógico e inaceitável, que levava ao ateísmo, e, combatendo o antropomorfismo, se lutava contra aquele ateísmo, em favor da religiões que ele ameaçava. O que leva ao ateísmo não é a ciência, mas o antropomorfismo religioso; só deste há necessidade de nos libertarmos e jamais da idéia de Deus.
Houve uma época em que a evolução aparecia como uma ameaça às verdades religiosas e por isso era condenadíssima. Atualmente ela pode ser entendida como uma sua confirmação. O conhecimento do passado animal do homem nos leva a vê-lo ao longo de um caminho de contínuas superações, o que significa observá-lo em função do seu futuro super-humano, no qual aquilo que se deve realizar é a espiritualidade intuída pelas religiões, é o ideal por elas sustentado, é o reino dos céus proclamado por Cristo. Eis então que, em pleno acordo com as religiões e a moral por elas pregada, e em pleno acordo com o evolucionismo científico, se pode implantar uma antropologia previsora, que estuda a antropogênese para levá-la para diante e dirigi-la em direção ao futuro, transformando-se num guia iluminado da evolução do homem. Realizações até hoje impossíveis para as religiões, que têm estado fechadas numa ordem de conceitos totalmente diversa.
Como sustentamos no volume Princípios de uma Nova Ética, trata-se de chegar a uma moral positiva, científica, racional, demonstrada, que se substitua a atual, que é empírica, produto instintivo do subconsciente. Isto não quer dizer que ela não tenha o seu significado e valor, porque tudo quanto é produto da vida o tem, a qual sabe sempre o que faz. Mas neste caso, perante produtos mais evoluídos, controlados pela razão, trata-se de um produto mais elementar e involuído, como são os do subconsciente, depósito das experiências inferiores do passado. Repete-se sempre o motivo do velho e do novo testamento. E também isto prova a evolução. O velho fica, mas é arrastado mais para diante. Não é destruição, mas superação por amadurecimento. A vida nunca destrói em sentido absoluto: só transforma, e é neste sentido de ressurreição que mata o velho. Este íntimo trabalho do existir nunca se detém e ninguém poderá detê-lo jamais.
Continuando a ler Teilhard, notamos que ele soube ver e sustentar uma outra grande verdade, que nos leva a conceber a vida de outro modo. Para compreender o homem, é necessário vê-lo como ele é na realidade, não abstratamente, separada dela em nome de princípios a ela estranhos, mas em função de leis biológicas que regem o plano de evolução no qual o homem se encontra situado. Tudo o que diz respeito ao homem, ética, economia, política, religião etc., cada produto da sua atividade, se entende em função das leis da vida dentro das quais ele se move e às quais sem saber ele obedece. Tudo o que refere ao homem é portanto uma função biológica, que só biologicamente pode ser compreendida e que, inteligentemente, como fenômeno antes de mais nada biológico, está dirigido aos fins da evolução. Também tudo isso nós sustentamos e explicamos.
Até hoje o homem foi, por instinto, inconscientemente guiado por estas leis. Trata-se agora de conhecê-las para saber as que nos dirigem, para segui-las com conhecimento e consciência, até onde seja possível, para intervir ativamente colaborando com elas, com a adesão de nossa vontade acentuando a ação delas para alcançar melhor o que constitui a nossa vantagem, o fim supremo em direção ao qual tudo está evoluindo. A biologia se tornará assim uma ciência universal, tão vasta que abarcará também uma biologia do espírito, uma biologia do ideal, uma biologia das religiões, da teologia, da ética, da economia, da política, porque tudo aquilo que o homem faz é uma expressão das leis da vida, e em função delas é realizado. A questão é conhecê-las. A observação dos fatos as revela, e podemos lê-las escritas na realidade, onde a encontramos em pleno funcionamento. Então aparecem os vínculos que ligam e levam à unidade as várias formas de pensamento e de atividade humana. Todas elas não são mais do que uma manifestação do trabalho de um contínuo amadurecimento evolutivo, de uma íntima elaboração da vida para subir, sendo apenas momentos diversos, no espaço e no tempo, de um mesmo acréscimo orgânico e universal, que é a evolução, a qual, no seu irrefreável impulso, arrasta a vida, pois, tudo que existe é vida.
Eis a grande concepção teilhardiana: cosmogênese contínua em ascensão, e a constatação de que o homem, agora tornado adulto, está maduro para tomar a direção da evolução da vida no seu planeta e por isso deve assumir essa direção, ser dela consciente e responsável. Nessa tarefa imensa não falta trabalho para as religiões que deveriam inteligentemente cooperar na realização das leis da evolução e do seu imenso programa de ascensão que representa o conteúdo fundamental daquelas religiões. Não se trata da morte das religiões! Trata-se da morte da sua forma atual atrasada, para ressurgirem numa outra mais avançada e potente. Como sempre, também neste caso, que não pode fazer exceção, a vida destrói só para reconstruir mais acima. Seria absurdo o contrário, dado que a tendência suprema da vida é subir. As religiões deveriam compreender, que grande vantagem representa para elas o transferir-se para tais dimensões superiores nas quais, quer elas queiram quer não, a vida hoje exige que se situem quem quiser sobreviver. É inútil resistir às suas leis, e quem o fizer será eliminado, deixado para trás no caminho da evolução.
Eis as palavras de Teilhard[3]: “Até agora a antropologia havia sido considerada, de uma maneira geral, como uma pura descrição do homem do passado e do presente, individual e social. De agora para diante o seu princípio centro de interesse deveria consistir em guiar, promover e operar a evolução do homem. Os não biólogos esquecem muitas vezes que sob as variadas regras da ética, da economia e da política, se encontram inscritas na estrutura de nosso universo certas condições gerais e imprescritíveis de crescimento orgânico. Determinar, no caso do homem, estas condições básicas do progresso biológico, deveria ser o campo específico à nova antropologia: a ciência da antropogênese, a ciência do desenvolvimento ulterior do homem”.
Conceitos novos e vitais de Teilhard que sustentávamos antes de conhecê-lo[4]. Não podemos verdadeiramente compreender o homem, colocando-o dentro de uma biologia que evolutivamente ele ainda não alcançou, cujas leis portanto não são as suas. Isto serve para educá-lo, mas não para compreender as razões da sua conduta. O homem deve ser visto em função da biologia do animal, porque esta é a biologia do seu passado, através da qual o próprio homem se construiu tal qual é hoje, porque este é o caminho percorrido por ele para chegar até aqui com a sua história escrita no seu subconsciente, e que constitui a forma mental que o dirige. É certo que dizer ao homem que Deus o criou à sua imagem e semelhança pode ser útil para efeitos educativos, enquanto o investe de uma dignidade que ele, através da sua conduta, se sente levado a respeitar. Se quisermos, porém, compreender o homem nos seus impulsos, instintos e ações, devemos vê-lo em função das formas de vida já vividas por ele, na sua posição no cimo da escala zoológica da qual emerge, mas da qual todavia faz parte, ou seja, em posição biológica em vez de metafísica, porque se esta representa o futuro viver, o homem, da primeira já vivida, conserva em si os traços mais profundos, de um tipo bem diferente do metafísico.
Todavia é necessário também admitir que apenas a biologia do animal não basta para compreender o homem inteiramente, porque ele não é feito somente de recordações do passado, mas também de pressentimentos do futuro, ainda que sejam vagos. Aquela biologia se completa, portanto, com a biologia do espírito e do ideal, que no entanto existe na crista da onda da evolução e onde vivem isolados alguns precursores do futuro.
Mas é também verdade que seria um erro crer que a esta biologia do espírito se possa chegar só por abstrações metafísica sem ligá-la com a biologia do animal, porque é dela que esta superestrutura deriva e se eleva; é sobre aquela que esta se baseia, é nela que aquela superestrutura tem a s sua raízes e precedentes, que a explicam e justificam. De um pólo a outro, há diversos níveis evolutivos, e trata-se do mesmo fenômeno em continuação de desenvolvimento. Só de tal modo, havendo compreendido o passado, podemos não só compreender a existência de uma biologia do espírito, mas ainda racionalmente prever o futuro desenvolvimento, qual poderá ser o conteúdo dos estados superiores, aos quais a evolução poderá levar-nos, elevando logicamente dobre aquele passado.
Mas isto sem esquecer qual é a estrutura da matéria prima biológica a elaborar, aquela que o progresso humano deve levar adiante, porque constitui as bases da nova criação evolutiva. Mesmo nas supremas criações espirituais é necessário nunca esquecer a realidade biológica, nunca se separar dela, para não naufragar, isolando-se, em sonhos fora da vida. Esta é a verdadeira posição equilibrada, isto é, aceitar como ponto de partida a natureza zoológica do homem, mesmo que esta se destine depois aos mais altos planos espirituais; e daquele ponto de partida subir depois até onde, ao longo do processo evolutivo, o amadurecimento permita. Não nos iludamos, porém, com vôos de fantasia e pensar que isto seja fácil, como sucede com muitos que pretendem refazer o mundo. A velha natureza humana de base é muito resistente e não se muda num só dia. Até Cristo teve de ter em conta as leis biológicas do planeta e limitar-se a trazer apenas retoques e leves melhoramentos àquele fundo zoológico que constitui a base da natureza humana.
Compreendido tudo isto, ou seja, que não podemos entender a conduta humana de outro modo a não ser reportando-nos à sua substância biológica em função das leis de nosso plano evolutivo, poderemos então perguntar-nos qual o significado daquelas construções metafísicas de que falávamos agora, não no caso excepcional dos raros pioneiros da evolução, mas no caso comum de tantos grupos humanos de massa, incluindo os religiosos, que sobre aquelas construções baseiam a própria organização e existência. Para quem está habituado ao controle positivo das teorias, levando-as ao contato com os fatos, tantas concepções filosóficas e teológicas podem parecer o resultado de uma imaginação, de afirmações situadas fora da realidade que elas ignoram; podem não obstante tudo isto justificar-se biologicamente como um produto instintivo inconsciente, mas sabiamente desejado pelas leis da vida com uma precisa finalidade: através da luta, alcançar a sobrevivência. Tratar-se-ia então de um produto do subconsciente com o fim de assegurar tal sobrevivência entrincheirando-se por detrás de uma ideologia, utilizada como meio para sugestionar os crentes e assim obter o respeito, arma psicológica que se substitui à força para paralisar na luta a agressividade dos outros, garantindo-se assim a segurança própria. Desta maneira o grupo zoológico pode justificar a sua posição. As construções metafísicas seriam então um produto instintivo nascido da vida para a sua defesa, ou bem seriam a emanação de planos evolutivos superiores cujas construções descem ao nosso mundo para civiliza-lo, um material ideal super-humano, que no entanto é adaptado ao ambiente terrestre, para ser assim utilizado para objetivos totalmente diversos, transformado em meio de luta pela vida. Eis como pode ser entendida e aplicada a biologia do espírito quando é usada pelos imaturos, ainda situados no nível da biologia do animal.
Com tal concepção biológica podemos explicar-nos fatos, cuja razão de outro modo não chegaríamos a compreender. As ideologias de qualquer tipo constituem o castelo dentro do qual, quando não se pode usar a força, o grupo se entrincheira e se defende. É por isso que as ideologias, sejam religiosas ou políticas, exigem fé, o que significa consentimento, adesão e, por fim, obediência, que é o ponto fundamental em que cada grupo insiste porque constitui a base do seu poder. Os elementos do fenômeno são sempre os mesmos: proselitismo para estender o domínio e autoridade para mantê-lo. No plano biológico do ideal tais coisas são contraproducentes, antivitais, absurdas; mas no plano biológico animal do homem são questão de vida ou de morte. Neste nível o ser tem que resolver a qualquer custo o problema tremendo da sobrevivência e não há margem para sonhos; o ideal é loucura que mata. Eis porque à volta do castelo em que se refugia o ideal é necessário construir muros de defesa contra a instintiva agressividade destruidora do homem não evoluído, e o grupo deve constituir no centro uma autoridade que comande os seus súditos, mesmo que seja só pela fé, e sujeitá-los à obediência. É uma posição de guerra. Parece uma contradição porque inverte os princípios do ideal. Mas esta forma invertida é a única que ele pode assumir quando aquilo que pertence a um plano biológico superior desce a um inferior. E esta é de fato a forma na qual constatamos a existência dos ideais na Terra.
Condenar não resolve. É necessário antes de tudo compreender e explicar. Os fatos mostram-nos que mesmo Deus, quando se manifesta na Terra, não a viola, mas lhe respeita as leis. A revolução, a grande transformação pode realizar-se só passando a um plano de vida superior. Mas enquanto se pertence a um determinado nível biológico, até que por evolução não se consiga sair dele, fica-se encerrado dentro das suas leis às quais se deve obedecer. A reação que dá razão ao ideal verifica-se só no momento no qual o indivíduo, por ter progredido bastante, está maduro para evadir-se do plano biológico inferior e entrar no superior. Assim sucedeu também com Cristo. Enquanto esteve vivo na Terra, o ideal foi com Ele crucificado. Ele pôde triunfar como vencedor só quando, estando morto, se encontrou fora do plano biológico humano e não antes.
Pudemos assim explicar a contradição existente no fato de que, se queremos que o ideal resista e sobreviva na Terra, ele deve aceitar aquilo que ele mesmo condena, e é necessário que os valores espirituais sejam defendidos com os métodos do mundo, ainda que com a força, mesmo que isso esteja em aberta contradição com o Evangelho. Não é essa a história do cristianismo, impulsionador de inquisições, de guerras santas e teoricamente baseado no princípio do amor e da não resistência? Só afrontando assim biologicamente tais problemas se pode compreender o significado do que vemos acontecer no mundo. Se ele funciona de tal modo, deve no entanto ter as suas razões. Observando o fenômeno do ponto de vista biológico nos colocamos não diante do homem para que explique e justifique o seu procedimento, mas colocamo-nos perante a inteligência da vida, que sabe bem o que faz, e que é a única que pode e sabe dar-nos uma resposta exaustiva. Para compreender é necessário sair da forma mental corrente, isto é, do terreno dominado pelas leis do plano biológico animal-humano vigentes na Terra, observando antes as coisas em função de planos biológicos diferentes, superiores, abraçando uma visa mais vasta ao longo do caminho da evolução. Observando o fenômeno não com critério de um só tipo social econômico, político ou religioso etc., mas com critério biológico, podemos, elevando-nos sobre o particular, alcançar o universal. Encontramo-nos assim diante de princípios que funcionam da mesma forma nos campos mais diversos, como sucede com o princípio já observado da autoridade e da obediência, presente nas ordens religiosas como nos ambientes militares, no catolicismo como no comunismo, todas as vezes que se estabelece uma estrutura hierárquica, típica das organizações humanas. descobrimos assim que cada coisa tem a sua razão de ser, mesmo que ela seja bem diversa da oficialmente apresentada, com a qual, às vezes, se procura esconder a verdadeira. É natural, de resto, que, movendo-se tudo num ambiente de luta, apoiado em posições de combate, a verdadeira razão de tantos expedientes, que revelariam ao inimigo a sua própria estratégia, seja escondida, camuflada sob outras razões aparentes. Mas chegaremos a compreender tudo isto, ou seja, a verdadeira razão destas posições que parecem culpáveis e contraditórias, somente se afrontarmos o problema, tocando na sua substância, que é de natureza biológica.
Chegados a este ponto nos perguntamos: realmente não seriam as construções ideais, debaixo das aparências, apenas uma ficção com o objetivo de exploração prática, para mascarar os próprios movimento frente ao inimigo? Como tais construções existem, é possível que isso esconda uma tão baixa finalidade, que ela não tenham nenhum significado melhor? Não. A sua existência representa verdadeiramente também um pressentimento do futuro, uma antecipação tendente a realizá-lo na forma oferecida pelo ideal. Aquelas construções podem ter ainda outro significado e representar uma posição e função diversas, não mais de guerra no plano da biologia do espírito. Então, a luta dos grupos baseados num ideal, para a sua defesa e sobrevivência, pode existir também para realizar uma outra função, que é a luta pela defesa e sobrevivência do ideal na Terra, de modo que aqui ele possa cumprir a sua missão evolutiva.
Podemos compreender como tudo isto sucede, recordando que estas duas biologias, com as suas respectivas leis, representam a vida em dois níveis seus, os graus de evolução, e que esta vai do Anti-Sistema (AS) ao Sistema (S). Ora, é lógico: o que é inferior seja prevalentemente do tipo AS, e o que é evolutivamente superior seja do tipo S, tipos dos quais conhecemos as qualidades que os caracterizam. E é lógico também que, estando a vida na Terra, como em toda a parte, tal vida possa conter, misturados, indivíduos mais atrasados, do tipo AS, e outros mais progressivos, do tipo S. Então cada um deles, segundo a sua natureza e respectiva forma mental verá tudo de acordo com ela e tudo tenderá a reduzir dentro dos limites da sua capacidade conceptual e do seu plano de evolução. Eis então que a compreensão e a realização do mesmo princípio será diversa conforme o diverso tipo biológico; eis que o ideal na Terra poderá ser compreendido e realizado diversamente conforme se trata de um involuído, tipo AS, funcionando no âmbito da biologia do animal, ou de um evoluído, tipo S, funcionando no âmbito da biologia do espírito.
Sucede assim que, enquanto o evoluído é um instrumento de descida do ideal à Terra para o progresso da humanidade, o involuído é naturalmente levado a ver a este ideal só do seu ponto de vista inferior, situado no plano da biologia do animal. Por isso o involuído tende a abaixar e reduzir o ideal ao seu nível, para fazer dele o uso que acabamos de ver, isto é, não em função de princípios superiores, mas para desfrutar de tudo para sua vantagem na luta pela sobrevivência própria. É natural que o involuído tenda a arrastar tudo para o seu plano de evolução; ele portanto, não saberá fazer outro uso do ideal, senão o de utilizá-lo para lhe extrair uma vantagem material. Enquanto o evoluído tende a levantar tudo em direção ao S, o involuído tenderá em afundar tudo em direção ao AS. O primeiro purificará tudo em que toca, o segundo sujará tudo, será um destruidor de valores espirituais onde o primeiro é um construtor. Enquanto a tendência constante de um é endireitar o AS no S, a do outro é de emborcar o S no AS. dessa forma podemos explicar o que sucede no mundo.
É assim que os ideais, observados do ponto de vista do involuído, podem parecer loucura antivital, perigo de morte, porque estão contra o seu mundo e pretendem desviá-lo para outras finalidades que não são as do seu plano biológico, o qual representa todo o seu reino. Os ideais são portanto negados e repelidos, ou bem torcidos para se adaptarem à Terra. Mas vemos também toda a sabedoria do mundo, toda a sua luta para vencer no seu nível, observadas do lado oposto, do ponto de vista do evoluído, podem parecer igualmente loucura antivital, porque seguir quimeras, resultados transitórios, fictícios, isto não conduz à ascese, que é o objetivo da vida, nem à afirmação no plano espiritual, que é o mais importante. A sabedoria do mundo é portanto desprezada e repelida para dirigir-se em direção ao alto, sendo reconhecida conforme o ponto de referencia escolhido para o seu julgamento. É fato concreto: cada um quer e deve, antes de tudo, realizar-se no seu plano de evolução, conforme a sua própria natureza.
Aquilo que queremos provar positivamente, não só pela via da fé, e seguir o ideal não é aquela estupidez que o mundo crê e sustém nos seus juízos. Por isso enfrentamos o problema dessa forma. Com algumas afirmações avançadas escandalizamos possivelmente os espíritos sensatos; mas se se quer compreender a realidade é necessário ter coragem de encará-la de frente em todos os seus aspectos, mostrando inclusive aqueles que se costumam calar, e disto dizer o porquê. Quisemos permanecer positivos, porque só assim se podia dar ao ideal e à biologia do espírito, as bases sólidas que a ciência requer e que possam resistir à crítica dos seus inimigos.
No ambiente terrestre baseado na luta, é natural que o ideal desça para ser aproveitado pelo involuído que nele viverá, para ser entendido e utilizado, embora reduzido a uma mentira. Outra coisa não se lhe pode pedir. Como se pode pretender que um tipo biológico AS se torne de repente um tipo S? Como é possível que um tipo AS, que foi construído com a evolução terrestre e que ainda está situado ao nível da biologia animal, se ponha a viver o Evangelho se, por atávica experiência bem impressa no seu ser, ele sabe que quem se desarma como o Evangelho quer, fica vencido na luta e por isso deve morrer? Como se pode pretender que a vida aceite num nível biológico inferior aquilo que, pelo fato de pertencer um nível biológico superior resulta antivital no inferior, o Evangelho, como todo ideal superior, lei do futuro, redunda num absurdo biológico? Se a maioria costuma pregar o Evangelho, como não se limitar apenas a seguir, a corrente que o uso impõe? Isso sem jamais admitir que o Evangelho possa ser tomado a sério e que existe para ser vivido. O involuído, ao contrário, com plena convicção, pensa evadir-se dele com honra e fabrica para si mesmo um manto de hipocrisia. O homem são e normal sabe bem que o Evangelho integralmente aplicado, é para ele um perigo de vida. Ele tem portanto, direito à legítima defesa e, se a revolta declarada é condenada, segundo a moral biológica do seu plano, não há razão por que ele não deva recorrer ao engano. Eis como o Evangelho pode transformar-se na Terra numa escola de hipocrisia.
A verdadeira conclusão é que, se queremos evoluir, devemos passar das zonas que gravitam em direção ao AS para as que gravitam em direção ao S, devemos superar a biologia do animal para tornamo-nos cidadãos da biologia do espírito. Trata-se de começar a viver em função de outras finalidades. Hoje vive-se mais ou menos animalescamente. É necessário transformar a tremenda vontade de viver que existe em todos nós numa vontade de evoluir, porque é o evoluir que dá significado e valor à vida. O supremo imperativo ético é convergir todos os esforços para evoluir em direção ao ponto Ômega, que é o S, o que dá também cientificamente um significado profundo e um valor superior à vida. É contraproducente na economia do indivíduo, viver só em função de limitadas realizações terrenas, imersos na biologia animal, na estupidez de uma luta de todos contra todos, para matar e ser morto. A ciência deve entrar na vida para dirigi-la com inteligência; nos nossos pensamentos e ações devemos mover-nos orientados pelo conhecimento. Religião e ciência devem cooperar para atingir, por caminhos diferentes, este conhecimento, de maneira que ilumine a nossa existência, porque nas trevas da ignorância não sabemos e não queremos mais viver. O mundo tem necessidade de uma visão global orientadora, que satisfaça sua sede de saber e a sua necessidade de sábias diretivas que lhe inspirem confiança. Se religião e ciência não se aliarem para alcançar tal visão, tudo se afundará em nós, porque com uma ansiedade de adultos mais exigentes no saber do que as crianças, para nós as trevas são muito mais insuportáveis do que foram nos séculos passados, nos quais a falta de maturidade permitia que fosse possível viver num estado de ignorância, inconscientemente tranqüilos.
Os conceitos acima expostos permitem-nos trazer o ideal e a espiritualidade ao seio da ciência com os seus critérios positivos, porque a estes valores superiores se deu um significado biológico, isto é, de um plano de existência mais avançado, que o ser terá de alcançar por lei de evolução, o que é cientificamente lógico e aceitável. Assim se explica racionalmente a função biológica das religiões, da ética, do direito, das diversas instituições sociais etc., o porquê de tudo existir em relação aos fins que a evolução da vida com tais meios quer atingir. Tudo portanto é biologia; cada manifestação da vida individual e social representa uma posição ao longo do caminho do progresso evolutivo; tudo se entende e está enquadrado em função das leis da vida e portanto se resolve antes de mais nada com critérios biológicos. Esta realista concepção biológica explica-nos a conduta humana em muitos de seus aspectos, além das preconcebidas abstrações filosóficas e teológicas.
Esta será uma psicanálise da humanidade para eliminar seus complexos atávicos, assimilados no duro passado mas que agora em diante constituem defeitos antivitais, como o instinto bélico, a ganância, o espírito de domínio, a estupidez do orgulho, a insaciabilidade do gozo etc. Compreender finalmente como a vida verdadeiramente funciona, sem hipocrisias e ilusões, é tentar inteligentemente não incorrer mais, por inconsciência, em muitos erros loucos que depois é necessário pagar duramente, e será ao mesmo tempo uma purificação de pecados herdados do passado e uma retificação psicológica para não cometê-los mais no futuro. Para isto, por exemplo, concorrerão, sem estarem separados e inimigos, o confessor de um lado e o psicanalista do outro mas um confessor perito inclusive em psicanálise e um psicanalista que possua uma consciência ética, da espiritualidade, da filosofia e das religiões, de modo que possa ser, além de médico da psique, também dirigente de consciências. Quando tivermos sinceramente analisado e compreendido o que nas religiões se tornou emborcamento do ideal ao serviço da animalidade, muito mal poderá ser superado eliminado.
Quando se compreender o significado do método da fé, usado pelas religiões, os racionalistas da ciência não poderão mais condená-lo. A fé tem potência criadora, portanto no mundo espiritual existem as coisas que acreditamos. A fé abre, em direção a mundos superiores, as portas da alma, e tem assim o poder de fazer-nos sentir aquilo que de outro modo ficaria escondido no ultra-sensível. Quando o homem para evoluir deve resolver o problema da conquista de um futuro para ele desconhecido, porque super-normal, e que lhe é apresentado só no estado nebuloso de ideal que ainda é necessário concretizar em formas que fixem na Terra à vida humana, não há outro sistema, se se quer avançar, senão o de antecipar a existência real daquele ideal fazendo-o aparecer na mente com imagens que o representem. E com a sua repetição o fixem, e que paralelamente o conduzam a manifestações exteriores que o expressem. Ora, este é o método praticado pelas religiões para a descida do ideal na Terra: por lenta assimilação consuetudinária, não apenas por via interior e exterior, mas por via mental, e material. Uma convergência de fé e práticas que se alimentam alternativamente, de maneira a levar o indivíduo a realizar o ideal em si mesmo como qualidade própria, construindo assim a sua individualidade sempre completa e perfeita.
Podemos descobrir nas religiões uma sapiente técnica construtiva de formas mentais superiores, de tal modo que acabam por fixar-se definitivamente na vida, levando-a um passo adiante no caminho da evolução, que tínhamos visto ser, de agora para diante, um processo de espiritualização. Por longa experiência, as religiões tentaram aperfeiçoar esta sua técnica de modo que esta possa continuar a funcionar, mesmo quando os instrumentos humanos dos quais ela dispõe para a administração do culto sejam elementos imaturos, incapazes de compreender qualquer ideal. Isto prova que na prática, mesmo o ideal, se quer descer à Terra deve ter em conta a realidade biológica, isto é, o material humano no estágio em que se encontra.
Voltando com um exemplo ao tema da fé e à sua potência criadora, eis que quando acreditamos firmemente que as palavras do sacerdote, ao consagrar a hóstia, nela fazem descer o espírito de Cristo que assim a transforma, mesmo se quimicamente se provar que não houve nenhuma transubstanciação, vemos que a nossa fé criou um fato positivo que realmente existe e que a nossa representação mental do Cristo está bem localizada naquela hóstia, como uma presença real Dele. Ora, no plano mental, para quem creia, basta isto, para que exista de fato o Cristo naquele lugar. É uma existência subjetiva, mas quando ela é multiplicada por um grande número de pessoas, torna-se uma existência objetiva, baseada sobre um íntimo testemunho coletivo. Aqui nos avizinhamos deste problema com a psicologia positiva da ciência. A presença objetiva de Cristo espacialmente localizado num suporte material seu é outra questão, e aqui não a entramos. Mas é certo que a realidade objetiva absoluta não existe nem na ciência, mesmo que na observação interfira a presença do observador.
Quisemos observar os métodos das religiões. Eles procuram ser até hoje um meio de educação, um instrumento de evolução. Amanhã, se elas souberem atualizar-se com o progresso do pensamento humano expresso pela ciência, inclusive no terreno delas, poderão constituir no seio da ciência um elemento indispensável da biologia do espírito.
Encontramos em Teilhard um outro conceito importante. Ele sustenta a existência de um ponto Ômega, em direção ao qual todo o universo tende a evoluir. Mas este conceito implica num outro, que Teilhard não poderia deixar entrever, isto é, que este ponto Ômega é também o ponto Alfa, o que quer dizer que o ponto de chegada do transformismo deve coincidir com o seu ponto de partida. Teilhard não focou a sua intuição sobre este conceito, mas o viu, apesar de longe. Uma vez descoberto pela ciência o fenômeno da evolução, ela não pode deixar de ter de admitir também o fenômeno oposto, que é o da involução. O processo não pode ser apenas unilateral, somente evolutivo, sem conter, para ser completo e equilibrado, também a sua parte inversa e complementar, isto é, junto ao período evolutivo o correspondente período involutivo. Eis-nos aqui perante a teoria da queda que voltamos a encontrar nas religiões e nas suas revelações. Esta é a teoria do S e AS, por nós sustentada e detalhadamente explicada, que forma o esqueleto do processo transformístico do universo. Teilhard não chegou a declarar explicitamente que esta é a linha máxima do transformismo do ser, mas é com esta concepção que cada palavra sua concorda. É em direção a ela que, como guiado por um pressentimento, se orienta, ainda que ele não a expresse a presume. Ele não podia deixar de pressentir esta verdade porque ela está escrita na lógica dos fatos, para que quem saiba ler no seu íntimo significado, a veja.
Há, porém, o fato de que Teilhard vê o ponto Ômega alcançável somente através do Catolicismo. Entretanto àquele ponto convergem não apenas todas as religiões; ele é também o ponto de convergência da evolução de todas as formas da existência, mesmo aquelas para nós inimagináveis, não redutíveis aos limites das nossas concepções terrestres e muito menos às de uma religião particular. Nisto Teilhard deve ter obedecido à necessidade, que lhe foi imposta pela sua posição social, de não se afastar nas suas investigações filosóficas, de certas conclusões pré-fabricadas. Trata-se de antropomorfismo de tipo bíblico, aos quais não se pode reduzir a vastidão das concepções cósmicas hoje atingidas. Tal posição então não é científica. Não se pode limitar a Deus monopolizá-lo em exclusividade fechando-o dentro de uma religião particular. Era possível chegar a tal redução com o Deus antropomórfico do passado, mas já não o é mais hoje com o Deus de dimensões cósmicas que a ciência nos faz entrever.
É no entanto possível biologicamente explicar-nos a razão deste caso, referindo-se ao conceito acima afirmado, isto é, que possamos entender a conduta humana reportando-nos às leis biológicas, que dirigem o homem, mesmo sem que ele saiba. Ele obedece porque elas constituem a sua natureza, definem o seu biótipo, são as leis do seu plano de vida. E como nos referimos, o homem não pode fugir a elas senão evoluindo para um nível evolutivo superior. Ora, a lei do nível humano atual é o egocentrismo. O homem daquele tipo concebe a existência em forma egocêntrica, isto é, em função do próprio eu ou do grupo do qual este forma parte. É que o homem tende a reduzir tudo a si próprio, tudo concebendo antropoformicamente em função de si próprio e do seu grupo. É assim que podemos explicar como uma religião tende a reduzir e fechar nos seus limites o ponto Ômega, para aprisioná-lo no seu próprio egocentrismo, fazendo-se centro do universo. Podemos explicar-nos esta forma mental e como esta necessidade foi imposta a Teilhard pelo grupo sob pena dele ser expulso. A isto se deve o fato de que teve de impor semelhantes premissas às suas investigações filosóficas.
E Teilhard foi obediente. Quem sabe mais é também mais razoável e está por cima do mundo e dos seus juízos. Ele chamava ao seu caso: “o cisma entre a metade do mundo que se move e a outra metade que não quer avançar”. Teilhard era uma antecipação do futuro e queria andar a frente. O grupo é feito para permanecer na Terra nas posições conquistadas, gozando dos seus frutos sem trabalho e sem perigos e, mesmo quando maneja o ideal, o faz sobretudo em função da Terra que é o seu mundo. Sucede que muitos foram condenados nas mesmas condições de Teilhard, mas cada um segundo sua conduta revelou sua natureza: o involuído, que vive no nível do egocentrismo, revolta-se e separa-se do grupo para declarar-lhe guerra, instalado no seio de um grupo inimigo; o evoluído, que vive no nível espiritual, obedece, permanece no seu posto de dever, fiel aos seus próprios compromissos, mas não abandona a sua idéia, antes pelo contrário, continua a vivê-la mais intensamente porque o espírito não pode ser coagido, esconde-a dentro de si, compensando-se desse modo de não poder comunicá-la aos outros que não compreendem. Quando é necessário, deve-se respeitar a vontade do próximo de permanecer ignorância. Quem tem uma vida interior sabe viver ainda que seja apenas interiormente (e que vida!), mesmo quando se lhe negue manifestar-se exteriormente. Quando não é possível realizar o trabalho de fazer evoluir os outros, realiza-se o trabalho de evoluir a si próprio. Dizia Teilhard numa carta ao Geral dos Jesuítas: “Não posso renunciar a mim mesmo. Mas já não me ocupo de propagar as minhas idéias, senão de aprofundá-las pessoalmente”.
Deste modo permanece nele intacta a sua concepção e convicção. De semelhantes visões profundamente sentidas, fruto de raciocínio e intuição, nasce uma segurança que ninguém pode perturbar. Além disso, a compreensão no silêncio aumenta a convicção, porque o silêncio nos induz a expandir-nos em profundidade em vez de em superfície e então a visão se torna mais clara e se potencializa. Também aqui funciona as leis que, embora situadas no campo psicológico e espiritual, são sempre leis biológicas das quais não se pode prescindir nestes casos. Mas quem atua segundo os sistemas humanos comuns, não pensa em tais leis e não leva em conta as reações derivadas delas. A compreensão aumenta a reação, e quando esta não pode desabafar-se para o exterior, porque lhe está impedido ou porque o indivíduo é um evoluído que recusa as revoltas terrenas, então a reação se desabafa em direção ao interior, exaltando o tom da vida espiritual, potencializando-a a tal ponto que, por si só, constituirá toda a vida do indivíduo. Aproveita-se então a derrota exterior, terrena, para realizar por si próprio um progresso interior profundo, vivendo a sua própria existência num plano evolutivo mais elevado, substituindo a compreensão material e a derrota terrena por uma expansão espiritual e uma vitória sobre o mundo. Isto é o que significa a obediência de Teilhard de Chardin.
A vida é evolução, que é conquista e que como tal implica luta e esforço contínuo. Onde o homem de tipo corrente se compraz em desperdiçar as suas energias em atritos recíprocos, até chegar às destruições bélicas entre os povos, o homem evoluído transporta este espírito de luta e esforço conquistador a um terreno biologicamente mais avançado e mais intensamente criador. Ele é o maior guerreiro, mas como evoluído em forma pacífica, é o maior revolucionário. Revolucionário do pensamento. E a paz mundial é o ponto aonde a evolução deveria levar o homem, porque ela se encontra no caminho dele, em favor da sua conservação e sobrevivência, objetivo da sua vida. Semelhante paz não será, entretanto, inércia, suspensão da luta e esforço, mas sim a sua continuação , para fins superiores, a fim de que a vida, como é lei, não se detenha nunca no seu trabalho de conquista e ascensão. A isto nos querem levar as leis da vida. Neste sentido, que revelou a sua natureza, Teilhard trabalhou para a sua elevação e para a elevação do mundo.
Esta idéia mesma, que é a evolução, foi combatida a princípio pelo cristianismo. No entanto ela deveria encher-nos de esperança e entusiasmo porque contém a promessa de um grande futuro. Só ela bastaria para dar-nos a coragem de enfrentar a vida com todas as suas lutas, perigos e dores, porque tudo isso leva a uma superação que, pelo seu valor e posição, representa uma melhoria que nos recompensará. No seu progresso parece que a vida vai tateando no escuro; tenta e muitas vezes falha, e tenta novamente, mas no fim a vitória é sua. Provam-no as posições superiores que conseguiu conquistar. Estas tentativas seriam verdadeiramente cegas, ou antes estariam intimamente iluminadas por uma luz que as dirige? Esta luz não aparece porque está escondida, sepultada nas profundidades do inconsciente que parece treva, mas que é luz, apesar de envolvida na obscuridade, luz que luta, para libertar-se desta obscuridade, para tornar a encontrar-se resplandecente em sua pureza, como para redimir-se da sua culpável destruição nas trevas da ignorância. Não é este o grande drama do ser? As religiões captaram este ponto central. Ninguém é mais evolucionista do que elas, mesmo quando negavam a evolução. Ninguém pode cancelar esta lei de ascensão, porque ela se encontra inscrita na vida e funciona sem que ninguém a possa deter, independente de todos, por cima de todos os juízos humanos.
Não há forma de existência que não esteja enquadrada ao longo do caminho desta grande marcha evolutiva do universo. O homem chegou finalmente ao ponto de dar-se conta deste fenômeno e pergunta: onde nos levará amanhã este imenso movimento? Geologia e Paleontologia mostram-nos o caminho percorrido. Cada minuto que passa fatalmente o continua. Não existe ser algum que não forme parte dele, todos dentro dele vivemos canalizados, e cada um a seu modo não pode deixar de segui-lo. Os mais atrasados buscam riquezas, honras, poderes e os mais evoluídos lançam-se a conquistas de outro tipo. Os cientista estudam a natureza para compreender o seus segredos. Os grandes navegantes descobriram novos continentes. Agora pretende-se alcançar o mundo planetário. De mil maneiras, situados em alturas diversa, intimamente, todos querem subir, de modo que a vontade de viver é na realidade vontade de evoluir. Elevar-se é a razão e verdadeiro conteúdo da vida. Para isso existimos.
A nossa humanidade está entrando agora na fase psíquica. Antigamente, pouquíssimos pensavam e esses dirigiam os povos como se fossem rebanhos de ovelhas. Hoje, todos começam a pensar um pouco. Descobrem-se valores e dimensões novas, pensa-se de maneira diferente da dos nossos antepassados. Ainda que sejamos egoístas e inimigos, vemo-nos obrigados a viver e pensar cada vez mais coletivamente, organicamente unidos. Forma-se assim uma enorme massa de vida e pensamento que envolve e domina todo o planeta. O homem se apropriará dos segredos e forças da natureza. É em direção a uma imensa vitória e potência de pensamento que se quer orientar o caminho da vida. A maior descoberta do século é o de haver entendido o imenso trabalho de descobrimento que é necessário fazer ainda.
No princípio tudo isto não foi mais que um confuso conjunto de esforços obscuros, mas trágicos, da vida para subir e do pensamento para reencontrar-se e manifestar-se cada vez mais conscientemente. Tudo feito às cegas, sem se saber porque e para onde, por um irresistível instinto, como o de um cego que ainda não vê, mas sente que a luz existe e a procura. Quem deu à vida este anseio de progresso, esta ânsia de evoluir, de expandir-se, de firmar-se contra tudo e contra todos os elementos desencadeados, contra os animais ferozes, o terror do mistério, as trevas da ignorância? No entanto, apesar de tantas dificuldades, esse impulso soube levar a vida até aqui, até ao homem, no qual começa a brilhar a luz do pensamento. Como podia surgir este “mais” por evolução do “menos” que o precede, se este “menos” não houvesse contido alguma vez este “mais”, assim como em uma semente escondida, não estivesse contida a planta a ser restituída à luz? E eis a maravilha. A evolução, pelo aperfeiçoamento das formas físicas, faz emergir uma qualidade nova do ser, entrando numa sua fase superior, a fase do pensamento, para onde está dirigida e onde nos levará? Assim como os primeiros selvagens do planeta não podiam imaginar a que chegaria o homem com a evolução até hoje, também não podemos imaginar hoje, até onde nos levará um dia a evolução. Perante tais perspectivas vale a pena verdadeiramente viver.
O estudo do homem pré-histórico ensinou muito a Teilhard e ele nos conta a visão que o impressionou. A partir daí encontramos os principais pontos de contato entre a Obra e o pensamento de Teilhard de Chardin.
A crise do mundo moderno é no fundo uma crise de pensamento, devida a uma sensação de vazio resultante da derrocada das velhas metafísicas, operada pela ciência. Elas, dada as formas mental do seu tempo, bastavam então para dar uma resposta às grandes incógnitas, e para deduzir uma ética suficiente para dirigir a vida. Essas construções, ainda que não estivessem comprovadas cientificamente e não respondessem à realidade, mesmo quando deixaram o mistério em pé, confortavam e civilizavam induzindo ao bem, prometendo aos bons o apoio de Deus; com a perspectiva de um prêmio ou de uma pena, apoiando-se no instinto utilitário da vida, educavam num princípio de justiça, impondo, segundo ele, determinadas normas de conduta, ao mesmo tempo que satisfaziam as necessidades psicológicas das massas, tirando-lhes o medo ao desconhecido, o medo do fim, do nada, assegurando a tão desejada continuação, e dando uma meta à vida. As religiões cumpriam uma função de proteção e de progresso, biologicamente suficiente para justificar a sua presença em nosso plano evolutivo.
A ciência hoje destruiu estas velhas construções metafísicas sem saber substituí-las por outras que possam representá-las nesta sua função, deixando deste modo o mundo com muitos problemas sem solução. Teilhard quis satisfazer esta necessidade humana de ter uma resposta a essas interrogações, uma satisfação às próprias exigências psicológicas, não se baseando já em sistemas, conceitos e terminologias tradicionais, mas sim na ciência. Fez então o que os homens de ciência não ousam, quer dizer, levou-a até as suas conseqüências metafísicas e espirituais, até ao campo das religiões, conseguindo satisfazer assim essas necessidades psicológicas, mas com a vantagem de oferecer uma resposta menos empírica e mais positiva, produto da lógica e dos fatos e portanto mais aceitável no mundo moderno porque é mais convincente. Este é o único trabalho que se podia fazer atualmente, no estado atual de desenvolvimento do pensamento humano; o que paralelamente temos tratado de fazer. Hoje a obra de Teilhard conforta-nos mostrando-nos quanto é necessário chegar a uma ciência mais completa e a uma religião mais demonstrada.
Assim a ciência se torna metafísica e a metafísica se torna científica. As conexões entre os elementos do plano físico encontram correspondência com as que existem entre os elementos do plano espiritual. Entre os diferentes níveis de existência há uma ressonância dos mesmos princípios. Damo-nos conta de que nos encontramos num universo em que os fenômenos estão orientados em direção a um fim, fundidos num funcionamento orgânico unitário, iluminados por um pensamento interior, que nos mostra o significado e a razão de ser. Teilhard intuiu, como nós, a presença de planos biológicos diferentes, com suas leis cada uma relativa a cada um deles; em cada um essas leis dirigem o funcionamento do ser. Nos diferentes níveis estas leis correspondem umas às outras; são encontradas harmonicamente coordenadas, conectadas, analógicas, e no fim nos revelam fundidas no seio de uma lei universal única que representa o pensamento de Deus. A visão é unitária, orientando e compreendendo tudo dentro de si.
Esta visão que tudo abarca, desde o caminho divergente e o fracionamento na análise, nos conduz por um caminho convergente em direção à síntese. É assim que, como também para Teilhard, nos foi possível sair do isolamento dos especializados num só problema, para enfrentar em conjunto, o social, religioso, econômico, psicológico, científico etc., porque desde a orientação nas linhas gerais, éramos guiados a descer em cada campo, o que não seria possível se não se obtivesse primeiro uma visão global do todo. Assim é possível estudar o homem, não fracionado em compartimentos separados, mas no conjunto do seu ser físico-psíquico, na sua realidade integral, isto é, como ele é verdadeiramente, mas abstratamente dividido em compartimentos, abstração útil a fim de se efetuarem estudos, mas que não corresponde à realidade. Assim medicina e moral protegem-se e completam-se nos aspectos fisiológicos, religiosos, econômicos, sociais, metafísicos etc., integram-se alternativamente, terminam unindo-se num só funcionamento coletivo, fundamentalmente unitário. Como unitária é a visão do homem integral, a que se chega, visto na sua totalidade, concebido como uma síntese.
Uma ciência que se faz metafísica e uma metafísica que se faz ciência, podem satisfazer de um modo mais completo o instinto religioso do homem. Este instinto tem a sua função biológica porque representa um impulso para o super-normal que nos espera no futuro, porque enquanto expressa uma tendência a realizá-lo, constitui uma antecipação da evolução, de um estado que ainda não se realizou mas já existente na sua fase preparatória de aspiração e do ideal, e em vias de concretizar-se para fixar-se na mente, nos costumes e instituições humanas. começa-se por um desejo, por uma necessidade indefinida, e termina-se com a codificação para logo continuar com o mesmo processo, cada vez mais avançado. Assim a humanidade acaba por modelar-se sobre o ideal, seguindo e realizando visões cada vez mais elevadas.
Este instinto, querido pelas leis da vida para evoluir, existiu sempre, mas é natural que, com o progresso, exija uma satisfação cada vez mais aperfeiçoada. Em suas fases primitivas o homem não podia adorar senão um Deus feito à sua imagem e semelhança, porque não sabia conceber algo melhor. Atualmente o Deus cósmico, que a ciência nos deixa entrever, já não cabe dentro das velhas concepções religiosas. As nossas idéias evoluem intimamente relacionadas ao progresso da nossa capacidade de concepção. A religião de amanhã se unirá à ciência e deverá se basear em postulados racionalmente demonstrados se quiser ser aceita.
Antigamente essa necessidade não existia, porque não existia a ciência nem a respectiva forma mental moderna. Bastava a tradição, bastava um vasto acordo de aceitação, sobre determinadas soluções, para que o instinto religioso ficasse satisfeito. A crença se baseava na confiança. Bastava que tal filósofo ou teólogo o dissesse para que fosse aceito como verdade. A humanidade ainda infantil contentava-se com verdades já feitas, confeccionadas, prontas para uso, sem direito de análise, já que, não se sabendo fazê-las, tão pouco se sabia e queria pensar, preferindo-se delegar as faculdades do pensamento aos dirigentes. A vida funcionava então fora das dimensões do pensamento, que representava a barreira, ante a qual se detinha a maioria. Gozar, roubar, matar-se uns aos outros, eram as ocupações preferidas, para quais o homem se sentia melhor equipado. A forma mental era simples, as necessidades psicológicas limitadas. Para iluminar o mundo eram suficientes as intuições de poucos homens geniais. O rebanho, só para não ter de pensar muito, seguia, satisfeito, também porque as religiões lhe ofereciam concepções antropomórficas fáceis de entender e que correspondiam aos seus gostos. As massas e os dirigentes, como eram do mesmo nível evolutivo, estavam de acordo, e este consentimento, universal porque era produto do mesmo biótipo, era suficiente para fazer a verdade. Com relação ao desenvolvimento da vida naquele momento, tudo ia bem. Mas uma vez que esta avançou, aqueles problemas e necessidades avançaram também a exigirem soluções e satisfações que o passado já não saberia mais dar. Uma vez suprimido o consenso coletivo, base do valor da tradição, cai também aquela base sobre a qual se apoiavam as religiões. Deste modo elas se arriscam a permanecer na Terra só para uso dos primitivos ainda sobreviventes, mas sem seguidores cultos e convencidos, ou seja, fora da vida, como ruínas mortas do passado.
Eis o valor das metafísicas de tipo científico que Teilhard e a nossa Obra anunciam e preparam. Sobre elas terão que basear-se as religiões porque agora essas metafísicas são as únicas que podem satisfazer as novas necessidades psicológicas da humanidade. O instrumento religioso permanece, mas agora aperfeiçoado, já não pode aceitar as verdades empíricas que antes o saciavam. Para os novos estômagos é necessário alimentos diferente. O instinto religioso é um impulso em direção ao alto, tendente ao S, ponto Ômega, e por isso subsiste em todos os planos de evolução, ainda que, em conformidade com eles, de forma, exigências e perfeição. E tal instinto subsistirá até que se sacie completamente, ao alcançar a meta do caminho evolutivo, que é Deus. O instinto religioso responde a um princípio biológico, e existe em função da evolução. Assim se explica Teilhard no momento atual, e podemos compreender a importância biológica de sua obra e das do seu tipo, importância esta devida à sua função evolutiva no seio das leis da vida.
Os seguros e tranqüilos repetidores das coisas velhas, se bem que mais perfeitos na técnica e exatos na forma, não conhecem o trabalho dos criadores do novo, a dificuldade de expressá-lo com propriedade nos velhos termos feitos para outros conceitos e de fazer-se entender por quem sustenta que tudo foi já pensado, dito e resolvido, e que nada se pode acrescentar. Entre o velho e o novo é sempre difícil entender-se. Trata-se de duas funções necessárias, mas situadas em posições contrárias. Muitos chamam de fidelidade à verdade, a incapacidade do velho de sair da estrutura e categorias segundo as quais foi construída a sua forma mental na juventude. Chamam fé o seu medo de mover-se, de aventurar-se no abismo do mistério, e assim quereriam deter o tempo e a evolução.
Mas junto a estes existem também os dinâmicos, ardentes conquistadores de novos conhecimentos, ansiosos sempre de saber, descobrir, progredir. Trata-se de dois modos diferentes de conceber. Colocados perante o problema do conhecimento, comportam-se de forma oposta. Assim, quanto mais ignorante é o indivíduo, mas crê saber tudo, possuir toda a verdade, e tanto menos tem curiosidade por conhecer mais do que sabe. Perante o conhecimento fecha as portas, como contra um inimigo. Pelo contrário, quanto mais sabe um indivíduo, mais tem consciência se saber pouco, de não possuir toda a verdade, e mais curiosidade sente por conhecer mais do que sabe. Deste modo o primeiro, porque gravita em direção ao AS, resiste o impulso da evolução ao S; enquanto o segundo, porque gravita em direção ao S, acompanha este impulso e assim sobe em direção à luz. Colocá-los em contato significa opor o positivo ao negativo, pôr frente a frente dois pensamentos opostos, cada um deles não pode fazer outra coisa senão continuar sendo aquilo que é, repetindo o que, dado o seu modo de conceber as coisas, para ele é a verdade. Um dos dois tipos a entende como um grande impulso para a frente, enquanto o outro, como uma zelosa conservação do passado. A forma dinâmica quereria anular a estática; e a estática a dinâmica.
É necessário admitir que existem cérebros diferentes que pensam de maneira diferente, cada um capaz de funcionar só no âmbito da sua forma mental e incapaz de entender a linguagem de outras psicologias que se movem em função de outros pontos de referência. Pode então suceder: o que para um constitui uma grande verdade, para outro é um falar sem sentido. Destes dois raciocínios diferentes, cada um aprendeu, possui, e por isso gosta de repetir o seu, com ele medindo e julgando tudo. Quando dois interlocutores discutem, é porque falam duas linguagens diferentes e não se compreendem. Isto é o que sucede entre ciência e fé. Cada uma delas fala a sua língua, que a outra não compreende porque fala outra, isto é, pensa com outra forma mental. Para entender as duas, seria necessário conhecer as duas línguas, possuir as duas estruturas psicológicas, então se compreende que os dois pensamentos não são inimigos, senão complementares. Mas eles permanecem inimigos, porque cada um conhece só o seu idioma e não o do outro. Teilhard conhecia os dois e das duas verdades tratou de fazer uma só. Mas os seus leitores e juizes continuaram entendendo apenas uma e portanto condenando-o ou exaltando-o segundo o seu próprio idioma, que podiam dele assimilar. Assim cada um, segundo as suas categorias mentais e os seus quadros psicológicos, se escandalizou ou se entusiasmou, conforme as verdades que formavam o patrimônio mental de cada juiz. Podemos deste modo explicar-nos a adversidade dos juízos com respeito à Teilhard e, não obstante a grande importância da sua Obra e a das do seu tipo, como tarda tanto no mundo o seu reconhecimento e aceitação.
V
A EVOLUÇÃO DAS RELIGIÕES
Antigamente as diretivas da vida humana apoiavam-se sobre verdades absolutas, imóveis, o que correspondia a concepção estática de uma Terra que não se movia, centro do universo. Hoje, a humanidade atingiu uma forma mental dinâmica, que corresponde a concepção de uma Terra em movimento, dentro do movimento do universo, o que levou a idéia de um outro tipo de verdade, isto é, relativa, progressiva, e em constante evolução. Tudo então é concebido como um vir-a-ser. Mesmo a existência consiste num transformismo que não se pode deter, como não se pode deter a existência. É verdade que esta existência se realiza e se manifesta através de uma forma que a define e a fixa, mas esta todavia vai sempre mudando, de modo que ela permanece só por um período determinado, isto é, limitada no espaço de um dado segmento ao longo da trajetória do tempo, esgotado o qual, aquela forma desaparece, depois de se ter desfeito para aparecer sob outra forma. Ela é, portanto, apenas temporária, continuamente sujeira a desaparecer e a reconstruir-se. Eis que a existência de todas as coisas em nosso universo está encerrada dentro da lei do tempo que jamais deixa de marcar o ritmo do seu fatal transformismo, necessário para a renovação contínua, indispensável para que se possa realizar a evolução. Portanto, se bem que nós nos agarremos às formas tendo a ilusão de que é possível detê-las para fazer permanecer tais quais são, na realidade a experiência também nos ensina que as coisas não são como as vemos existir, delas existindo apenas a sua duração, a sua trajetória no tempo, que, como um relógio, marca o passo do seu incessante transformismo.
A mente humana abandonou hoje a idéia do absoluto imóvel para colocar-se no relativo em movimento, porque por amadurecimento evolutivo se deu conta que esta é a realidade da vida. Este fato deslocou as velhas bases das religiões fundadas noutros conceitos. Entretanto elas mantêm-se com a velha forma mental, resistindo assim às novas tendências. Daí nasce um contraste entre as duas concepções e exigências opostas, dificilmente conciliáveis, pelo menos até que a evolução não tenha terminado de atravessar a presente fase de transição. As massas foram educadas segundo a primeira forma mental que registrou e assimilou este modo de conceber, o que não é fácil de mudar rapidamente porque as idéias têm uma vontade própria que, uma vez lançada numa direção determinada, tende por inércia a continuar nela. As mentes, para terem uma sensação de segurança e não se equivocarem, na formação da própria conduta, tem necessidade de crer que alcançaram a última verdade, absoluta, imóvel, porque parece que só uma tal verdade possa garantir uma segurança na qual se confie totalmente. De outro modo seria querer basear a ética apenas em princípios relativos, flutuantes, portanto discutíveis. Para merecer obediência se necessita de uma verdade imóvel, dogmaticamente fixada, absolutamente segura e definitiva nas suas afirmações. Uma verdade que muda e se contradiz não é mais verdade; ela deve ser sempre verdadeira e não hoje sim e amanhã não, próprio da psicologia humana. A verdade deve ser infalível comando de Deus que já sabe tudo, e não uma progressiva aproximação humana daquela verdade.
Sucedeu no entanto que a mente, ao evoluir, começou a perceber que as coisas estão diversamente situadas, isto é, que o ser humano não possui absolutos e que de fato não sabe atingir senão progressivamente uma sucessão de valores relativos, que, por evolução, o aproximam cada vez mais do absoluto, o qual no entanto é somente o ponto final desta ascese e hoje bem longe de ser alcançado. E dele estão ainda bem longe também as religiões que, por representarem um pensamento sobre-humano, deveriam saber tudo. Elas estão ainda cheias de mistérios, de pontos não definidos, por definir, de problemas não resolvidos, ainda por resolver, e que vão se resolvendo pela intervenção de mentes laicas ou pelo amadurecimento do pensamento humano, conforme o princípio acima mencionado das verdades relativas e progressivas, sucessivas aproximações de um absoluto longínquo ainda para o concebível humano.
É assim que nos encontramos diante do contraste entre duas exigências opostas que se trata em vão de conciliar. Aí está o fato de que o conhecimento absoluto, total, capaz de oferecer uma solução definitiva, as religiões que não o possuem. Se o possuíssem não haveria mais mistérios, pontos discutíveis, diversas interpretações da verdade, perspectivas particulares a cada um, visões antagônicas condenando-se uma às outras, e pensamento religioso estaria à frente em vez de freqüentemente ter de ser arrastado pelo processo laico da ciência. As religiões esperam e aceitam grande parte da verdade, proveniente da evolução da mente humana que progressivamente vai, por sua conta, conquistando e oferecendo explicações cada vez mais completas. Tanto isto é verdade que hoje as religiões não estão à testa do progresso do pensamento humano e a ciência acabou por seguir adiante sozinha, deixando-as de lado, prescindindo delas como se não existissem. É uma simples constatação do fato.
Ora, o não possuírem o conhecimento não elimina para as religiões a necessidade de afirmar que o possuem. Devem sustentar que atingiram a verdade, enquanto apenas seguem o caminho geral das progressivas aproximações a ela, que aparecem pelo amadurecimento evolutivo das faculdades mentais humanas. As religiões se encontram nas condições de, apesar de tudo, terem de caminhar, porque não se pode existir senão caminhando, mas ao mesmo tempo crendo e fazendo crer que estão imóveis. De um lado elas não podem mostrar que se transformaram, para não cair em contradição com os seus princípios absolutos e eternos. Mas por outro lado não podem deter o fluir do tempo que tudo arrasta e transforma, portanto a elas também que não podem escapar às leis da existência. É assim que, se não querem ficar para trás em posições atrasadas, apesar de se declararem imóveis, têm de se transformar como todas as outras manifestações da vida, seguindo a grande marcha da evolução a que nenhum ser pode subtrair-se.
De tal contraste entre inovadores e conservadores resulta o fato de que as religiões tendem, não a favorecer o progresso do pensamento, mas antes, pelo contrário, a travar o seu desenvolvimento. E assim o pensamento tem de avançar por si só, com o seu próprio esforço, arrastando consigo o peso morto de quem resiste para não se mover e impedir os outros de avançar, pronto, no entanto, a aceitar as novas verdades quando isso seja conveniente. As velhas verdades são defendidas porque na Terra os princípios servem de base a posições que ninguém está disposto a abandonar. A resistência é devida a razões práticas. Foi sobretudo por esta razão que o Sinédrio se opôs a Cristo. Sustenta-se uma verdade quando ela é útil à vida, e ela na sua economia assim exige. Mas a procura do novo conhecimento para aprofundar a verdade é coisa que interessa só a pouquíssimos antecipadores da evolução, tomados por uma ardente curiosidade de saber, ultrapassando as massas, as quais permanecem alheias a tudo isto.
Falamos em termos gerais, com conceitos biológicos, isto é, expondo as leis da vida que são as mesmas para todos. Tudo quanto é manifestação humana está nelas incluído, portanto, também as religiões. É inútil então distinguir entre uma e outra. O homem é o mesmo e faz as mesmas coisas em todas as religiões. Muda só a forma, as palavras , o estilo. Trata-se de leis biológicas que funcionam para todos os seres situados no nível evolutivo no qual se encontra a raça humana na sua média. Por exemplo, a base mais forte de uma amizade, é a presença de um inimigo comum. A fraternidade entre os seguidores de um grupo nasce e se reforça com o condenar os de outro grupo. Estas são as leis biológicas que vemos aplicadas por toda parte. Passar de uma religião para outra não suprime o espírito sectário que é qualidade humana.
Mas há ainda uma outra razão pela qual as religiões tendem a ficar paradas nas suas posições do passado. Não é só a preguiça de pensar, ou medo de que, tocando-o, se desmorone o velho edifício dos princípios sobre os quais se baseiam as posições materiais. A função das religiões não é somente a de afirmar princípios, mas também a função prática de dirigir as consciências, de educar as massas. E estas têm as suas exigências psicológicas – e de como são lentos para compreender-se e mover-se – as conservam tenazmente. E é ao nível destas massas, adaptando-se às suas necessidades, que as religiões devem descer se querem funcionar, porque aquele é o material que têm de elaborar.
Ora, fazer descer àquele nível novidades repentinas, pode ocasionar, em vez de progresso, anarquia e desordem, pretendendo deslocar subitamente os lentos movimento consuetudinários sobre os quais se baseia a técnica da assimilação dos princípios destinados a fabricar o homem que vai substituir o animal. Em vez de fazer progredir, uma inovação pode escandalizar. Pensa-se que Deus não deve nunca mudar de parecer. O fato é que, para que uma verdade seja aceita na Terra, deve esperar que os cérebros amadureçam para compreendê-la e estejam prontos para aceitá-la. A princípio não é admitida. Isto prova que a verdade é relativa e não pode existir senão em função dos cérebros nos quais tem de penetrar. Se as religiões possuem, recebidas por obra de videntes superiores, verdades mais avançadas, a base concreta sobre a qual se apóiam na Terra as verdades religiosas, é o consentimento coletivo; não é apenas uma afirmação teórica, mas sobretudo a sua existência nas mentes; é a aceitação por parte das massas, uma corrente psicológica de fé que introduza aqueles conceitos na vida. Esses de fato são verdadeiros enquanto gozam de tal consentimento, enquanto existe tal aceitação e corrente de pensamento. O paganismo, com seus deuses e templos, existiu como verdade enquanto houve quem acreditou nele. Ele acabou de existir e não foi mais verdade logo que a humanidade deixou de crer.
Por isso quando a crítica destrói a fé sobre a qual as religiões se baseiam, estas rebelam porque sabem que a destruição de tal base psicológica que lhes serve de apoio as mata, matando assim também a casta de ministros que as representam. Se cai a forma mental, cai também a religião que sobre ela se baseia. O suporte é psicológico. Os princípios existem na mente de quem crê, porque e enquanto neles acreditam. Criar uma corrente psicológica diversa, na prática significa destruir tudo. Compreende-se assim, por que o maior trabalho de todas as religiões consiste em lutar para manter de pé a forma mental coletiva que a sustém. Por isso procura-se baseá-las no absoluto, no imutável, no eterno; e também se é levado ao dogmatismo, às afirmações que concluem com a inviolabilidade e a indestrutibilidade, para resistir na luta a todos os assaltos. É problema de sobrevivência. Foi com tais meios, que para seu poderio, o Cristianismo lutou contra o Império na Idade Média.
A substância biológica sobre a qual se elevam as verdades religiosas é justamente este consentimento coletivo, que é também patrimônio humano que custou esforços de milênios para que pudesse ser assimilado e fixado na raça. Ele, portanto, representa um precioso valor biológico que é necessário conservar, mas não para ficar aí dentro estagnado e sim utilizá-lo como base de novos desenvolvimentos. Assim o judaísmo foi precioso para o cristianismo e este será precioso para elevar-se ainda mais.
Tais transformações evolutivas sobrevêm, como em todos os amadurecimentos humanos, através de lentas incubações e terminam por repentinos saltos para diante, que se chamam revoluções. Estas também existem nas religiões porque esta é a forma do progresso evolutivo em todos os campos humanos. Quando chega a hora do salto, a revolução concentra-se à revolta de um chefe. Então há luta. Perante o mundo ele não aparece como um condutor de verdades superiores, o que a bem poucos interessa, mas como agitador de posições adquiridas, o que na Terra é fundamental. Nele se vê, sobretudo um novo pastor que quer expulsar os velhos, para substituí-los na direção e posse do rebanho. Isto é o que de Cristo compreendeu o hebraísmo. O novo que surge, perante as velhas religiões, é sempre um herege, que por isso, em nome de Deus, deve ser destruído.
É assim que as religiões temem a qualquer um que desperte as consciências do sono em que é mais cômodo que estas permaneçam. De resto, às massas não lhe servem verdades novas, conceitos mais avançados, antes adaptam-se a lenta repetição mecânica, secular, feita sem pensar, para orientar-se em direção ao alto, mas cansando-se o menos possível. E as religiões devem servir às massas feitas de almas primitivas que exigem que lhes seja servido um alimento a elas proporcionado. A função dos administradores do ideal é justamente a de servi-lo. Mas acabam por caminhar de acordo porque no fundo pastores e rebanho desejam a mesma coisa, isto é, os primeiros ficarem quietos para não perderem as suas posições terrenas, e as massas para reduzir ao mínimo o esforço de evoluir. É assim que, quando aparece um ser como Cristo, o crucificam. E aquele que quer segui-lo encontra-se perante a muralha da incompreensão humana, a resistência que lhe oferece um lastro imenso a arrastar para a frente.
Este é o jogo que acontece em nosso mundo no atual nível evolutivo. Existem, como dizíamos há pouco, verdades religiosas que constituem um patrimônio precioso. Este foi longamente elaborado e esforçadamente acumulado por obra milenária de sugestão educadora, fixada nas psique das massas, e que hoje representa uma corrente de pensamento coletivo imponente. Tudo isto merece respeito, é um capital biológico que deve ser defendido. Mas também existe o progresso que leva à conquista de idéias novas, que têm de ser fixadas naquela psique. Ainda quando a ciência, avançando, descobre que as velhas verdades estavam equivocadas, estas não se podem destruir de repente, porque elas têm e devem cumprir a sua função biológica no nível e no momento em que nasceram e existem. Destruir somente o velho, nada deixa em seu lugar, e no vazio não se pode viver. É necessário então não destruir de repente todas as coisas velhas, mas sim transformá-las pouco a pouco no novo, de maneira que isto possa substituir-se sem deixar vazios, nos quais não se saberia mais como dirigir-se. Vemos assim que, mesmo deixando de pé a ilusão que o mundo exige, isto é, de possuir verdades absolutas, em realidade vive-se em função de verdades relativas e progressivas, como afirmamos.
Deste modo, ainda que sustentando verdades absolutas pode-se obedecer à exigência de um movimento contínuo em direção ao absoluto por aproximações sucessivas. Claro que o instinto humano de subir leva ao desejo de uma rápida satisfação, antecipando assim a chegada do ponto final da evolução que é o absoluto, dando-o como alcançado. Mas este de fato, está longe. Então é mais verdadeiro, mais condizente com a realidade, permanecer-se positivo, reconhecendo que aquele ponto está longe, mas que no entanto, dele nos avizinhamos cada dia, evoluindo. Portanto há que renovar-se, mas procurando destruir o menos possível, deixando de pé o que de bom e utilizável possa existir no passado. É justo, por lei da vida, que os jovens substituam os velhos, mas não é necessário que os jovens os matem por este motivo. Basta esperar que os velhos morram por si. Assim, quando uma religião, por falta de maturidade coletiva, não está em condições de aceitar novas verdades, não há senão que esperar. Mais tarde ela mesma as procurará, porque se terá apercebido de que aquelas a superaram. Então a religião correrá com medo de não chegar a tempo, para incorporar as novas verdades inicialmente por ela condenadas. De fato é isto que costuma acontecer.
Esta é a técnica da evolução das religiões, a mecânica do contínuo e fatal movimento para avançar de quem diz e crê permanecer imóvel. Isto é que o exemplo de Cristo e de muitos de seus seguidores menores, nos mostra que aconteceu, acontece e poderá acontecer em todas as religiões.
VI
SINAIS DO TEMPO - JEAN PAUL SARTRE
Trata-se de um pequeno caso, adequado no entanto a revelar-nos as condições espirituais de nosso mundo atual. E isto é o que mais interessa observar. O Prêmio Nobel da Literatura de 1964 foi outorgado a Jean-Paul Sartre. Quem era Sartre?
Em primeiro lugar, é absurdo negar a existência de Deus, como o faz Sartre. De uma coisa que verdadeiramente não existe, não se possui sequer a idéia, e quando se nega a existência, é porque essa coisa é conhecida, o que significa que existe. E quanto mais se nega a existência, tanto mais o próprio fato de negá-la prova que ela existe. Mas então, que se quer negar quando se nega a Deus? Pretende-se somente destruir com a própria negação, não a existência de Deus, o que é impossível, porque ela não depende das nossas opiniões, mas destruir a afirmação alheia da sua existência, isto é, a idéia alheia de que Deus existe. Isto não passa de uma guerra entre opostos pensamentos humanos, fato com o qual a existência objetiva de Deus nada tem a ver. Ele assim continua existindo independentemente das afirmações ou negações humanas, que não vão além de quem as expressa, e naturalmente nenhum poder tem sobre a existência de Deus.
A negação de Sartre não tem bases objetivas, não é o resultado positivo das suas observações baseadas nos fatos e de deduções racionais deles extraídas. A sua negação é simplesmente um estado psicológico seu, reação aos duros sofrimentos que encontrou na vida. Arrastado pela segunda guerra mundial, na sua terra invadida, oprimido e isolado, forçado ao silêncio, a uma vida subterrânea, num ambiente inimigo, prisioneiro num campo alemão de concentração, cavou dentro de si, no seu eu, e extraiu essa filosofia desesperada que se chama existencialismo. Os seus romances apresentam uma série de crises emocionais, tristemente vividas por pessoas atormentadas. A sua mais importante obra filosófica é um tratado com cerca de 700 páginas, intitulado: L’être et le Néant[5].
“Diz-me como reages e direi quem és". Golpes na vida há para todos. Cada indivíduo reage diante deles, de forma distinta, e com isso revela a sua verdadeira natureza. Não sendo positiva a sua filosofia, a única coisa que Sartre pode nos oferecer é mostrar-nos seu tipo de reação. Ao expressá-la, atribui a causa a Deus, ao absoluto, à filosofia, ao mundo; em realidade não expressou senão a sua reação pessoal, não fez mais do que revelar-se a si próprio, elevando a sistema filosófico o que era a premissa axiomática, indiscutível, de cada afirmação sua, isto é, a sua forma mental, o seu temperamento, o seu tipo de personalidade e, portanto, de reação. Pode-se afirmar isto porque em iguais condições de opressão e de dor, outros indivíduos, de diferente estrutura mental e moral, reagem de um modo totalmente diverso, fazendo aflorar elementos opostos aos negativos, respondendo, em lugar de uma reação egocêntrica contra Deus, com a afirmação de Sua ordem vitoriosa sobre o mal, reencontrando nessa ordem, em defesa da própria vida, o manancial da própria potência espiritual.
Então, a filosofia de Sartre não é uma filosofia de potência, apoiada em bases positivas, mas de fraqueza porque se apóia sobre base negativa, tal como o egocentrismo do indivíduo que se auto-eleva pretendendo substituir-se por Deus; não é uma filosofia de esperança e salvação, mas de desespero e perdição; não é a filosofia de quem vence, mas de quem fica derrotado na luta pela sobrevivência. A própria vida, medindo-a com o seu metro biológico positivo, condena tal filosofia negativa, perante o supremo fim da sobrevivência, como sendo uma coisa gasta, decadente, antivital. Nietzsche, outro negador de Deus, teve pelo menos uma fé, se bem que emborcada, involuída, mas poderosa e vital: fé num super-homem bestial, tentativa de herói satânico, que tem a força de erguer-se diante de Deus como um desafio, possuindo a coragem de conduzir, sozinho contra todos, uma luta sobre humana para se manter e vencer em posição de anti-Deus, dominador do caos.
Em Sartre não há sequer esta força positiva, involuída, horrorosa, mas tentativa de potência e grandeza. Em Sartre a vida retrocedeu um passo a mais em direção à anulação. Ele expressa e personifica o processo humano, que está em ação, de destruição dos mais altos valores morais, única perspectiva de um futuro melhor, esperança a que a vida se aferra, antecipação do ideal ao longo do caminho da evolução para dar-se a força de chegar até lá. Em lugar de avançar para ascender e viver sempre mais, Sartre nos canta a marcha fúnebre da vida. Em lugar de despertar o espírito com altos conceitos vivificantes, a mente se esvazia no nada, a alma se apaga sem esperança, tudo se afunda na negação. Sartre se enxerta na anulação espiritual e moral dos tempos modernos, que ele simboliza e reflete, descendo ainda mais do que Nietzsche. A pintura, a escultura, a música, nas suas loucas expressões, negadoras de todo o princípio de harmonia e beleza. Feitas de deformações involuídas que se querem fazer passar por profundos conceitos, também as formas da arte e do pensamento encontram-se hoje em fase de destrucionismo. Vivemos na época das demolições.
É verdade que a velha casa está podre e se está destruindo. Mas a vida no negativo é morte. Em nossos dias, à negação há que contrapor uma paralela afirmação que permite à vida ressuscitar noutra forma. De momento não se vêem sinais de reconstrução de uma nova casa, ela no entanto, é necessária para se poder viver em qualquer lugar. Sartre é simplesmente um destruidor que tende ao vazio, através da anulação das idéias fundamentais, fruto do trabalho milenar que conduziu à conquista dos mais altos valores da humanidade; perante a evolução, inclusive biológica, são de primeira necessidade. Os homens práticos, de ação, poderão zombar destas afirmações, para eles teóricas e fora da realidade da vida. Mas não sabem que a demolição espiritual implica, como conseqüência, na demolição material, representando a última fase do mesmo processo de destrucionismo, e, nesta forma concreta, faz-se compreensível a todos, quando não for demasiado tarde para deter o movimento. Mesmo que o mundo não o compreenda, a destruição dos valores espirituais leva à destruição dos materiais, valores estes que constituem o mais precioso tesouro para o homem atual; ele próprio a provoca com a inconsciência de uma criança que, brincando com um revólver carregado, poderá matar-se a qualquer momento. Para melhor satisfazer a voracidade do estômago, é mais prático e de tangível utilidade imediata eliminar o esforço de fazer o trabalho de alimentar o cérebro. Assim se goza e se engorda. Possuirá, porventura, o estômago a sabedoria e a consciência para dirigir os movimentos do corpo? Onde irá terminar se for abandonado a si próprio? Como a defesa e a sobrevivência do corpo depende de um guia, o cérebro que o move, também a conservação dos bens materiais depende da existência das diretivas espirituais. Hoje, neste mundo, devido a potência dos meios destrutivos, é necessário redobrado juízo para não acabar matando-nos a todos, à força de desapiedados egoísmos. Vai-se perdendo a cabeça ao eliminar esses freios espirituais, feitos de ordem e justiça, que são os mais aptos a salvar-nos.
É alarmante que o mundo tenha respondido à tendência destrucionista de Sartre, não reagindo ou rebelando-se, mas seguindo-o; é também grave porque prova que o mal não é à exceção de um caso individual, mas é um fato coletivo, dado por uma corrente psicológica, expressa com a filosofia da moda, que se chama existencialismo. Se não se trata de um caso isolado e isolável, se o mundo aceita Sartre, se este é o tipo de pensamento que a Europa, à frente, lança como modelo de vida, a Europa que representa o ponto mentalmente mais avançado, o cérebro do mundo, então, devemos crer que tudo está se desfazendo, porque o cérebro está gasto e se vai à deriva sem diretivas. Estamos, pois, em fase de involução, em lugar de evolução; caminha-se para trás em lugar de ir para diante. Quem conhece as leis da vida sabe que terrível coisa significa, em termos de embrutecimento e dor, um retrocesso involutivo. Quando a cabeça se põe e olha para trás, todo o corpo a segue e se põe a caminhar em sua direção. Quando há reação ao mal, este entra e vence, destruindo o organismo. Quando na alta cultura, encontra ressonância, isto é corrosivo e destrutivo, então é a vida mesma que está ameaçada nas suas primeiras origens espirituais. Isto não é questão de fé, desta ou daquela opinião. Falamos em termos de uma biologia positiva do espírito, para quem a conhece, é cientificamente controlável. Quando vemos que os bons exemplos passam inadvertidos, sem despertar eco algum nos espíritos, quando vemos que os maus exemplos são espontaneamente seguidos, despertando ecos, interessando à crítica, encontrando seguidores, então devemos concluir: precipita-se pelo caminho da negação e o pior está por acontecer, porque se vai em direção ao vazio e ao nada, onde a vida se apaga.
O fato de o Prêmio Nobel de Literatura ter sido, neste ano de 1964, conferido a Sartre, prêmio que representa o pensamento oficial, julgando o melhor produzido em nosso tempo, confirma as precedentes afirmações, daí haver motivo para crer-se que foi conferido em sentido oposto ao desejado pelo próprio Alfred Nobel, fundador do prêmio. Pode-se assim compreender o erro e seu perigo que este estímulo representa. Não se trata apenas de ter tirado uma ajuda aos construtores, mas de ter ajudado aos destruidores, acelerando a velocidade na descida. Não se pode deixar de ver em tudo isto uma vingança histórica lançada em direção destrutiva, que se liga no campo espiritual, enquanto no terreno material se está preparando com a contínua e sempre mais difundida construção de bombas atômicas. Assim, o destrucionismo no campo espiritual chegará até às últimas conseqüências no campo material. Vivemos num universo em que tudo está ligado e repercute de um pólo ao outro, de modo que nenhum movimento se pode isolar das suas repercussões.
Falamos de vingança histórica. Não é possível que a ameaça de um cataclismo possa ser justificado como resultado somente da agilidade ou inexperiência de quem o provoca
Mesmo se na superfície for o contrário, o que rege na profundidade da vida é um princípio de justiça, pelo qual o que nos acontece, em bem ou em mal, é merecido. Então perguntamo-nos: quando, durante séculos, acumularam-se erros e culpas e se continua a cometê-los, hoje, acrescentando-se potência a requinte? Quando o pensamento filosófico, em lugar de dirigir, é um cancro que corrói, enquanto a ciência, o mais alto produto da inteligência, prepara a destruição da humanidade? Perguntamo-nos, ainda, se não será merecido e fatal, o destino que cada um terá de cumprir-se? Há quem creia: basta negar uma coisa para que ela deixe de existir, basta ignorar as leis da vida para que elas deixem de funcionar!
Já falamos de uma grande alma, Teilhard de Chardin, que trabalhou no sentido oposto, construtivo, para trazer um ideal à Terra e não para destruir os vestígios de outros; para fazer-nos avançar evolutivamente, e não para retroceder. Como cientista, procurou trazer-nos Cristo pelas vias positivas da observação e da lógica. Mesmo assim, foi condenado, pela sua Igreja, ao silêncio e a morrer tristemente no exílio. Eis o tratamento que em nosso mundo obtêm os construtores. No entanto, são indispensáveis à vida para compensar o trabalho dos destruidores, tendentes a deixá-la abandonada no vazio. Junto aos cemitérios cheios de túmulos, é necessária uma contínua produção de recém-nascidos. Vive-se enquanto se caminha. Livremo-nos de parar ou retroceder, A Igreja segue o mesmo caminho e se alia com os distribuidores do Prêmio Nobel, em sentido oposto, executando o mesmo movimento que conduz ao mesmo resultado. Tudo caminha, na mesma direção negativa, seja no caso de Sartre, como no de Teilhard de Chardin; estimulando o mal, por um lado, obstaculizando o bem, por outro. O ponto de chegada é o mesmo. Impulsiona-se o avanço dos destruidores, paralisa-se a obra dos construtores. Colabora-se em plena concórdia. A conclusão não pode ser senão uma só, ou seja, a que explicamos. Quando se trata de uma vingança histórica e, portanto, de um destino, porque foi merecido, este torna-se fatal; quando se optou pela corrida em descida e já não é possível deter-se, então sucede que ficamos cegos, para que a lei se cumpra; não somos capazes de ver o perigo, nem a própria salvação. Talvez, nesta cegueira, necessária para que se faça justiça, consista o drama do atual momento histórico.
Sim! Neguemos os valores superiores! Emborquemos as partes. Em lugar de colocar o estômago a serviço do cérebro, coloquemos o cérebro a serviço do estômago. Abandonemos o leme da vida, deixemo-la sem diretivas ir à deriva em lugar de guiá-la com sabedoria, mantendo-a ao longo do caminho da evolução, o da salvação. Onde pode ir bater um automóvel numa corrida, quando o chofer está enlouquecido? Esqueçamo-nos da fundamental função biológica de orientação que os ideais cumprem para nos levar em direção ao melhor. Assim seremos presos no vórtice espantoso dos retrocessos involutivos que se fecha em espirais cada vez mais estreitas até chegar ao fim da destruição da raça humana, se esta demonstra ser inepta para a vida. A vida já destruiu tipos biológicos que se colocaram nessas condições, sabemos ser este o seu sistema e, portanto, está pronta a fazê-lo também com o homem. Tornemo-nos loucos, pois. Mas a vida não brinca.
Há dois milênios que o cristianismo luta para civilizar o homem, com um trabalho paralelo ao das religiões irmãs nos outros continentes. Agora deixam-nos desencadear de novo a besta, uma besta que não só possui dentes caninos e garras, flechas e espadas, mas também bombas atômicas! Premiai os destruidores! Que o mundo os clame e os siga! Sufocai os construtores, fazendo-os morrer sepultados no silêncio! Ciência, filosofia e religião, parece que todos ignoram as leis que regem a estes erros, com Deus e ignorando Deus, estas leis funcionam, feitas de forças invencíveis que atuam segundo princípios que nenhuma negação pode anular; forças, alimento vital, que exaltam a quem trabalha segundo a sua ordem; negando-se, esmagam a quem tenta rebelar-se, indo contra a sua corrente. Negai, negai! Negareis antes de tudo a vós próprios. Destruí e sereis destruídos. O que lançais para fora de vós, cairá sobre vós. Este é o produto da sua semeadura hoje, pesando sobre o mundo. Ninguém pode escapar às conseqüências do que foi feito, merecido por nós. De nada serve negar. Os erros se pagam da mesma forma. Como se as opiniões humanas tivessem o poder de alterar a estrutura da existência e as leis que dirigem o seu funcionamento! Sim, proclamemo-nos livres! Experimentemos violar as leis da vida, e veremos logo o que sucede. A nossa cegueira pode-nos fazer crer que sabemos vencer. Mas, quando pela nossa astúcia imaginarmos ter enganado a Deus, então, tudo cairá em cima de nós. Destruamos os alicerces da casa da vida, superiores valores do espírito, e veremos o nosso fim. Tanta fome de liberdade, mas é só fome de animalidade; é impulso em direção negativa, para retroceder e ficar em baixo, eximindo-se da fatigante disciplina da evolução. Retroceder significa voltar aos níveis evolutivos mais baixos, onde a vida é mais dura; significa involuir até ao estado feroz da besta. Quem sabe se não é este o futuro para o qual a humanidade se está preparando?
O momento é tremendo. Os velhos valores esgotam a sua tarefa e funcionam com esforço. Os novos não se vêem surgir. Que diretivas daremos ao caminho da vida? Concordamos que se abusou tanto dos velhos ideais que hoje, na sua forma atual, já não servem, embora haja o que renovar-se. Mas para renovar-se há que substituí-los com o melhor e não com o pior. Para retroceder, é melhor não se mover. Se não avançamos em direção aos valores superiores, continuando o caminho neste sentido, retrocede-se até o nível animal. Em certo momento, oferecem-nos um existencialismo ateu e pessimista, como sistema filosófico levado a conclusões éticas, com pretensões de moralista! Deseja-se encher o vazio com o vazio. Oferece-se como diretiva uma ausência de diretivas, ou pior, uma diretiva em descida, que acelera a destruição. Esta é a vitalidade do câncer. Até este é movido por um impulso de multiplicação vital. Mas em que sentido? No sentido da auto-anulação. Temos pois uma filosofia emborcada, dirigida a destruição da vida, porque nega o espírito, que é vida, e faz-nos retroceder para mais longe de sua meta, Deus, ponto ao qual tende a evolução. Num momento crítico, é necessário um impulso para diante, porém, é dado um impulso para trás com a oferta de um banquete de pseudo-valores e de negatividade destruidora!
Em Sartre, não encontramos uma revalorização de valores, mas uma sua desvalorização. A destruição, quando é necessária, é admirável só como condição, primeiro momento, de uma paralela construção. Aqui falta o segundo termo que justifica o primeiro. Isto é nihilismo, é a desagregação do existir, é o triunfo do não-ser. É necessário, pelo contrário, saber reconstruir, ter a força de subir, se não queremos deter a nossa evolução na qual está a salvação. É certo que estamos carregados com todos os erros do passado, mas vivemos para não os cometer mais; estamos cheios de imperfeições, mas vivemos para aperfeiçoar-nos; o mundo está cheio de falsos cultos e de ideais prostituídos ao interesse, mas vivemos para purificar-nos e aproximar-nos sempre mais de Deus. Sobretudo, no momento atual, temos necessidade de uma filosofia sã, vivificadora, saneadora, cheia de valores vitais; ao contrário, no seu lugar é nos oferecida uma filosofia cheia de ansiedade e de desespero, que não resolve problema algum. A negação mata, não saneia. Uma filosofia feita de pessimismo não pode cumprir funções vitais e curativas. A angústia só abate. Nada se pode construir sobre um estado de espírito apreensivo. Poderíamos ver neste fato a verdadeira face do mundo, que assim nos aparece com uma expressão de angústia. Mas esta é a tristeza de quem perdeu o caminho da evolução e com ele a esperança da salvação e se encontra perdido, só, no deserto. Corresponderia à face do pensador, que representa a intelectualidade dirigente, o dever de orientar o caminhante desviado. Ao contrário, faz sua esta angústia, deixando-se arrastar, e a apresentar como sistema filosófico. Mas quem assume a função diretiva, do médico, tem o dever de curar e tratar de dar saúde ao doente. Se, pelo contrário, adoece junto com ele, usa o mesmo leito, preparando-se ele também para morrer, esse médico, mais doente do que o doente, não serve, para ele não há mais possibilidade de salvação.
Assim caminha o mundo de hoje, indiferente ao seu eterno destino, sem entender ao profundo significado da existência e à sua suprema finalidade. É absurdo dizer: "(...) a existência febril e impossível que se chame destino (...)", quando isso significa, para quem queira, a ascensão ao céu, a conquista de uma existência superior. É natural: quem segue a filosofia da anulação encontra-se isolado, aniquilado, perdido no vazio, oprimido pela angústia, na qual a vida chora o seu fracasso. A negação a entristece porque a vida está feita para afirmar. Este é o sofrimento dos autocondenados à morte, que repeliram a super-vida do espírito. Esta é a sorte das almas vazias, dissecadas, congeladas, amantes da negação. A vida que se faz poderosa no espírito, nada teme: na morte está cheia de alegria da ressurreição, na dor está rica de esperança, não conhece a angústia do vazio, porque é ativa em cada instante pelo trabalho da própria superação, na conquista por meio da evolução. Uma tal vida é dinâmica, criadora em cada momento, iluminada pelo conhecimento, poderosa de recursos interiores, jubilosa por suas realizações que a levam cada dia mais alto.
Negando Deus, em Sartre, na dor fica só a angústia. É o pranto da alma arrancada da primeira fonte de sua vida, sem meta e sem esperança de salvação. Em Teilhard de Chardin, junto a Deus, na dor permanece a consciência de uma super-vida, do sofrimento ressurge-se na alegria. É a alegria da alma que se une cada vez mais à sua fonte de vida. Quando a selva arde, é natural que o pássaro, que com a sua evolução fabricou as asas, possa voar para longe e se salve; ninguém pode evitar que o verme morra, porque, mais atrasado, ainda não chegou a construir tais meios. As leis da vida continuam funcionando mesmo para quem as ignora ou as nega.
Perante Sartre e o existencialismo, fixemos claramente a nossa posição. Não estamos do lado negativo dos destruidores dos valores espirituais, mas do lado positivo, afirmativo dos construtores. A nossa filosofia, por ser feita de esperança e de coragem, está no pólo oposto à de Sartre, feita de pessimismo e de desespero. Para nós, o ideal não é de ilusão e traição, mas, qual antecipação de evolução, representa um positivo valor biológico. Para nós a afirmação da existência de Deus não é o produto de uma fé, mas é uma certeza derivada da constatação da presença de uma suprema Inteligência anteposta ao funcionamento orgânico do universo. Dizemos com Sartre que o homem é um desgraçado, mas acrescentamos que ele pode e deve superar a sua desgraça. Constatamos as dores do mundo, mas nem por isto nos deixamos vencer, abandonando-nos na inércia, porque compreendemos a sua função criadora, impomo-nos, pelo contrário, o esforço de superá-las, isto depende de nós e é possível, porque assim o querem as leis da vida e está escrito o que se deverá realizar no futuro, por evolução. Trata-se de conceitos que, noutros lugares, largamente ilustramos e demonstramos. A nossa atitude é ativa, de quem caminha em direção à vida; não é passiva, de quem se deixa ir para a morte.
São simples os raciocínios do existencialismo na sua sumária liquidação de Deus. Os ateus dizem: "Deus criou as criaturas para fazê-las sofrer; como o mal em Deus é um absurdo, Deus não existe". Este discurso significa: "O que verdadeiramente importa sou eu, eu sou o centro e tudo deve existir em função de mim, tudo quando está contra mim deve ser eliminado. Deus faz-me sofrer, havendo-me dado essa triste vida. Então, eu O rejeito. Ele não existe". Quem assim raciocina não compreende que não é Deus quem faz sofrer as criaturas, porque estas sofrem como conseqüências dos seus erros e para aprender a não errar mais. Quem daquele modo raciocina demonstra, com isso, encontrar-se ainda evolutivamente atrasado na direção do AS. Prova-o esta sua psicologia de rebelde, que o induz a lançar a culpa sobre Deus, contra quem se revolta, em vez de lançá-la sobre si próprio. Esta é de fato a mentalidade do biótipo AS, negando, na dor procura a fuga; afirmando, procura a salvação.
Segundo a tese existencialista, o universo seria um absurdo. Nela nada teria sentido e a liberdade humana, aparecida por acaso num mundo incoerente, seria inutilizável para qualquer finalidade de bem. Pessimismo cheio de horror e náusea, completamente oposto à concepção cristã. Seguindo esta, colocamo-nos nos antípodas e, cheios de esperança, procuramos os valores positivos, construtivos, com uma forma mental do tipo S. Se estamos em baixo, na desordem e na dor, é porque somos ainda atrasados. Mas o caminho da evolução está aberto diante de nós para que o percorramos, a redimir-nos e emergir sobre o estado atual. O homem tem nas mãos os meios para avizinhar-se sempre mais da felicidade e isto pode acontecer, bastando que saiba merecê-la, movendo-se com inteligência e consciência, segundo a Lei de Deus, no seio da qual vive. A vida, compreendida e vivida a sério, é uma imensa obra de construção.
Mas o existencialismo se explica. Sartre, por si só, não poderia fazer nada. Nele, o seu sistema tomou corpo e encontrou a sua expressão, uma corrente já formada no subconsciente coletivo, um estado de ânimo de desespero, devido as duas guerras ferozes e inúteis, destruidores de toda fé e ideal. Por isso, o destrucionismo existencialista, uma vez encontrado o terreno adequado, teve seguidores e sucesso. Quem está cansado e doente de desilusões, prefere abandonar-se no caminho fácil da descida antes que esforçar-se pelo caminho árduo da subida. As massas comodistas procuram fugir ao trabalho sério, construtivo, que exige pensamento, esforço, sentido de responsabilidade. Estimula-as, pelo contrário, o atalho da evasão e a inércia do pessimismo. Mas, assim não se resolvem os problemas e se pagam as conseqüências.
Tudo isto é prova de debilidade e decadência. Ao ataque do mal, não respondeu a sã reação de um organismo forte que quer superar os obstáculos para sobreviver, mas a reação oblíqua e patológica de um organismo doente, impotente para vencer a doença. Isto se torna tanto mais grave por estar afetado o cérebro da humanidade, representando pela elite intelectual da civilização européia. Trata-se de uma psicose que corrompe o centro diretivo, aquele que deveria assumir a tarefa de orientação espiritual do mundo. Se o cérebro está doente, que sucederá com todo o resto do corpo? Se a mente que deveria estar à frente do caminho da evolução, anteposta ao trabalho de antecipar e avançar, está corroída e se está desfazendo, se o dirigente do veículo se perde e sai da estrada, então o desastre é inevitável. Devemos aqui explicar como tudo isto pode acontecer.
É o pensamento que se encontra nas raízes da vida. O desmoronamento espiritual precede o desmoronamento material e lhe anuncia o começo. O triunfo de Sartre pode ser um sintoma premonitório, junto com outros detalhes, e está amadurecendo o fenômeno da liquidação da civilização européia. Não vemos os filósofos e pensadores no terreno da ação e da realização. No entanto, são eles os primeiros motores das revoluções e revoltas das épocas seguintes. Karl Marx antecipou os levantamentos políticos do século XX nas salas de leitura do British Museum. As acesas polêmicas de Sören Krierkegaard assentaram as bases sobre as quais Sartre construiu o existencialismo.
Assim, por obra de um só pensador, a semente é lançada. Se encontra o terreno adequado, desenvolve-se rapidamente, afirmando-se segundo a sua natureza. Assim sucedeu com o Comunismo e com o existencialismo. Formam-se correntes de pensamento coletivas e vão-se amadurecendo os fenômenos sociais nos quais aquelas tomam corpo, até alcançarem a sua realização como fato histórico.
Os fenômenos seguem, com um ritmo de sucessão de fases, a trajetória do seu desenvolvimento e, uma vez iniciada, são levados pela sua lei a percorrê-la até ao fim. É difícil detê-los, porque até ao seu esgotamento, continuam atuando as forças que os puseram em movimento e só um equivalente impulso em sentido contrário pode neutralizar. Assim, desde o começo, o observador atento pode ver qual será o futuro desenvolvimento do fenômeno porque, uma vez lançado, ele se mantém inexoravelmente fechado dentro das normas da lei, reguladora do transformismo. Sabe-se, então, a direção e as soluções finais que, fatalmente, a história conduzirá. Esta avança por fases sucessivas, ligadas uma à outra, como sua conseqüência necessária, porque implícita na fase precedente. Quando a história se canaliza por um determinado tipo de fenômeno, deve seguir os períodos do seu lógico desenvolvimento, conectados, condicionando-se uns aos outros, como os anéis de uma mesma cadeia. Vários elementos com várias funções, cada um para cumprir a sua, escalonam-se sucessivamente no tempo: o pensador, o revolucionário, o guerreiro, o líder, o estadista, o político, as massas que os seguem. Cada um é, por sua vez, atraído, envolvido, colocado em movimento, todos ao trabalho, vencedores e vencidos, hoje lançados para posições superiores quando a sua colaboração é útil e se adaptam ao seu mandato, cumprindo a sua função histórica; amanhã, porém, abandonados e liquidados quando já não servem mais. Cada um crê ser uma força autônoma, trabalha para si e não é senão um instrumento, um momento de um processo histórico, um elemento que vale só em função do trabalho a cumprir, em relação ao qual o indivíduo ocupa a posição que o valoriza. Regidas pelo princípios das unidades coletivas, vemos as unidades menores unirem-se organicamente par formar uma maior. Assim, no desenvolvimento destes fenômenos vemos os movimentos dos elementos menores coordenarem-se instintivamente para determinar os movimentos maiores. Semente e terreno, impulsos e ambiente, chefes iniciadores e massas, espírito revolucionário e resistências, ações e reações, impulso inovador e consentimento dos seguidores, todos acabam por colaborar num único concerto que a história logicamente desenvolve, arrastando todos no seu progresso.
Com esta consideração devemos enfrentar o fenômeno existencialismo. Mais do que uma teoria, como fato individual não conduz a nenhuma conseqüência, o que a torna importante é o consentimento, é a aceitação como um fenômeno coletivo e lhe confere volume, extensão e significado. Então, a teoria filosófica se enxerta na vida, torna-se realidade histórica, porque transformada em forma mental coletiva, entra no terreno das realizações. Quando uma filosofia, imperante porque chega a alcançar tão vastas ressonâncias, é uma filosofia corroída, torna-se um perigo social, através do grupo que a incorpora e a expressa, tomando-a como bandeira e fazendo-se expoente dela. O fato de a doença ser de caráter social faz pensar num estado de decadência da sociedade. Não é importante uma doença que fica limitada a um só indivíduo ou a poucos, mas torna-se grave por assumir proporções epidêmicas.
Matar o ideal é perigoso, ele cumpre uma função biológica necessária, de orientação da vida projetada em direção ao futuro. Se a envenenamos no seu nível mais alto, o espiritual, acabaremos por envenená-la toda, também no plano material. A medicina psicossomática reconhece que a origem de algumas doenças orgânicas deve procurar-se no terreno psíquico. Em tal caso, as etapas sucessivas da ação da psique sobre o corpo são: "Distúrbio psicológico, anomalia funcional, alteração celular, lesão anatômica". Existe uma psicogênese das doenças físicas. Perante a higiene psíquica, a humanidade encontra-se na idade pré-desinfecciosa, indefesa contra os ataques e os venenos psíquicos do ambiente. Se a vida se corrói no seu pólo espírito, acabará por corroer-se também no seu pólo matéria. Se destruímos a saúde do órgão de orientação diretiva, destruiremos forçosamente, a do organismo físico que depende dele.
O espírito se encontra mais avançado no caminho da evolução. Está à frente do comboio, iniciador da marcha. O resto o segue. Se suprimimos o ideal, obstruímos a via de nosso desenvolvimento e recaímos na baixeza animalesca de nosso passado biológico. Se nos matamos a nós próprios, porque a vida atraiçoa o seu fim maior, a evolução, está emborcada, é a morte. Perde todo o sentido e valor, a sua existência fica reduzida a um charco inútil, sem meta e sem futuro; quando, na verdade, trata-se de um meio precioso que possuímos para alcançar os mais altos destinos.
Parar no meio da universal marcha evolucionista significa ficar atrasado e ser superado. Se nos retiramos do nível biológico mais avançado, o do espírito, o centro da vida retrocede para reconstituir-se num plano inferior, mais involuído, o animal. Tendo-lhe sido fechado o caminho da evolução, a vida retrai-se, contraindo-se em inferiores dimensões biológicas. Então, a civilização desmorona-se na barbárie, a ordem no caos, o bem estar na miséria e no sofrimento. O castigo mais grave, golpeando a revolta à ascensão, é a lei da própria vida, é contração de dimensões biológicas, é redução de espaço e de expansão vital, é mutilação e sufocamento da existência. O maior perigo que ameaça a humanidade, nesta excepcional hora histórica, quando se encontra numa curva do seu caminho evolutivo, é o de um retrocesso involutivo. Agora que os tempos estão maduros para avançar, ao contrário, retrocede-se. A filosofia da negação leva à involução. O destrucionismo tende ao retrocesso.
Nós estamos do lado da vida e da sua evolução, sustentamos os seus direitos e o dever de fazê-los valer; ao lado do Cristianismo, sustentamos os mais altos valores da civilização, os do espírito. Deixamos às clínicas psiquiátricas as filosofias suicidas, doentes de negação e de desespero. Na luta, devemos arder de fé; a dor deve reforçar-nos e ser vencida pelas potências do espírito. Queremos uma virilidade superior à primitiva e agressiva de nosso mundo, para vencer em planos mais elevados. A nossa Obra é uma reação a essa destruição espiritual que, neste período de decadência do mundo, tende a fazer-se universal na pintura, escultura, música, literatura, moral e filosofia. O valor reside no resistir a essa destruição, ou melhor, no lançar-se a construir para se preparar a preencher o vazio a ser deixado. Por isso, não oferecemos uma filosofia de palavras, sutil de requintado bizantinismo, vã e decadente, como a que está hoje em moda. Oferecemos uma espiritualidade forte, positiva e criadora, de superação evolutiva e de construção biológica; é uma espiritualidade que não se apóia apenas sobre convencionais bases fideísticas religiosas, mas sobre controláveis bases científicas e racionais.
Parece, no entanto, que a humanidade está mais apta a responder aos apelos do mal do que aos do bem, prefere aderir a quem a convida a seguir o cômodo, mas perigoso, caminho da descida do que a quem lhe propõe o fadigoso, mas saudável esforço da subida. Este é o drama humano que o triunfo do existencialismo nos revela, isto é, os construtores permanecem incompreendidos e isolados e os destruidores, que impulsionam para o pior, são compreendidos e seguidos. Isto significa que a humanidade não gravita em direção ao S, mas ao AS. Retrocesso a estados mais involuídos, a níveis de vida inferiores, cheios de trevas e de dores.
Esta desordem central que está no espírito, de conseqüência em conseqüência, pode concretizar-se nos fatos até levar-nos a uma guerra atômica. A opinião pública preocupa-se com o atual aumento vertiginoso de população, problema de que já tratamos. Como um pressentimento, pode surgir a dúvida de que este aumento seja um sinal de uma providência que a sabedoria da vida previdente toma para assegurar a sua sobrevivência, isto é, poderia ser um sintoma revelador de aproximar-se de uma paralela e correlativa destruição demográfica. Explicar-se-ia este aumento, determinados pela necessidade de nos encontrarmos prontos para enfrentar o novo assalto à vida, vencendo-o ao compensar as grandes perdas de uma guerra atômica. Na sua imensa experiência, a vida sabe muitas coisas como o prova o fato de que soube chegar, até aqui, superando muitos outros cataclismos. Nos seus equilíbrios a vida, dessa maneira, com o aumento da população, resolveria o problema da sua defesa, e com a destruição, corrigiria o excesso da superpopulação. Isto não surpreende a quem conhece os métodos da natureza. Por outro lado, eles são impostos por ser necessário respeitar a liberdade humana, liberdade de errar para ser obrigado a corrigir. Se o homem está louco, que pode fazer a vida a não ser correr atrás dele para remediar as suas loucuras? Se lhe tivesse sido possível, o homem já teria destruído o planeta há muito tempo.
Só assim tudo se salva: da liberdade de chegar a uma superprodução demográfica decorre a necessidade de equilibrá-la com uma compensadora superdestruição demográfica, objetivando a sobrevivência da raça humana e a necessidade de fazer esta nova grande experiência para acabar, para sempre, com as guerras, pagando o homem com a própria dor o erro e aprendendo a não repeti-lo. Se, para ensiná-lo não há outro argumento a não ser a sua dor, pelas vantagens que daí derivam, vale a pena deixá-lo enfrentar semelhante experiência, mesmo que ele tenha de a pagar bem caro.
Como dizíamos acima, para a medicina psicossomática, também princípio de solidária correspondência entre os fenômenos, a lei é: à desordem espiritual deve, fatalmente, seguir a desordem material. Se hoje constatamos a presença da primeira, devemos, logicamente, esperar a aparição da segunda. Esta destruição, no plano físico, seria, na lógica sucessiva dos momentos do fenômeno, o ponto final do seu desenvolvimento, expresso na sua fase inicial de preparação da atual desorientação espiritual, da qual o existencialismo faz parte e é uma expressão.
VII
OS IDEAIS E A REALIDADE DA VIDA
I – A Técnica das revoluções no processo evolutivo.
Quando os ideais descem à Terra, são transplantados para um plano biológico mais baixo. Observemos então que reações tem eles de suportar, a que transformações e adaptações devem ser submetidos, para poder sobreviver no nível evolutivo inferior do mundo, e que uso em tais condições faz deles a vida para poder utilizá-los para os seus fins. Certamente é inevitável que o ideal, dado que ele representa um modelo de vida mais avançado, deva suportar um retrocesso, para poder subsistir naquele nível inferior em que desce, o que se faz necessário para que este possa avançar. Pelo fato de o impulso do progresso em direção ao alto procurar impor a ascensão, isto não significa que a realidade biológico, ou seja, o que de fato a vida é na Terra, esteja pronta para transformar-se. Esta realidade tem as suas leis férreas, verdadeiras neste plano onde dirigem a vida, e de modo algum estão dispostos a deixar-se destronar.
Por um lado, o ideal impõe justiça, honestidade, sinceridade, altruísmo, bondade etc. por outro lado a vida se baseia sobre um princípio bem diverso, que é a luta pelo triunfo do mais forte, pelo que vale aquele que vence com qualquer processo, mesmo que se contradiga totalmente o ideal, e ainda que seja injusto, desonesto, falso, egoísta, malvado etc. Se esta é a lei do animal humano que predomina na Terra, eis que a descida do ideal, se é vista de baixo pode parecer um assalto à integridade da vida, pelo menos na forma em que ela é entendida e quer realizar-se neste plano biológico. Como se conduz ela então em sua própria defesa, para permanecer no seu nível? A princípio resiste, reage à mudança, rebela-se; depois acaba por adaptar-se, e por fim, assimilando o novo, se transforma. Então a função do ideal naquele determinado nível evolutivo acabou e pode descer outro ideal mais avançado, para tomar com o mesmo método, o mesmo trabalho, mas num nível um pouco mais alto.
Enfrentam-se, assim, em nosso mundo, o ideal e a realidade biológico, em posição de luta, cada um para dirigir a vida à sua maneira e impor-se como regra absoluta. Qualquer dos dois possui a sua moral, coloca-se como lei de vida, sobre a qual o seu próprio plano baseia a sua existência. Não é fácil, portanto, sair disto. A moral do ideal é a superação da realidade biológica, isto é, do tipo de vida vigente do animal humano e com este fim impõe o esforço para realizar a ascensão evolutiva, renegando o mundo. A moral do plano terrestre, é, pelo contrário, a da sobrevivência a qualquer custo, lutando só por isto e evitando desperdiçar energias, ao buscar aventuras evolucionistas, duvidosas superações, preferindo ficar no nível atual, conservando as velhas posições, antes confirmando e assegurando-se melhor a vida no mundo.
Estes princípios opostos não aparecem na Terra somente como teorias abstratas, mas concretizados na pessoa de tipos biológicos opostos que são o do evoluído, que representa e vive o ideal, e o do involuído, que representa e vive a realidade biológica do ambiente terreno. O primeiro é uma antecipação do futuro, o segundo é um resíduo do passado, e eles chocam-se no presente, que é um período de transição do segundo para o primeiro. O evoluído, porque é mais avançado, cumpre no equilíbrio biológico, a função de guia, de exemplo, de impulso que dinamiza, estimulando a subir. O involuído, por ser atrasado, representa a resistência, o obstáculo ao progresso, a revolta, o impulso oposto, ou seja, o da negação.
A luta reside entre dois biótipos que personificam os dois princípios opostos. O evoluído encontra-se deslocado na Terra, que não é o seu ambiente, mas cumpre ali a sua grande função evolutiva. O involuído encontra-se à sua vontade na Terra, no seu ambiente, a ele proporcionado; por este motivo, se sente incomodado pelo ideal que pretende deslocar as bases da sua vida, e defende-se dele, bem armado para a resistência. E no momento atual, por ser ele maioria, tem razão de ser na Terra. Mas a humanidade entrou já numa fase de transição evolutiva, pelo que, com gradual adaptação ao novo, a sua resistência começa a ceder e se inicia a assimilação e a transformação. Só depois de compreendermos isto, podemos entender o porquê da contradição entre bom e mau, entre verdade e mentira, de que está impregnada a vida do homem atual. Nele coexistem luz e trevas, e a tentativa da primeira realização do ideal aparece no mundo saturado de animalidade, tenazmente radicada no passado, revoltada e resistente.
É assim que o ideal, apesar de descer do Alto, quando chega à Terra para se realizar, encontra-se subordinado às leis desta, ligado aos acontecimentos do desenvolvimento histórico, submetido à incerteza da tentativa que impera nas coisas humanas, ainda que no fundo do fenômeno fique o superior impulso do ideal, a sua potência e decisiva vontade de realizar-se. Assistimos assim a um choque de elementos opostos, o humano e o divino, que poderá fazer uma pausa, atrasar-se, mas que nunca poderá ser obrigado a deter-se pelo elemento humano. A força do ideal é interior, vem-lhe de dentro, porque lhe vem de Deus. O que luta é esta força interior que quer alcançar o seu florescimento exterior que é a sua manifestação na forma. Mas o fato do Alto tolerar estas resistências do mais baixo, não significa que o ideal seja o mais débil e que no fim ele não seja vitorioso sobre tudo mais. Se estas resistências subsistem, é porque formam parte da estrutura do processo evolutivo, o qual tem a sua razão de ter tal forma e não outra.
A descida do ideal é um presente do Alto, é uma irradiação que provém de Deus, que assim se faz imanente até aos mais baixos planos involutivos para salvar o ser, atraindo-o a si, impulsionando-o a evoluir em direção ao alto. Mas este impulso por si só não basta se ele não for secundado pela boa vontade e esforço do ser, cuja liberdade é respeitada, pelo que ele pode aderir ou não, de maneira que livremente se resolva evoluir. O esforço para subir deve ser da criatura, porque a justiça quer que nada se ganhe sem ter sido merecido, por fim, as dificuldades para vencer são necessárias não só para que o esforço se realize e assim se haja ganho o mérito, mas também para que a experiência vivida ensine e por meio dela o indivíduo aprenda e construa as novas qualidades que constituem a sua evolução. Os obstáculos superados representam a resistência na qual se enrijece o lutador, o valor do soldado no campo de batalha, a prova da capacidade adquirida, o seu diploma de honra que o qualifica para ser admitido num plano evolutivo mais alto.
Não há, pois, que desencorajar-se, se por um momento o mundo vence o ideal este no final sabe igualmente triunfar mesmo que no seu percurso terreno ele seja manchado, maltratado, mutilado, emborcado. É lógico que não possa ser diferente deste, o seu trajeto terreno que vai desde a sua aparição até à sua afirmação. Para poder transformar os demônios em anjos, os anjos devem misturar-se com eles sem deixar por isso de ser anjos. Para iluminar melhor a Terra, a estrela tem de descer até o lodo, mas não por isso deixando de ser estrela, pelo contrário tratando de iluminá-lo para lhe vencer a opacidade, até que o lodo se transforme em estrela. As condenações, as perseguições, as quedas ao longo do caminho são parte necessárias do processo da descida dos ideais e da sua afirmação. Se se observa bem, descobre-se que estes impulsos negativos terminam-se por emborcar-se, funcionando positivamente, não contra, mas a favor; que estas dificuldades têm uma potência criadora porque excitam uma reação a favor do perseguido, que adquire assim auréola de martírio, e que automaticamente excita a admiração do mundo. Tanto é assim que para os grupos humanos de qualquer tipo, o mártir, que se sacrificou pela a idéia sobre a qual se baseiam sua existência, é mercadoria muito procurada, porque eles sabem muito bem que potência psicológica de proselitismo existe em favor do grupo e portanto da sua potência, representado por tal exemplo. A derrota de um momento no qual é o involuído o vencedor, se torna por meio dele, a semente do futuro desenvolvimento do ideal, um instrumento de vitória. O homem moderno, tornado mais astuto, enquanto vai em busca de perseguidos para o ideal do seu próprio grupo, para venerá-los a seu próprio favor e para desacreditar os grupos inimigos acusando-os de perseguição, evita praticar perseguições abertas, porque compreendeu a potência que existe em favor dos perseguidos e do seu grupo. Concluindo, pela sabedoria com que arquitetado este fenômeno, é a própria derrota do evoluído e a vitória do involuído, que leva ao triunfo do ideal.
Tratemos de desenvolver estes conceitos observando alguns casos nos quais resulta mais evidente a contradição entre os dois opostos, o ideal e a realidade biológica. Esta contradição se manifesta porque está escondida debaixo do ideal, mas no entanto aquela realidade acaba por aparecer. Porque, freqüentemente, o ideal é usado sobretudo para mascarar esta outra verdade bem diversa. Assim se explica como é que, o fato de seguir o mesmo princípio e programa que deveria levar a união entre os seguidores, na prática leva à sua rivalidade e divisão; então em vez de somar-se eles se destroem e o fraternizar conduz ao sectarismo e aos antagonismos religiosos. Aqui vemos dois impulsos opostos em luta: o do evoluído que quer levar à unificação na ordem (Sistema), e o do involuído que tende ao separatismo que culmina no caos (Anti-Sistema). O ideal é neste caso utilizado, como dizíamos agora, como uma coberta de aparência formosa para camuflar a realidade dos interesses que se escondem ali por baixo. Trata-se de um fenômeno que se encontra em todos os campos, religioso, político, social, nos terrenos mais diversos, mesmo de natureza oposta. Porque em todos os casos a substância do fenômeno é a mesma, isto é, não é dada pelo ideal professado, utilizado para escondê-la, mas dada pelo grupo humano que o representa, pelos seus interesses, pela luta que ele tem de conduzir para a sua sobreviv6encia. Na realidade, a vida está feita de tal maneira que o mais urgente a salvar-se em primeiro lugar, são os interesses e não o ideal. O que assegura a continuação necessária da vida não é a moral da superação, mas a moral da sobrevivência.
É assim que hoje assistimos o mesmo fenômeno, em dois campos muito diversos: por um lado vemos que os seguidores do mesmo Cristo estão divididos em religiões diferentes e rivais, e o fato das religiões adorarem o mesmo Deus não as une mas as divide; por outro lado, vemos os comunistas de todo o mundo, seguidores do mesmo Marx e Lenine, lutarem entre Rússia e China em nome do mesmo ideal. A realidade é que, debaixo da bandeira dos mesmos princípios, se formaram grupos com interesses diversos e são estes que prevalecem. Assim o ideal se adapta e se transforma a serviço de fins mais próximos e concretos, que não têm nada em comum com ele e terminam por substituí-lo.
Debaixo da revolta religiosa de Lutero, havia um desejo de emancipação do império da Roma latina, um contraste de raças, percebido pelas massas, e sem isso a emancipação não teria acontecido. Esta é a substância, mesmo que queira justificá-la com o escândalo da venda das indulgências por parte de Roma, do qual o próprio Lutero não tinha o direito de queixar-se, pois que por sua parte cuidava igualmente dos seus interesses. E por séculos, sob o mesmo Cristo, as duas partes continuaram acusando-se de erro. Em verdade, na Alemanha a revolta foi devida à intolerância de um domínio estrangeiro, ainda que o tenha sido só no terreno espiritual, revolta compartilhada logo também por sua própria inimiga, Inglaterra, mas unidas ambas contra o inimigo latino comum. Isto, porque para Roma a idéia da universalidade espiritual do Cristianismo se havia transformado na prática e no interesse do poderio mundial do papado. Coisas essas que nada têm a ver com Cristo, mas que na realidade o estavam substituindo.
A mesma coisa, por razões similares, está sucedendo hoje em política, porque o mesmo tipo biológico situado no mesmo nível evolutivo atual, não pode deixar-se de conduzir-se da mesma forma em todos os campos. Teoricamente a ideologia comunista é a mesma na Rússia como na China, mas é percebida de formas opostas, porque debaixo dela se agitam interesses opostos. É assim que a idéia, que teria de unificar, no entanto divide, porque em realidade o que funciona não é a idéia mas o interesse que se esconde debaixo dela. Então onde o interesse do grupo comunista coincidir com o do grupo capitalista, haverá acordo entre os dois grupos apesar de inimigos e criando a inimizade entre velhos companheiros de ideal. Eis um exemplo em que vemos a realidade biológica se substituir ao ideal. Amanhã isto poderá mudar. Mas hoje em 1964, é o que de fato está sucedendo.
O que triunfa neste caso é a realidade biológica e não o ideal. E a realidade biológica é que todas as revoluções, independentemente da idéia que professam, têm o seu ciclo pré-estabelecido. Depois de um primeiro período de desencadeamento elas se estacam
E se esgotam na fase de aburguesamento que logo sobrevem, no qual os revolucionários querem descansar e gozar o fruto de seus trabalhos e conquistas, assim aconteceu no fim com os seguidores de Napoleão. Esta segunda fase é por lei da natureza a continuação da primeira. Observaremos melhor, mais adiante, os períodos deste desenvolvimento. O que queremos notar agora é que hoje a revolução russa aspira o bem-estar do nível norte-americano, porque o bem-estar material e não o ideal é a finalidade, para o homem, de todo o seu esforço. É inútil criar ideologias que façam imposições à vida, quando esta, com suas leis invioláveis, quer seguir outro caminho. então, perante a vida que é mais forte, é a ideologia que cede e se adapta, transformando-se. É assim que agora aparece a ameaça de uma guerra atômica de destruição mundial, e em vez da propaganda da revolução violenta, fala-se de conquista pacífica do poder comunista mundial, através da via eleitoral parlamentar burguesa mais cômoda. Que ficou da ideologia senão aquilo que a natureza quer para todos? Ficou a vontade de descanso e bem-estar ao qual todo o homem ou grupo aspira depois de um trabalho pesado; existe o medo da bomba atômica e da conseqüente destruição; existe o espírito de conservação e o desejo de paz, que naturalmente segue à tempestade da explosão revolucionária. Então a ideologia adormece e a vida continua a caminhar pelas suas vias.
A China afasta-se da revolução mãe porque a sua posição e realidade são diversas. Então a mesma ideologia é utilizada em função de outros interesses. A revolução soviética é velha já de 50 anos, a chinesa é uma filha sua de 35 anos somente. A China se encontra na fase inicial da revolução, a da revolta faminta contra a opressão da velha ordem, e não na fase do ajuste e consolidação de posições no bem-estar, na qual se encontra a Rússia. É assim que às alianças de base ideológicas se vão substituindo outras de base interessada, isto é, a dos países pobres contra a dos países ricos. Por sob os princípios faz-se um acordo entre comunismo soviético e capitalismo norte-americano, para formar uma aliança dita dos “ventre cheios” contra os dos famintos. Eis a realidade. A ideologia é coisa demasiado teórica e longínqua, criada por um pensador noutros tempos e condições de vida, para poder continuar a impor-se como foi concebida. Então nasce a discórdia e quem cede não é a realidade de que depende a vida, não é a prática, mas a teoria. E quando não cede, se desgarra.
Os ideais da China são concretos, utilitários, nacionalistas. Na meta das revoluções hoje está a conquista do bem-estar econômico de tipo norte-americano; em alcançá-lo reside a medida do seu sucesso e os meios são, igualmente para todos, o trabalho, a organização, a produção, a industrialização. O importante é alcançar esta meta. Que ela seja alcançada pela via do comunismo ou do capitalismo, pode tornar-se um fato secundário, um problema de método. Eis então o que reduz a ideologia: uma equivalência de meios diversos, perante o mesmo fim, aquele que a vida quer. Eis que os princípios teóricos passam a segundo plano. Além do bem-estar econômico, da elevação do nível de vida, a China quer o que a ela lhe serve em primeiro lugar, mesmo que à Rússia não lhe sirva de nenhuma forma, isto é, quer a reivindicação de alguns territórios na Sibéria hoje nas mãos dos russos, a bomba atômica para poder impor-se com a força, a guerra mundial porque é interesse seu que os Estados Unidos e a Rússia se destruam mutuamente, para sobreviver ela somente, senhora do mundo. Onde foi terminar a ideologia comunista? Este é o velho imperialismo de todos os tempos, é o atávico espírito de conquista de todos os povos. É assim que vai terminar onde os teóricos de origem nunca haviam pensado: em lugar da união, a separação; em lugar da amizade, a inimizade entre companheiros e a amizade entre inimigos; em lugar da vitória da idéia, a coligação de todo o mundo contra a nação que busca a guerra para destruí-lo.
Esquecidas da ideologia, as leis da vida continuam funcionando por sua conta, acatadas de igual maneira por todos. A China não se dá conta que, levantando-se como uma ameaça mundial de uma guerra atômica que as suas duas potências inimigas não querem, ela constitui a força decisiva para criar e manter a amizade entre a Rússia e os Estados Unidos contra ela, hoje seu inimigo comum. As amizades mais fortes não são tanto as determinadas pelo amor, mas as devidas à necessidade de defender-se de um inimigo comum. A este mesmo fato, num campo mais diverso, é devido o atual Concílio Ecumênico, a fraternidade entre católicos e protestantes, que é uma atitude nova, surgida agora, entre velhos inimigos em religião (como a Rússia e a China, inimigos por interesses opostos sob o mesmo ideal), mas que, agora que os interesses coincidem, se unem porque sobrevive a necessidade de defenderem-se de um inimigo comum, o Comunismo. E como no caso da China, a inimizade comum contra ela dos Estados Unidos e Rússia, tem a força de fazer aliar Capitalismo e Comunismo, assim também é uma inimizade comum, neste caso contra o Comunismo, que tem a força e o mérito de fazer conciliar duas religiões até ontem inimigas implacáveis. Não podemos fazer outra coisa senão admirar a leviandade do homem e a sabedoria das leis da vida.
O princípio fundamental é sempre o mesmo: unificação de elementos individuais, formação de um grupo, sua expansão imperialista. Isto é verdade para a Rússia, China, Estados Unidos, como para as religiões cristãs divididas. E é também verdade para todos o princípio de que a aliança entre inimigos se produz em seguida por defesa própria, logo que aparece um inimigo comum. O que prevalece sobre todas as ideologias é esta realidade da vida; que se encontra escondida, trabalhando atrás delas. Ela, na medida do possível, se adapta a si mesmo, as transforma, as inverte e, se não pode, as repudia e se liberta delas. Esta é a história da descida dos ideais à Terra. A vida quer, antes de mais nada, continuar, e portanto aceita os ideais quando lhe servem para os seus fins, os utiliza onde e até que eles sejam utilizáveis para ela, e se não lhe servem, os lançam fora como um inútil estorvo. Aceita-os quando lhe convém para evoluir, que é contudo um dos seus grandes fins; mas logo que esta evolução se torna demasiado arriscada para a sua existência, a vida está pronta a retirar-se às suas posições mais atrasadas, mas mais seguras.
Dissemos anteriormente que as revoluções têm um ciclo pré-estabelecido. Como elas fazem parte do fenômeno da descida dos ideais à Terra, que estamos agora estudando aqui, pode ser interessante observar a técnica de desenvolvimento deste ciclo. Poderemos assim compreender a estrutura, o significado e a função biológica das revoluções. Elas representam uma tentativa da vida de realizar um salto para diante no caminho da evolução, com o fim de superar a velha ordem e para estabelecer uma nova. A realidade biológica contra a qual o ideal se choca é a velha ordem que resiste para sobreviver.
Uma revolução para poder vencer deve apoiar-se sobre um fundo biologicamente vantajoso que justifique e sustenha, deve ser um meio de superação e de conquista de novos valores, e, detrás de um manto teórico da ideologia, deve possuir algo de substancialmente vital, de solidamente positivo para a existência; deve enfim, realizar-se em função da evolução, lei fundamental da vida. De outra maneira não se trata de uma revolução, mas só de um “complot” com finalidade de partido, que não interessa a evolução. Assim, o tipo de ideal ostentado com palavras tem importância relativa. A vida tem uma inteligência própria, sabedoria e vontade, e a ela lhe interessa – e por isso permite que triunfe – o que lhe serve para os seus fins. Por isso a mecânica das revoluções é mais ou menos a mesma para cada um dos seus tipos, sejam políticas, sociais, econômicas, religiosas etc. A lei que lhe regula o desenvolvimento parece seguir um mesmo modelo.
Antes de manifestar-se, as revoluções preparam-se num período de incubação subterrânea, como de maturação no subconsciente coletivo. O primeiro movimento é teórico, abstrato, nasce no cérebro de um pensador isolado. Só se a sua idéia corresponde aos desejos e serve para as necessidades da maioria, ela terá seguidores, será traduzida em fatos e adquirirá valor prático. A este primeiro período de preparação sucede a fase de explosão na qual a nova idéia se afirma, realizando-se concretamente. Isto acontece em dois momentos sucessivos: destruição da velha ordem e respectivo poder, e a implantação e primeira estabilização do novo. Neste período a idéia é arrancada das mãos do pensador que a fez descer à Terra e passa à dos homens de ação que se apoderam dela para transformá-la em realidade. São necessários instrumentos diferentes, utilizados cada um segundo as suas capacidades, porque quem sabe pensar não pode estar especializado na ação, e quem sabe atuar não o pode estar no pensamento. Eis então que o desenvolvimento da revolução conduz a outra fase decisiva, que é de expansão, pela qual a idéia de origem se irradia, é lançada para longe, é difundida no mundo. Assim sucedeu ao Cristianismo (apóstolos que o levam até Roma), com a Revolução Francesa (guerras napoleônicas), com a Rússia que conquistou estados satélites e a China. Depois disto se chega à fase de acomodação na qual se consolidam as posições conquistadas, legalizando-as com estrutura jurídica própria no seio de uma nova ordem. Esta é a idade madura, que é também a fase de filiação, da qual nascem as novas propagações, nem sempre fiéis a idéia-mãe, mas dela derivadas, mesmo que deslocadas as posições, afastando-se assim dela em forma de cismas (protestantismo, China). Período ainda vital, de expansão, mas sobretudo de aburguesamento, de engorda, tendendo ao descanso. Depois disto chega-se a fase final da cristalização ou mumificação, na qual o impulso original da idéia se esgotou e tudo se imobiliza e petrifica nas formas. Então o ideal, que pediu à matéria a vestimenta indispensável para poder tomar corpo no mundo, acaba por ser envolvido pelas superestruturas dela. O ideal é assim vencido pela matéria, a substância pela forma que se substituem a ele, o qual esgotada a sua tarefa, se extingue na Terra. Com isto se encerra aquele ciclo e, para continuar progredindo mais ainda, é necessário começar outro, uma nova revolução, seja ela política para uma nova ordem social-econômica, seja ela religiosa com bases mais profundas e uma doutrina mais avançada. É assim que o novo abre caminho, vai para a frente, e a evolução se realiza. É assim que, por impulsos sucessivos, os ideais se afirmam na Terra, vencendo a velha ordem das posições já conquistadas por ela e nelas entrincheirada para resistir, em nome de Deus, dos princípios, da justiça, da honestidade, das leis feitas, antes de mais nada, para ela.
Todos estes acontecimentos, do princípio ao fim, representam para o ser um esforço que é exatamente realizado para ascender no sentido em que a vida quer para evoluir. Esta, então, vendo-se secundada na ascensão do seu impulso fundamental, não pode deixar de encorajar semelhante esforço premiando-o. É por isso que, nas revoluções, pode verificar-se um aburguesamento e uma cristalização final, mesmo que isto pareça uma traição e falha. O desenvolvimento do fenômeno segue a sua lógica própria, que é a da vida, utilitária, não no sentindo do justo aproveitamento, mas de alcançar, evitando inúmeros desperdícios, o máximo resultado com um mínimo dispêndio de energias. A vida impõe esforços, mas sempre em vista de uma melhoria, o que é lógico e justo, porque ela, por meio da evolução, quer ascender do Anti-Sistema ao Sistema, o que significa querer salvar o ser do mal, da dor, da morte, ou seja, de toda a negatividade que afoga a vida tanto mais quanto mais é involuída. É instintivo, efetivamente, que os deserdados mais atrasados não arrisquem a vida numa revolução, nem que corram o risco dos seus perigos e esforço para nada, mas o façam para alcançar condições de vida melhores. De resto é por isto que a vida faz as revoluções, ou seja, para evoluir, o que significa melhorar, subindo em direção ao nível biológico mais elevado. As próprias religiões não puderam outro método para induzir os fiéis a praticar com sacrifício as virtudes, senão o de prometer uma recompensa, paradisíaca no além, um melhoramento de vida. É biologicamente absurdo realizar um esforço para nada, a revolução pela revolução, a renúncia pela renúncia. Um risco e um esforço não podem ser aceitos senão como um meio para alcançar uma vantagem que compense o esforço. A este esforço do ser de melhorar, corresponde-lhe, como é justo, uma ascensão. Mas isto implica em um prêmio merecido, conferido pela Lei ao ser, quando este o ganhou com o seu esforço. Os movimentos da vida realizam-se acompanhados pela balança da justiça. Eis a razão do aburguesamento. Este representa a compensação imediata, o melhoramento com o qual a vida atraiu o ser induzindo-o ao esforço, e com o qual ela recompensa a quem se esforçou para ascender. Com isto ela alcançou o seu fim que é o de substituir a velha ordem por uma mais progressiva. Isto nos explica também como é lógico, que tendo assim subido um degrau, a vida de momento tenda ao repouso, necessário a fim de se preparar a um novo impulso para a frente. A cristalização final representa o término desse processo evolutivo antes de iniciar um outro. Na economia da vida, esta fase representa o plano realizado e o fruto produzido, isto é, a execução de um passo a frente. Ela despertará quando tenha amadurecido a hora de realizar o passo seguinte.
Assim se desenvolve a técnica do fenômeno da descida dos ideais na Terra por meio das revoluções. Descida do alto significa de mais altos planos de evolução, o que é um conceito positivo. Trata-se de uma descida do que evolutivamente está em posição mais avançada, aos planos mais atrasados, para dinamizá-los e elevá-los mais em direção ao alto. E o que se encontra mais alto é o espírito que desce para elevar a matéria. É como uma descida do divino no mundo, um avizinhar-se do Sistema ao Anti-Sistema, para que este seja alvo. É um processo de redenção. É assim que quem se encontra mais em baixo sobe pela vertente da montanha da ascese, guiado e ajudado pela mão que Deus do alto lhe estende.
Tudo isto nos explica por que, na primeira fase da desci-
da do ideal, a fase explosiva, a idéia motriz que ele representa nos chega com toda a sua potência. Nela está concentrado o dinamismo do espírito, e por tal razão, neste seu primeiro período, o fenômeno se nos apresenta de forma explosiva, em expansão. Nesta fase, a sua função é a irradiação. Mas eis que esta tende a esgotar o impulso de origem e com isto a deter-se, o que se verifica depois de haverem sido realizadas as devidas deslocações biológicas, porque a vida as recebeu e as fixou em si para conservá-las assimiladas como novas qualidades suas. Chegada a este ponto, o lançamento da idéia alcançou a sua finalidade e de momento não existe razão para que ele exija outros esforços para realizar outros impulsos à frente. Então o processo genético acalma-se. O ser executou o seu devido passo e agora pode parar e repousar para acumular as forças necessárias para realizar um novo impulso evolutivo, consolidando-se ao mesmo tempo nas posições conquistadas. Assim trabalha a natureza, previdente e econômica. Para não romper o equilíbrio do
processo evolutivo e a fim de que possa realizar-se de acordo com os meios disponíveis, a vida procede prudentemente, por graus e antes de ascender a um nível superior, quer confirmar as conquistas no inferior. Não se pode edificar um plano sobre outro se, primeiramente não nos asseguramos que o precedente foi solidamente alicerçado, para poder com segurança continuar por cima dele a construção. É assim que há na história períodos de repouso, nos quais a vida momentaneamente suspende o seu esforço evolutivo e parece adormecer. Mas o que ela amadurece interiormente nestes períodos se percebe depois, quando irrompe uma nova explosão pela descida na Terra de um mais alto ideal.
Podemos assim traçar a linha que, na sua ascensão, a evolução percorre. O dinamismo do ideal levanta uma grande onda que conduz o homem a um nível biológico superior àquele nu qual teve início o movimento. Alcançado o ápice da subida, devido ao poder explosivo do ideal, a trajetória volta a descer, mas só até um ponto que está sempre num nível mais alto do que o precedente ponto de partida. Eis que depois das revoluções que representam por parte da Lei uma reação evolutiva em subida, verifica-se do lado oposto por parte do ser uma contra-reação involutiva, em descida, pela qual tende a regressar ao nível precedente sem no entretanto alcança-lo (nisto consiste o progresso), mas detendo-se um pouco mais acima, num ponto mais avançado do que aquele em que se iniciou o movimento precedente, ponto desde o qual será depois iniciado o novo impulso para a frente. A descida do ideal produziu pela explosão um abalo que rompeu os equilíbrios nos quais repousava a vida, deslocando-a e impedindo assim que ela reencontrasse os equilíbrios das posições anteriores.
Assim, por exemplo, Napoleão, filho da Revolução Francesa, resolveu regressar ao modelo monárquico, julgando possível fundar com a sua família uma nova dinastia, reproduzindo a estrutura social que a revolução havia destruído. Mas até esse nível não se podia já retroceder. A Revolução Francesa tinha terminado com o sistema monárquico de origem feudal, que era uma forma mental já superada. A esse plano de organização social já não era portanto mais possível descer. O projeto de Napoleão ruiu portanto como tinha de ser e esse sistema foi sendo abandonado pouco a pouco em todo o mundo. É assim que nestes períodos de descida tende-se a regressar ao passado (tentativas de reconstrução monárquica em França com Luís XVIII depois de caído Napoleão), procurando repetir os erros, os abusos, as culpas da classe que a revolução condenou e eliminou. Tentativa inútil, porque depois do abalo que recebeu, o velho sistema já não tem consistência e, se for reconstruído, prontamente desmoronará. Ao ponto de partida da revolução precedente já não se pode voltar. Este é o seu fruto. E quando tiver lugar uma nova, o seu ponto de partida estará mais alto de maneira a poder chegar, no ápice da nova onda, mais alto ainda.
É assim que a revolução comunista na Rússia, onde ela é mais antiga do que na China, tende a aproximar-se o capitalismo do tipo europeu e norte-americano, tornado modelo mundial de bem-estar. Voltou a descer, mas vão até ao nível do capitalismo czarista. A revolução espiritual do Cristianismo, já jurídica e economicamente assentada numa casta com poder político amalgamada com o mundo, seu inimigo, do qual adquiriu as qualidades, voltou a descer em direção ao nível do paganismo, mas sem alcançá-lo. Mas isto só temporariamente porque, por força o impulso em direção ao alto, teve lugar uma deslocação das posições anteriores. Assim, foi abolida a escravidão e na vida social foi introduzido um sentido de justiça mais profundo. O paganismo de Roma em 2000 anos foi levado muito mais para a frente, tanto que até lá já não é possível retroceder. E se tiver de surgir uma nova revolução religiosa, como é provável que aconteça por meio da ciência, ela não poderá mais partir do nível do paganismo, mas sim do nível muito mais adiantado que é o cristianismo atual, o que significa poder alcançar, no final da nova trajetória, um cume de onda evolutiva muito mais elevado do que aquele alcançado agora pelo cristianismo que partiu de bases muito mais atrasadas.
A revolução russa e a chinesa não estão de acordo porque se encontram em diferentes fases de desenvolvimento. A primeira mais velha do que a segunda. Como anteriormente referimos, a chinesa encontra-se ainda em fase explosiva, a russa em fase de estabilização. Esta já conquistou os seus estados satélites e realizou a sua expansão imperialista a que tendem todas as revoluções, como parte normal do seu processo de desenvolvimento. A Rússia chegou até Berlim como Napoleão invadiu a Europa. A China quer chegar até Calcutá, a África, a Austrália. A revolução chinesa é uma filiação cismática da russa. Trata-se de dois processos sucessivos que recordam a desintegração atômica em cadeia. A revolução russa, em sua fase explosiva, ateou fogo à chinesa, a qual depois se torna centro de uma nova explosão e expansão, ateando fogo a outros países. Tratando-se de dois centros de expansão, é natural que se choquem mutuamente. O resultado da mesma ideologia e impulso foi que a Rússia fez a sua revolução para si mesma, para a sua expansão no mundo, da qual a revolução chinesa é agora um efeito, enquanto que a China, uma vez captado o impulso recebido, o fez seu, de fato se fez causa independente, e agora também ela faz a sua revolução para si, para a sua expansão no mundo. O fogo se comunica, mas cada um o consome para si, ardendo à sua maneira. O mesmo poderá suceder em outras nações com respeito à China, se esta quiser e conseguir comunicar-lhes o seu impulso revolucionário. A passagem de uma idéia de um país para outro, de acordo com as diversas condições de fato que ela encontra, acaba por surgir em forma de cisma. Os filhos são uma conseqüência, mas nunca uma exata continuação da vida dos pais. A idéia transmite-se, mas depois cada um a adapta ao seu ambiente posição histórica. Assim, se o Comunismo se expandisse, teríamos dele tantos tipos diversos quantos seriam os povos que o adotassem. Não será instintivo nos filhos separar-se dos pais para seguir uma vida própria, independente?
Uma vez lançado um impulso, este continua autônomo. Assim o ideal ecoa na Terra, comunica-se de um pais a outro, emigra, se expande. As idéias da Revolução Francesa transplantaram-se para a democracia norte-americana assim como a idéia de Cristo arraigou-se em Roma. A semente é levada longe, em busca do terreno mais adequado para dar fruto. Essa semente foi depois levada para mais longe do que Roma e nos países anglo-saxões gerou o protestantismo, pelo qual outra raça utilizou para as suas necessidades, em forma diferente, a mesma idéia de origem. O processo da descida dos ideais realiza-se assim, não só na profundidade das almas transformando-as evolutivamente, mas também em superfície, espacialmente invadindo o mundo; realiza-se em períodos de esforço alternados com outros de descanso, para continuar depois, mais adiante, com outro esforço, a fim de chegar mais acima, para logo descansar e depois recomeçar de novo. Tudo isto parece-se com a construção de um arranha-céus, isto é, um plano construído acima de outro, servindo a construção precedente de base à seguinte, e assim sempre mais para cima. Virá o dia no qual o Comunismo, como o Cristianismo na sua forma atual, serão velhas idéias superadas, como seria hoje um movimento tipo Revolução francesa feito para destruir o sistema social do feudalismo. Para continuar evoluindo, o mundo necessita de outras revoluções, que partam de um ponto mais avançado, para chegar a um mais adiantado. Assim ele poderá alcançar formas religiosas e econômico-sociais mais evoluídas.
Os encarregados de executar o trabalho de personificar e divulgar na Terra o ideal são os tipos biologicamente mais avançados. Eles são incumbidos do lançamento de novo impulso, e por isso chamados em missão como dinamizadores da vida. Eles representam a idéia que desce dos planos superiores do espírito, são o fulgor de pensamento que se descarrega na Terra, em nosso mundo. Este é a matéria, mulher, passiva, que espera o homem fecundador que se aproxima dela numa atmosfera de destruição para refazer tudo desde o princípio, dele aceita e absorve o poder para dar-lhe forma concreta na vida. No processo da descida dos ideais, os dois elementos se unem e ficam juntos para colaborar na gênese do novo. À idéia corresponde o dever de arrastar as massas, mesmo que isto signifique submergir-se no lodo. Às massas o dever de aceitar e absorver. Enquanto a idéia apresenta e lança o pioneiro da evolução, as massas fornecem a matéria para plasmar o rebanho dos seguidores. Forma-se assim um processo de colaboração. Mesmo que lutem um contra o outro, mais ainda, precisamente porque lutam, os dois termos se abraçam. Se eles são inimigos, se chocam, mas para se conhecer melhor. Com efeito, ao homem do ideal o mundo oferece o martírio, porém, logo depois de ter feito dele uma vítima, o glorifica e o venera. Assim se explica a contradição humana pela qual a perseguição é o precedente natural e habitual da aceitação e exaltação. Mas isto não é contradição. Trata-se só do choque entre dois termos opostos, de dois momentos diversos e necessários do mesmo fenômeno. Assim este se desenvolve num encadeamento de causas e efeitos, pelo que no fim, do incandescente impulso de origem não restam senão as conseqüências fixadas na forma da vida. Mas isto é precisamente o que a vida quer, porque então a finalidade da descida do ideal foi alcançada, que é a de realizar a evolução. Num mundo em que a existência consiste num continuo vir-a-ser e nenhuma posição definitivamente estática é possível, nenhum ser pode permanecer fixo em condições de imobilidade. A descida dos ideais realizada em ondas sucessivas marca o ritmo do universal processo evolutivo, o anima e sustém, para que ele eleve e arraste tudo até Deus.
lI - O Evangelho e o mundo
Continuemos observando a luta entre os dois termos opostos: o ideal e a realidade da vida, cada um deles representado pelo seu biótipo - o evoluído ou o involuído, cada um com a sua moral: por um lado a da superação, apontando a planos superiores de evolução, por outro o da sobrevivência na Terra, consolidando-se e radicando-se. Trata-se de duas concepções opostas, ou se vive em função da Terra, isto é, da vida presente no mundo, aderindo-se a ele, ou se vive em função do céu, isto é, de outra vida futura, situada num mais alto nível biológico. Neste último caso, se descuidam as realizações imediatas com vista nas mais longínquas, como faria o homem econômico que trabalha e leva uma vida modesta no presente para poder um dia gozar de um futuro folgado. A existência presente então não é um fim em si mesma, mas serve somente como preparação para outra melhor. Esta foi a concepção da Idade Média cristã e das religiões. Mas só com as teorias da evolução e da reencarnação se tornam racionalmente aceitáveis semelhantes conceitos. Eles surgem sobretudo quando as condições de vida são tão duras, que se é induzido a buscar uma fuga do mundo, tomado feroz selva inabitável, a procurar uma evasão e compensação para, pelo menos, sobreviver nalgum lugar. As coisas do mundo não são más, mas quando se faz delas um mau uso, elas ficam envenenadas por este uso, de maneira que a vida as repele. Neste sentido Cristo faz-se inimigo do mundo. Se hoje o instituto da propriedade é combatido, é porque, de um fato tão justo e natural, tanto que também os animais o conhecem e admitem, comete-se tanto abuso, que pode tornar-se um mal o permitir a posse.
Na Terra podemos constatar a presença de duas morais opostas. Pode-se sacrificar a sobrevivência pela superação, isto é, a vida presente para ganhar a vida futura. Como pode-se sacrificar a superação pela sobrevivência, isto é, a vida futura para gozar a vida presente. As duas vantagens não se podem obter. Sobre estes conceitos se baseia a moral das religiões, sobretudo do Cristianismo, No entanto falando elas somente de céu e de paraíso não dão uma explicação lógica e ponderada, deixando um problema tão vital no estado nebuloso de fé, enquanto ele aparece claro, com a teoria da evolução. Todo indivíduo escolhe um ou outro caminho, segundo o ponto de referência em direção ao qual a sua natureza o leva. O imaturo é atraído pelo mundo, nele encontra o que gosta e lhe serve para realizar-se. Quem está, maduro para dar o salto à frente em direção a um superior nível evolutivo não é atraído pelo mundo, onde não encontra o que gosta e lhe serve para se realizar. Assim lhe vira as costas e busca noutra parte onde possa
melhor realizar-se segundo a sua natureza.
O contraste das posições faz que onde um afirme o outro
negue, onde para um há vantagens, para o outro há perda. Cada juízo e apreciação depende da posição que se assumiu. Passando de uma a outra se inverte a tábua dos valores. É lógico que seja assim, porque o relativo é a nossa dimensão, na qual vivemos. As mesmas coisas podem ser vistas em função do céu ou da Terra, o que leva a conclusões opostas.
Que sucede então quando os ideais descem à Terra onde
naturalmente eles são vistos e entendidos em função desta que é o ponto de referência humana? Que faz o involuído com este material, destinado, pelo contrário, para os maduros que querem afastar-se da Terra? A sua vida será uma negação contínua das coisas do espírito, enquanto que a dos maduros será uma negação contínua das coisas do mundo. É assim que no mundo, de fato, não encontramos o ideal, mas sendo o tipo involuído a maioria, encontramos a tentativa de inversão do ideal; mais do que uma elevação e santificação em direção ao alto, encontramos um seu abaixamento e corrupção em direção à animalidade. Observemos este fenômeno
para dar-nos conta do que, por detrás das teorias e das palavras, vemos existir nos fatos, contradição da qual noutro modo não saberíamos encontrar a razão. Este é o ambiente no qual o evoluído deve estar imerso, para a sua santificação: um mundo carregado de animalidade, tratando de mascarar tudo o que é espírito para o sufocar e dele se libertar. Dada a diversa moral do mundo e as suas finalidades, é natural que aqui o ideal seja tomado em consideração sobretudo para torcê-lo e adaptá-lo. Aqui ele é um estranho, um intruso, que pretende impor a sua lei em casa alheia. Ele representará o futuro, mas hoje na Terra, no atual grau de evolução, representa uma deslocação anacrônica, algo fora de lugar, em contraste com a realidade da vida. Que pretendem fazer os anjos no reino da animalidade? E que diriam eles se representantes desta pretendessem colocar-se no céu, isto é, no seu mais avançado nível de evolução, para impor ali as suas próprias leis atrasadas?
Tomemos o caso do Evangelho. Observemos como ele pode aparecer, visto com os olhos do normal tipo animal-humano, bem afirmado no seu nível biológico, com a sua correspondente forma mental, que o leva a julgar tudo em função da terra, seu ponto de referência. Para este, fechado dentro desta realidade, o Evangelho parece um absurdo contra o qual é a vida mesma a que se rebela e através dos instintos lhe impõe rebelar-se. Mas eis que este absurdo lhe é pregado, proposto como exemplo de coisa superior, imposto para seu bem, enquanto a realidade da vida lhe diz algo bem diferente, ou seja, que tudo isto significa sacrifício, renúncia, sufocação, dor. A compensação que justifica tanta perda está longe, nebulosa, situada no além, somente objeto de fé, não controlável. Será, pois, verdade? A vida nos ensina que é melhor não confiar.
No entanto, o certo é que também a Terra tem a sua lógica, a sua moral, as suas leis, e que estas costumam aplicar duras sanções a quem as viola. Se no céu há um castigo para quem faz o mal, na Terra há o castigo para quem, com o fim de fazer o bem, se deixa esmagar. Aqui o que importa não é o bem ou o mal, mas a força e a astúcia para vencer, não a justiça. Aqui comanda a lei
da luta pela vida e quem não lhe obedece é severamente castigado. Cristo foi morto porque violou as leis da Terra, e o fez na casa delas onde elas dominam, naquela casa onde Ele desceu vindo da Sua, situada bem longe nos céus. Ele desafiou o mundo e este lhe fez pagar caro, a sua revolta: respondeu-lhe tratando-o, demonstrando com isto ser o mais forte na própria casa e, como tal, ter direito à obediência. Se as leis do céu castigam o violador com o inferno, as da Terra o fazem com a morte. E se Cristo quis viver, teve de fazê-lo fora da Terra, indo embora e ressurgindo noutro tipo de vida nos céus, enquanto aqui em baixo ficaram vivos e vencedores os seus inimigos. As leis do inferno, como as da Terra, não ultrapassam os seus limites mas dentro destes elas são donas absolutas. As compensações extraterrena não interessam ao mundo. Para ele estas vitórias sobre-humanas são uma fuga da vida, porque para ele a vida terrestre representa a vida toda. Para os terrestres as contas saldam-se em seguida, na própria Terra, não lhes importando o céu e as suas superiores compensações futuras.
Trata-se de duas leis e morais opostas, que se negam reciprocamente, e cada uma em casa própria castiga quem segue a lei e a moral da outra parte. Aquilo que para uma é culpa e portanto castigado,
para a outra é virtude, e portanto premiado. O prêmio no céu é então pago com o castigo na Terra, mas também o castigo no inferno é compensado com um precedente gozo na Terra. Assim se explica como tantos preferem tomar, antes de mais nada, as satisfações terrenas mais imediatas e tangíveis para não perder o certo pelo incerto, dado que não se pode usufruir simultaneamente de ambas.
Mas o engenho humano não parou por este motivo. Então, na tentativa de usufruir de ambas, surgiu a escola das adaptações, especializada na função de conciliar os dois opostos, para extrair vantagem de ambas, diluindo em soluções suportáveis somente uma determinada percentagem do Evangelho, de modo a ir assim para o céu sem grande incômodo. A louvável tentativa não deu como resultado senão um produto híbrido, que não é nem céu nem Terra, mas sim um céu que se mentiu e se corrompeu na Terra, e uma Terra que, em lugar de sanear-se, procura corromper o céu. Dado isto pode verificar-se o fato de que quem gosta de fazer coisas com seriedade ao seguir a Cristo e ao Evangelho, encontra-se condenado não só pelo mundo, seu natural inimigo, mas também pelos
acomodados bem-pensantes que em bandos se aninham dentro das religiões. Pode suceder assim que o verdadeiro cristão se encontre isolado, contra a corrente, repelido pelo mundo e olhado com suspeita de não ortodoxia pelas religiões adaptadas à forma mental terrena da maioria. Não foi Cristo crucificado precisamente por isto, por uma religião que havia acabado por representar somente interesses terrenos? Ele era inimigo do mundo, não da religião. Se esta o condenou foi porque ela tinha acabado por representar o mundo, inimigo de Cristo. Assim se explica a contradição pela qual pode acontecer que o santo seja condenado em nome de Deus, precisamente por aqueles que se declaram Seus ministros. Se Cristo tivesse sido somente um teórico idealista o Sinédrio não se teria incomodado tanto por Ele. Mas a reação foi grande porque a pregação de Cristo tocava interesses vitais de sobrevivência e ameaçava os alicerces materiais do clero de então.
Isto permanece verdadeiro para todos, grandes e pequenos, pois a lei do fenômeno é a mesma e repete-se em cada caso. A descida dos ideais não pode ter lugar senão através do sacrifício de quem procura realizá-la, porque tudo na Terra se coliga contra ele; martírio que lhe inflige o tipo dominante de involuído inclusive em nome de Deus (Sinédrio) e da justiça (Pilatos), isto é, por aqueles que, professando-se defensores do ideal, o usam invertido, mostrando-nos assim que uso se pode fazer dele na Terra. O mundo rebela-se contra os ideais que o incomodam; ele quer a religião ajustada com um trabalho milenário às suas comodidades, uma religião feita de práticas exteriores que, depois de satisfeitas, não impedem fazer os negócios e interesses de cada uru, sem se dar conta assim que demonstram não saber o que é religião, isto é, entender de substância e não de forma.
Pode suceder deste modo um fato estranho. Quando se trata de problemas religiosos, a reação e condenação contra qualquer erro é tanto mais provável e decidida quanto mais com as teorias são atacados os interesses humanos. Em cada grupo humano em geral se é induzido a conceber a idéia inicialmente em função da sua utilização terrena. De que serviria de outro modo na Terra? Não se saberia o que fazer com ela. Então aquele que vê a idéia em si mesmo, pela sua realização, e não em função da sua utilização terrena, é repelido porque vai contra a corrente, é condenado como inimigo do ideal, quando, na verdade, é o seu melhor amigo. o erro nasce do fato de que o Cristianismo parece representar Cristo, quando no entanto não é senão uma adaptação para si mesmo que de Cristo fez o mundo, seu inimigo. Então é amigo da religião quem está do lado do mundo e não quem está do lado de Cristo e na Terra não pode ser senão assim. Por lei biológica de conservação, para qualquer grupo humano ò que mais interessa não é tanto o conhecimento ou a verdade, mas a defesa da própria posição terrena. Defendem-se os altos princípios quando levam à posição do "eu comando" e portanto do "tu obedeces". Isto é o que mais importa. O ideal é um meio mais do que um fim. Não se discute sobre a autoridade própria e a obediência alheia. Assim, se tu obedeces, então és bom, de boa moral, louvável e premiado. Mas se tu te colocas na posição de "eu comando", então certamente desencadearás imediatamente a batalha entre rivais no poder, mesmo que hajas atuado assim para não ceder às acomodações e para salvar a integridade da idéia.
Quando o homem fez dizer de Deus: "Eu sou o Senhor, teu Deus, e não terás outro Deus senão a mim", expressou um pensamento próprio, antropomórfico, imaginando para si um Deus feito à sua imagem e semelhança. A base de cada posição consiste em assegurá-la, eliminando os rivais. Esta é a lei do grupo e o direito do seu chefe. É ortodoxo quem é praticante, mesmo que não creia, quem trabalha a favor do grupo ainda que não lhe interesse a idéia; e pode parecer herege quem se apaixone por ela, pela pesquisa da verdade, pelo progresso espiritual, quem sente a febre das conquistas superiores, sobretudo se, por amor à verdade e honestidade, mostra lacunas para eliminar defeitos. Quem não nos apóia e não se coloca de nosso lado, julgamos inimigo da verdade que é a nossa, aquela sobre a qual se baseiam os nossos interesses. Este conceito na Terra é à base dos juízos, da razão, ou do erro, da aprovação ou da condenação. A idéia de verdade e de justiça está na Terra ligada à do poder do soberano que as outorga. E é verdadeiro e justo o que a ele lhe agrada no seu interesse; tudo dele obtém-se, portanto, tornando-se-lhe agradável, prostrando-se perante ele em obediência. Se esta é a forma mental humana que se construiu na sua história, como impedir que esta representação antropomórfica sobreviva nas religiões? É assim que esperamos obter algo de Deus não por princípio de justiça e de merecimento, como quer a Lei, mas exigindo de Deus, por um caprichoso favor, tentando torná-lo propício, subornando-o com sacrifícios e ofertas.
Há uma grande diferença entre aqueles que criticam a religião com espírito agressivo, de destruição, e os que notam a sua posição atrasada para que tudo progrida e melhore. No entanto ambos os casos são confundidos e freqüentemente recebem o mesmo tratamento. É o caso de Savonarola. Fala-se inclusive de reabitá-lo. Na Terra, quem não apóia e participa é julgado inimigo. Vê-se assim um ataque onde não existe. Mas tal é o espírito de luta com o qual se rege a sobrevivência do grupo armado em defesa própria, que se é levado a reagir contra qualquer dissidência, mesmo quando ela está a favor dos princípios sobre os quais se baseia o grupo. Não há nada que irrite tanto os acomodados como denunciar as razões das suas acomodações. O interesse maior de quem utiliza o ideal para finalidades terrenas é precisamente o de esconder este fato e o de fazer ver que segue fins espirituais. Como se pode harmonizar quem quer fazer as coisas seriamente com quem se limita só às aparências? É verdade que o primeiro tipo aparece o segundo como um grande perturbador, que urge eliminar. Ele incomoda mais do que os ateus materialistas, que é mais fácil combater, porque eles se colocam em posição de inimigos, enquanto este fala em defesa dos mesmos princípios, convidando a observá-los. É assim que o melhor amigo do ideal é tratado como o seu inimigo. Não foi este o caso de Cristo? Cuidado com o lamentar-se da falta de religiosidade das religiões. Por ser verdadeiramente religioso, se é condenado por irreligiosidade. Mas por outro que fazer se a forma mental humana é tal que não sabe conceber nada, mesmo quando se refere a Deus, senão em função da sua utilização terrena? Na prática o que agrada mais ao grupo é o espírito sectário que o defende, é a intransigência contra os outros grupos. O resultado é que, quem não pode dentro desta psicologia, é obrigado, para permanecer religioso, a isolar-se, eliminando as formas exteriores que, encerrando o indivíduo num grupo ou noutro, lhe exigem tudo isto. Assim ele acaba por ficar só com Deus, seguindo uma religião não de palavras mas de fatos, não de forma mas de substância. Mas trata-se de casos excepcionais que não interessam às massas que não sabem funcionar senão como rebanho, formado de indivíduos aos quais não podem ser concedidas semelhantes liberdades, porque eles carecem de consciência, autocrítica e sentido de responsabilidade, desconhecimento, qualidade do evoluído.
No entanto é a tais seres, expulsos das filas, que é confiada a função evolutiva da realização dos ideais que descem à Terra. Por isto Cristo se encarnou, a impulsionar para a frente a humanidade, para que no mundo se começasse a aplicar a lei de um nível biológico superior. Ele foi um pioneiro da evolução, em posição de vanguarda, uma antecipação de nosso futuro, porque evoluir é uma tremenda necessidade da vida. E todos os seguidores de Cristo são os seus colaboradores neste imenso trabalho. Esta é a função biológica do ideal, o significado da sua descida na Terra.
Ora, o que faz o indivíduo, em particular, decidir na escolha de um ou outro destes dois caminhos, isto é, o do ideal, por ele sacrificando a vida no mundo, ou o do mundo desfrutando do ideal para a própria vida? Esta decisão é oferecida a todos, mas as respostas são diferentes. Há quem se sacrifique para segui-lo, e quem o prostitui e faz comércio com ele. O indivíduo pode escolher entre a verdadeira e a falsa religião, entre a de substância, muito cansativa, mas feita para ascender, e a da forma, cômoda, mas feita para perder tempo. O que decide é a natureza do indivíduo, que segundo ela se sente instintivamente atraído por um lado ou pelo outro, mais a gosto num ambiente do que noutro. O involuído vai para um lado onde está todo o mundo pronto a recebê-lo. O evoluído vai para o outro onde Cristo espera estes solitários incompreendidos. Os dois tipos se separam. Um dos dois caminhos vai em direção à Terra, o outro vai em direção ao céu. Parece que o primeiro se dirige para o céu, mas o que importa não é a aparência, e sim a substância. Há indivíduos que se encontram perfeitamente à vontade onde outros se sentem sufocar. Quem gosta de usar a sua inteligência para obter imediatas vantagens terrenas, mesmo que assim prostitua o ideal, as obtém, e com isto é compensado pelo seu trabalho e valor. Mas existe também quem não pode, não sabe fazer tão mau uso da sua inteligência e se sente inclinado e utilizá-la para fins mais elevados Então elege o ideal e alcança compensação, mas não na Terra, porque não é esta a sua sede, não é aqui que lhe pode ser pago semelhante trabalho e valor. Tais evoluídos são poucos, porém, e as religiões, que estão feitas para as massas, devem conformar-se em levar um pouco mais adiante a animalidade humana. Trata-se de um trabalho elementar e pesado, o de disciplinar e educar o animal para transformá-lo num homem. o evoluído não pode deixar de avançar sozinho mesmo que se mostre obedientíssimo, independente em substância, como é o espírito, fiel ao ideal, mesmo que a sua religião para ser mais próxima de Deus possa parecer ao mundo irreligiosa e herética. Em qualquer sociedade, quem se encontra fora dela, porque está por cima ou por baixo da média normal, a que faz a lei, é sempre segregado e um condenado, seja porque ele está demasiadamente adiantado (o super-homem), seja porque está demasiado atrasado (o delinqüente) .
Voltemos ao caso do Evangelho. Que acontece quando ele se encontra perante o mundo, isto é, quando ele, que representa a lei de um plano evoluído superior, vem conviver e com isto chocar-se no mundo com a de um plano inferior? Que reações se desencadeiam? Trata-se de um choque entre elementos e impulsos diferentes, com determinadas reações estabelecidas por leis que regulam o fenômeno como nas combinações químicas. Ninguém nega a beleza do ideal. Mas que sucede quando queremos aplicá-lo no ambiente terrestre? O ideal exige honestidade, bondade, altruísmo, desinteresse, justiça, isto é, sacrifício do indivíduo em benefício dos outros. A lei da Terra fala bem claramente: só ao mais forte, que sabe vencer com qualquer meio, pertence o direito de viver. Ao débil reserva-se somente ser escravizado, explorado, devorado, e por fim eliminado. Ora, não importa porque princípios superiores, mas na Terra o Evangelho quer colocar o indivíduo nesta posição de débil, porque o desarma, impõe-lhe a não resistência, para que, mesmo que seja forte e o assaltem, não se defenda e seja assim devorado e eliminado. Resumindo em poucas palavras, que o mundo entende, à força de virtuosas renúncias para si e generosas concessões ao egoísmo dos outros, o Evangelho quereria fazer do indivíduo este tipo paciente e golpeado que na Terra, para se aproveitarem dele, é o mais procurado, o cordeiro, com cujas carnes, banqueteando-se, os lobos podem engordar. O Evangelho diz: "Vai à floresta cheia de feras, mas sem armas, para abraça-las e amá-las". Mas as feras querem a sua carne para devorar e não o seu amor, e se apressarão em destruí-lo. Como respondeu então o mundo ao convite evangélico? Conhecendo o seu ambiente, não perdeu a cabeça. Respondeu, usando o Evangelho como bela teoria, para pregá-lo, tanto mais que ele podia ser utilizado para transformar os lobos em cordeiros e assim engordar melhor, banqueteando-se com as suas carnes.
Se queremos compreender o que acontece na Terra, devemos referir-nos às leis biológicas até aqui imperantes e não às estruturas metafísicas a elas sobrepostas, situadas fora dessa realidade. Esta nos ensina que a vida, no ambiente terrestre, não se baseia na bondade e justiça, mas sobre a força e o engano. Qualquer vantagem que se queira obter, é extraída com estes meios, porque de outra forma ninguém a concede. É sobre estas bases que de fato se apóiam as relações com o próximo, isto é: "devora a teu próximo, se não queres que o teu próximo te devore". Então cada um poderia replicar: "Se eu escuto o Evangelho e o sigo de verdade, quem defenderá, depois, a minha vida? Ele, em compensação, me oferece o paraíso, mas na Terra me deixa morrer. Tratará da ascensão a um plano de vida superior, mas eu devo primeiro viver a minha vida no nível evolutivo atual". A religião, com efeito, pede sacrifícios com vista a benefícios longínquos, mas o que nos oferece para o que é mais urgente, a proteção na luta pela vida? Poderá santificar-nos depois da morte se isto serve aos seus fins e Se há quem esteja interessado nesta santificação. Mas tudo isto de nenhum modo nos ajuda na vida, e depois de morto nada pode acrescentar ou tirar ao que de falo se é perante Deus.
O Evangelho diz: "não sejas egoísta, pensa nos outros antes que em ti mesmo". Mas ele pode responder: "os outros pensam em si mesmo em vez de mim". Então tudo se resolve numa espoliação. O dano é imediato, tangível, e a recompensa longínqua, misteriosa. Como pois, dadas as leis da vida que vimos anteriormente, o indivíduo não deve rebelar-se a isto que pode parecer um atentado à sua vida? Como pode o seu instinto utilitário, anteposto pela natureza para sua conservação, aceitar uma mudança tão incerta e arriscada? Primeiro viver e só depois evoluir e não deixar-se morrer para evoluir. A vida em função dos seus fins é prudente e econômica, não admite portanto tais desperdícios de seus valores. O instinto de conservação foi-nos dado por Deus para continuar vivendo, e será que nós, para conquista dos ideais, deveremos violá-lo, com o belo resultado de deixar-nos matar pelos piores, que ficam assim vencedores, estimulados com isto ao mal por nós mesmos? Pode Deus pedir-nos que busquemos voluntariamente semelhante suicídio? É verdade que não nos matamos, mas isto, além de um convite a fazer-nos matar, procurando a morte ao colocar-nos em condições de ser liquidados, não é também instigar os demais ao homicídio? O Evangelho pode significar culpa de suicídio para nós, nossa culpa de favorecer a culpa de homicídio por parte dos outros, tudo isto para chegar à liquidação dos bons e a uma seleção de maus. Se os lobos o destroem, a culpa é também do cordeiro que se oferece como sua vítima. A luta na Terra é lei, a defesa, um dever, tanto que a vida castiga com a morte a quem não o cumpre.
O impulso da evolução, a atração para Deus, poderão prevalecer em indivíduos excepcionais, chegados ao limite onde explode a hora da superação, por haver atravessado todas as experiências humanas. Mas para as massas submersas ainda na animalidade, pedir semelhante sacrifício representa só destruição de vida, porque o involuído, além da sua vida terrestre, não sabe ainda conceber outra vida superior. Sucede então que na luta entre Evangelho e mundo, o primeiro por ser aplicado aos imaturos, não pode manifestar-se senão como força negativa, a da destruição da vida inferior, a do animal, sem podê-la substituir pela superior, a do homem e super-homem, porque para o primitivo a primeira representa a vida toda, e nada lhe fica se a tiramos. Assim, na Terra, realiza-se do Evangelho a parte que é negação da vida do nível animal do homem atual, enquanto não alua a parte que é afirmação de vida num plano evolutivo mais alto. A vida não pode aceitar um Evangelho que na Terra se apresenta em forma anti-vital em relação ao ambiente, como perda e não como benefício, como negação e não como afirmação. É certo que se o ponto de referência não é mais a Terra, mas o céu, então a negação se toma afirmação e a afirmação, negação. Também o involuído possui a sua afirmação, mas ele está a favor do mundo, anti-evolutivo, é e quer permanecer atrasado no seu nível, sem arriscar-se em aventuras evolutivas para as quais o indivíduo está maduro. Ele não pode sair repentinamente do baixo nível da sua animalidade que constitui a sua natureza, a sua sabedoria, toda a equipagem de que dispõe para poder continuar vivendo. Não, se podem transportar as feras para fora da floresta onde vivem como tais, como é a sua aptidão e como exige a sua vida; transportá-la para um ambiente civilizado significa matá-las.
De tudo isto se poderia concluir que a proposta que o Evangelho faz ao mundo não é aplicável, coletivamente. Até que isto não suceda, ao pioneiro isolado não lhe resta senão o martírio, o ambiente a ele hostil e a fuga com a morte. O seu sacrifício o eleva, mas na Terra o mata. A economia da vida terrestre baseia-se em outros princípios. O Evangelho é realizável no mundo em forma estável somente num regime de reciprocidade, pela qual cada um, por lhe ser indispensável para sobreviver, recebe uma compensação do que faz com o seu sacrifício para o bem dos outros, e reciprocamente. Mas onde esta reciprocidade não existe, o Evangelho significa sacrifício somente por parte de quem o aplica e aproveitamento às suas custas por parte de quem recebe e não corresponde.
O resultado é que o Evangelho, isoladamente vivido na Terra, leva à sufocação do indivíduo. Isto poderá constituir um supremo holocausto, uma sublime conquista evolutiva. Isto poderá interessar ao indivíduo maduro que está pronto a superar o atual nível biológico para dele se evadir a outro mais avançado. Mas estas coisas estão fora da realidade da vida tal como é para a maioria no ambiente terreno, a qual nem sequer as examina. Tais problemas de que agora tratamos aqui são na prática resolvidos facilmente ignorando-os e nem sequer pensando neles. A vida não pode prosperar, alimentando-se do sacrifício próprio a favor dos outros e de abnegação para si. O que é vida para os outros que disso se aproveitam, é morte para quem busca a utilidade deles em vez da sua própria. Onde há um que manda deve haver quem obedeça; onde há um que goza deve existir o que paga essa satisfação; direito de um se baseia sobre o dever do outro. A generosidade e o altruísmo como no caso do amor materno, Tem na vida finalidades definidas, calculadas por ela e não se podem generalizar. Quem evangelicamente se carrega de deveres oferece aos outros oportunidade de se investir de direitos. Quanto mais virtuoso e bem educado é o indivíduo, mais espaço oferece aos viciosos e mal educados. Enquanto um se retrai o outro avança. O altruísmo de um serve para que possa afirmar-se melhor, para seu dano, o egoísmo dos outros para sua vantagem.
O Evangelho poderá tomar-se uma norma de vida na Terra, e não ser somente um método de fuga para os evoluídos maduros a emigrar para mundos mais avançados, quando comando e obediência, direitos e deveres, o gozo de um e o esforço do outro, virtude e educação, forem de todos e não de poucos, porque enquanto não forem de todos, estes poucos pagarão por todos. Até que o Evangelho não se faça norma social da massa, fazendo progredir assim toda a coletividade até um nível biológico mais elevado, o referido Evangelho não poderá servir senão para ajudar os evoluídos a fugir do mundo, deixando aqui os piores.
Continuemos observando esta realidade na vida, que os fatos nos põem debaixo dos olhos. O evoluído vive em função de um futuro longínquo. Ele volta as costas ao mundo e segue o ideal. Mas isto não significa que para ele a lei da Terra não continue a funcionar. Ela não se detém por isto e o circunda e assalta a cada instante. A luta com o seu ataque não dá trégua. A presa é o homem do ideal que ama o seu próximo, que dá e perdoa, que ao egoísmo responde com o altruísmo, à voracidade alheia com a renúncia, à agressão com a não resistência. Ele é a vítima feita sob medida que, oferecendo-se, excita o apetite dos devoradores, prontos a aceitar o convite a tão guloso banquete, do qual podem gozar impunemente. Poderá haver algo melhor? Eis o verdadeiro, o grande ideal satisfeito.
Podemos então perguntar-nos: para que serve este deixar-se devorar gratuitamente? Que melhores qualidades isto estimula e desenvolve? O bem será totalmente para o evoluído que trata de ser eliminado do inferno terrestre. Mas para o que permanece ali, que resultados lhe produz realizar todo este mal? Para que serve este tomar-se evangelicamente cordeiros a fim de procurar ser uma boa comida aos lobos? A função do Evangelho seria então a de fazer uma criação de cordeiros para alimentar os lobos, estimulando a sua voracidade. E para estes, estando conforme a sua forma mental, devorá-los é justo, porque se trata de débeis tontos. Tal é a lei da Terra, que quer que eles sejam eliminados. O forte na guerra não é para distinguir se quem é bom, o é por bondade ou por debilidade. Para o forte este é simplesmente um débil que como tal é mais útil e fácil esmagar. Existe depois o fato de que, em geral, o bom é assim porque não tem força para ser mau. Quem a possui, na Terra, não renuncia a ela e a usa na luta para a ofensiva e defesa em benefício próprio. Se não a Lisa, significa que não a possui e então nada vale, portanto é legítimo, fazer dele o que se quer, porque se pode fazer isto impunemente. A impunidade, a ausência de uma sanção punitiva, confere na Terra qualquer direito. Eis então que quando um indivíduo se deixa desarmar pelos seus princípios ideais, fica sem defesa, exposto a todos os assaltos, que não se deterão até que não terminem com ele. Segundo a -lei biológica do plano evolutivo animal-humano, não há nenhuma razão para que não se deva aproveitar da bondade do homem evangélico até tirar-lhe inclusive ¶a vida. Eis para que serve o Evangelho na Terra.
Que moral extraem os involuídos vencedores de semelhante experiência evangélica? O resultado os confirma no mal porque os encoraja o feliz êxito da sua empresa. Assim os bons tornam-se melhores e os maus piores, a separação acentua-se, subirá ao céu ainda outro santo e a Terra se enche cada vez mais de demônios. Culpa do Evangelho? Mas como impedir que o homem que é livre não faça o que quer em bem ou em mal? Assim os melhores se vão e os piores são lançados de volta no seu inferno terrestre.
A lição que nascerá desta experiência evangélica será diferente para cada um. Para o bom será o terror de uma vida reduzida a um calvário, da qual é felicidade libertar-se. Para o malvado que se aproveitou dele, o resultado será o de se ter aperfeiçoado na arte do aproveitamento do próximo, dado que a experiência vivida lhe confirmou a utilidade desta sabedoria, pelo prêmio que a vida lhe conferiu com as vantagens que, com semelhante método, lhe permitiu conquistar. Assim o mal é confirmado e estimulado pelo êxito enquanto deveria ter sido em seguida eliminado por meio da imediata dor, infligida ao agressor, e não infligindo-a, pelo contrário, à vítima. É assim que temos uma moral emborcada pela qual é premiado quem pratica o mal e castigado quem faz o bem. De tal forma, as leis da vida, tal como se apresentam no plano humano, com semelhante experiência tendem a ensinar o bom a que não repita mais tal aventura, para fortificar-se pelo contrário na luta. Por outra parte as mesmas leis, premiando com o êxito, estimulam cada vez mais os prepotentes na caçada aos bons evangélicos (que as religiões formam), para explorá-los e eliminá-los. Quanto mais cordeiros encontra tanto mais engorda o lobo. É incrível que não exista mais do que o medo à prisão para deter o ladrão, e quão pouca consciência se tem dos direitos e deveres inerentes à propriedade. Mas que fazer quando ela mesma pode representar a legalização de uma posição alcançável com qualquer meio? E é precisamente este qualquer meio o que se procura para depois legalmente legitimar para si o produto.
Pode ainda acontecer que o homem honesto levante a voz para que o Evangelho seja aplicado não só por ele mas também pelos outros, pelo menos pelos que o pregam e professam. Surge então a turba dos bem pensantes acomodados, santos por fora e astutos por dentro, grandes defensores dos ideais para que os outros os pratiquem, prontos a erguer-se e a condenar logo que se fale em fazer as coisas a sério. Mas esta é outra espécie de evangélicos. Eles sabem viver bem na Terra porque, sob o Evangelho, escondem as armas para a luta, habilmente como é necessário no mundo, aparentando serem suaves, humildes de coração. Assim se pode ser evangélico sem alterar a substância da vida, feita de posições armadas e defendidas. O Evangelho pode comodamente permanecer na Terra, mas utilizado desse modo em posição invertida. Ele assim se enxerta no mundo sem o negar, mistura-se com a sua lei de luta, mas para realizar a função de não deixá-la aparecer, de modo que seja mais fácil dirigi-la à custa dos ingênuos, e desta maneira melhor enganados .
Tampouco se pode dizer que os astutos, por causa da forma mental própria do plano biológico humano, não usem este jogo em beneficio próprio, com plena sinceridade, Assim esta moldada a sua consciência e assim ela lhes indica que ajam, encontrando confirmação nos bons resultados a que conduz tal método, experimentalmente provado. Por outra parte a lei da luta pela vida, significa regime de guerra, e na guerra tudo é lícito. Tal é a moral do animal-humano, como o agarrar para comer forma parte da moral da fera que por isto, não pode ser considerada malvada. Por que, nos planos evolutivos mais baixos, a vida não deveria usar a mentira, quando ela é útil para a finalidade maior que é a da sobrevivência? Tudo isto se torna imoral só num nível biológico mais avançado, mas no humano é percebido somente pelos poucos que estão emergindo dele. Quem não está ainda maduro para tal sensibilidade moral, mesmo que tenha aprendido a demonstrá-la com palavras, tais conceitos, por íntima convicção, lhe parecem perigosa utopia, ideal de quem vive fora da realidade.
Eis a que pode servir o Evangelho na Terra, e como ele pode ser utilizado para levar adiante, mesmo que seja fraternalmente, com armas escondidas, a própria luta, já que esta é a maior ocupação à qual é necessário dedicar-se para sobreviver. O jogo do engano, pelo fato de que no longuíssimo passado se demonstrou útil à vida, fixou-se como instinto no subconsciente e agora já funciona como automatismo, e apresenta-se assim como premissa axiomática da ação. Antes de extirpar tão inveterado costume se precisará de milênios de experiências em sentido contrário para chegar à construção de instintos opostos, de tipo evangélico, em substituição aos antigos, de tipo animal. Mas no nível evolutivo atual não se pode impedir que o involuído, por ser tal, não esteja convencido de que o Evangelho está otimamente utilizado deste modo, uma vez que A experiência lhe ensinou e continua ensinando que esse método produz indiscutíveis vantagens. Neste nível evolutivo a vida não castiga o astuto que engana, antes o recompensa porque com a sua astúcia deu prova de saber lutar. Ela, pelo contrário, castiga o ingênuo que se deixou enganar pelo astuto, para que por sua vez se torne ele também astuto e não se deixe mais enganar. Esta é a honesta moral biológica do nível humano anual de evolução.
É assim que o Evangelho permanece na Terra pregado, ensinado, repetido, mas sem entrar na realidade da vida. Quando não é emborcado ele fica de fora, utilizado para outros fins menos àquele para o qual foi feito. Ele é entendido como poesia, como ornamento da vida, uma evasão da sua dura realidade, uma realização do ideal feita com pouco esforço em forma de sonho e piedoso desejo, uma satisfação do sentimento, uma doce miragem de paz e bondade na qual tem trégua a guerra, uma terna carícia para distensão e repouso da luta, uma esperança de ajuda gratuita que nos cai do alto, um traço de céu que é belo contemplar, mesmo que se saiba que é ilusão. A vida gosta de construir estas superestruturas, embelezamentos seus, como as asas de borboletas de variadas cores e o canto dos pássaros, que no entanto a morte espera, logo que eles cometam erros na luta de cada instante para sobreviver. Assim o poeta canta e morre de fome o usurário engorda. Quem pensa no ideal em vez de pensar no lucro, acaba por ser liquidado. Sonhar na Terra pode custar caro. Assim funciona a vida, para isto está feito o cérebro humano, isto é o que o seu ambiente exige, estas são as aptidões que o homem teve de conquistar no seu passado. Se ele chegou até hoje, porque aprendeu tudo isto que o ideal combate, e se continua sobrevivendo é porque, para sua conservação, não está disposto a esquecer o que aprendeu. É a vida mesma que, na sua sabedoria, procura não o deixar esquecer. Todo o espaço vital à disposição do ser está ocupado por esta realidade. O que não está ocupado por ela e sobra é abandonado pela vida ao ideal. É certo que as coisas são bem diversas se, pelo contrário, se olha para o céu. Deste oposto ponto de vista, observá-las-emos mais adiante. Aqui quisemos sobretudo expor a forma de conceber própria do involuído. Observando a sua conduta, temos motivo de crer que ele, feito antes de mais nada para viver na Terra segundo as leis desta, pense deste modo, quando se encontra perante o ideal que desce do céu até aqui.
A vida, portanto, está construída de tal maneira que a vivemos em função ou do presente ou do futuro, da Terra ou do céu, involuído ou como evoluído. Se se ganha por uma parte não se pode evitar perder pela outra. Quem se interessa principalmente pelas coisas do mundo trabalha sobretudo para instalar-se bem na Terra, mas desinteressando-se da outra vida encontra-se no vazio no momento da morte. Quem, pelo contrário, se interessa primeiramente pela vida espiritual, trabalha para a superação e para situar-se bem num nível mais evoluído, encontra-se mal na vida por pesar sobre ele um trabalho duplo: a luta e a evolução, mas acha-se bem no momento da morte, quando se trata de entrar em novo mundo para o qual se preparou. O triunfo do involuído está na vida. O do evoluído na morte. São duas semeaduras e duas colheitas diferentes. Tudo está balanceado. Cada qual opera como crê e como melhor sabe fazer, segundo o que ele é. Tudo já está estabelecido nas leis da vida. Ao homem resta a liberdade de mover-se de uma à outra.
E isto não é válido só para o problema ético ou religioso, mas para todo problema biológico universal. Dentro dessa perspectiva sentimos e enquadramos o Evangelho, e não como base de uma determinada religião, porque só nesta forma ele vale para todos, e pode, de um modo positivo, ser tomado em consideração como lei biológica realizável pelo homem através da evolução, quando ele souber alcançar um plano de vida mais evoluído. Pode-se assim concluir que o Evangelho representa, na Terra, uma função biológica positiva, uma lei, porque ele existe para criar um tipo de vida superior adequado ao biótipo mais evoluído do futuro, não importando a religião ou a raça, mesmo que seja ateu ou materialista. O Evangelho significa assim um avanço, hoje em forma de ideal que ainda não se realizou na Terra; um programa que, por lei de evolução, deverá fatalmente concretizar-se amanhã, porque ele não é somente produto de uma religião qualquer, mas uma necessidade à vida.
VIII
DESENVOLVIMENTO DO CRISTIANISMO
Por que um indivíduo que, movido pelas mais sinceras e honestas intenções, com a finalidade de levar luz e progresso, sem qualquer espírito de polêmica, faz notar faltas e defeitos do mundo propondo melhorias, é julgado em seguida como um inimigo com intenções agressivas, e se procura por isso fazê-lo calar? Por que fazer observações, com uma finalidade boa, para compreender e esclarecer, é na prática entendido como sendo uma crítica agressiva, uma ofensa? Quem cai em semelhante mal-entendido deve então ser um ingênuo que se deixa iludir pelas aparências e não vê que outra verdade está oculta atrás delas.
A realidade é outra coisa. A forma mental humana, que é o instrumento e fornece a verdadeira unidade de medida do juízo, formou-se através da luta pela sobrevivência, pela qual se é levado a ver tudo em função dela. Eis que, na verdade, os ideais, se querem existir na Terra, devem estar sujeitos a esta lei da luta, isto é, incorporados nas formas que os representam, mas protegidos dentro de castelos armados. assim que qualquer apreciação feita por estranhos é julgada como uma ação de guerra, de ataque e defesa, vista com suspeita como uma indevida intromissão em casa alheia, que o dono deve acima de tudo defender. Esta é a realidade. É por isto que a exposição de uma idéia e a procura da verdade tende a transformar-se em polêmica, pois o instinto humano leva a interpretar tudo em sentido agressivo; a paixão é vencer para submeter e dominar, não é subir espiritualmente.
Se o interesse fundamental fosse o aperfeiçoamento, e quando se vivesse em função de um ideal superior a alcançar, então uma crítica razoável, com um fim benéfico; deveria ser grata e considerada como uma amigável oferta da qual se poderia aproveitar para ascender. Mas o ideal interessa a bem poucos, e o melhorar-se, menos ainda, pelo que a crítica é entendida como um estorvo inoportuno que se deve afastar porquanto pretende um esforço que não se quer enfrentar, ou pior ainda, como ataque de um rival que julga somente para mostrar deficiências e aproveitar-se para destruir.
Assim o que prevalece não é a procura do verdadeiro, que é sufocada porque tende a inverter-se em ataques demolidores, mas o princípio de autoridade, porque a preocupação principal na Terra não é conhecer e subir, mas manter a disciplina e os súditos em obediência. O instinto fundamental do homem não é a conquista da verdade, mas a revolta. Também nas religiões o que torna válida cada lei é a força, ainda que mais não seja psicológica, a opressão para submeter, armada de sanções e castigos, adequados a infligir dano, ainda que espiritual, aos transgressores. É assim que o instinto da defesa do grupo leva à inibição da discussão esclarecedora do pensamento, a congelá-lo em afirmações dogmáticas, pois o mais urgente para sobreviver é estabelecer as posições do comando e da obediência, isto é, a ordem que põe barreiras e trava a luta de todos contra todos, motivo fundamental da vida, o que todos entendem, aquele a que é transportado e reduzido também o que é espiritual .
Assim se explica como, ao legítimo desejo de evoluir e fazer evoluir, responde um levantamento de barreiras em ato de defesa. Em cada aproximação humana a primeira idéia que surge, por instintivo produto do subconsciente, filho do passado feroz que o construiu, não é a de alguém que se aproxima de nós para nos ajudar, mas para agredir-nos, e deve portanto ser tratado inevitavelmente como um inimigo.
O mal entendido decorre do variado grau evolutivo, o que implica em formas mentais diferentes, funcionando em relação a pontos de referência opostos, isto é, a Terra ou o céu, ou ainda em outros termos, a atual fase animal de evolução ou a mais avançada fase futura, hoje antecipada teoricamente pelo ideal. É natural que cada um não possa ver senão com seus próprios olhos e portanto veja somente o que estes possam ver. Foi assim que a casta político-religiosa, então dominante, julgou a Cristo, porque só foi capaz de ver Nele um perigo para os seus próprios interesses terrenos que lhe pareciam ameaçados por um reformador da lei, e nada compreendeu da sua verdadeira função, que era a de dar um grande impulso ao progresso da humanidade. O mesmo fenômeno de incompreensão se repetiu em casos menores, com todos os que seguiram a Cristo ao longo do mesmo caminho. É assim que com uma forma mental emborcada, entende-se tudo ao contrário, e o impulso para melhorar é tomado como um ato de agressão, produzindo assim uma reação de defesa em vez de gratidão. O mal-entendido é natural, porque a presença dos ideais na Terra tem de fato outro significado: eles aqui existem na forma de castelo armado, dentro do qual se aninham interesses e são sustentados enquanto eles servem para defender esses interesses. É assim que nas religiões aparecem o fanatismo, o sectarismo, o proselitismo, e o espírito gregário prevalece sobre o espírito de verdade. Prefere-se então o cúmplice que seja seu amigo, ao idealista, que é amigo apenas do ideal e pode ainda se tornar inimigo porque está situado nos antípodas dos interesses terrenos.
No entanto o grupo religioso pode opor a tais intromissões por parte do idealista com um justíssimo argumento: "Nós estamos em nossa casa, foi construída por nós em terreno de nossa propriedade. Por isto temos o direito de mandar aqui e de impor a nosso modo a nossa verdade, expulsando os estranhos que pretendem, a seu modo, impor a sua". Argumento justo mas argumento do mundo, e uma potência espiritual que recorre a ele, apoiando-se na Terra em vez do céu, pelo menos nesse momento não é espiritual porque abdica da sua verdadeira posição super-terrena para reduzir-se à de um grupo humano que, como todos os outros, defende com argumentos humanos os seus interesses. Então, se não se é de Deus, mas se pertence ao mundo, que se fique no mundo, não se misturando e não se utilizando, para os fins deste, o ideal, o espírito, o divino. Não se pode ao mesmo tempo servir a dois senhores, seguir dois objetivos opostos, o espiritual e o temporal, com perigo de acabar utilizando o primeiro a serviço do segundo. Então a religião é uma organização humana, que usa os métodos humanos, e que como tal deve ser considerada.
Os dois pontos de vista são demasiado diversos para poderem coexistir sem que um dos dois deva ser afastado. Para o involuído o centro da vida está na Terra, no presente, constituído por interesses materiais. A vida mais ampla na eternidade é para ele, depois da morte, um seu prolongamento nebuloso em que pensará em último lugar, depois de esgotada a atual, a que vale. Para o evoluído o centro da vida não está na Terra, no presente, e a vida atual vale só em função de uma outra vida, maior, situada na eternidade; não é um fim em si mesma mas apenas um meio para alcançar finalidades mais longínquas e para preparar a sua realização. O problema da vida é conduzido de um modo diverso, perante uma diferente amplitude de horizontes. Enquanto o homem prático realiza-se imediatamente na Terra, o idealista realiza-se a longo prazo, depois da morte, mas seguindo um plano muito mais vasto. Os seus interesses estão fora do mundo. As duas formas mentais são o emborcamento, a negação uma da outra, e por isto estão empenhadas em condenar-se entre si.
É assim que na Terra se é grato não ao amigo da verdade, mas ao amigo do grupo. Para que o, evoluído possa ser aceito pelo involuído, é necessário que se abaixe ao nível deste, que, com o seu bem-estar, lhe paga este abaixamento. Se o idealista não se deixa domesticar pelo mundo, é por este expulso. Dessa forma é aceito quem coopera no interesse material do grupo e é importuno quem queira transferi-lo ao plano espiritual. Não pensar e não discutir para compreender e avançar, mas crer e obedecer para servir e não incomodar. Isto moralmente prejudica o grupo, mas não o indivíduo a quem ninguém pode bitolar a vida espiritual, dado que não se necessita do próximo para falar com Deus.
O Cristianismo foi implantado por Cristo em posição de antagonismo contra o mundo. Não foi culpa sua se teve de adaptar-se a este mundo, se isso era uma necessidade e a condição para poder sobreviver. Mas o fato é que tal sobrevivência teve de ser paga com a corrupção do ideal que afirma representar, pelo que ele, em grande parte, se tornou mundano, contentando-se assim em realizar-se na terra só no espaço em que o mundo, senhor em sua casa, lhe quis conceder. É certo que a evolução fará de maneira que no fim Cristo vença. Mas na fase atual, após dois mil anos, verificamos que o mundo venceu o ideal e, não foi o ideal que venceu o mundo. Ê verdade que a vida do germe está cheia de imensas possibilidades futuras, mas no momento ela é só vida latente, à espera. Hoje, nos fatos, o Cristianismo está mais do lado do mundo do que do lado de Cristo, e o Cristianismo verdadeiro encontra-se ainda no estado de boa-nova. Todavia é lógico e justo que a mente humana não possa expandir-se em direção a mais vastos horizontes como o ideal cristão preconiza, se ela não está ainda madura para isto. Lógico é também que nos primitivos deva ser primeiramente usada como instrumento de defesa da vida, isto é, dos interesses terrenos. Tudo isto está proporcionado às finalidades que a vida quer alcançar conforme o nível atingido e responde às leis da evolução. Numa fase inferior, é natural que o inimigo a vencer, contra quem se desabafa o instinto de luta, seja o seu próprio semelhante, porque mais do que isso a mente não entende; mas é natural também que, com o desenvolvimento da inteligência, se prefira lutar contra inimigos mais importantes tais como a animalidade de cada um a superar, o ignoto a conquistar, o mistério a revelar, e que o amor não seja só para a mulher a fim de gerar, mas para o super-ser que encarna, com o ideal, um tipo superior de vida. A função das religiões é precisamente a de cultivar, armazenar e oferecer tais modelos para que possam ser imitados.
É certo que existe contradição entre o programa evangélico como foi traçado por Cristo e a sua realização prática na vida dos seus seguidores, sejam pastores ou rebanho. O mundo com os seus cidadãos não se deixou de nenhum modo vencer por Cristo e continuou com os seus métodos. Mas isto se explica. Quando um ideal desce à Terra, o contraste entre ele e o mundo é inevitável. Isto salta em seguida à vista. No entanto a contradição é sanável e se resolve com a concepção evolucionista. A solução está em entender o Evangelho em sentido dinâmico e não estático, evolucionista e não definitivo, com um processo em formação que se projeta e se cumpre no futuro e não como uma posição fixada no presente. Mas se isto explica e justifica o estado atual, nem por isso o altera, e permanece sendo contradição. A solução está na transformação de tudo por evolução, mas isto pode acontecer só com o tempo, encontrando-se hoje, portanto, em posição de espera perante o futuro. Entretanto continua a contradição, e para compreender é bom observá-la, ainda que seja sem pessimismo porque se prevêem os seus futuros desenvolvimentos. Observemo-la:
O Evangelho fala clara e repetidamente a respeito de posse de bens, de um modo que não deixa dúvidas. "Se quiseres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres (....)". "Em verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no reino dos céus. Sim, repito-vos: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus". "Não acumuleis tesouros na Terra (....)". "Ninguém pode servir a dois senhores: ou amará um e odiará o outro; ou se afeiçoará a este e desprezará àquele. Não podereis servir a Deus e a Mamom". "Quem entre vós não renuncia a tudo o que possui não pode ser meu discípulo".
Os banqueiros melhor informados calculam as riquezas do Vaticano entre dez a quinze bilhões de dólares. Ele possui grandes investimentos em bancos, seguros, produtos químicos, aço, construções, imóveis etc. Os dividendos servem para manter de pé toda a organização, incluídas as obras de beneficência. Sobre estas entradas o Vaticano, pelo menos até hoje, no início de 1965, na Itália, não paga impostos. Que se deveria dizer dos séculos passados, quando a Igreja, com o poder temporal, se tinha submergido no mundo até ao pescoço, exigindo impostos, armando exércitos, ligando-se à política? A contradição justifica-se, mas é evidente.
O que a justifica são as inderrogáveis exigências do ambiente social do "mundo". Neste, não sabemos nos imaginar fazendo parte duma organização qualquer que não possua meios. Eles são indispensáveis à Igreja para cumprir a sua função. Mas então o erro de previsão é de Cristo, pois que o cristianismo, para poder funcionar na Terra, devia renunciar a ser perfeito, como Cristo aconselha. Os primeiros a estar em falta são os pastores e, se semelhante exemplo vem deles, que deverão fazer os seus discípulos? Mas será culpa da Igreja estar obrigada a isto para poder cumprir o seu mandato? E se não é da Igreja, como não lançar a culpa sobre Cristo? Se um representante do Vaticano perguntasse a Cristo: "Que devo fazer para obter a vida eterna?", certamente que Cristo não poderia responder de um modo diferente deste: Se quiseres ser perfeito, vai, vende o que tens (....)". E a Igreja lhe de veria objetar: "Se queres que eu cumpra a tua ordem de representar-Te na Terra, devo possuir os meios do mundo". A ordem é clara: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja" (....). "Apascenta as minhas ovelhas". Não havia, portanto, outra escolha: para poder obedecer por um lado, desobedecer do outro; para poder cumprir o mandato, renunciar a ser perfeito. Era necessário adaptar-se à Terra e pactuar com o mundo inimigo. Assim a Igreja não seguiu o conselho de Cristo e possui bens, ainda que isto necessariamente a leve a ser um instrumento imperfeito. Devendo o ideal viver em casa alheia, isto é, o mundo, deve aceitar-lhe as suas leis. A este preço o Cristianismo conseguiu sobreviver por dois mil anos, habitando em casa do inimigo.
O problema é saber se isto, que é uma necessidade imposta pela realidade da vida, é traição de princípios, é prostituição do ideal. É lícito arrogar-se a posição de representantes de Cristo sem seguir os seus ditames? E se estes ditames presumem a presença de heróis e mártires que na prática não existem, quem sobraria para constituir então a Igreja no cumprimento do seu trabalho? Se a aplicação integral do Evangelho no mundo conduz à morte, de que serviria na Terra uma Igreja de santos transferida para o céu? Ela deve ser constituída de homens que saibam viver no mundo, e não de santos votados à morte. É assim que a Igreja teve de tornar-se uma organização terrena, construída com o material humano corrente, porque não há outra maneira para representar a Cristo estando sujeita às leis do mundo, do qual fatalmente faz parte. Mas eis que este fato, ainda que seja inevitável, rebaixa imediatamente o nível desta organização até ao plano terreno, a coloca lado a lado com todas as demais, e como tal é tratada. Temos então uma Igreja que se fez mundo, mesmo que seja para santificá-lo, e que se assemelha àquilo que deveria ser o seu maior inimigo. Assim ela se torna administração de bens, burocracia, negócio, política, descendo ao nível comum de luta pela vida. Mas podem os homens mudar de forma mental e assumir a evangélica, tão afastada do seu mundo, só pelo fato de ser incluído na organização eclesiástica? O resultado desta simbiose Cristo-mundo é que de cristão não resta ao cristianismo atual senão pregação, retórica, hipocrisia. Impõe-se pelo contrário e prevalece o que na Terra é mais importante, isto é, a necessidade de administrar, indispensável logo que surge uma comunidade.
Um pastor, situado com o seu rebanho perto de Roma. me escrevia, por ser honesto, expressando sinceramente o seu pensamento, que se pode resumir: "O Evangelho mata, que morte! Existe então a autoridade da Igreja à qual confiar-se". Eis portanto a solução: põe-se de lado a Cristo e exercita-se o comando em seu nome. De resto esta é a tendência normal dos administradores Quem trabalha em nome de outros acaba por tornar-se do produto do seu trabalho. Isto significa que o Cristianismo atual não é feito só por Cristo, mas é um seu produto, depois manipulado e adaptado pelos homens para seu uso. Resultou disso uma Igreja que é uma mistura de humano e de divino, nasceu um produto que parece híbrido, e que por querer ser as duas coisas não é exclusivamente nem uma nem outra. É como um jovem que não é nem menino nem homem, mas que está destinado a ser homem.
Não se trata portanto de um produto híbrido, mas de uma forma de transição. Temos um composto, como a alma e o corpo, através do qual o humano imperfeito para melhorar se lança ao divino e o divino para elevar o humano, desce até ele. Não é que Cristo tenha demonstrado não conhecer o homem ao ditar-lhe um programa irrealizável, exigindo o que esta pobre criatura não tem a capacidade de fazer. Não é que Cristo lhe tenha proposto o impossível. Pelo contrário, foi precisamente porque o conhecia, que, como Evangelho, lhe estabeleceu uma meta distante em direção à qual devia avançar, para por fim alcançá-la. O estado atual do Cristianismo não é portanto uma farsa perante Cristo, mas é apenas uma fase inicial de um processo evolutivo do qual, no Evangelho, ele expressou o ponto de chegada, a posição final. Trata-se de um estado de imperfeição transitória que parece negação de Cristo porque ainda não o alcança na sua plenitude, mas somente como primeira aproximação; imperfeição que no entanto está em marcha para chegar à perfeição evangélica e à plena afirmação de Cristo.
É natural que no meio do caminho o ideal deva adaptar-se às condições de ambiente, deva assumir posições humanas e, quando não encontra outro modo para sobreviver na Terra, deva inclusive transformar-se em hipocrisia. Mas não importa tanto, pois a semente está no terreno, mesmo que tenha de lutar para nascer num ambiente adverso. Também o ideal possui força. Alguma coisa do seu poder acaba por penetrar na alma humana. Torcido, vilipendiado, transviado, explorado, esse ideal apesar disso, existe na Terra e permanece ali, funcionando também à sua maneira entre tantas forças da vida. Entretanto espera e trabalha, serpenteia, penetra, se enxerta, e depois de longa insistência se fixa finalmente nos espíritos. Trabalho lento mas no fim de cada milênio, consegue que o homem faça, mesmo que pequeno, um passo em frente. Do ideal se podem fazer os usos mais diversos, mas quando se maneja uma coisa, sempre um pouco dela fica pegado nas mãos.
É certo que a função da evolução é a de tudo melhorar, purificar, aperfeiçoar, e o Cristianismo não pode constituir exceção a esta regra. Ele se instalou num mundo onde tudo está em evolução e justamente, por ser um ideal, corresponde-lhe a função de realizá-lo. Se o Evangelho está no meio do mundo, adaptando-se a ele, se chegou até ao ponto de conviver com o inimigo numa estranha simbiose que pode parecer degradação, isto acontece para transformar o mundo até torná-lo aquilo que o Evangelho quer. No seio do mundo representa a semente do futuro, futuro que cada semente espera porque lhe pertence. A superação do passado é a tendência constante da vida e por isto ela luta a cada instante.
É assim que, ao longo do caminho da evolução, quanto mais retrocedemos no tempo mais vemos que o mundo é forte e que o Cristianismo teve de adaptar-se a ele. Devido ao princípio evolucionista, é natural que quanto mais se é atrasado, tanto mais prevalece a matéria sobre o espírito. Esgotado o primeiro impulso, devido, no período das catacumbas, das perseguições e mártires, à vizinhança do impulso dado por Cristo, o inimigo tomou a dianteira, e a Igreja, com a conversão de Constantino, fixou-se materialmente com os pés na Terra, tornando-se coisa do mundo. Foi degradação do ideal? Não. Foi necessidade histórica. O poder temporal foi o veículo feito de matéria, indispensável para que uma instituição, formada em grande parte de almas ainda toscas, pudesse sobreviver em tempos ferozes; indispensável para que aquele primeiro núcleo de espiritualidade perdido num mundo selvagem, pudesse percorrer todo o bimilenário caminho medieval, e chegar até hoje, trazendo até nós o pensamento de Cristo. Foi necessário possuir bens até ao ponto de tornar o sucessor de Cristo um dos reis da Terra, como senhor no mundo plenamente integrado, colocando-se no seu nível espiritual, porque forçado como eles a mergulhar na luta, usando os seus métodos de força, de astúcia e mentira política. Mas é também verdade que uma sociedade de santos num mundo semelhante teria sido destruída. Naquelas condições não havia outra escolha: se se queria sobreviver para cumprir o mandato de Cristo, era indispensável aceitar o ambiente e renunciar à aplicação integral do Evangelho.
Mas eis que no mesmo processo, junto à necessidade de descer e adaptar-se, está implícita a de evoluir e elevar-se mais. O espiritual não pode viver separado do mundo que representa o seu terreno de operações porque lhe oferece o material para elaborar. Assim o Cristianismo, ainda que contribuindo para ela, não pode progredir senão em função da evolução geral da humanidade. Assistimos, com referência à Igreja, a um contínuo trabalho que poderíamos chamar de polimento, para o qual possuir bens, adaptando-se aos tempos, pode assumir formas cada vez menos materiais. Antigamente não podia haver nada mais anti-evangélico do que um governo de estado com exércitos ou um poder político que se apoiava no espiritual. Depois, caído o poder temporal, tornou-se ele só econômico. Amanhã, Quando numa sociedade mais avançada, for reconhecida a função vital das religiões, sustentá-las, oferecendo os meios necessários para realizar essa função, constituirá uma obrigação do Estado, que provê à satisfação de todas as necessidades da coletividade, incluindo as espirituais. Então a Igreja poderá libertar-se da posse material sendo-lhe assegurados, por parte do mundo os meios para viver, o que assim lhe permitirá deixar de ser mundo. Mas se, numa futura sociedade orgânica, se proverá a todas as funções sociais, incluindo a religiosa, hoje que isso não sucede, como se pode eliminar a necessidade de possuir bens, se esta é uma condição indispensável para a realização daquela função? Esta foi e é civilizadora, de grande importância para a evolução. A Igreja no passado teve de afirmar, num mundo feroz de invasões bárbaras, um princípio superior então desconhecido. Que luta teve de sustentar o espírito para introduzir-se na casa de semelhante inimigo, como era o mundo de então! A Igreja não pode progredir senão em relação às condições de vida que o mundo oferece, que lhe permitam desprender-se da posse de bens sem por isso terminar de existir, como lhe é necessário para cumprir a sua obra de civilização.
Este é o processo evolutivo a que está sujeito o Cristianismo, a cujo seio arrasta tudo o que existe. É a vida toda que progride no planeta, tudo envolvendo consigo. Nenhuma instituição, mesmo que se proclame sobrenatural, pode existir e funcionar fora das leis da vida. Então não é culpa da Igreja se o atual baixo nível de evolução, também seu por ser da humanidade da qual ela faz parte, a impede de ser evangélica cem por cento. Mas cada século altera um pouco nesta percentagem a relação entre as duas partes, isto é, aumenta a parte Evangelho e diminui a parte mundo. Assim se explica e justifica o estado presente enquanto que, se ele corresponde a um não cumprimento do Evangelho, é ao mesmo tempo um não cumprimento em evolução, o que significa que está em via de correção, um cumprimento progressivo, cada vez maior, isto é, uma negação que cada vez mais se vai invertendo em direção à afirmação. Graficamente isto se poderia expressar com a deslocação em subida segundo uma linha oblíqua, movendo-se em relação a dois eixos ortogonais: horizontal que expressa o desenvolvimento da linha do tempo e outro vertical que, partindo do ponto zero, matéria, expressa o grau de espiritualização alcançada.
Se a Igreja no passado começou a reinar na Terra, no plano da evolução, não foi para realizar-se como potência material, mas porque este era um meio indispensável para poder sobreviver e funcionar até onde fosse possível, como potência espiritual. Se isto hoje justifica o passado involuído, por outro lado exige que ele seja superado e que, o mais rapidamente possível, continue o caminho em direção ao alto, à sua verdadeira meta: a espiritual. Em qualquer fase de desenvolvimento a tendência constante deve ser a de aproximar-se do Evangelho, lutando para superar todos os obstáculos que separam a Igreja da sua realização. O verdadeiro objetivo é a superação do mundo, e não o instalar-se na Terra, e muito menos nela reinar. As adaptações, através das quais o ideal desce ao nível humano, podem ser um mal necessário, mas deve ser transitório, aceitável somente tendo em vista a sua eliminação. Só neste sentido é tolerável. De outra maneira constitui uma permanente corrupção do ideal, a sua negação que o leva ao fim. Se desaparece esta esperança de salvação futura com um endireitamento de posições em sentido evangélico, o Cristianismo não tem mais razão de existir e as leis da vida acabarão por eliminá-lo, como fazem com todas as coisas que não cumprem a função para a qual existem. Então terá lugar a substituição por outras formas religiosas, por outros homens e instituições que farão o que o Cristianismo dos primeiros dois milênios ainda não fez. Cristo faz parte das leis da vida que nada pode deter. Sucede então que, quando os homens tratam de detê-lo, são afastados e Cristo avança sem eles.
É verdade que a Igreja, uma vez tornada Estado para poder sobreviver no mundo, devia governar, é certo porém, que com santidade e perfeição vai-se para o céu, mas na Terra não se governa com essas qualidades. É igualmente verdade que aquilo que, por muitas razões podia ser lícito no feroz mundo medieval, já não o é mais porque não é necessário, a humanidade passou a formas de vida mais justas e evoluídas. Quem governa pode, em certos momentos, ser forçado a colocar-se em proporção com o grau de evolução dos governados, mas deve estar sempre à cabeça, um passo mais à frente que os outros.
Este caso do Cristianismo faz parte do fenômeno da transformação matéria-espírito, que representa uma deslocação biológica profunda e por isso não pode verificar-se num dia. É como tantos outros, um processo de crescimento da vida, e não pode realizar-se senão lentamente por graus, como dessa maneira se realiza a evolução em todos os seus níveis. Estas transformações são o resultado de maturações, equilíbrios, impulsos proporcionados ás reservas de energia, às possibilidades de esforço e ao fim a alcançar. Transformar-se de repente, com impulsos de improviso, pode pôr em perigo a sobrevivência, fato de enorme importância. Não podemos escandalizar-nos do estado atual, apesar de involuído, quando sabemos que ele é atrasado por estar no início e que ele está incluído dentro de um irrefreável transformismo que o leva em direção ao alto. Sabemos que tais posições avançadas em forma diferente não são senão momentos de um processo evolutivo destinado a levar tudo à perfeição.
Para compreender, há que referir-se a um Cristianismo progressivo, isto é, concebido como uma gradual realização do programa de Cristo. É precisamente o tão condenado princípio evolucionista o que pode justificar a Igreja, lançando-a da sua velha posição- estática nu dinamismo da vida e dela fazendo assim um fenômeno em evolução. A perspectiva então muda completamente e abre-se em direção a mais vastos horizontes. O dogmatismo conservador se transforma numa marcha em ascensão. Tudo se vivifica porque está animado da potência do espírito, que toma posse do fenômeno para levá-lo cada vez mais adiante.
Observemos a grandiosidade deste fenômeno sobre o fundo do transformismo universal físico-dinâmico-psíquico, que em A Grande Síntese tínhamos analisado exaustivamente. A descida dos ideais e a evolução das religiões não são senão um momento desse fenômeno. Então a vida assume um significado profundo porque se revela como um progresso de espiritualização no seio do evolucionismo universal. As religiões por sua vez, assumem uma real função biológica enquanto elas representam o ideal que desce à Terra, vindo de mais avançados planos de existência, para levar o homem até eles. É assim que as religiões tomam um significado biológico positivo, mesmo perante a ciência materialista, na medida em que elas cumprem uma função evolucionista fundamental, qual é a da espiritualização. A grande marcha da vida é nesta direção. Espiritualização em sentido lato, que abraça, assalta e arrasta todas as formas de existência, desde o seu nível mais baixo, o da matéria, ao evolutivamente mais alto, o do espírito.
Como diria Teilhard de Chardin, sobre a geoesfera planetária se formou a bioesfera, que realiza a função de transformar a geoesfera em noosfera. Massas de milhões de plantas cada dia, assimilando-a no seu organismo, transformam a matéria prima inorgânica em material orgânico. Milhões de animais comendo-o e assimilando-o, transformando-o assim em carne o levam a um nível mais alto. Milhões de seres humanos, sem poder deter-se, para viver, devem ingerir cada dia montanhas de toneladas deste material que plantas e animais lhe fornecem, transformando-o em substância ainda mais evoluída, nervos e cérebro, produtores de dinamismo volitivo e mental. Gradualmente diminui a massa da quantidade em favor da qualidade na qual ela se transforma, destilando e concentrando os valores espalhados naquela quantidade. Para que serve esta contínua ingestão de matéria de grau menos evoluído, colocada assim em circulação para cumprir funções cada vez mais elevadas em organismos mais evoluídos? Começando pelas plantas assimiladoras do terreno, e assim se elevando até ao homem, vemos que a matéria, do seu estado inorgânico passa através de uma elaboração contínua, pela qual os átomos que a compõe, chegam ao estado orgânico da vida, até ao nervoso e cerebral, no qual devem saber funcionar como elemento do instrumento do pensamento; esses átomos dispõe-se a colaborar de mil maneiras e devem aprender muitas coisas. Assistimos assim a uma espécie de curso de educação da matéria.
Neste processo não só o ser mais evoluído aproveita o trabalho feito pelos menos evoluídos, e assim como uma pirâmide, a vida se eleva em direção a planos mais altos, apoiando-se nos mais baixos; assim também o material de tipo inferior, que serve e ajuda, com o seu trabalho mais rudimentar, à execução do mais avançado, é levado por sua vez a avançar, ao estar formando parte de organismos e portanto adstrito a trabalhos mais complexos. Quem domina e dirige todo este processo é o elemento que está evolutivamente mais elevado, isto é, o espírito. Na escala evolutiva existe uma hierarquia de valores, pela qual quem é mais avançado utiliza como instrumento quem é mais atrasado, mas ao mesmo tempo o educa, levando-o viver coordenado com outros elementos no seio de unidades mais complexas e assim a funcionar em formas sempre mais evoluídas. Maravilhosa e complexa organização da vida, pela qual quem é mais avançado se volta em direção aos que lhe são inferiores para admiti-los no seu próprio trabalho, mas, ao mesmo tempo, com isto os envolve e os arrasta consigo na sua própria evolução.
Com este método a vida caminha em direção à sua espiritualização, da qual hoje já se percebem os primeiros sintomas através do processo de cerebralização a que está submetida à humanidade, fenômeno hoje mais evidente, dado que ela o está vivendo mais intensamente na atual curva do seu transformismo evolutivo. Esta repentina passagem do antigo tipo de vida no plano físico a um de tipo nervoso e cerebral, característica de nosso tempo, não é senão um sintoma que precede um imenso futuro desenvolvimento. Esta é a direção que deverá tomar a evolução da vida, chegada agora no planeta ao seu superior grau de humanidade.
Deste imenso movimento fazem parte as religiões. Enquanto a matéria sobe, até tornar-se instrumento da psique, os ideais descem para ajudar a realização deste transformismo espiritualizante. Eles cumprem uma função biológica. Por isso as religiões não podem morrer, porque formam parte de um perene processo evolutivo. Mas precisamente por isto elas devem renovar-se, como a cada momento o faz a vida, de que elas fazem parte. Renovar-se significa melhorar-se. Por isso não nos deve surpreender o seu atual estado involuído em comparação com o que nos espera no futuro. Precisamente porque com freqüência o ideal hoje é uma farsa, é que ele está destinado a converter-se em verdade. As reações da Lei de Deus ocupam-se em corrigir todos os nossos defeitos. É assim que se realiza a evolução, sendo fatal que aquele melhoramento que hoje é eliminado da realidade da vida como sendo utopia, amanhã se transforme nesta realidade. Isto custará esforço e um e dores, mas é este trabalho criador que dá um significado e valor à vida. Apesar de tudo Cristo brilha como um farol no futuro. O Evangelho é um fenômeno em evolução, é um caminho para alcançar aquele centro de luz.
Se com isto tudo se explica e justifica, se tudo por evolução deverá passar da imperfeição à perfeição, concluir-se-ia então que não haverá outra coisa a fazer senão esperar que a evolução se cumpra? Se a posição dominante da maioria é a de adormecidos perante o ideal, que poderão fazer os poucos mais avançados para os quais chegou à hora da realização, os poucos que, em vez de estarem com a maioria das pessoas que, religiosas ou não, formam o mundo, querem estar do lado de Cristo? Como poderão eles encontrar-se à sua vontade no rebanho, compartilhando com a sua psicologia e métodos? Como é possível aceitá-los adaptando-se ao mundo?
O Evangelho está feito para nos santificarmos individualmente e para transformar as massas fazendo delas uma soma de indivíduos assim santificados. Mas o Evangelho é invertido quando dele se faz um meio para governar. Também os seguidores de Cristo quereriam fazer dele um chefe de governo, mas Ele recusou todo o poder terreno. Trata-se de duas psicologias e finalidades diversas: uma dirigida à terra outra ao céu. O seguidor de Cristo é um tipo de indivíduo diverso do seguidor do mundo. Entre os dois há um abismo, porque cada um vê e entende o outro em posição emborcada, porque eles falam duas línguas e atuam com duas mentes diversas. Há um muro entre os dois, há uma distância que separa um plano evolutivo do outro. O grau social, a posição hierárquica no grupo a que se pertence não tem importância. O que importa é o tipo de homem, não a sua veste. Quem inverte o mundo para viver com Cristo, não pode estar de acordo com quem inverte Cristo para viver no mundo. As metas são opostas.
A tendência da vida é os semelhantes se atraiam e os não semelhantes, quando não tenham de se compensar por complementaridade, se repilam. Nos dois casos, o modo entender as coisas, devido ao nível evolutivo é demasiado diferente. Para quem está espiritualmente mais avançado, a vida na Terra não representa a satisfação dos seus próprios desejos, mas é exílio, sacrifício, missão. Ele pode sentir também amor pelos irmãos atrasados, mas não pode compartilhar os seus instintos, a sua psicologia, a sua conduta. As formas comuns de religião estão feitas para a maioria, não para a exceção. Então o indivíduo verdadeiramente espiritual afasta-se silenciosamente, esconde-se fora das filas, fora das massas de cristãos que pertencem ao mundo, e da exterioridade das formas retrai-se para uma religião de substância, do lado de Cristo. Quem O compreendeu e O vive não pode adaptar-se a retroceder a um nível evolutivo inferior, como a maioria exige, porque gostaria de rebaixar todas as coisas ao seu plano.
Tudo isto leva ao isolamento do mundo, o que constitui vantagem; não isolamento de Cristo, pelo contrário, avizinha-se ainda mais Dele. Trata-se de uma íntima atitude de espírito, de um colóquio entre a alma e Deus, em que nenhuma autoridade espiritual terrena pode intervir. Quem quiser fazer-se santo, faz-se tal por sua conta perante Deus e não perante o mundo, do qual não tem nenhuma necessidade. Os julgamentos deste não lhe interessam, mas apenas os de Deus. Os homens podem utilizar a santidade dos outros como estandarte que dá brilho ao próprio grupo, mas só Deus pode julgá-la. É inútil, para salvar-se, cobrir-se com o manto dos santos. Mantém-se a distância entre o ideal vivido por eles e a prédica e ostentação dele feita pelo mundo para as suas finalidades, porque enquanto aqueles atuam a sério, este apenas desejaria fazer crer. Mas chegam momentos na história nos quais não têm mais valor as sagacidades e poderes humanos. Então quem não se manteve seriamente em contato com Deus, está perdido. Enganando a Cristo, ao reduzir a palavras a atuação de Seu programa, a humanidade se redime ao contrário, no sentido em que, procurando eximir-se com as suas adaptações terrenas, constrói a sua própria cruz. Hoje essa cruz já está pronta, e o Evangelho, que não foi aplicado por convicção e por amor, deverá ser aplicado à força. E sobre essa cruz a humanidade deverá ser pregada, porque a evolução em direção ao espírito deve cumprir-se e não é possível fugir à Lei de Deus.
IX
CRISTIANISMO E COMUNISMO
Em nossos escritos encontramos e usamos um ponto fixo de referência em função do qual nos é possível formular juízos. Este ponto de referência, situado fora e além, exatamente no pólo oposto do transformismo universal, tudo envolve no seu movimento. Este ponto imóvel e absoluto que dessa sua posição dirige tudo o que é móvel e relativo, é o pensamento de Deus que não ficou abstrato, nos céus, mas está expresso, escrito e legível na Sua Lei, que constitui a norma anteposta como guia do funcionamento orgânico do universo. Esta Lei, nos seus vários capítulos e planos de atuação, para o homem não é toda compreensível e é conhecida só numa parte mínima. As descobertas da ciência não são senão progressivas revelações deste pensamento e Lei, funcionando já nos fenômenos independentemente do fato de que o homem o conheça ou não. À medida que progride, ele vai dominando uma amplitude cada vez maior daquela Lei, o que também para os ateus significa acercar-se de Deus. É em função deste pensamento orientador da existência que, nos limites do conhecimento humano, nós fazemos perguntas e podemos dar respostas.
Permanecendo agora num terreno humano, isto é, das conseqüências e aplicações dos princípios gerais da referida Lei, nos perguntamos: Qual é a posição atual da humanidade em relação às suas metas futuras, isto é, o que a história pretende hoje realizar? Colocando-nos perante a presente realidade histórica, podemos mais exatamente perguntar-nos: se é Deus que com a Sua Lei dirige a história, que significa então e para onde se dirige a atual difusão do materialismo e do comunismo ateu? Trata-se de fatos situados em pólos opostos, positivamente existentes. Mas como explicar a contradição entre eles? Se Deus é o verdadeiro senhor e se o Seu pensamento ou Lei constitui a norma que deve ser aplicada, por que ocupam nos fatos esta oposição de contrários e esta resistência à sua atuação? Se por um lado temos o pólo positivo onde tudo é sempre construtivo, que trabalho útil corresponde cumprir a este oposto impulso negativo, de destruição? Não se tratará então de uma fase destrutiva necessária enquanto se cumpre, em função de uma oposta realização construtiva? Ora é o negativo que trabalha em favor do positivo, é o mal que é colocado a serviço do bem. Mais particularmente, tudo isto talvez responda à necessidade de varrer com as construções humanas feitas através do tempo sobre a idéia de Cristo, tão desvirtuada ao longo do caminho, para regressar a ela e realizá-la desde o princípio, como Cristo queria que o fosse.
Nas revoluções vemos que a fase destrutiva é necessária para nos libertarmos do que é velho, que ocupa o terreno sobre o qual se possa reconstruir mais em direção ao alto, e vemos que ela é o natural precedente de uma sucessiva fase construtiva para alcançar posições evolutivamente mais avançadas. Isto é o que normalmente vemos suceder nas revoluções, usadas pela vida como método normal de renovação. Então o Comunismo poderia ter uma função histórica construtiva inclusive em sentido cristão lato. Em sentido lato, quer dizer que a função não é a de constituir nos planos de Deus um instrumento para chegar à vitória do atual grupo social que hoje se qualifica representante de Cristo. Trata-se, pelo contrário, do triunfo da idéia de Cristo, que uma vez que não lhe sirvam, pode desvincular-se dos seus atuais representantes, porque o que importa nos pianos de Deus é o avanço daquela idéia e não os interesses e sobrevivência destes. A sua liquidação pode ser automática, indispensável ao progresso, quando eles não cumprem mais a função que perante a vida lhes justifica a existência: fenômeno biológico normal quando tais condições se verifiquem. Podem então formar-se outros grupos, compostos de homens novos, ou seja, pode ser utilizada a mesma organização atual, mas com homens renovados no seu espírito, selecionados na luta, purificados pela dor, e levados por isto a representar Cristo não só na forma, mas também na substância. Trata-se de uma posição totalmente diversa porquanto a atividade e o centro dos interesses deve passar do exterior ao interior, da aparência à substância, da realidade exterior do mundo à interior do espírito.
Qual poderia ser então mais exatamente, de um ponto de vista cristão, a função do Comunismo? Já que o Evangelho que sustém a justiça social, por razões de imaturidade da raça humana, isto é, tanto de governantes como de governados, não foi até hoje aplicado senão em mínima parcela, e já que Cristo não podo Ter sofrido para ensinar em vão, sucede então que a vida, que o homem não pode deter, confia a outro, fora do atual Cristianismo, a tarefa de realizar com outros meios e forma, esse programa lançado há dois mil anos e que os cristãos ainda não realizaram. Então Deus permite que os demônios se desencadeiem, reativa as forças negativas e as utiliza para realizar o que as positivas ainda não fizeram. A princípio, o desenvolvimento histórico não estava ainda maduro para esta reforma e Deus deixou dormir o Cristianismo no cômodo leito das adaptações humanas. Mas agora se chegou a uma curva do caminho da evolução e é necessário despertar, mover-se, caminhar. A função histórica do Comunismo pode ser precisamente a de despertar os adormecidos, para os tirar do leito das suas comodidades, e deve fazê-lo pela força, porque o mundo se organizou na defesa das suas velhas posições de comodismo, e resiste não se dispondo a renunciar a elas. Eis então que para abrir caminho, a força é necessária, a coisa que o Cristianismo não pode usar e que agora lhe vem em sua ajuda numa hora decisiva, quando, depois de dois mil anos, o sistema apenas da bondade deu prova de não ser suficiente para transformar o mundo em sentido evangélico. A força é de fato, nas transformações sociais, a primeira fase, a revolucionária e destrutora. É de tal forma que nascem as revoluções, para depois de desenvolver seguindo a sua lei fatal. Os violentos da primeira hora são depois liquidados, quando a sua função de varrer o que é velho está cumprida. Quem com feno mata com ferro morre. Robespierre foi guilhotinado e a sua morte marcou o fim do Terror. Ficam, e são depois chamados a atuar, os mais calmos, para realizar o trabalho de instalação nas novas posições e de assimilação das novas idéias, e para se reconstruir num plano mais alto, numa nova ordem.
Eis de que maneira, historicamente em sentido lato, o Comunismo poderia ser útil ao Cristianismo, a fim de que este seja purificado, condição indispensável para que possa continuar a cumprir a sua função, que justifica a sua existência. A tarefa do Comunismo seria, portanto, a de salvar o Cristianismo da sua liquidação. Lição forçosa, dada a tenacidade de resistência da parte do que é velho. Ajuda de Deus, mas não em favor dos homens para manter as suas posições terrenas baseadas no Cristianismo, mas sim em favor do ideal cristão, para que ele seja vivido e realizado. Porque à vida interessa a evolução, a conquista das finalidades da história, a atuação dos princípios superiores e não a prosperidade de um determinado grupo humano. A vida tende a acabar com o que é improdutivo, porque não contribui para a realização dos seus fins.
É necessário compreender o que está hoje sucedendo. Pode ser um mal-entendido identificar o ministro de Deus com o ideal cristão, enquanto nos fatos se pode tratar de duas coisas diferentes, isto é, pode suceder que em vez de viver em função do ideal, se use o ideal em função da própria vida, subordinando-o a esta. Trata-se de um emborcamento de posições, de uma inversão de valores, pelo qual não é a espiritualidade que vence o mundo, mas este que vence aquela. Pode ser que hoje a história queira endireitar estas posições e repor cada coisa em seu lugar, isto é, não mais o ideal ao serviço do homem, mas o homem ao serviço do ideal. Em resumo, a idéia de Cristo finalmente se move para vencer deveras o mundo, ainda que este se tenha acostumado a vencê-la, e este decidido a continuar por este caminho.
Esta imensa onda de ateísmo que invade o mundo, também composta de cristãos, não será doença do Cristianismo, para curá-la sendo necessária uma salutar operação cirúrgica? Que os homens do Cristianismo possam, como homens, ir para a falência, é possível, mas não se pode admitir que isto suceda com Cristo. Claro que não há mais remédio para eles quando se separam da primeira fonte de vida espiritual e ficam sós no mundo inimigo. Eles se poderão perder, mas nem por isso poderão paralisar a obra de Cristo, que está por sobre todos os interesses humanos e elege os seus instrumentos onde quer.
Se hoje o mundo, com o ateísmo, se afasta de Cristo, isto pode não representar protesto contra Ele, mas contra quem O representa. É notório que a blasfêmia está mais difundida nos países onde mais dominou a Santa Inquisição, exercitada em defesa da religião. Os ateus freqüentemente surgem não porque queiram pôr-se contra Deus, mas porque, desiludidos, se colocam contra os seus representantes. Estes são a coisa concreta que se vê neste mundo e, quando ela não corresponde às afirmações, então se foge para outras lides; há quem, para libertar-se da contradição, nega tudo, e quem vai buscar a Deus em outra parte e se converte para entrar noutros equivalentes, ou bem O busca por si só, sem esses intermediários. Quando estes passam a pertencer ao mundo, não representam senão a si mesmos. Então o ateísmo os repudia, e os que não querem dessa forma aniquilar-se seguem sós com Deus. A luta é entre os homens e não contra Deus, porque ninguém pode ter interesse em lutar contra quem está fora do mundo, tão longínquo, invisível e inalcançável. A revolta pode nascer só de uma rivalidade entre semelhantes, por um prejuízo recebido, o que é absurdo em relação com Deus.
Para convencer é necessário estar convencido, assim como para fazer a fé é necessário primeiro tê-la dentro de si, isto é, crer a sério, com fatos e não só com palavras. A pregação que não corresponde à realidade da vida não persuade e se toma o hábito de escutá-la apenas como uma bela apresentação. O ideal reduzido a exercício de retórica não arrasta porque falsifica o que devia ser paixão avassaladora, afirmação sentida, testemunha sincera de realização vivida. Quem escuta percebe este atentado à sua boa fé, mas porque lhe convém, acostuma-se ao cômodo jogo das adaptações. Então a religião se reduz a uma farsa coletiva convencional na qual todos estão tacitamente de acordo. O rebanho é constituído de homens do mundo que conhecem as astúcias da vida, sabem perceber e gostam de descobrir o que se esconde atrás das aparências. O mundo está cheio de enganos, está acostumado a desconfiar e se apercebe prontamente quando se usa o ideal à procura do ingênuo para crer nele. O muito insistir na fé cega do crente pode dar lugar a suspeitas porque se presta otimamente para prender os simples de boa fé. Por fim se põem todos de acordo porque é cômodo para todos não aprofundar em demasia o porquê das coisas e permanecer na superfície.
Sucede no entanto que, quando tudo isto se torna hábito, sistema de comum aceitação e se fixa numa forma mental; então a religião se corrompe e decai. Que resultados espirituais se poderão assim obter? Se a semente que se lança na alma dos fiéis é desta qualidade qual poderá ser a planta que dela nasce? É certo que os ingênuos são muito procurados em nosso mundo, mas é também verdade que a sua espécie, sob os duros golpes da luta pela vida, tende a desaparecer. Como pode um edifício baseado sobre o ideal e sobre a fé nele depositada, sobre a sua sincera e fiel atuação, deixar de desmoronar, quando as posições são assim emborcadas, quando a fé assume um outro significado e a incredulidade quase se torna um ato de sinceridade?
O mundo está mudando e exige clareza. A melhor renovação que pode fazer o Cristianismo não é de formas ou de rito, de tolerância ou expansão de domínio, mas é a de crer verdadeiramente, a de oferecer ao seu rebanho a demonstração racional para poder assim crer, compreendendo e não de olhos fechados com fé cega. É enfim, a de fazer-lhe sentir que existe quem crê a sério, tanto que vive a sua fé e, pelo fato que crê, lhe dá a prova com o exemplo.
Antigamente a astúcia aconselhada por Maquiavel passava por sabedoria. Ele dizia que era necessário mostrar as virtudes, mas cuidado com o possuí-las e praticá-las de verdade, deixando-se enganar pelos princípios idealistas, estes devem ser pregados para que outros os pratiquem e seja assim mais fácil dominá-los. Hoje, no entanto, cada vez dá menos resultado fingir para que os outros creiam. Pensar que eles se deixem assim facilmente enganar não é astúcia, mas ingenuidade. O número destes diminui cada dia. Aquela era uma fase mais primitiva, e desde então o mundo caminhou. Torna-se cada vez mais assinalada a tendência de colocar de lado o hipócrita que engana, como elemento anti-social. O método de Maquiavel pressupõe o ingênuo que crê, enquanto hoje o comum é deparar-se com a reação do enganado. Eliminando o ingênuo, aquele método falha e é o que hoje está sucedendo, como resultado benéfico do seu longo uso. Assim foi eliminado qualquer tipo de fé e as massas foram educadas em sentido oposto, ou seja, obrigadas a desenvolver a desconfiança e com isto o sentido crítico e o controle, tornando mais apurada a inteligência. Estes são os salutares efeitos da prática generalizada e constante, em todos os setores humanos, desse método da pesca do ingênuo, segundo Maquiavel. Surgiu em sentido criador, por obra de uma força negativa, uma automática seleção natural pela qual só sobreviveram os mais astutos, os menos dispostos a crer e a cair como presa dos enganos dos outros. Eis ainda um caso no qual o mal é utilizado para os fins do bem, pelo que, com a evolução, o negativo tende a inverter-se no positivo, não apenas autodestruindo-se, mas funcionando como elemento de construção.
Hoje procura-se a substância. Os homens não se contentam mais com vagas promessas de incontroláveis alegrias longínquas, situadas no além, compensadoras das dores atuais, que em vista de tal consolação devem ser suportadas pacientemente, enquanto outros mais afortunados gozam a vida no bem-estar. O homem moderno é positivo, exige realizações imediatas e concretas e, quando se trata de promessas, quer ver claro sobre a sua futura viabilidade. Agora ao pobre já não lhe basta o submisso dever de depender da generosa e caprichosa concessão de benesses por parte de quem possui. O humilde pedir por compaixão se transformou hoje no direito à vida, que não pode depender da vontade dos poderosos que se dignem reconhecê-lo concedendo favores, mas é regulamentado como todos os direitos, sobre princípios de justiça. Então não mais apenas beneficência porque quem dá se dignou a isso, insuficiente compensação às diferenças de posição, mas sim cálculo positivo de direitos e deveres entre os elementos do organismo social, para realizar-se imediatamente na Terra sem problemáticos adiamentos para as outras vidas, organizando o trabalho e as previdências sociais em favor de cada um dos componentes da coletividade.
Se do lado do Comunismo como do Capitalismo é hoje possível realizar tudo isto, deve-se ao fato de que as mais baixas classes sociais alcançaram uma certa consciência coletiva, que é necessária para saber organizar-se em formas inconcebíveis na Idade Média, e assim poder atingir o exercício dos próprios direitos. É assim que a humanidade desperta, se organiza, se coletiviza, em mais equilibradas formas de justiça social. É natural que, se o mundo fosse mais evoluído, não haveria sido necessário o assalto revolucionário comunista para decidir-se a iniciar esta nova ordem de coisas.
O que representa, portanto, na evolução da vida, o fenômeno Comunismo? O que ele significa no pensamento de Deus, a que nenhum fenômeno pode escapar, pensamento precedente à direção da história, nela presente também neste caso e momento? Em que posição se encontra este acontecimento perante o outro, muito mais vasto e importante, o de Cristo? Estará talvez nele incluído, constituindo uma fase transitória do seu desenvolvimento? Por caminhos tão diferentes, com métodos e movimento opostos, que parece queiram anular-se um ao outro, não quererão eles levar a humanidade ao mesmo ponto? Trata-se de uma luta entre dois inimigos inconciliáveis para destruírem-se, ou, pelo contrário. De uma inconsciente colaboração para realizar a mesma construção. O Comunismo ateu, nos grandes desígnios de Deus que ele ignora, não trabalharia, sem sabê-lo, ao Seu serviço, para realizá-los, apesar de varrer com tudo aquilo que em nome de Cristo foi feito para os interesses humanos? Em última análise, qual é a verdadeira função do comunismo?
Não se pode contestar a sua expansão e é necessário explicá-la. Sem interesses partidários e preferências pré-concebidas queremos compreender o que está sucedendo em profundidade e o porquê. Admita-se ou negue-se a existência de Deus, resta o fato de que a vida, e com ela a história, está dirigida por uma inteligência. Vemos que há uma Lei que para todos, crentes ou ateus, reage contra o erro e o corrige, obrigando-nos com a dor a reconstruir a ordem violada. Quem conhece as leis da vida sabe que um afastamento do reto caminho da evolução é envolvido num processo de retificação. Em termos religiosos se diz: é a mão de Deus que faz justiça. Em termos racionais se diz: é um movimento de força do imponderável incumbido de restabelecer os equilíbrios alterados.
Ora, pela mesma natureza negativa de tais impulsos reativos, funcionam neste caso espontaneamente as forças do mal, isto é, as do Anti-Sistema, que são particularmente adequadas a uma ação agressiva e destrutiva. No plano físico isto se repete no caso de um organismo corroído contra o qual a vida lança a doença para provar a sua resistência, obrigando-o assim a lutar e com isso a desenvolver as suas qualidades sãs e vitais, ou também para liquidá-lo se não é capaz de fazê-lo, por estar demasiado corroído. Vemos portanto que tais medidas corretivas fazem parte das leis da vida. Considerar que os ateus estão isentos delas seria como pensar que eles pudessem, por ser incrédulos em matéria de doenças, ficar imunes aos ataques patogênicos ao seu organismo. O ateísmo não outorga imunidade contra as conseqüências do erro e não subtrai ninguém às leis da vida. Ao erro humano não é dado o poder de deter a sua aplicação.
As doenças, como as revoluções são tempestades de purificação, meios de reação contra a deterioração, que corrompe e destrói. No fundo se trata de cataclismos vitais, com o objetivo de saneamento. A atual crise do mundo é de sinal positivo. Ela não é feita só de destruição, mas no meio da destruição contém também grandes impulsos construtivos. Ela é uma crise de morte no que respeita ao passado, mas é crise de nascimento no que respeita ao futuro. Prova-o o fato de que a temperatura psíquica da humanidade está subindo rapidamente. O Comunismo é uma das forças que está funcionando dentro do desenvolvimento deste fenômeno Mas é necessário ver em que posição e a fim de cumprir que função. Pelo fato de estar incluído num processo de evolução, hoje particularmente intenso, ele não se torna, só por isso, uma força de tipo positivo, de bem, de acordo com o Sistema. O Comunismo continua sendo uma força negativa, do mal, do tipo Anti-Sistema. No percurso da História dirigida pela Mente universal, esta utiliza aquela força com uma finalidade de bem, isto é, de destruição com um objetivo construtivo, impulso negativo guiado para concluir a sua ação, alcançando resultados positivos, por fim como um benéfico mal necessário.
Talvez seja função histórica do Comunismo também a de provocar uma reação purificadora do Cristianismo, obrigando-o a seguir o seu ideal, vivendo-o na forma em que, pelas razões anteriormente explicadas, não pôde fazê-lo até hoje. Assim o Cristianismo poderá tornar-se cristão. Este seria o verdadeiro triunfo de Cristo, resultado imenso, que vale as dores que custará para alcançá-lo; verdadeiro impulso para a frente no caminho da evolução, com redução de poder terreno e correspondente conquista de valores espirituais, um verdadeiro progresso em direção a formas de vida mais elevadas, isto é, civilizar, transformando o mundo em sentido cristão, ou ainda, regressar ao centro do caminho da evolução, sobre o qual a vida nos quer reconduzir, quando nos perdemos pelas vias do mundo.
O Comunismo representa um impulso em direção a este endireitamento. Por haver resistência à transformação, é necessário que este impulso seja enérgico, feito com meios persuasivos, e o Comunismo bem o conhece. A luta é grande porque o Cristianismo resiste para conservar a velha ordem cujas vantagens goza e sobre as quais baseia as suas posições. No entanto ambos estão fechados dentro do mesmo processo histórico, para realizar a mesma obra de construção. O Cristianismo possui a idéia; o Comunismo, a força que obriga a realizá-la. A idéia por si só permanece uma abstração fora da realidade. A força, sem a idéia que lhe dirige a ação, pode ser levada a realizar as piores coisas. A vida produz os opostos, depois os aproxima em posição de complementaridade para fazê-los colaborar, lutando como rivais para alcançar o mesmo fim, como acontece na luta - colaboração entre os opostos - complementares, macho-fêmea, do casal destinado à procriação. Por lei de evolução é lógico e justificável que, numa primeira fase do seu desenvolvimento, no passado, o Cristianismo para chegar até hoje tenha tido que aceitar os métodos dos tempos, adaptando-se ao estado involuído da humanidade de então. Mas pela mesma lei de evolução é lógico é necessário que hoje, em uma mais avançada fase de desenvolvimento seu e do mundo, o Cristianismo se desperte e passe de verdade à realização do seu programa, aproveitando a oportunidade e os incitamentos que Deus lhe oferece nessa nova maturidade histórica. Num universo em que tudo está conjugado e atua em colaboração, negativo e positivo, mal e bem, trabalham de acordo, se bem que em posições reciprocamente emborcadas, incluídos num mesmo processo bifrontal a favor da evolução. Depois, as revoluções acabam por devorar os seus filhos e o mal acaba por eliminar-se- a si mesmo. Fica o bem que, com o seu esforço invertido, o mal conseguiu no entanto estimular purificando-o, e renovando-o. Fica, para as novas gerações, a deslocação evolutiva assim conquistada.
Não é um método novo para a vida este de utilizar tudo num sentido criador, mesmo o que é destrutivo. Assim o Comunismo, visto em sentido lato, pode ser entendido como uma reação corretiva por parte da Lei de Deus, como uma tempestade de dor; cuja função é a de despertar o espírito, meta da evolução. Foi dito que: "o Comunismo testemunha os deveres que o Cristianismo não cumpriu". Mas por que o testemunha? Para os cumprir ou só para fazer ressaltar que não foram cumpridos e assim sentir-se autoriza- do a agredir e liquidar a quem deveria tê-los cumprido? De que púlpito parte a pregação? Como pode fazê-la um Comunismo que nos fatos pratica métodos que estão nos antípodas do Evangelho? Quem tem defeitos, como pode condenar os defeitos dos outros? Mas então os homens são todos da mesma raça e fazem em toda a parte as mesmas coisas. São os fatos e o modo de atuar que, por detrás das palavras e das ideologias, revelam qual é a realidade. Mas então se à teoria não corresponde a prática, se o Evangelho comunista mata em nome do ideal, enquanto o Evangelho de Cristo induz a deixar-se matar pelo ideal, tudo isto significa que de fato os dois Evangelhos estão nos antípodas e um é o contrário do outro. Por isso se vê que confiança pode merecer um Evangelho comunista camuflado de Evangelho cristão. É inútil mudar os termos. Os dois terrenos são completamente diversos: um é material, o outro é espiritual; um é político, o outro é religioso. Que significa este apropriar-se do Evangelho para usá-lo ao contrário, para destruir a Cristo e levar à supressão do setor espiritual da vida? Então a função do Comunismo não é a de cumprir o Evangelho- não realizado pelo Cristianismo, mas é a de castigar o Cristianismo por não o haver realizado e obrigá-lo, portanto, a fazer com os seus próprios métodos persuasivos. Se é indiscutível que na Terra, devido à natureza do homem, com os métodos evangélicos, feitos para seres mais evoluídos, nada se obtém, isto permite ao Comunismo insurgir-se no campo das atuações terrenas, que não é o da espiritualidade.
O fenômeno se explica. O Evangelho está marcado ao longo da linha da evolução como realização futura e por isso hoje se apresenta no alto, por sobre a vida vigente, como ideal que antecipa o amanhã, do qual está à espera para tomar corpo na Terra. O Comunismo surge, pois, dois mil anos depois de Cristo, em tempos mais maduros que tornam possível uma tentativa de uma mais eqüitativa distribuição de bens, não só como caso isolado por iniciativa individual e fins espirituais, mas em escala social por organização coletiva e atuais finalidades terrenas. Eis porque o Comunismo se encontra realizando alguns pontos do Evangelho. Mas mesmo nestes, há uma grande diferença: o Comunismo não se limita a aconselhá-los, mas os realiza, não os propõe ao indivíduo para a sua perfeição, mas os impõe às massas, não se ocupa de longínquas metas espirituais mas de imediatas realizações humanas. Disto deriva a diferença de método. Quem trabalha só no terreno do ideal por seguir a técnica evangélica da bondade, mas quem deve agir na Terra, deve seguir os métodos do mundo, bem diversos dos de Cristo, feitos para as realizações espirituais, enquanto aqui na Terra estamos no plano material. Os métodos evangélicos presumem um grau de evolução e civilização ainda não alcançado. É assim que, numa humanidade ainda imatura, a força e a violência, que estão nos antípodas do ideal, podem formar parte indispensável da técnica da sua descida na Terra. Esta descida implica ingentes deslocamentos de idéias, interesses e posições, e o estabelecimento de uma nova ordem no lugar da velha que não se deixa demolir, não se pode obter senão à força. Um pioneiro isolado pode vencer com o martírio; as massas, não. As funções históricas do Cristianismo e do Comunismo, mesmo que ao longo do caminho possam encontrar algum ponto de contato, são diferentes. O primeiro estabelece as metas longínquas, ainda situadas no nível super-humano do ideal, enquanto o Comunismo está no meio do mundo para dar um estremecimento que leva à realização concreta. Mas é evidente que, devido à estrutura de nosso mundo, não há outro caminho, ainda que isto pareça uma contradição, para passar da teoria do Cristianismo pregado, à prática do Cristianismo vivido. No-lo prova o passado. Trata-se de uma tentativa inicial de involuído, como o provam os métodos usados, inevitáveis quando se quer realizar algo no atual nível evolutivo da humanidade, como movimento de massa. Descer à atuação prática significa dever mergulhar em nosso mundo tal como ele é, para realizar um trabalho que só quem tem a força bruta do primitivo pode ter a capacidade de cumprir. Depois desta nova irrupção de impulsos evolutivos, sobre a estrada aplainada pelo cilindro compressor de revoluções e guerras, o novo cristianismo, purificado pela tempestade, poderá retomar o seu caminho triunfal em direção a Cristo.
Este é o fenômeno nas suas grandes linhas. Mas que sucederá, se olharmos mais em detalhe, mais de perto? Vivemos num momento histórico decisivo, de deslocações de equilíbrios e posições, de mudanças profundas, que levam a humanidade a gravitar em direção a outras metas e a realizações em função de outros pontos de referência. Uma necessidade de sinceridade e clareza impulsiona a uma revisão dos valores tradicionais, para eliminar os fictícios e ficar com os reais. O Cristianismo está colocado numa bifurcação: ou se faz cristão a sério ou será liquidado, porque não cumprindo mais a sua função, não tem mais razão de existir. Então o desenvolvimento do programa evangélico poderá continuar, mas confiado a outros homens, a outros instrumentos de Deus, novos chamados, adequados à realização daquele ideal, que é fatal que se deva cumprir. A atuação dos planos de Deus não pode ser limitada aos interesses de uma classe dominante. O Evangelho, além de fenômeno religioso, é também fenômeno social e biológico, de importância fundamental no desenvolvimento da evolução da Vida no plano humano da coordenação coletiva para passar à fase orgânica. Neste desenvolvimento está envolvida a existência de todos os homens, dos cristãos como dos ateus. A descida dos ideais se realiza através das religiões, todavia faz parte integrante do fenômeno da evolução, que antecipa e obriga a avançar, interessando, portanto, também à ciência positiva dos ateus.
Eis então que a função do Comunismo pode ser a de despertar o Cristianismo e, obrigando-o a cumprir a sua função, contribuir para que ele não seja liquidado pela vida. O Comunismo pode ser entendido como um bisturi em mãos de um hábil cirurgião. O bisturi corta as carnes, mas o cirurgião sabe o que faz, opera para curar, não para matar. A vida está do lado do doente para curá-lo, por isso, o opera, porque quer que viva e que evolua ainda. Curar-se para o Cristianismo significa reencontrar os seus valores mais vitais, que são os espirituais. Se ele voltar a encontrar a Cristo, salvar-se-á; de outro modo ficará só e, sem Cristo, se perderá. O que morre não é Cristo, mas sim a organização humana à qual a Lei de Deus já não permite viver visto que ela já não O representa. É com esta condição que Cristo permitiu a sobrevivência.
Não é com finalidade destrutiva que estamos fazendo estas afirmações mas ao contrário. A lógica colocação deste fenômeno, fazendo-o compreensível, nos permite conhecer qual deve ser a técnica defensiva da parte do Cristianismo contra o assalto comunista. Que deste lado se ataque e que do outro se resista em posição de defesa, é fato evidente. Mas como conduzir a defesa? Foram usadas as armas espirituais, excomunhões e similares. Mas estas sanções se realizam no além, estando, portanto, fora do terreno positivo, o único que leva em conta a parte oposta. Trata-se de pressão psicológica, válida só enquanto exista um estado de fé e correlativa sugestionabilidade, coisas que, com o materialismo desagregante, vão desaparecendo. Procurou-se então pactuar, buscando o colóquio, para amansar o inimigo. Procurou-se assemelhar a ele pelo caminho das concessões, para chegar a uma convivência pacífica. O Comunismo aproveitou-se disso sempre para avançar.
Haveria uma tática segura, mas é a mais difícil de realizar e consiste em eliminar os próprios pontos fracos, que são como portas abertas que permitem ao inimigo entrar. Que poderia o Comunismo contra a pessoa de Cristo? Não haveria nada que reprovar-lhe nem tirar-lhe. Se o Cristianismo se tornasse como Cristo, que poderia o Comunismo objetar-lhe? Este pode atacar onde o Cristianismo não é como Cristo. Se o Cristianismo permanecesse por sobre o mundo, fora do campo político e econômico, ou seja, no espiritual que de direito lhe pertence, isto é, num terreno de não existência para o Comunismo ateu, as razões de ataque deixariam de existir. Mas o problema é que para a maioria dos homens, o terreno espiritual é zona de não existência, do qual se foge para não renunciar à vida, isto é, à sua forma material, que é a única que consegue conceber. Mas já vimos como o Cristianismo se adaptou ao mundo, nele vivendo como mundo, chocando-se portanto com o Comunismo no terreno onde este quer imperar. No entanto para um organismo da natureza espiritual, como é o Cristianismo, não há outro meio de defesa senão o de permanecer coerente aos princípios básicos da instituição, o que representa também uma força proveniente de um plano que o Comunismo não conhece, a espiritual, tão válida e concreta para quem sabe usá-la, como a material. A reação defensiva não consiste mais em colocar-se no nível do atacante, onde este é forte, o nível onde vence o poder econômico, a astúcia das alianças com os poderosos e a curta sapiência do mundo, rebaixando-se a lutar com ele no seu terreno, mas consiste em elevar-se sobre ele, atuando num plano onde o mundo não chega, e com forças que ele não conhece e que não lhe obedecem.
Mas quem é imparcial deve saber ver também o que sucede na parte oposta. O Evangelho comunista é verdadeiro Evangelho, ou é Comunismo disfarçado de cordeiro, Satanás mascarado de Cristo? Não convence aquela pregação de justiça evangélica realizada com meios ferozes, que mais do que justiça parece astúcia para penetrar melhor, assim camuflado, em casa alheia, aproveitando a credulidade dos ingênuos. Depois, uma vez dentro, a realidade é bem diversa. O comportamento no desenrolar dos fatos revela o verdadeiro conteúdo da ideologia. É assim que a prática não corresponde à teoria em nenhuma das duas partes. Na realidade Cristianismo e Comunismo não são senão dois grupos de homens é interesses, os quais, à sombra dos ideais, fazem no mesmo nível a mesma guerra pela sobrevivência própria. Não temos portanto, como deveria ser, o choque entre dois planos biológicos, um superior e um inferior, entre o ideal e o mundo, entre espírito e matéria, mas entre dois grupos substancialmente da mesma natureza, que atuam com os mesmos métodos humanos, situados no mesmo nível. Pelo fato de a luta travar-se entre semelhantes, no mesmo terreno, ação reação são do mesmo tipo. Podemos assim explicar a razão pela qual o assalto do Comunismo toma também esta forma de engano.
Tínhamos anteriormente explicado que este ataque é devido à reação da Lei com que a inteligência do universo dirige o funcionamento orgânico deste. A reação é contra uma violação da ordem e o seu objetivo é o de restabelecer o equilíbrio violado. Podemos aqui permitir-nos formular estas apreciações enquanto as deduzimos como conseqüência de soluções gerais já alcançadas por nós noutro lugar, que lhes constituem a base, em tal sentido que nos autorizam aqui a concluir. Ora, a razão é que a reação da Lei é levada a assumir a mesma forma e a seguir o mesmo tipo de erro que a gerou, pelo fato de a reação não ser senão o mesmo impulso violador que retrocede contra quem o lançou. O primeiro e o segundo movimento não são senão as duas fases de ida e volta do percurso do mesmo impulso. Causa e efeito não podem deixar de ser da mesma natureza. Quem engana lança sobre si mesmo o engano. A falsa santidade acaba por fazer aparecer o diabo vestido santo. O Comunismo é levado a usar a técnica do engano, atraído a isto pelo fato de que o erro, com o qual o Cristianismo provocou a reação da Lei que usa como instrumento o Comunismo, é do mesmo tipo. É o Cristianismo que deste lado lhe abriu as portas, que com este tipo de ponto fraco e conseqüente vulnerabilidade, lhe ofereceu o "lugar de menor resistência", onde é mais fácil romper para penetrar nas defesas do inimigo.
Assim como a força do assalto microbiano está na vulnerabilidade orgânica do indivíduo, assim a força do Comunismo é dada pelos pontos fracos do Cristianismo. Qualquer atacante estuda as brechas que oferece o inimigo a ser atacado. O Comunismo descobre e utiliza estes pontos. Nas nações eles são os governos fracos e corrompidos, a desorganização, a miséria. No caso do Cristianismo, um deles é a tradicional simbiose Cristianismo-Capitalismo. Assim o primeiro saiu do seu terreno espiritual no qual o Comunismo não tem acesso, para entrar no terreno específico deste, que é o terreno econômico. A referida aliança forma o grande grupo das classes dominantes, das pessoas de bem que estão do lado da ordem e das virtudes, que devem, portanto, demonstrar que respeitam aquela e possuem estas, sob pena de serem acusadas de falsas. Eis então que os que mostram tão excelsas qualidades caem nos laços por eles mesmos lançados. O seu inimigo exige que eles mantenham a sua palavra e pratiquem nos fatos as virtudes que professam, isto é, que sejam bons, honestos, justos de verdade, porque tudo isto os desarma, por isso constitui uma debilidade na luta, o que agrada à parte oposta, porque facilita a sua vitória contra eles. Fazer a guerra contra um santo que se deixa martirizar, perdoando, é mais fácil que fazê-la contra uma fera ou um inimigo bem armado. Se Cristo, em vez das Suas legiões de anjos, tivesse empregada legiões de soldados aguerridos, os romanos e os judeus O teriam tratado diversamente .
Com esta simbiose com o Capitalismo, o Cristianismo desceu do seu superior plano espiritual para submergir-se naquele terreno, onde está situado o Comunismo. É neste nível humano, bem diverso do divino, que tem lugar o choque. Lutar contra Deus em si mesmo, não interessa ao ateu, porque é absurdo lutar contra o que se pensa que não existe. A luta surge quando na Terra aparecem, em forma tangível, homens que, como representante de Deus, atuam no plano humano. Então a luta do Comunismo contra o Cristianismo não é entre o homem e Deus, mas é luta entre homens, não é luta de princípios mas de interesses, isto é, dos homens que assim procedem na Terra em nome da ideologia comunista e daqueles que o fazem como representantes de Deus. Ao Comunismo não interessa a negação teórica de Deus, mas a negação prática das organizações humanas que em Seu nome possuem poderes econômicos e políticos. Da sua parte, o que é puramente espiritual, sendo de domínio íntimo, escapa a qualquer intervenção do exterior. É difícil, portanto, controlá-lo coativamente. O choque depende assim desta descida do Cristianismo do espiritual para o temporal, o qual coloca o primeiro no mesmo nível do segundo. Se o Cristianismo tivesse ficado no seu plano, se não tivesse baixado até tornar-se coisa do mundo, como é o Comunismo, teriam faltado os pontos de contato e de rivalidade, motivo de luta. Esta é inevitável entre dois grupos humanos que usam bandeiras diversas. Deus está por cima de todos, dirigindo tudo para os seus fins, diferentes dos humanos.
Nos planos de Deus, para que serve então e onde quer chegar esta luta? O seu resultado benéfico poderá ser que o Cristianismo seja obrigado pelo Comunismo a retirar-se mais ainda do terreno material, para expandir-se no seu, que é espiritual, deslocando os seus interesses do primeiro para o segundo. Isto é o que Deus quer, porque isto é espiritualização e como tal regressa ao plano fundamental da evolução, razão da existência. Noutros termos, no desenvolvimento da história, seguindo os planos de Deus, o grupo humano Comunismo assalta o grupo humano Cristianismo para forçá-lo a espiritualizar-se, a subir, aproximando-se de Deus. É um regresso a Cristo. Este é o significado do ataque comunista.
A fraude por parte do Cristianismo neste caso é substancial, desenvolve-se no terreno concreto, como é o econômico. Ele pregou aos pobres a não resistência, a aceitação do sacrifício, exaltando-os em teoria, compensando-os com consolações de além-túmulo e deixando-os na Terra entregues à sua miséria. Por outro lado, aliou-se com os ricos e poderosos da Terra, salvando assim os seus interesses e deixando aos deserdados as consolações do céu e a honra de saber sofrer. Se. o Cristianismo. hoje vai ao encontro das classes mais pobres, é porque elas se organizaram e assim se tornaram poderosas. No passado não existia sertão a esmola e a beneficência, não o direito ao trabalho e à vida. O Cristianismo, se no passado tirou vantagem desta aliança, hoje não pode deixar de estar envolvido nas conseqüências que dela decorrem. Da formação do binômio Cristianismo-Capitalismo inevitavelmente deriva que ambos tenham a mesma sorte. Desde que o primeiro deitou raízes na Terra como Capitalismo, é natural que o Comunismo queira elimina-los ao mesmo tempo, como expressão do mesmo sistema. Hoje, explicamos já, o pobre não se contenta mais com simples concessões que o colocam à disposição do arbítrio alheio, mas assenta os seus direitos e os faz valer, exigindo que os outros cumpram com os seus deveres a seu respeito. O Cristianismo havia criado a ovelha paciente e submissa, que espera e agradece, mas o Comunismo está criando o indivíduo organizado que discute sobre justiça social e exige a sua explicação.
Tampouco, porém, pode a ação comunista, por este lado, ser justificada, porque à fraude do Cristianismo corresponde a fraude do Comunismo, que faz alarde da justiça social para melhor penetrar e dominar. Em teoria, ele se proclama defensor dos deserdados, sublevando-se contra as injustiças do mundo. Mas na prática, deste nivelamento que benefício gozam as massas? Este novo método de vida social melhora as suas condições de existência em confronto com a dos países capitalistas? O Comunismo quereria ser uma tempestade de saneamento contra tantas injustiças, mentiras e corrupção. Estas de fato existem e a revolta contra tudo isto é uma esperança de libertação, que o impulsiona em direção ao Comunismo. Trata-se de um impulso para o negativo, isto é, determinado não por uma atração em direção a uma ajuda, mas por uma repulsão que induz a fugir de um inimigo e um perigo. Mas pode a passagem de um partido político a outro transformar o homem e torná-lo melhor? Por acaso não continua sendo o que é, para fazer as mesmas coisas em qualquer partido em que se encontre? Existe no homem um desejo de justiça que, no entanto, tende primeiramente a realizar-se em favor do seu próprio egoísmo, começando pelos direitos próprios e pelos deveres dos demais. Dentro desta obscura revolta, contra tantos males sociais em busca de honestidade e justiça, freqüentemente se agitam os impulsos mais baixos e desordenados. Tudo isto é náusea da corrupção alheia, mas é também desejo de fazer o mesmo e inveja por não poder gozar as mesmas vantagens. Não se quer a mentira dos outros porque nos traz dano, mas se substitui alegremente pela própria que nos traz vantagem. Preferir-se-ia, inclusive, arriscar, uma destruição geral, na esperança de que, na confusão haja individualmente alguma coisa a ganhar. Então, com a palavra justiça, se quer mascarar a tentativa de aproveitar e o desejo de vingança.
O resultado de tudo que observamos é, pois, a luta de classes, ódio entre elas, impulso à guerra. Por este caminho, os dois grupos que proclamam o Evangelho chegaram ao seu pólo oposto, isto é, da paz às ameaças de guerra, da colaboração à agressividade, do amor ao ódio. Assim o Evangelho foi atraiçoado por ambas as partes, a única coisa em' que concordam e colaboram os dois inimigos. De quem é a culpa? Se o remédio é pior do que a doença e o médico está mais doente do que o doente, não será ela de ambos? Assim o mundo tomou um caminho de egoísmos e antagonismos, de destruição e de dor. O mundo. está carregado de ódio e arde do desejo de descarregá-lo. sobre alguém. O Comunismo o recolhe, o organiza, o canaliza para utilizá-lo para os seus fins de domínio através do ódio de classes sociais, de baixo para cima, generosamente intercambiado de cima para baixo. Mais eis que a tão invocada igualdade, se já não está alcançada no terreno econômico, já o está no terreno do egoísmo. Esta cisão entre classes sociais inimigas é o amor evangélico Tudo é negativo, involuído, de ambas as partes. Este é o produto do Evangelho do Cristo, como o do Evangelho do Comunismo? Ou tudo o que se faz no mundo não é senão um emborcamento do Evangelho? A realidade escondida por baixo das palavras e dos ideais é bem diversa è não poderá deixar de produzir os seus efeitos. O resultado de tanto progresso científico é que o mundo hoje vive sob o terror de uma guerra atômica e parece que a dor é a única palavra capaz de fazer-se compreender em todas as línguas. Então, depois de imensas tempestades destrutivas, os sobreviventes, fraternalmente, tratarão de pôr-se de acordo, nos fatos sem mais enganar-se com as palavras. Então poderá aparecer o Amor, o Evangelho verdadeiro, vivido a sério.
A estrada é longa e estamos nos começos da grande curva. Não estamos formulando teoria. Estamos contando uma história, em grande parte ainda futura. Se Cristo prometeu o triunfo da Sua verdade, esta deverá acabar por afirmar-se mesmo se para vencer a tentativa do homem de deter a evolução e retroceder ao Anti-Sistema, semelhantes tempestades de dor sejam necessárias. Mas sabemos que o desencadear das forças negativas não é para chegar à sua vitória, senão à vitória das forças positivas. O resultado de um ataque não é sua afirmação, mas sim a afirmação da reação que ele provoca. Do ataque comunista, das revoluções e das guerras poderá surgir um Cristianismo purificado. Então Cristo poderá ressurgir no coração dos homens e o Seu Amor realmente afirmar-se no mundo. Se a culpa do Cristianismo foi a de materializar-se no mundo, o saneamento que o Comunismo e as conseqüências dele provocarão consistirá em obrigar o Cristianismo a espiritualizar--se, apoiando-se exclusivamente em forças deste tipo, inacessíveis para os involuídos que não podem usá-las, porque não as conhecem e nas suas mãos elas não funcionam.
Se, dada a imaturidade evolutiva do homem, o Cristianismo não pode até agora alcançar uma maior aproximação da espiritualidade, hoje que a humanidade está evoluindo rapidamente, o ataque do Comunismo e um batismo de dor podem ser providenciais para dar ao Cristianismo um impulso para o alto e repor o mundo no caminho da sua progressiva espiritualização. Não se pode culpar o Cristianismo de não haver avançado mais do que a humanidade no passado. Mas culpado seria se hoje não respondesse de uma forma positiva, neste momento historicamente mais adequado a um salto em frente, aos incitamentos que lhe são oferecidos para que ele se decida a ascender. Se o passado é justificável, já não o seria a continuação dos velhos sistemas, agora que a humanidade está saindo do estado de involução a que eles estavam condicionados. Se o grande abalo chegou hoje, é porque é hora de despertar. A vida sabe o que quer e, para alcançá-lo, proporciona os seus impulsos às condições do momento, à capacidade de responder, e os põe em movimento quando há uma possibilidade de êxito. Porque as guerras se tornam cada vez mais ruinosas para os vencedores que para os vencidos, e as revoluções se transformam chegando até onde os seus promotores não pensavam; porque a vida tende a evoluir, espiritualizando-se, é provável que o resultado mais útil de tão grandes choques não seja a vitória de um grupo humano, religião ou partido, de um país contra outro, mas do Cristo purificador de todos, para o bem de uma humanidade que O compreendeu, e que, finalmente, encaminhada pelos acontecimentos que a fazem amadurecer, se decidiu a civilizar-se a sério, vivendo realmente a lei de Cristo.
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A CRISE DO CATOLICISMO
Neste volume, como nos precedentes, continuamos viajando pelas estradas do pensamento para analisar como é feito e o que quer este estranho animal, que se chama homem, que, no entanto aspira tornar-se superior; e igualmente para compreender o porquê da sua conduta tão ilógica e contraproducente. Quem aqui escreve teve de fazer trabalho de pesquisa para sua própria orientação, pela necessidade de viver inteligentemente, com consciência e conhecimento, compreendendo aquilo que se faz e por quê, para dar à vida um conteúdo sério que não a transforme numa perda de tempo à caça de ilusões. Tudo isto,ele fez, em primeiro lugar para si, para conquistar a sua verdade, e, num segundo momento, oferecendo-a aos outros na eventualidade que a eles também possa servir. Chegados a um determinado grau de evolução biológica, que é o desenvolvimento mental e correlativa capacidade de compreender, não se pode mais viver como autômatos inconscientes manobrados só pelos instintos, pois sente-se a necessidade de saber para orientar a sua própria conduta em função de uma finalidade superior a alcançar, inteligentemente coordenados no funcionamento do todo, para realizar um plano que explique, justifique e valorize a vida. Deste desejo nasceram estes livros, o presente e os outros que o precedem, escritos também na esperança de que cheguem a satisfazer um igual desejo que possa ter nascido em indivíduos situados numa posição biológica semelhante. Pode suceder que outros para encontrarem satisfação necessitem de outras verdades. Tudo depende do grau e tipo de ansiedade que cada qual sinta, segundo o seu próprio temperamento, especialização de atividade e nível de evolução. Mas o que vale para todos não é tanto uma verdade tomada em empréstimo de outros, fornecida já pronta, como se costuma fazer, com as instruções para o seu uso, mas a verdade que se descobriu por si mesmo, com as suas próprias forças, que não é repetição do pensamento de outros, que se aceita já confeccionado, mas sim que foi laboriosamente conquistada, experimentando na própria vida e pensando com a sua própria cabeça, olhando com os seus próprios olhos dentro das coisas e do seu funcionamento, para ler o pensamento que ali está escrito.
Nestes últimos livros conclusivos da Obra podemos descer cada vez mais aos pormenores, focalizando a observação sobre fenômenos em detalhe, porque já foi traçado e demonstrado o sistema científico-filosófico-teológico básico[6], necessário para a orientação, sistema ao qual podemos agora, a cada momento, referir-nos para explicar, na lógica do todo, a do caso particular, o porquê da sua estrutura e funcionamento, dado que é difícil entender um fenômeno separado do todo, do qual forma parte, não orientado e enquadrado no plano geral. No fundo não estamos aqui senão fazendo as explicações da teoria universal estabelecida nos volumes precedentes, as quais não são apenas explicação de casos e fatos mas também ampliação e controle da verdade daquela teoria. Levada continuamente e mantida em contato com a realidade, com ela a teoria não se choca, encontrando fatos que a contradigam, mas pelo contrário encontra confirmações que a provam. Portanto, tudo isto demonstra que aquela teoria é verdadeira.
Porque podíamos apoiar-nos sobre tão vastas premissas, foi-nos possível conceber o Evangelho não só como elemento de uma particular religião, mas como um produto universal da vida, que por meio de Cristo foi lançado à Terra como antecipação de futura evolução humana. Assim, o Evangelho já não se nos apresenta apenas como problema religioso, mas biológico-ético-social, presente em qualquer lugar em que o homem se encontre, ou o ser que tenha alcançado o seu grau e tipo de evolução. Foi-nos possível observar o funcionamento do fenômeno: a descida dos ideais à Terra, tampouco controlável em forma positiva tratando dele não de forma vaga e misteriosa com que falam as religiões e o espiritualismo, mas na forma racionalmente convincente da lógica e da ciência, como fenômeno enquadrado em leis conhecidas como a da evolução e orientado no funcionamento do todo. Foi-nos assim possível realizar o exame do fenômeno da descida das coisas do céu tão difícil de captar, com a forma mental positiva do mundo.
Observemos, no entanto, que até aqui permanecemos no terreno do conhecimento puro. Devemos então completá-lo dando-nos conta também de um outro fato. Existe um outro problema, que é o da realização prática dos ideais descidos do céu quando se trata de se materializarem no ambiente terrestre. Transportar estas teorias à realidade da vida humana poderá parecer fácil a um teórico. Mas nos fatos o problema não é tanto o de possuir o conhecimento ideal de um sistema novo e perfeito, quanto o de dispor de material humano adequado a realiza-lo e depois capaz de o fazer funcionar. É inútil dispor de planos teoricamente perfeitos, quando o material que se deve utilizar cai aos pedaços, de corroído. O céu deve contar com as condições que oferece a vida terrestre. Então o problema básico não é o ideal, mas sanear tal material humano, construir o homem. Como, para construir o organismo humano, antes de coordenar nele infinitas células, foi necessário construir o indivíduo-célula e cada uma destas, assim, para construir o organismo coletivo - humanidade -, é necessário construir cada um dos indivíduos, seus elementos. Pelo contrário na descida dos ideais, admira-se a beleza destes, pensando pouco no uso que o homem será capaz de fazer, quando se apropria deles no seu mundo. Atua-se como se a perfeição do sistema pudesse ser suficiente para suprir a imperfeição do instrumento da sua realização.
É assim que, nas revoluções, mudanças de regime, de partidos, de religião, se altera a forma e permanece a substância, isto é, o mesmo homem que faz as mesmas coisas, tendo apenas mudado o estilo, a forma, a bandeira, o princípio teórico em nome do qual se fazem as coisas. Dessa forma os melhores programas e os mais altos ideais, no fim, não servem para nada, dado o uso que deles se faz. É inútil fazer uma máquina perfeita para depois entregá-la nas mãos de um macaco, se não se pensa primeiro em transformar o macaco para não destruir a máquina por ignorância. É assim que os melhores sistemas chegam ao mesmo fim. Eles são aceitos verbalmente, divulgados, tomando-se o credo de um movimento, mas com a secreta intenção de explorá-lo para obter proveito. Então acontece o inevitável. O involuído que não compreende nada das leis da vida e que se encontrou manejando forças que não conhece, não consegue senão produzir o seu prejuízo. Assim ele fica com o edifício demolido em cima de si mesmo, e com a necessidade de recomeçar desde o principio tantas vezes enquanto não tenha aprendido a lição, isto é, a saber fazer o justo uso dos ideais que descem à Terra. A penitência é dele. Mas como podia ele de outro modo evoluir? Não será esta na realidade a história da descida dos ideais?
Ora, a nossa tarefa não pode ser a de impor outra conduta para transformar o mundo, mas somente a de explicar o que nele sucede; deve contentar-se em compreender aquilo que o homem faz, o porquê e as suas conseqüências, e não forçá-lo a proceder de uma maneira em vez de outra. Nós podemos mostrar como funcionam as forças da vida, mas nada podemos sobre os seus movimentos. A reação punitiva que retifica os erros está escrita na Lei e funciona automaticamente e nenhum ser tem o poder de modificá-la. A uma criança que pratica movimentos arriscados pode-se dizer: "toma cuidado que podes cair e magoar-te", mas não se pode evitar que para ela funcione a lei da gravidade. Por isso procuramos explicar àqueles que possam compreender como funciona o fenômeno, dando um significado exato às palavras.
O céu de onde os ideais descem não é aquele Alto do qual se fala com significado vago, não se sabe onde, como e em que sentido está situado, porque a este conceito não foi anteposta uma teoria geral do conhecimento em cujo seio pode orientar-se. Para nós o céu de onde os ideais descem é constituído por planos biológicos ou níveis de evolução mais avançados, neste sentido superiores (o Alto), planos que é lógico que no processo evolutivo sejam alcançados no futuro. É natural por isso que o ideal hoje represente utopia, porque ele é uma antecipação que desce ao nível terrestre inferior, para que nele se inicie o trabalho de realização daquele ideal. As religiões são então um dos meios que a vida utiliza para a descida dos ideais na Terra, no seu processo de antecipação do futuro, para que assim ele possa atuar na realidade dos fatos. Compreende-se deste modo a função educadora e civilizadora das religiões e explica-se a contradição entre o que elas recomendam fazer e o que em realidade se faz. Uma religião estende-se de um ao outro destes seus dois extremos: aquilo que se diz que se faça, que se prega, mas que ainda não se faz e que é programa na expectativa de realização futura; e por outro lado aquilo que se faz e que é a realidade da vida, aquilo que ao ideal das religiões cabe lentamente transformar. Elas estão entre estes dois pólos: o pólo anti-sistema, do involuído e o pólo sistema do evoluído. Uma religião na sua amplitude abarca, entre estes dois extremos, todos os graus de desenvolvimento que entre eles estão compreendidos, isto é, uma escala que vai do pecador ao santo, ao longo da qual os indivíduos estão situados e procuram subir.
Assim a contradição desaparece e fica a função evolutiva das religiões que então não devem ser entendidas como são apresentadas, isto é, como verdades absolutas e imutáveis, mas como verdades relativas, em evolução, proporcionadas a maturação alcançada pelos seus componentes, portanto progredindo incessantemente, mudando, mas com relação ao ponto fixo final da evolução, situado no absoluto, do qual essas religiões mais ou menos se avizinham, o seu ponto de referência em função do qual se realiza a sua progressiva deslocação evolutiva. Ora este fenômeno permanece incompreensível, se olhado com a forma mental das teologias vigentes, feitas de abstrações situadas fora da realidade da vida, na verdade apegadas ao absoluto pelo desejo de eternizarem em seu nome, imóvel, a sobrevivência do grupo. Apresentando assim, como aqui fazemos, todo o processo fica logicamente explicado. As sucessivas reencarnações permitem à assimilação de novas experiências e com isto a aquisição de novas qualidades, através da sua fixação no subconsciente em forma de automatismos. Trata-se de um progressivo enriquecimento, melhoramento e potencialização da personalidade. Eis em que consiste a ascensão do Anti-Sistema ao Sistema, da matéria ao espírito, elevar-se em direção a Deus. Tudo isto não é um dogma de uma ou outra religião, é simplesmente biologia, é técnica evolutiva racional e experimentalmente controlada. Assim podemos explicar o significado mais profundo quando falamos de céu, de espírito, do Alto. Então estas palavras não expressam mais apenas uma vaga aspiração da alma, mas assumem um sentido positivo, um valor real controlável. É assim que o Evangelho não fica fechado numa religião, mas assume um significado biológico universal, como lei da vida humana do futuro, porque é precisamente para nos preparar para este novo tipo de vida que o Evangelho existe na Terra. Eis que a sua presença no mundo mesmo quando este o inverte e atraiçoa, é justificada, e ele não obstante tudo, cumpre a sua função, logicamente, segundo as leis da vida e o plano da evolução. Assim tudo está claro e compreensível, assim se esclareceu o labirinto das contradições, fez-se luz sobre tais problemas espinhosos, e pode-se avançar, vendo a estrada sobre a qual se caminha. Poderemos assim viver as religiões já não como crentes cegos, mas com os olhos abertos, como crentes videntes e iluminados.
Impulsionados pelo desejo não de agredir para destruir, posição negativa da qual nos afastamos, mas para preparar com atitude positiva de construtores para uma religião mais evoluída e inteligente, qual será a de amanhã, entremos agora em maiores detalhes, observando as posições do atual momento nos vários campos para compreender que perigos nos ameaçam e em direção a que novas formas e modos de conceber a vida, a evolução nos conduz.
Observemos a atual crise do catolicismo. A que fizemos e ainda fazemos não é a crítica das religiões, mas da conduta do atual biótipo humano quando ele, na posição de involuído, se encontra envolvido no problema religioso. Foram as poucas observações feitas neste sentido referentes à Igreja, há mais de trinta anos, de A Grande Síntese ao "Index" que provocaram, entre outras razões, a condenação daquele livro. A honesta tentativa de harmonizar ciência e fé para atualizar um cristianismo em crise, porque ainda medieval, pareceu heresia, um perigo para as almas piedosas. E com o "Index" o perigo foi afastado.
Mas o problema continuou. Então era só a voz de um pobre homem isolado ou de poucos pioneiros, e era fácil fazê-los calar. Mas hoje aquele problema tomou-se universal pesando como uma ameaça, e os dirigentes são obrigados, não podendo já sepultá-lo no silêncio, a afrontá-lo e resolvê-lo. Hoje são as massas que querem saber a verdade, fazem-se sempre mais numerosos aqueles que pensam e que, portanto exigem resposta às dúvidas e soluções dos problemas que se tornaram candentes. Enquanto o mundo avança vertiginosamente, os dirigentes dormem entre as almofadas das velhas teologias nas quais ninguém acredita, por se terem feito representantes do eterno, pensando haver de tal modo encontrado o segredo para conservar eternamente as suas posições.
Hoje, em 1964, em autorizadas revistas italianas, por declarações do próprio clero, encontramos, catalogadas, as seguintes constatações:
1) Os indiferentes constituem já pelo menos os dois terços da população. Esta constatação feita por uma revista italiana, refere-se à Itália, isto é, a um pais que é o centro do catolicismo. Em 1950, em Roma, verificava-se que só 25% da população era praticante. E praticante pode não significar que seja de fato crente.
2) As vocações ao sacerdócio vão rareando cada vez mais.
3) A difusão da psicanálise que vai substituindo o confessor; o afirmar-se do culto da psicologia que explora os segredos do inconsciente e pode curar os seus males, conceitos desconhecidos ao confessor.
4) O desejo de espiritualidade se desloca, procurando satisfação fora da religião porque nela não a encontra, dirigindo-se para formas não religiosas, não ortodoxas.
Tudo isto é constatação de fatos, de fonte católica. Procuremos compreender ponto por ponto o que eles significam
1) O grande inimigo do doente não é o micróbio que o ataca, mas é a sua fraqueza orgânica que permite que tal assalta tenha êxito. Assim o grande inimigo do Cristianismo não é o materialismo e o Comunismo, isto é, os assaltos que vêm de fora, mas é a cristalização, o cansaço senil, a inércia espiritual, a indiferença geral, que são o mal que está dentro do organismo da religião. Inclusive se poderia dizer que as primeiras causas da doença, aquilo que atrai o assalto microbiano e a sua ação destrutora, é o estado estragado do organismo. Em resumo a patogênese depende antes de mais nada da insuficiência e vulnerabilidade orgânica e não do assalto microbiano, que delas é uma conseqüência. Quando o ataque chega e encontra o organismo são e armado para resistir, ele mesmo o fortifica, despertando a reação do instinto vital de defesa e impulsionando-o à vitória. O outro caso é mal de velhice, que deixa morrer tranqüilamente em silêncio. Então, materialismo e comunismo teriam nascido como um efeito de tal debilidade orgânica, chamados pela vida e utilizados como instrumentos de liquidação daquilo que esgotou a sua função biológica.
É importante para a própria sobrevivência compreender a estrutura de tal fenômeno. Para que o doente se possa salvar, é necessário um diagnóstico exato, porque só deste modo se sabe dirigir a própria ação defensiva contra o verdadeiro inimigo, que neste caso não é tanto o assalto proveniente do exterior quanto a debilidade do organismo contra o qual aquele está dirigido. Isto significa que o tratamento para a salvação consiste não só em armar-se para combater contra o inimigo, o que é inútil quando não se possuem as forças espirituais para conduzir à vitória semelhante batalha, mas também em sanar as próprias debilidades fortificando-se no terreno reservado à própria competência, onde se é mais potente e onde os demais não podem entrar: o espiritual. Uma semelhante transformação seria um remédio seguro. Mas ele representa sacrifício, o medicamento é amargo e procura-se evitá-lo por outros caminhos. Para quem representa o Evangelho não existe outra salvação a não ser segui-lo, pois para quem caminha pelas estradas do espírito o poder e a defesa não podem estar senão no plano espiritual. Ligar-se às forças do mundo significa atraiçoar e portanto perder esse poder e aquela defesa. Este pode ser o erro fatal. Claro que uma operação cirúrgica é melhor fazê-la por iniciativa própria do que ser imposta pelos outros. Hoje tudo parece calmo, como se estivesse no cume do poder. Na Igreja não há cismas, reações agressivas. Na Itália todos ou quase, se declaram católicos, respeitosamente, por tradição. Mas o problema religioso não interessa mais. Será esse desinteresse o cansaço senil que precede a paz do cemitério? Não se perde mais tempo em discutir e muito menos em agredir. As novas gerações perguntam-se o que significa esse mundo que ficou fora da realidade. Com delicada deferência, como se deve fazer com as coisas beneméritas e preciosas, a vida abandona a religião, como a uma senhora velha e inútil, incapaz de caminhar, à margem da estrada, e continua avançando por sua conta.
2) Quando as células novas não se substituem mais às velhas, o organismo não se renova e a sua vida acaba. Então ela passa para outro organismo porque o velho já não lhe serve. Hoje está desaparecendo a razão pela qual se realiza essa substituição. Se o indivíduo é espiritualista, ele se vê obrigado a entrar num organismo principalmente político e econômico, no qual a espiritualidade se situa num segundo plano. Se o indivíduo atua por cálculo, não há razão para que ele deva eleger uma carreira de muitas renúncias e escassa remuneração. No passado, a vantagem econômica e uma boa posição, podiam, mesmo que inconscientemente, dar origem a muitas vocações. Mas hoje o poder terreno passou a outras mãos e a vida oferece outras vias mais proveitosas. É natural que na Terra o cálculo da utilidade material esteja na base da vida. Por outro lado, quem deseja saber não estuda teologia, mas se satisfaz com conhecimento científico mais positivo e, quem quer ganhar, obtém deste conhecimento resultados mais concretos e vantajosos. Para se apoiarem, restariam as massas supersticiosas e ignorantes. Antigamente elas podiam servir de base, mas nos países civilizados elas hoje vão desaparecendo.
3) Hoje a técnica psicológica e terapêutica do pecado e remissão com a penitência não governa mais perante os novos conhecimentos psicoanalíticos adquiridos. A cura do erro mental não se faz mais com base em abstrações filosóficas e teológicas situadas fora da realidade biológica e com regras mecânicas, mas sim em forma mais inteligente e positiva, com a indagação no subconsciente, na estrutura da psique, com a demolição daquelas construções mentais erradas e esclarecimento daqueles enredos psicológicos chamados complexos etc.. O confessor não possui nenhuma competência na matéria, a indagação psicológica descobriu novas profundidades na alma, portanto ele não pode assumir a direção da vida espiritual alheia, tarefa complexa, de gravíssima responsabilidade. Por isso muitos se dirigem ao psicanalista. Isto não representará uma solução melhor mas demonstra que a necessidade de uma orientação espiritual subsiste e dirige-se a outro lugar, porque o confessor já não o satisfaz. Este com a sua posição de tribunal armado de penas infernais, adapta-se cada vez menos à mente moderna, porque, freqüentemente, se trata de um enfermo que invoca compreensão e ajuda, busca um médico e não um juiz que só sabe fazer-se intérprete e instrumento da vingança de Deus.
4) Confortando-se com a idéia de uma sobrevivência do desejo de espiritualidade, as referidas revistas admitem que tudo se pode remediar, falando uma linguagem nova, com a chamada "atualização", como se para poder resolver um caso tão grave pudesse bastar uma substituição de palavras e posições, assim como se faz com a moda. Claro que se trata de uma crise. Então, vendo em perigo a própria sobrevivência, o clero se apressa a fazer reparações, e, para remediar, adapta-se atendendo às exigências dos novos tempos. Mas poderão bastar as hábeis medidas preventivas? Não se tratará agora de uma crise mais profunda, devida a um método milenário não cristão de contorção do ideal, crise travada por séculos, mas que por lei da vida não pode deixar de explodir, destruindo as velhas instituições corrompidas por este seu intimo negativismo? A espiritualidade não se perde, mas se desloca, buscando outros organismos. Que significa isto? Representada na forma usada pela organização eclesiástica, ela já não cumpre mais a sua função, porque é um produto repelido. Poderá a vida manter de pé uma organização que, não realizando um trabalho útil, não tem mais razão de existir. Em vez do problema da espiritualidade, não teria sido o da própria sobrevivência o que mais interessou e ainda interessa àquela organização? As massas observam, tornam-se inteligentes, querem ver e não estão mais dispostas a aceitar só por principio de autoridade e de fé. A sociedade moderna se está transformando num organismo no qual cada indivíduo deve dar à coletividade uma contribuição útil, enquanto paralelamente a este seu dever tem o direito de exigir que todos os outros, em contrapartida, façam o mesmo. Os parasitismos não são mais admitidos, todos devem produzir alguma coisa cumprir uma função, inclusive no campo espiritual. Assim se observa, se controla, se fazem as contas, abandonam--se as teorias e procura-se o concreto, eliminando-se o que não serve.
Torna-se pouco convincente esta mudança de métodos, como acontece no terreno da moda, e isto, principalmente por tratar-se de quem baseia a sua posição sobre princípios absolutos e eternos. É o mundo que estabelece e impõe esta moda, e é o absoluto que a ela se adapta, aceitando as suas diretrizes. Existe também o método tradicional de aliarem-se sempre com o mais forte, no passado com os ricos, os poderosos, e hoje procurando ir de encontro às massas pobres porque, organizando-se e fazendo-se valer pela forca do número, elas se estão tornando as mais fortes. E para o objetivo da sobrevivência, dará indefinidamente resultado este tipo de jogo? Isto parece um duplo jogo: aliar-se por um lado com Deus por outro com o mundo, seu inimigo, uma posição insegura por ser contraditória. O homem já não é a criança de ontem; vê, observa, e tendo-lhe sido inculcado o respeito, respeita, cala e afasta-se. Numa época na qual se faz um novo exame de todos os valores humanos para selecionar o melhor e descartar o inútil, os erros passados, antigamente suportáveis, vêm à superfície e já não se toleram. Historicamente a religião que deveria ter denunciado os abusos dos ricos para ir ao encontro dos necessitados, afiada com os primeiros, havia-se transformado num tranqüilizante, ópio dos povos, para manter quietos os pobres, exortando-os à virtude da paciência e prometendo o paraíso a quem sofre, enquanto os outros gozavam imediatamente o paraíso nas suas costas.
Então para que servem estes remédios improvisados? Não será uma grande ilusão esta de crer que o Cristianismo se possa salvar só com tais paliativos, só com retoques de forma, em vez de mudar radicalmente de método, fazendo-se cristão a sério, tomando uma posição nítida do lado do espírito, sincera, sem compromisso com o mundo, ao aceitar as suas modas e ao colocar-se à sua disposição para salvar a sua própria posição? Agora já se vê o jogo destas adaptações, com finalidade de conciliar à força dois termos opostos. Um poder que dura há dois mil anos não pode fazer outra coisa senão adaptar-se às mais contraditórias posições históricas, mesmo aquelas que são o mais estridente contraste com os princípios professados. A história fica escrita e não Se pode apagar. Parece que aquilo que no meio de tantas mudanças, fica sempre imutável, podia-se dizer o ponto absoluto de referência, é o método da conveniência própria, um argumento que o mundo bem conhece e compreende. Então ele apercebe-se do poder que tem de impor-se às religiões, vê que na Terra ele é o dono, é quem manda; a ele até o absoluto obedece, adaptando-se às suas vontades e desejos.
O Comunismo não teria podido avançar, se os pontos débeis da parte oposta não constituíssem outras tantas portas abertas para o deixar entrar. Um organismo forte não adoece. Uma doença é sempre a conseqüência de um defeito ou culpa. Mas então se vive com o médico no hospital. Mas que esforço, que trabalho, que despesa, recuperar a saúde! E então surge a pergunta: se estão se iludindo aqueles que crêem que seja possível salvar-se com tais recursos, o avanço do Comunismo não representará antes uma nêmese histórica, uma fatalidade inevitável, enquanto tudo isto não é senão o pagamento das dividas contraídas perante as inexoráveis leis da vida que exigem justiça. Não seria então mais salutar, inclusive do ponto de vista da própria sobrevivência, pôr-se sinceramente a trabalhar exclusivamente para as coisas do espírito? Mas pode surgir a dúvida: compreenderão as massas ou será já demasiado tarde para que elas se possam interessar por um trabalho de profunda renovação espiritual ao qual se tomaram completamente insensíveis, depois que aprenderam a mentira institucionalizada? O exemplo do jogo das acomodações veio de cima, os fiéis o aprenderam e, por ser cômodo, já não renunciarão a ele. Claro que ele deu, no passado, vantagens imediatas e a ele se deve em grande parte a sobrevivência milenária. Mas é inevitável que se deva depois chegar até às suas últimas conseqüências de cada coisa. A salvação a longo prazo está no jogo único, retilíneo, sincero. Todo o desvio desta linha poderá seduzir no momento pelas vantagens imediatas que oferece, mas representa um princípio negativo de envenenamento e corrupção que tende a destruir o organismo que o aceita.
Não possuirá a Igreja uma força espiritual toda sua? Por que então renuncia a esta força imensa para servir-se e cair vítima da outra, a ilusória, a do mundo? Cada nação ou povo tem algo para dizer nesta nossa hora histórica, e a Igreja, se quisesse, teria coisas tremendas para dizer. A tempestade é forte. As velhas tapeçarias que tudo cobriam e escondiam, voam com o vento. Procura-se repará-las e não se vê que é a casa que se desmorona e que é necessário fazer outra desde a base. O ciclone chega, o terremoto está em ação, e entretanto não se pensa senão nos retoques. A aristocracia francesa antes da revolução, como também a russa ficavam inertes. Isto talvez porque, quando chega a hora e o tempo está maduro, é inútil pôr-se a reparar a velha casa que não serve mais. Então a vida não perde mais tempo com isso e põe-se, pelo contrário a construir tudo desde o princípio. O problema atual não é o de saber-se adaptar ao colorido do novo ambiente humano para sobreviver, de aceitar em posição de subordinado as transformações que ele impõe, e isto para salvar a sua própria posição; trata-se de gritar bem alto a palavra do espírito, fazer ver com o exemplo que ela é verdadeira e em nome dela e por seu intermédio colocar-se por cima do mundo, consciente do grande valor que se possui e que se tem o dever de afirmar para que a humanidade seja salva. É necessário conquistar o sentido da sua própria missão no mundo e com a própria vida pôr em evidência os valores do espírito, para fazer tocar com as mãos quanto é real o seu peso e valor. É necessário descobrir e compreender que o espírito representa uma força tremenda maior do que a da bomba atômica, à qual ele se pode contrapor, vitoriosa. Mas para chegar a isto é necessário sentir, encarar, viver o espírito, afirmando-se numa luta superior, tipo evangélico, conduzida com os fatos e não só com as palavras. É necessário compreender que as medidas tomadas com o objetivo de salvar os próprios interesses, nada salvam, nem sequer estes. Semelhante método é negativo, expressa um desvalor, uma incompreensão da situação, firma inaptidão para salvar-se. Para fazer isto é necessário ser positivo no sentido construtivo que a vida exige, pôr-se assim em colaboração com ela e, se não o fizer por pensar só em si próprio, ser então por ela abandonado. Cuidado com o meter-se contra a vontade da vida que quer progredir. Ela está pronta a ajudar a subir quem possua um valor, a fazer vencer quem a secunda nos seus fins e se oferece como instrumento para a realização destes As religiões possuem este valor, têm o seu monopólio, mas em vez de utilizá-lo, o deixam dormir bem guardado em cofres de ouro, para dar-se conta, um dia, que eles estão vazios, porque o espírito, que ninguém pode encerrar, fugiu, para ir reviver noutro lugar.
Claro que o desejo de espiritualidade permanece. Não se pode destruir esta que é uma necessidade humana, uma ânsia natural de evolução, que faz parte das leis da vida. Mas é precisamente nisso que, em vez da salvação, reside o perigo para a religião. É certo que o impulso em direção à espiritualidade não desaparece, mas é obrigado a dirigir-se a outra parte. Isto sucede precisamente porque a religião não sabe mais satisfazer este desejo de espiritualidade, o que quer dizer que não cumpre mais a função que lhe dá o direito à vida. Isto significa a falência da religião e a intervenção das forças da vida para liquidar a sua atual forma, que não corresponde mais aos imperativos que ela impõe. É assim que a espiritualidade permanece, mas abandona uma religião que não a satisfaz mais. Pode acontecer que noutro lugar seja pior, e que pouco beneficio traz mudar de casa. Mas a verdade é que uma casa inóspita se abandona. E se continuará andando à procura de outra, para satisfazer o seu desejo de espiritualidade. É provável que se encontrem sempre as mesmas coisas porque o homem é o mesmo em toda a parte. Então a quem clama por espiritualidade não resta senão ficar só com Deus, dado que para ele as casas do mundo são quase todas mais ou menos inabitáveis. Não podendo ele sozinho fazer algo para a salvação dos outros, não lhe resta nada senão ficar observando como se arranjarão os habitantes dessas casas, que ameaçam ruir sobre eles. Ele se afasta em silêncio, respeitosamente, como fez Teilhard de Chardin, permanecendo fiel a Deus como ele o sente, e ao seu ideal ao qual não pode renunciar sem atraiçoar-se a si próprio. Tudo acaba por chegar e todos deverão resolver os seus problemas.
Já falei claramente há trinta anos. Hoje se pode ver quão fundado era o meu temor de uma crise de religião, quão grave e iminente era o perigo previsto. Um indivíduo isolado pode tratar somente de não errar para si, ficando responsável só por suas ações. Ele não pode impedir que o homem seja o que é, e assim permaneça de fato. O clero não pode ser constituído por super-homens, nem uma consagração e enquadramento disciplinar nisso pode transformá-los, nem pode fazer com que intimamente eles não continuem sendo o que são e não funcionem com a forma mental do homem do nível evolutivo atual.
É verdade que hoje a Igreja trata de renovar-se. Mas sobre ela pesa o seu passado durante o qual muitas vezes se colocou nos antípodas do Evangelho em contradição com Cristo, aceitando o poder temporal, fazendo guerras, aliando-se com os ricos poderosos, metendo-se em política. Como reabsorver tudo isto? Como fazer esquecer este passado? Ele é pesado e as instituições milenárias não podem evitar ter de arrastá-lo. Uma casa na qual se habita há dois mil anos torna-se tremendamente velha, não mais adequada a poder viver-se dentro dela. Então, ou ela é deixada respeitosamente em pé como um documento histórico e se vai habitar outro lado, ou ela é destruída para utilizar a área edificável onde construir um novo edifício. Isto é necessário também para resolver o problema da defesa, que, em nosso mundo feito de luta, é sempre fundamental. Como o resolve a Igreja?
Já que o Evangelho a despojou das armas materiais com as quais se conduz a luta na Terra, na qual no entanto se tem de viver, e já que num mundo de luta uma arma é indispensável, à Igreja não restaram senão as armas espirituais, isto é, de natureza psicológica. Mas, com o andar dos tempos, estas se tornaram antiquadas. Elas governam perante a forma mental ignorante, supersticiosa e sugestionável do passado, mas hoje não governam mais perante a moderna mente crítica e racional. Acontece então que não vale mais nada tratar de defender o velho castelo de grossas muralhas, fossas e arcabuzes, no período da bomba atômica. Não persuade mais, e portanto é de efeito psicológico negativo, a teoria de um inferno pela qual um anti-Deus vence definitivamente a Deus, fixando-lhe a falência para toda a eternidade; não aterroriza mais uma ferocidade cruel da qual, devido à nova civilização, falta a experiência quotidiana, que antigamente mantinha viva tal psicologia que no mundo moderno vai perdendo cada vez mais significado como valor defensivo. Portanto mesmo se quisermos ficar só no terreno da luta pela própria sobrevivência, as armas que a Igreja possui não lhe servem mais para este objetivo.
Ela teria meios maravilhosos para resolver o problema, porque Cristo não a deixou sem armas, mas lhe deu outras, de outra natureza. O difícil é compreendê-las e querer usá-las. A Igreja teria podido superar este problema da necessidade de uma defesa com armas terrenas, emergindo por sobre o plano humano em vez de ficar ali submersa, e colocando-se exclusivamente sobre o plano espiritual. Existiria um argumento poderoso: o de afirmar a presença de uma Lei de Deus, racionalmente compreensível e cientificamente demonstrável, à qual ninguém pode fugir e pela qual qualquer esforço que o homem faça, no final não é a sua prepotência que vence, mas é a justiça de Deus que sobre todos e tudo comanda. Mas para muitos a aceitação de tal princípio encontra dificuldade porque não admite escapatórias, não permite fáceis acomodações, não suporta aquela elasticidade pela qual, sofisticando e interpretando, se podem levar as teorias a qualquer conclusão que se queira. Usando este outro sistema, da total sinceridade sem artifícios, aqueles que antes de mais ninguém deveriam não só pregar, mas também viver os princípios, seriam os dirigentes. Claro que então a defesa seria automática; mas defesa da instituição e não somente dos integrantes que a representam, porque a estes importa, em primeiro lugar, a defesa de si próprios, e a defesa da instituição só existe em função da sua própria defesa.
Como se vê, se necessitaria de uma outra forma mental que não se pode pretender do homem situado no atual nível de evolução, obrigado, portanto, a funcionar com a forma mental construída pelo seu passado, proporcionada a um ambiente de luta e suas respectivas exigências, no qual, para viver, é necessária uma arma e, em que a justiça do involuído não reina ainda, por causa do estado involuído. Explicar semelhantes conceitos significa muitas vezes pretender a compreensão daquilo que, num dado nível biológico, representa ainda uma coisa inconcebível. Trata-se de duas formas mentais e posições totalmente diferentes. O involuído, para sobreviver, problema fundamental para todos, procura tanto a arma material quanto a psicológica, porque ele está submerso no nível evolutivo onde impera a lei da luta e a vida é concedida só a quem sabe guerrear e vencer. O evoluído, ainda para sobreviver, porque pertence a um outro plano de evolução, onde é o estado orgânico o que prevalece sobre o caótico, adota a lei do "ama ao teu próximo", onde o método da opressão é um absurdo contraproducente e vale o da justiça, que é o método do Evangelho e do verdadeiro cristão.
Então, dado que este método, por imaturidade biológica é inaplicável, eis que para resolver o problema, vai-se em busca de outros expedientes. Reveste-se a Deus não mais de poder punitivo (antigamente eram os raios de Júpiter), mas de misericórdia e de bondade. Como ainda o sistema de atemorização não tem mais aplicação, escolhe-se a arma do convite atrativo, esquecendo-se porém de que estamos na Terra, onde continua a vigorar a lei do mais forte, onde cada dependente sabe quando o patrão se faz bom, isto é, porque ele se tomou fraco, e que é esse o momento para cair-lhe em cima. Se do plano do espírito se desce ao do mundo, então é necessário aceitar os tristes métodos deste: se recebemos astúcia, responda-se-nos com a desconfiança, porque à nossa ação de um determinado tipo não podemos pretender que nos responda uma reação de tipo diferente.
Usa-se em defesa própria o princípio de autoridade, mas que a origem da qual ela deriva é a força, depois ordenada e apresentada numa forma de legalização que se chama justiça. Assim o princípio de autoridade leva consigo uma triste tradição, porque, mais do que para educar e ajudar a evoluir, como deveria ser a função das classes dirigentes, muitas vezes serviam para desfrutar e oprimir, isto é, para deseducar e ajudar a involuir. Em semelhante regime, como é interpretada uma ação de bondade? Procurar-se-á utilizá-la com desconfiança. A bondade será interpretada como uma debilidade da qual, sem comprometer-se, rapidamente se tentará tirar proveitos. Abandonados assim os processos de atemorização com castigos no além-túmulo, agora que eles perderam o seu poder psicológico, as armas do amor, usadas somente para sobreviver na Terra e não para as conquistas espirituais, poderão servir para este outro uso, que é o de salvar as próprias posições terrenas? O exemplo de Cristo mostra-nos que o amor na Terra quando não é em função do sexo que leva à procriação, é sacrifício que conduz à morte. A autoridade se desarma e cede? Então o momento é bom para afirmar, contra a autoridade, a liberdade, ideal que naturalmente os subordinados interpretam como vantagem própria. Eles sabem que a autoridade não cede por amor, mas porque não tem outro modo para salvar a sua sobrevivência. Se tivesse sido por amor, poderia ter-se manifestado muito antes e não só agora obrigado pela ameaça de um perigo. Persuadirão estas tardias conversões ao amor evangélico, quando as massas, à sua própria custa, aprenderam que as melhoras se obtêm conquistando-as com as próprias forças e não esperando-as da generosidade dos demais? Quando os ricos eram poderosos, a Igreja, apesar de que o Evangelho os condene, apoiava-se neles. Mas hoje que sobre eles paira o perigo do Comunismo, eis a Igreja indo ao encontro das massas pobres, agora tornadas poderosas, adaptando-se a elas, e com atitudes evangélicas apoiando a justiça social. Quando Luís XVI, herdeiro de uma monarquia que havia atraiçoado a sua função, pela sua bondade confiou no povo e, para evitar derramamento de sangue, afastou de Versalhes os destacamentos de defesa, esse povo se aproveitou para fazer o rei prisioneiro e não se deteve até que o matou. Mas talvez fosse inútil resistir porque os abusos passado; daquela monarquia era necessário pagá-los e foram pagos. Ninguém pode impedir que às causas, mesmo longínquas, se sigam os respectivos efeitos.
Para que serve então, apresentar hoje um Deus vestido de bondade e misericórdia senão para oferecer uma escapatória muito rebuscada à absoluta justiça da Lei? A vida é utilitária e trata de desfrutar de tudo para subsistir. Quando encontra quem cede por bondade, serve-se dele para tirar vantagem, não para recompensá-lo com o sacrifício antivital de outra tanta bondade em proveito de outro, em vez de si próprio. Então a bondade serve para o abuso, porque alimenta a esperança de que a justiça não se cumpra. Tentativas de evasão e de aproveitamento, se bem que absurdas e ilusórias, mas que são no entanto freqüentes porque fazem parte do utilitarismo em que se apóia a economia da vida, e que leva a procurar o atalho para chegar ao maior resultado com o mínimo esforço.
Hoje as belas construções religiosas nas quais tranqüilamente dormiam os povos nos séculos passados, já não governam. Tem-se necessidade de honestidade, sem a qual acaba a confiança e os clientes se vão. Estamos em época de revisão de todos os valores e se varrem as superestruturas inúteis. Vai-se ao terreno firme. Descobrem-se as leis que regulam a vida, que assim é enfrentada na sua substância, em contato com a realidade biológica. Procura-se endireitar e, quando não se consegue, procura-se eliminar tudo o que, mesmo que seja em si mesmo ótimo, se tornou venenoso pelo mau uso que se faz dele. O que sucedeu com as monarquias, procura-se fazer agora com o instituto da propriedade e pode suceder com o Cristianismo, com o próprio Comunismo, ou com qualquer instituição que queira coloca-se em tais condições antivitais. A vida tende a destruir tudo o que por mau uso haja sido corrompido. Também no campo fisiológico, um organismo viciado tende à morte.
Por isto é perigosíssimo em religião o duplo jogo, por um lado com Cristo e por outro com o mundo, porque se somam os perigos e não as vantagens. Por isto, se a atitude evangélica da Igreja fosse só oportunismo para sobreviver, o remédio seria pior que o mal, talvez uma tentativa de suicídio. De resto a perda de um Deus, como foi apresentado até hoje, que se dedica a comandar e exigir sacrifícios, pode despertar em muitos, poucas lamentações. Para a vida libertar-se de quem se dedica a fazer temer e servir mais do que a ajudar, é mais vantagem do que dano. Então, para que tire proveito deste conhecimento de uma outra face de Deus, é necessário que esta transformação do império em amor, da autoridade em compreensão, seja real, tenha lugar nas almas, que esta nova face de Deus se faça ver através daqueles a quem corresponde expressá-lo com evidência. Tudo isto não significa senão regressar ao verdadeiro espírito cristão, ao Evangelho, e como dizemos sempre, torná-lo a sério. Trata-se de uma reforma de substância e não de forma, não de uma atividade exterior à procura de meios e de prosélitos, de número e de poder, mas sim de um novo modo de conceber a vida, de um Evangelho ainda não visto e passado em silêncio até agora. Trata-se de fazer ver pelos fatos aquilo que vale e pode o espírito, perante o mundo, por sobre ele. Se o bem-estar econômico hoje é supremo ideal, é necessário fazer ver que ele não basta, que ele contém uma imensa lacuna que é necessário preencher, um vazio que é a falta de outra riqueza que é preciso oferecer e da qual o mundo tem fome. Mas para oferecê-la é necessário possuí-la.
Quando a religião realizar uma função útil à vida, que também dos valores do espírito, e não representar somente a sobreposição de uma casta pelo seu próprio interesse sobre as utilizadas como pedestal, só então a religião voltará a ser e, como valor biológico, terá direito à vida. Hoje o homem é prático e concreto. As incontroláveis autorizações divinas convencem mais; não basta fazer-se representantes de Deus para justificar o próprio poder. É necessário demonstrar a sua utilidade social. Na sociedade moderna, de todos se exige um trabalho, uma produção, uma função útil à coletividade, uma contribuição para ela, que, em troca, dê o direito de viver ali. O resto é parasitismo, que já não se suporta. E o trabalho espiritual é um dos mais preciosos porque representa uma função necessária à vida, a de fazê-la avançar ao longo da estrada da evolução. O bem-estar material representa a satisfação das necessidades animais do involuído: viver e multiplicar-se, e ninguém lhe nega a importância. Mas o que mais vale na vida é o que está em cima e não atrás da evolução, é o espírito que avança em direção ao Alto. Hoje se emborcam as posições e se coloca o bem-estar material como um fim e não como um meio para um fim mais elevado, que não seja o de gozar animalescamente na Terra, mas o de ascender a formas de existência superiores. A vida só pela vida é um círculo vicioso, é um trabalho que se anula consumindo-se a si mesmo. Numa biologia completa há lugar - e que lugar! - também para as religiões, porque elas, com a técnica da descida dos ideais, cumprem uma função fundamental, qual seja a de ser instrumento de realização da maior finalidade da vida, a evolução.
XI
PSICANÁLISE DAS RELIGIÕES E ASPECTOS DO CRISTIANISMO
Ofereça um cavalo a quem disser a verdade, e dele necessitará para fugir e pôr-se a salvo.
Provérbio Oriental
O Cristianismo não nos interessa como organização terrena, como atividade política, como fenômeno de grupo, proselitismo para reforçá-lo, nem como egoístico cálculo de salvação depois da morte. Este é o seu lado "mundo", desgraçadamente necessário para que qualquer coisa possa existir na Terra. O Cristianismo interessa-nos enquanto idéia de Cristo e não como adaptação desta à involuída natureza humana; interessa-nos naquilo que não é mundo mas contra o mundo; isto é, como ideal de superação humana, como princípio de evolução, como meio de ascese espiritual tal como deveria ser e como Cristo queria que fosse.
Recordemos que o fenômeno religioso é de importância biológica universal e não apenas de fé para os crentes, porque ele faz parte do fenômeno da descida dos ideais à terra, o que é tentativa de evolução, objetivo para o qual vive a humanidade. É neste sentido que aqui colocamos o fenômeno religioso. Se fizermos observações, antes será por amor ao ideal e não por espírito de crítica demolidora, como pensam todas às vezes em que se discute um problema, já que o instinto do homem é a luta. Nada, pois, de polêmica agressiva, mas somente um sincero desejo de ver claro, primeiro porque temos necessidade de compreensão do que está sucedendo e onde se vai terminar, depois porque o momento histórico gravíssimo impõe a todos que compreendam e cada um assuma as suas responsabilidades. Estamos convencidos que erigir-se em juizes e condenar seria inútil orgulho que nada resolve. O que importa é explicar e compreender, porque não é julgando e condenando que se descobrem e eliminam os erros, finalidade de quem procura o bem. Não nos interessa a luta, porque não representa coisa alguma; não temos posições para defender, porque não temos o desejo e muito menos o poder de destruir nada. O médico não se põe a lutar contra o doente; antes se alia com ele para eliminar o mal e para isso lhe diz qual ele é, sem que por este motivo o doente se ofenda.
Pode suceder que a alguns lhes agradem estas observações porque permitem notar defeitos alheios no campo religioso, prestando-se a desacreditar e demolir, podendo assim ser utilizados para fins agressivos, que não estão em nossas intenções. Quem no entanto quisesse compreender e utilizar estes conceitos em tal sentido, seguindo deste modo as vias do mal, se exporia ao perigo de que a Lei reagisse fazendo recair em cima dele o mesmo mal que ele quereria lançar contra o próximo.
Vivemos numa hora apocalíptica, de desmoronamento de valores espirituais, e dói-nos ver a que desastrosas conseqüências pode levar a traição do ideal. Os tempos estão maduros para chegarmos a uma prestação de contas. Os velhos andaimes ameaçam ruir e de nada serve escorá-los. Não é mais hora de retoques porque o edifício está caindo e é necessário refazê-lo desde o princípio, tomando Cristo a sério, como ninguém o faz agora: nem o rico, com o seu egoísmo e hipocrisia religiosa, nem o pobre com a sua avidez e freqüente espírito de violência. Temos, assim, dois tipos de Evangelho, o capitalista e o comunista, adaptado cada um aos seus próprios interesses. Há leis que regulam o funcionamento de tudo o que existe. Quem as conhece vê que elas estão agora prontas a reagir contra erros e abusos milenários que tendem a torcer e desviar o caminho da evolução, suprema razão da existência: o regresso a Deus.
O maior perigo atual não é o ateísmo positivo e retilíneo da ciência que, com as suas novas construções, forçando o Cristianismo a defender-se e a atualizar-se, indiretamente o fortifica e rejuvenesce, mas são os falsos crentes que constituem uma doença interna, um estado de decadência orgânica, de corrupção da religião, de desfazimento que tende à morte. O perigo não é tanto o ataque comunista que vem de fora, quanto à mentira que vem de dentro. Quando tudo isto contagia a massa, a doença se expande por todo o organismo e o mata. Fazer calar o médico, porque o seu diagnóstico perturba, não salva da doença. Entendê-la exclusivamente como o ataque de um micróbio inimigo e crer que baste mobilizar-se para destruí-lo, não resolve o caso porque permanece a vulnerabilidade orgânica, debilidade da qual qualquer outro micróbio inimigo estará pronto a aproveitar-se. Ao médico honesto não lhe resta senão cumprir com o seu dever de expor o diagnóstico. Depois se cala. Ele não pode colocar-se contra o doente, tanto mais que neste caso ele não tem os meios, porque se trata de grandes desvios e só as leis da vida possuem a inteligência e o poder necessários para realizá-las. Essas leis costumam eliminar o que não cumpre a sua função vital, Assim, quando uma religião não cumpre o dever que, no plano da evolução, lhe corresponde, ela é eliminada. E o seu dever é o de fazer descer o ideal à Terra, função fundamental para os supremos fins da existência.
Cumpriu e cumpre o Cristianismo tais funções ou os valores espirituais que ele possui ficaram sepultados debaixo das superestruturas com as quais o mundo os sufocou? Na inevitável simbiose entre Cristo e o mundo não terá vencido o mundo, prevalecendo sobre Cristo? O Cristianismo é ainda cristão ou com o tempo se transformou noutra coisa? De que serve reunir-se em concílios, se esta é realidade dominante? As maiorias podem exprimir as correntes dominantes no mundo e o fato de aderir a elas parra estabelecer verdades baseadas no consentimento comum, pode constituir um apoio e ser ato de prudência nas decisões ao evitar riscos de erros perante o mundo, mas isto significa fazer-se guiar pelo pensamento dele e não colocar-se por cima, guiado só pelo espírito que não segue as humanas vias burocráticas. Aqui não se trata de concordar mas de renovar-se. As verdades relativas do mundo podem ser constituídas por um preponderante consenso de homens, não assim as de Deus. E as renovações são saltos para a frente que só indivíduos isolados, excepcionalmente dotados, sabem pensar e têm a coragem e a força de lançar. Com efeito estas reuniões são prudentes, hesitantes, ligadas ao passado, enquanto, nas grandes curvas históricas, quando o mundo explode, pode ser necessário, em vez de retoque preguiçoso, uma renovação a fundo. Hoje no mundo se pensa, se procura, se exige mais do que o velho estilo religioso pode oferecer. Hoje, pretende-se saber a sério, por isso se duvida e se controla, exige-se a linguagem positiva da ciência e se deixa de lado o que não é racionalmente convincente. Não se fica mais persuadido por tradições, sugestões, irritações, por princípio de autoridade. Deseja-se compreender com a própria mente e não com a dos dirigentes a quem no passado se delegava a função de pensar que fornecessem as verdades já confeccionadas, prontas para uso. Hoje, os olhos do mundo não se dirigem mais às velhas formas fideísticas, que parecem ter esgotado a sua função criadora, mas à ciência que conquista e produz, vive para construir o futuro e não só para conservar o passado, vai em direção da vida que não quer dormir, mas avançar.
O impulso de evolução faz pressão e prepara-se para deitar abaixo as resistências. Dado o seu nível biológico o homem freqüentemente está movido não pelo clamor da procura da verdade, mas pelo instinto de defesa do seu grupo, sobre o qual se baseiam os seus interesses. Assim nasce o choque entre quem sustém o ideal para este fim e quem sustém o ideal pelo ideal e não para os interesses que ele encobre. Ambos falam a mesma linguagem, usam as mesmas palavras, sustentam as mesmas verdades, mas para fins opostos. Acontece então que quem quer proceder seriamente perturba quem usa o ideal para outras finalidades, e que portanto o condena para eliminá-lo. O melhor amigo da religião, aquele que mais a toma a peito para salvá-la, incomoda com o seu zelo fora de hora, num mundo que tem outras coisas para fazer, e acaba sendo tomado por um inimigo e portanto combatido. Pode suceder também que os verdadeiros inimigos da religião caiam no mesmo erro, mas em sentido oposto, porque as aparências os induzem a crer que encontraram no condenado pela religião, precisamente por este fato, um inimigo desta e portanto amigo deles, enquanto é exatamente o contrário: isto é, ele é amigo da religião e inimigo deles. Mas eles o julgam pronto a confraternizar-se com eles para ir contra uma religião que, pelo contrário, ele quer salvar.
Daqui nasce um mal-entendido e um emborcamento de juízos devido às opostas formas mentais: a do mundo e a do ideal. Despertam então os inimigos da religião e tentam aliciar convertido a eles, o maior amigo daquela, que foi tomado como inimigo. Tudo, entretanto continua a desenvolver-se em favor do bem, porque para o triunfo da religião, contra a própria vontade dos seus representantes que o condenam, contribui, não obstante, a ação do seu maior amigo repelido. Tal acontece porque, por incompreensão, ele foi considerado como inimigo, do qual parecia necessário defender-se, por estar sustentado pelos inimigos da religião. Isto depende do sistema de luta vigente próprio do plano biológico humano. Neste plano uma melhoria evolutiva mais comumente se alcança por purificação forçada - causada pelo assalto de inimigos o qual, mostrando os defeitos obriga a elimina-los - do que por carinhosa ajuda de amigos que aconselhem tal trabalho. Esta obra de purificação, apesar de necessária, em vez de ser confiada ao amigo é confiada ao inimigo, despertando para confraternizar com aquele que para melhorar a religião fazia notar os seus pontos débeis. Assim é utilizado indiretamente pela vida para os fins da evolução também o verdadeiro amigo das religiões, aquele que é repelido por elas como inimigo porque toma a sério o ideal. Isto não tem nada a ver com as conversões oficiais. Quem é intimamente irreligioso permanece sempre assim seja qual for a fé que professe exteriormente e quem é verdadeiramente religioso possui a substância de todas as religiões e permanece o mesmo em qualquer delas. Não necessita, pois, mudar de forma, que é fato exterior, e muito menos fazer disso objeto de público rumor. Os íntimos fatos espirituais tratam-se só com Deus e não se mostram ao mundo para fins propagandísticos.
Tal funcionamento invertido explica-se como lógica conseqüência de um regime baseado na luta e mentira e não na cooperação e sinceridade, qualidade de mais avançados planos de vida. Mas se a luta é a lei do nível biológico humano, ao ideal que desce ali não lhe resta senão adaptar-se a esta lei, transformando-se num meio de luta, isto é, numa forma de fingimento para disfarçar-se melhor e alcançar deste modo o que na Terra é a finalidade suprema, isto é, vencer. A isto se reduz freqüentemente o uso das religiões, ou seja, não à realização terrena do ideal, mas à sua exploração em defesa de interesses humanos. Pode acontecer que, por estes motivos o difundir-se da pregação e da expansão propagandística de uma religião, na realidade signifique uma campanha em favor de interesses de grupo. É possível que isto pareça fingimento, mas num regime de luta é natural que o que mais se faça seja aquilo que menos se deva dizer . Quanto mais um grupo religioso se torna grande e com isto mais poderoso na Terra, tanto mais nele aumenta o número dos elementos falsos e aproveitadores, que se aproximam, porque quanto mais aumenta a potência material, tanto mais há para aproveitar. Tal poder leva a imiscuírem-se elementos negativos, leva à corrupção e enfraquecimento do grupo, terminando pela sua liquidação. Cuidem-se, pois, as religiões de sua grandeza terrena. Esta corrói a verdadeira força, que não pode ser senão espiritual e prenuncia um fim próximo. Isto corresponde à justiça das leis da vida para as quais quem não cumpre mais a sua função não tem mais razão de existir.
Não é diferente no nível biológico humano, onde tudo é utilizado na luta pela sobrevivência. Vemos isto no caso de Teilhard de Chardin. Enquanto ele morria só e incompreendido, ninguém se interessou por ele, a ninguém importava nem as suas teorias nem as suas desgraças. O interesse apareceu quando para os inimigos da Igreja surgiu a possibilidade de utilizar Chardin para um ataque contra ela, para mostrar os seus erros e acusá-la. Ele tornou-se importante só quando pôde servir para estes outros fins. Surgiu então uma quantidade de defensores seus, em nome da justiça reivindicadores da vítima inocente, do mártir do ideal, chorando sobre o caso digno de piedade, porque isto servia para, com a plena autorização dos princípios superiores, poder santa e impunemente agredir a Igreja inimiga, considerada culpada e portanto digna de condenação. Assim camuflados de justiceiros, honrando a moral, fica-se da parte da razão e pode-se utilizar uma santa glorificação para melhor assaltar e destruir um inimigo. Na luta, agredir e liquidar em nome do bem oferece a grande vantagem de poder fazê-lo com a aparência de máxima integridade, o que permite extrair vantagem do apoio que dá a aprovação geral.
Mas a luta desperta reações, e assim vemos no campo oposto, o eclesiástico, o fato de se ocuparem novamente de Teilhard, que antes passou desapercebido mas agora se tornou importante por tratar-se da defesa própria. Por esta razão, calando o que neste caso pode ter sido erro seu, e que a parte oposta põe mais em evidência, a Igreja trata de domesticar e adotar as teorias de Teilhard, primeiramente suspeitas de heresia, procurando enquadrá-las no terreno ortodoxo, assim satisfazendo a necessidade urgente, para não ficarem para trás, de atualizar-se perante a ciência. Querer-se-ia assim converter suas idéias numa contribuição à teologia, o que até ontem foi totalmente condenado, sobretudo a teoria da evolução. Mas o próprio inimigo que agride a Igreja é o que a obriga a realizar um passo para admitir o que já se consegue negar, princípios novos e tão evidentemente demonstrados pela ciência, que não é mais lícito condená-los. Quando aquilo que foi julgado erro não se mais deixar de considerar verdadeiro, porque se tornou verdade evidente, então procura-se adotá-lo como tal, para que desapareça o próprio erro. Mas sem esse assalto, o progresso não se teria realizado. Assim é a agressão do inimigo que nos obriga a melhorar, evoluindo. Método bem humano e que nada tem de divino. Se o inimigo é débil, procura-se fazê-lo calar, mas se, por consentimento universal, ele é forte, é melhor tornar-se amigo dele. Então abre-se a compreensão para com a nova verdade, e trata-se de aceitá-la adaptando-a para uso próprio e colocando-a a serviço do próprio poder. Quem dirige é o pensamento humano que evolui e as religiões tem de adaptar-se para segui-lo, avançando com ele, se não quiserem ser deixadas atrás pelo progresso da vida.
Quando esta, sob as aparências, é a realidade dominante, como impedir com semelhante forma mental que o ideal na Terra não seja usado como um meio de luta, em função dos interesses materiais? O indivíduo é levado a conceber tudo, tanto Terra como céu, em função de si mesmo. Se um selvagem encontrasse na floresta um aparelho de rádio ou de televisão o utilizaria do único modo que ele pode compreender, isto é, faria dele uma caixa de transporte, um recipiente para frutas, uma armadilha para caçar animais, se serviria dos fios elétricos para atar, do que brilha para adornar-se. Isto faz o homem imaturo com os ideais.
Para a maioria involuída a moral consiste no máximo resultado útil obtido com o mínimo esforço e desvantagem. E a medida da utilidade é dada pelo bem-estar do corpo, uma vez que o indivíduo vive ainda no nível animal e os valores espirituais são escassamente compreendidos. Esta é a moral do seu plano; é a este nível que é obrigada a descer a moral do ideal e do evoluído. Mais do que isto o primitivo não pode compreender. Assim ele não toma conhecimento de problemas mais vastos, não os coloca sequer, e portanto para ele não existem e desta forma estão todos implicitamente resolvidos. Nas zonas superiores, para ele inexploradas, ele é amoral e irresponsável. O seu ponto de vista é inconcebível que a moral evangélica seja feita para ser vivida. Na sua opinião é bom tudo o que serve para viver, inclusive a prepotência e a mentira, e é mau tudo o que limita a sua vida, mesmo a virtude, os deveres de honestidade, a sinceridade, a bondade, o altruísmo. A contradição entre palavras e fatos ofende o evoluído, mas não ofende o primitivo que não a percebe. Por que prejudicar o próximo deve ser um mal, quando ele traz bem a quem o faz? Esse mal alheio não se percebe, enquanto o bem próprio se sente perfeitamente. Não há razão pela qual não se deva explorar o ideal e a religião quando isto traz uma vantagem tão positiva. Sobre o assunto não há realmente nenhuma dúvida. "Se me enganasse, isto deveria trazer-me um mal e, se, pelo contrário, me traz um bem, constitui prova evidente de que não me equivoquei, porque é com este bem que sou premiado. Quando, pelo contrário, para seguir o ideal me imponho sacrifícios, o sofrimento que ele me traz prova-me haver errado". Diante de semelhante forma mental não há por que não se reduzir a religião a uma forma de hipocrisia quando isto traz benefício.
Este tipo de moral explica-nos por que o ideal apenas descido na Terra, em vez de encontrar uma aceitação espontânea, choca-se com a resistência do involuído que não quer sacrifícios, e então, para realizar-se, deve assumir a forma coativa. Verifica-se uma espécie de aprisionamento que é um encerramento progressivo da animalidade e da sua moral involuída, para limitá-la até eliminá-la, substituindo-a pela espiritualidade e pela sua moral evoluída. Lamentavelmente não há melhores meios para educar o involuído do que os do seu plano. Eles são devidos à sua imaturidade e não são próprios do ideal, cujos métodos de vida são diversos. A moral superior do ideal, feita de renúncia à animalidade e de esforço de superação, moral negativa no plano terreno de vida, pode ser vivida por quem se dirija para outro tipo de vida para além do atual, porque está maduro para alcançar níveis biológicos superiores. Mas a quem não está maduro para realizar um tal salto em frente, não lhe resta senão realizar-se na Terra tal como é em seu atual nível evolutivo, e este é o caso da maioria. Para este o que contém a verdade é positivo para a vida, é o mundo, que é o terreno das luas realizações, e o negativo é o ideal que pretende deslocar o centro da sua existência mais para o alto, onde ele ainda não sabe viver. Por isto rebela-se contra o ideal e este, para realizar-se na Terra, deve assumir a forma coativa e basear-se sobre psicologia utilitária do prêmio ou da pena, da vantagem ou do dano, das honras ou da prisão, do paraíso ou do inferno, porque este é o único raciocínio que o primitivo compreende. No plano do ideal a psicologia determinante não é esta, mas a da lógica, da justiça, da convicção.
Constatamos assim uma luta entre dois tipos de existência e entre os dois correspondentes planos biológicos. Enquanto o ideal luta para dominar e transformar a seu modo a animalidade, esta luta para aprisionar o ideal. Trata então de cristalizá-lo nas formas, de deter a sua ação paralisando-o assim ao aprisioná-lo no plano físico. Enquanto o S luta para levar tudo do ÀS para o S, o AS luta por levar tudo do S ao AS. Cada um deles quereria destruir o outro para substituí-lo. Ao assalto do espírito contra a matéria para fazê-la subir, responde o assalto da matéria contra o espírito para fazê-lo descer. Enquanto o ideal realiza a sua obra de penetração no mundo para salvá-lo, este, com as suas adaptações, executa o trabalho de corrupção do ideal. Por isso as religiões envelhecem e de tanto em tanto surge um novo profeta para reanima-las e purificá-las com novas injeções de ideal. Este deve descer à Terra que é o reino da matéria. É verdade que uma forma é necessária para dar corpo às idéias, um recipiente para contê-las e conserva-las. Mas o homem acaba por aderir ao invólucro em lugar de aderir ao conteúdo, à forma em vez da substância, termina por adorar a imagem em vez da idéia. Sucede então que, quanto mais aumentam as construções no plano físico tanto mais se enfraquece a espiritualidade que as anima e justifica. Então o ideal perde-se nos seus revestimentos. Tornou-se templos, riqueza de meios, organização hierárquica, administração burocrática, autoridade e poder terreno, e desaparecem sufocadas as construções internas, aquelas que fazem o homem novo e nas quais se realiza o ideal.
Quando se chega a este ponto, acontece o emborcamento. O que era a finalidade, a realização do ideal, se transforma num meio para alcançar as realizações terrenas que se tornaram a finalidade. O centro operante se desloca da religião para o mundo que venceu, transformando-a em mundo. Assim o ideal, em vez de cumprir a sua função, que é a de fazer evoluir para fins super-humanos, é transformado em objeto de exploração, para fins humanos. Então a religião torna-se carreira, parasitismo, sectarismo, organização de interesses. Nesta fase, dos dois inimigos, cada um dos quais quereria tudo para si, é o mundo que vence. Por isso o período da maior pureza de uma religião é o inicial, depois do qual o misturar-se com o mundo começa a corrompê-la e as super estruturas humanas acabam por sufoca-la. Então ela desmorona e, como há pouco dizíamos, se recomeça desde o princípio com um novo profeta. Tudo é transformismo e evolução na vida. Assim, conforme a fase em que se observa uma religião no ciclo do seu desenvolvimento, a encontramos em estado maior ou menor pureza, porque na mistura estão diversamente dosificados o ideal e o Mundo. A princípio vence o primeiro. depois, o segundo. Mas quando este último toma a dianteira, o impulso evolutivo comprimido pela resistência do AS explode, a forma se despedaça, a tempestade varre com os resíduos e no terreno purificado é lançado de planos biológicos mais avançados o impulso de um novo ideal. Este é mais evoluído do que o precedente, capaz de levar o homem mais para a frente, pode assim continuar a sua construção num nível mais alto, também porque pode utilizar o trabalho de assimilação cumprido por obra da religião precedente .
Esta é a história das religiões e a técnica da sua evolução, que leva o homem cada vez mais em direção à sua meta espiritual: Deus. É certo que a maturação de conceitos e formas mentais não é uma religião que a cumpre, mas sim a evolução que arrasta tudo, mesmo as religiões. A realidade biológica representa, no fundo, as mais velhas e tenazes estratificações da vida, agarradas à matéria e resistentes a todo transformismo. São necessários os terremotos espirituais, golpes tremendos por parte do ideal, como foi a descida de Cristo na Terra, para deslocar um pouco para diante a inerte grande massa humana, submersa no plano animal. É certo que a pressão do alto para penetrar as camadas biológicas inferiores é grande, mas também é certo que estes resistem desesperadamente ao impulso evolutivo, opondo o seu impulso involutivo, que em vez de subir para o S, pretende descer para o AS. O que é mais avançado volta-se em direção ao que está mais baixo para arrastá-lo para o alto, e por isso quer penetrá-lo, mas não o pode fazer senão na medida estabelecida pelo grau de maturação e conseqüente receptividade do inferior. Deus não pode revelar-se na Terra senão nos limites do concebível humano, isto é, segundo a capacidade do recipiente que pode recebê-lo. É o espaço visual dominado pelo nosso cérebro, é a amplitude de nossa mente, o que estabelece a medida da manifestação de Deus na Terra; em resumo é a nossa capacidade de compreensão. As coisas espirituais mais maravilhosas, como as coisas alcançadas com as maiores descobertas científicas, não existem para o ser até que ele construa para si mesmo, olhos que lhe permitam vê-las. É assim que, no meio das luzes enceguecedoras de Deus, ele pode estar balanceando-se na escuridão. Nas religiões, as mentes estreitas não vêem estes conceitos mais vastos, este Deus muito maior, e ficam aferradas à terra negando-se ao progresso.
As religiões não se podem compreender separadas das leis que regem a vida. É verdade que o ideal está por cima da realidade biológica, mas é verdade também que, para realizar-se na Terra, ele deve submergir-se e fundir-se nesta. Se ele permanece puro na sua altura, ele fica também fora de nossa vida. Assim é o mesmo exercício da sua função civilizadora que lhe impõe uma dose de degradação e corrupção.
As religiões são um serviço para a massa; devem, portanto, adaptar-se às suas exigências, mesmo que ela esteja bem longe de ser evoluída. Em todos os governos as massas impõem limites ao poder dos chefes. Estes têm a força da autoridade; aquelas, a força do número. Cada um dos dois termos comanda só até que o outro lhe permita. Assim os dois poderes, mesmo nos estados totalitários, limitam-se reciprocamente porque as massas incorporam as leis da vida às quais todos estão submetidos, inclusive os tiranos. Nenhum dos dois termos tem um poder absoluto. As massas têm o poder lento e maciço da matéria; os chefes, o poder ágil e requintado da mente. Cada um deles quereria sujeitar o outro a si mesmo. Há sempre lutas entre povos e governos. O acordo é dado pela preponderância de um sobre o outro, e isto é estabelecido por aquele que consegue impor-se por ser biologicamente mais dotado e mais forte. Assim as nações evoluem em direção a um estado aristocrático que em seguida se corrompe. Então toma a dianteira a massa que se revolta, para seguir a mesma corrida em ascensão e com o aburguesamento das revoluções acabar com as precedentes aristocracias.
Assim, nas religiões, as massas comandam a sua parte e o ideal deve adaptar-se a satisfazê-las. Assim encontra no campo das representações do rito, das imagens, das concessões à superstição, do fanatismo, do materialismo religioso do primitivo. As religiões devem descer ao nível mental do povo ignorante. Os chefes devem cobrir-se de mantos e decorações, representar a comédia dos cetros, tronos, mitras, coroas e semelhantes símbolos e, assim revestidos, saber fazer o duro jogo da vida. O mundo quer que o divirtam, impõe estas representações e se faz servir sem piedade. As massas dão a seu beneplácito e permitem aos poderosos mandar, se lhe satisfazem os seus gostos. O poder baseia-se também sobre um estado psicológico, em um consentimento público. De outra maneira ele é tirania. Os chefes necessitam de gozar de uma certa confiança e simpatia. Não basta cumprir com o seu próprio dever perante Deus, é necessário também fazer aquilo que as massas julgam, com a sua mente, que é dever. Então quem manda e quem obedece? E qual é o nível mental das massas do qual depende o seu juízo?
Não há posição social que nos coloque fora da lei da luta pela vida. Ninguém pode sair do domínio das leis biológicas do Planeta, nem sequer as religiões reveladas, quando nos seus representantes tomam forma humana. Aquelas leis continuam funcionando mesmo para quem se converte em ministro de Deus, ainda que ele as ignore ou as negue. Pode livrar-se delas somente quem tenha evoluído o suficiente para superar o plano biológico do homem atual, e assim estar maduro para entrar num superior. Mas, Para fazê-lo, não bastam os mais altos cargos do mundo. Estes são forma, não substância, aparência e não valor intrínseco. O homem permanece o mesmo biótipo e pertence à posição evoluída que lhe corresponde, qualquer que seja a posição social que ocupe.
Hoje, dada uma nova maturidade e penetração psicológica, é cada vez mais difícil camuflar-se a estas realidades, que terminam sendo mais visíveis. Antigamente se podia facilmente fazer passar por verdade coisas hoje inaceitáveis sob o controle da razão. A tendência atual é de renovar as dimensões de tudo, analisando-lhe as causas biológicas e psicológicas que produziram um consentimento a respeito de determinadas idéias. Hoje faz-se a psicanálise das concepções sobre as quais se baseiam tantos castelos religiosos, teológicos, políticos, sociais, para ver o que nelas há de sólido e de verdadeiro, e o que fica depois de tal exame. Que pretende realizar a vida através destas suas formas? É verdade que ela as aproveita para alcançar os seus fins e neste sentido leva o homem a atuar através de impulsos que o deixam acreditar que ele obedece à sua vontade. Se o homem tivesse sido abandonado a si próprio, com plenos poderes, ter-se-ia destruído há muito tempo. Para dirigir, conhecimento e boa vontade são necessários, e a vida quer continuar, por isso se impõe com a sua sabedoria.
A mente humana cria as lendas e os mitos que servem à vida. O estabelecer-se de uma verdade baseia-se sobre um consentimento humano e o estabelecimento de um consentimento tem bases utilitárias, isto é, tem lugar em função do fim supremo que é a sobrevivência. Esta é a realidade fundamental, mesmo que ela esteja escondida debaixo das mais variadas superestruturas. A massa humana formada tanto por quem comanda como por quem obedece, massa de indivíduos e povos em posições diversas, encontra-se toda encerrada dentro destas leis e ambiente biológico mais ou menos no mesmo nível evolutivo, dominados pelas mesmas necessidades vitais, elaborando os conceitos e as atividades necessárias para sobreviver e evoluir. O pensamento de Deus, que rege a vida, encontra-se na profundidade do fenômeno e tudo e a todos move sem que o saibam. Assim a grande máquina funciona e avança. Existe dentro dela a necessidade de resolver todos os problemas: o do pão quotidiano, o de dar e continuar a vida nos filhos, administrar os estados, as religiões, vencer as guerras, adquirir o conhecimento, evoluir por fim em direção a Deus. A vida deve resolver todos estes problemas em função do último, o maior.
Vivemos numa época em que a velha espiritualidade morreu e a nova, sobre bases científicas positivas, ainda não surgiu. Cada século desenvolve um pensamento próprio para realizar uma criação diferente. Este pensamento hoje é científico, realizador na matéria; este é o tipo de impulso que hoje move a humanidade. As religiões, encerradas nos seus velhos castelos, permaneceram ali atrasadas, enquanto o mundo caminhou sem elas e agora se esforçam por alcançá-lo por meio da operação que chamam: atualizar-se. No entanto, porém, por sua inércia, o mundo se esvaziou de espiritualidade, o ideal se evaporou nos céus. Na arte e na literatura isto é evidente. Das religiões ficou a estrutura exterior, mas a casa está vazia, mesmo que por fora esteja bem conservada. A espiritualidade tornou-se uma das tantas mentiras convencionais, com as quais muitos concordam. Continua-se, assim, exaltando Cristo com palavras idealistas, mas para o uso que se costuma fazer Dele o argumento se tornou suspeito. A fé fica para os ingênuos, que é mais fácil enganar. Domina a moral do interesse próprio, o ideal é repelido também nos fatos por quem o professa na palavra, e a estrada principal é a da mentira. Esta é à base dos colóquios hoje em moda e por isto eles não se resolvem em compensação e colaboração. À força de falsificar o sentido das palavras, chegamos à confusão de idiomas da torre de Babel. Então o colóquio se rompe porque de nada serve a palavra dita, não para expressar, mas para esconder.
Por que motivo as religiões tendem a transformar-se em hipocrisia? Analisemos o fenômeno. Elas na Terra representam o ideal, realizam uma descida de planos evolutivos mais avançados, são uma antecipação de estados que o homem viverá no futuro, para os quais hoje não está ainda maduro. As religiões pregam bondade e não resistência, renúncia e altruísmo, enquanto a vida real se baseia no interesse e na luta, na rivalidade e no egoísmo. Para a vida no seu nível evolutivo atual, aquele ideal representa uma loucura de auto-destruição e por isso naturalmente é levada a repeli-lo. Agora veremos que isto é relativo à sua atual posição, e que já não é verdade noutra posição evolutiva. Na Terra, entretanto, não se pode eliminar a presença do ideal, porque a sua descida é necessária para o progresso da evolução. O resultado de tal necessidade não é uma aceitação pacífica, mas um choque e uma luta entre o ideal e a realidade da vida, pelo que ele é torcido para ser adaptado a ela, isto é, reduzido a uma forma de mentira. A religião impõe ao homem abandonar a arma da força que lhe é necessária para defender-se, e então ele usa um seu sucedâneo, que é o fingimento. A vida pretende sobreviver, com o mínimo esforço, e assim resiste ao impulso evolutivo que lhe impõe esforços e perigos e, para esquivá-los, se retorce em direção ao baixo. É por isto que a descida dos ideais na Terra pode servir para desenvolver a técnica da dissimulação.
Agora nos perguntamos: se o fenômeno está fatalmente colocado desta maneira, na forma de um entrosamento à força entre opostos, será possível que a manifestação das religiões na Terra não possa tomar outra forma senão a de engano? Este fato pode fazer pensar que em semelhante ambiente este tenha de ser a sua natural interpretação. Estamos de fato no nível involuído que outro uso não sabe fazer do ideal senão em função da luta pela sobrevivência, dado que ele se apresenta com leis e modos de viver próprios dos planos mais evoluídos, mundo incompreensível para o imaturo. Então este abaixamento de nível se chama hipocrisia, mas isso é uma natural adaptação às nossas próprias dimensões conceptuais, que não são as que o ideal quereria que tivéssemos.
Existe no entanto outro fato. Que deva fazer-se semelhante uso do ideal pode ser verdade em forma relativa, para quem pensa com a psicologia do involuído e atua com relação aos seus pontos de referência. Mas logo que se sai de semelhante ambiente e plano evolutivo tudo muda e o ideal serve para os seus verdadeiros fins, que se alcançam com outros métodos. Ele revela-se como afirmação criadora, enquanto a vida resolve diversamente o problema da sobrevivência. Mas para compreender que o ideal pode ser utilizado nesta outra forma muito mais proveitosa, é necessário haver superado o plano animal-humano e ter alcançado um superior onde regem outros princípios. Eis que a suposição de que o ideal possa servir somente como engano não tem mais valor, porque fica limitada ao ambiente terrestre e aos que nele permanecem ainda involuídos. Mas para além desse ambiente e para aqueles que, ainda que vivam nele, não são involuídos, o ideal realiza a sua maravilhosa função, a de ser instrumento de evolução.
Ter-se dito que a religião pode ser utilizada como uma forma de hipocrisia, não é uma acusação, mas a constatação de um natural fato biológico, que como tal se explica e se justifica. Tais posições oblíquas se justificam por serem transitórias, explicam-se porque são inevitáveis, na luta de penetração que o ideal deve cumprir para poder enxertar-se no mundo, seu inimigo. O ideal não pode vencer a não ser por graus, e a hipocrisia, como arma e luta representa um requinte perante a violência.Com a astúcia entra em função o cérebro em vez dos músculos e se inicia o desenvolvimento a inteligência que um dia chegará inclusive a superar esse seu atual método de luta. Hoje, educação, religião, moral, consistem em grande parte na arte de dissimular. Amanhã, pelo contrário, elas consistirão na arte de nos compreendermos e de nos ajudarmos, com uma conduta de evoluídos, como é a indicada pelo Evangelho. Ao longo da natural linha de evolução dos meios da defesa da vida, está primeiro a violência por meio da força, depois o engano por meio da astúcia, e finalmente a colaboração como resultado de uma consciência coletiva e de vida organizada. Como se vê, a evolução conduz naturalmente ao Evangelho. As religiões, seja no pólo ideal, seja no pólo mundo, formam parte do fenômeno biológico e são reguladas pelas leis do seu desenvolvimento. Se no mundo a realização do Evangelho é ainda um sonho longínquo, observe se ele já está penetrando, ainda que seja só em forma de palavra, mesmo que não vivida, de aparência exterior, de máscara para cobrir a feroz realidade da vida. No mundo, que procura dominá-la, existe no entanto esta semente, com o seu impulso de crescer tenazmente esforçando-se, e por lei da vida destinada a vencer, porque representa o futuro da evolução.
Como hoje na sociedade civil já não se tolera a violência. porque se formou um poder central capaz de impedi-la, impondo a sua ordem, assim também brevemente não será mais tolerado o engano, porque a inteligência se terá desenvolvido para destruir essa intenção nos outros e, relativamente a si próprios, para compreender quanto é contraproducente usá-lo. A humanidade procurará libertar-se de tal obstáculo aos seus movimentos, fruto da sua ignorância. O fato de as ciências psicológicas irem penetrando cada vez mais, no reino do pensamento nos vai conduzindo forçosamente em direção a um regime de sinceridade. Com o tempo, os castelos da hipocrisia, mesmo a religiosa, serão desmantelados e assim a humanidade poderá libertar-se do inútil esforço de ter de viver de fingimento, caminhando sobre as areias movediças do engano. O desenvolvimento da inteligência porá a nu o jogo e assim o tornará impraticável. Não dando ele mais proveito, será abandonado. Entretanto a multidão dos ingênuos que se deixam enganar diminui cada vez mais: eles despertam ou são eliminados. O engano pode dar fruto enquanto exista quem caia nele, a falsa verdade pode Ter êxito enquanto exista a fé de quem creia. Mas cai o jogo se numa verdade nos interessamos principalmente em descobrir a mentira que ela esconde. Por isso em matéria de religião se insiste tanto sobre a fé e se condena como perigoso aquele que quer pensar e compreender demasiadamente.
O mundo atual procura, em cada campo, um honesto e sincero esclarecimento de posições. Que aquilo que há de verdade permaneça e brilhe ainda mais, mas que seja eliminado o que é falso. À verdade nada tem de temer. Isto pode parecer tempestade de destruição, mas é trabalho de saneamento. Erros e defeitos se curam à luz do sol e não ocultando-os. É preferível ver a realidade a escondê-la, compreender o erro e evitá-lo a persistir nele, melhorar a condenar. O princípio de autoridade já não basta; é necessário convencer e para convencer é necessário estar convencido, o que significa discorrer não só com proposições lógicas mas também com fatos. Isto é o que a vida hoje exige para a salvação dos seus mais preciosos valores.Continuemos a observar o fenômeno religioso, mas sob outros aspectos, tratando de compreendê-lo cada vez melhor na sua substância biológica, isto é, em relação às leis da vida, dado que elas representam o ponto de referência mais sólido e positivo sobre o qual apoiar-nos. Estas leis não são uma artificial construção da mente humana. Elas existem de fato e vemo-las funcionar em todos os fenômenos, inclusive no religioso. Como este também faz parte da vida, não pode ficar situado fora das suas leis. Depois, penetrando-o psicanaliticamente, poderemos compreender o que está atrás da cena, escondido na profundidade de tantas manifestações humanas nesse setor e descobrir a razão da forma que assumem. Este é o trabalho que agora estamos fazendo, deslocando gradualmente o nosso olhar para poder observar o fenômeno no maior número possível de posições.
O que a vida pretende realizar através das formas das religiões? Que sabe a sua inteligência extrair desta mistura entre ideal e mundo, entre o divino e o humano? Cremos que as religiões não podem ser compreendidas a não ser entendendo-as na sua junção biológica. Encontramo-nos perante dois fatos positivos: 1) que o Cristianismo existe; 2) que a vida elimina tudo o que não realiza uma função vital para os seus fins. Então, se o Cristianismo existe, e tempo não faltou para que, como inútil, fosse eliminado, isso significa que está cumprindo uma função. O problema agora é só ode descobrir qual é. E, dado que sabemos também que o principal fim da vida é a evolução, pode-se pensar que, ainda que apenas biologicamente falando, a função do Cristianismo é de caráter evolutivo.
Recordemos ainda que esta dissertação não é realizada com fins polêmicos para defender uma verdade já confeccionada porque se baseiam sobre ela as nossas posições e interesses, ou com objetivo agressivo para destruir outras verdades, porque nelas se baseiam outras posições e interesses. A nossa finalidade é somente de pura investigação. Queremos só compreender o porquê da existência e de uma determinada forma de funcionamento dos fatos que vemos existir. Não temos uma tese preconcebida para demonstrar, não estamos ligados a conclusões preestabelecidas, a posições a defender. Só desejamos conhecer e assim resolver problemas. Portanto nada temos da habitual posição dos contendores em luta, tão comuns em tais casos. Não procuramos ter razão sobre um adversário. vencendo-o com argumentações. O nosso inimigo é o desconhecido e podemo-lo vencer somente com a luz do conhecimento.
Como sempre, seguimos o nosso método que, se é analítico, o é apenas num segundo tempo, na fase de controle. Iniciamos em forma sintética, com a visão dos princípios diretores, que para outros é a conclusão. Não seguimos o caminho que do particular, tomado como ponto de partida, se eleva ao geral, ponto de chegada, mas do geral, nosso ponto de partida, descemos ao particular a quem pedimos a prova para concluir. Primeiramente vemos, por visões interiores, os princípios, depois a realidade que deles deriva e por eles está regida, enquanto a forma mental normal primeiramente observa por visão sensória a realidade exterior e depois sobe aos princípios, mas olhados quase com desconfiança, como uma duvidosa generalização com falta de positividade.
Deus existe no absoluto, e o homem, como há pouco referimos, forma Dele a idéia que pode ser contida dentro das dimensões da sua capacidade de compreensão. Portanto idéia relativa em evolução. Isto significa que o seu ponto de partida, do qual depois evoluirá, é dado pela natureza do ser humano, que é dividido em dois termos opostos e complementares, isto é, separados para reunir-se: macho e fêmea. Assim eles não são senão dois pólos da mesma unidade. Isto corresponde ao dualismo universal, do qual este caso não é senão um momento, dualismo no qual se parte interiormente a unidade do todo.
A idéia de Deus que existe na Terra depende mais dos limites da forma mental do homem que a concebe do que daquilo que Deus é no absoluto e para nós inconcebível. Por este motivo encontramos dois tipos de divindade ou dois aspectos da idéia de Deus, isto é, o aspecto masculino, que é o de Moisés, e o aspecto feminino, que é o de Cristo. De fato o de Moisés era o Deus senhor, egocêntrico, zeloso do seu poder, o Deus dos exércitos, dominador, chefe do seu povo eleito, contra os outros povos. O de Cristo é o Deus justo e bom, que redime com o seu sacrifício as culpas dos outros, o Deus do Amor, generoso e universal, conceito mais vasto que aperfeiçoa e completa a crua e limitada justiça do homem.
Deus em si mesmo é tudo, pode, portanto, ter muitos outros aspectos. Mas o homem, não podendo sair do concebível do seu mundo biológico do qual é filho, viu apenas os aspectos mais próximos dele. Na sua evolução vai compreendendo-os por graus, acrescentando às suas concepções precedentes outras cada vez mais avançadas, construindo-se assim o seu edifício de conhecimento, fundindo-as nele para chegar à compreensão de um Deus cada vez mais rico de aspectos, grande e completo.
É assim que este dualismo positivo-negativo do conceito homem-mulher, encontra-se também nas religiões. O primeiro a aparecer foi o Deus homem, que se baseia na força que é o elemento mais necessário para a afirmação da vida nos mais baixos níveis de evoluções. Sobre esse conceito base, proporcionado ás exigências biológicas impostas pelas condições de desenvolvimento, elevou-se depois o conceito do Deus do Amor, como um seu requinte, como sobre as vitórias sobre outros povos por meio da força, se elevam as aristocracias construtoras de formas de vida mais requintada e períodos de paz que permitem o florescimento das artes, da cultura, de civilizações cada vez mais avançadas.
Encontramo-nos, pois, perante um fenômeno de evolução. Este fato oferece-nos sólidas bases de apoio, por duas razões: 1) Porque a evolução é um fenômeno já positivamente provado; 2) porque a evolução, como já demonstramos suficientemente, para o homem já não se realiza no plano orgânico-fisiológico, mas no mental e espiritual, isto é, consiste sobretudo no desenvolvimento nervoso, cerebral, intelectual. Já vimos que o avanço nessa direção se realiza com a técnica da descida dos ideais, tendentes a estabelecer novas formas de existência alcançadas, ao entrar em pianos biológicos mais evoluídos. Ora a função das religiões é de concretizar o fenômeno dessa descida, elas representam, pois, um canal, através do qual se realiza a evolução. Eis que podemos compreender a posição e função das religiões perante as leis da vida. E, se realizar a evolução hoje significa espiritualizar-se, então as religiões adquirem um significado positivo de imenso alcance, isto é, o de ser um instrumento de evolução, situado em posição central no seio do maior fenômeno da vida, como é a evolução que enquadra o seu transformismo em função a um supremo fim a alcançar.
Podemos assim compreender por que, tendo a religião a tarefa de fazer o homem evoluir, antigamente devia cumprir esta função no nível animal, agora o cumpre no nível humano, amanhã o fará no nível super-humano. É assim que a forma das religiões muda com a sua evolução, porque o nível biológico de que desce o ideal é diferente, segundo o grau de desenvolvimento alcançado. Assim esse ideal provém de um plano cada vez mais alto, porque deve acompanhar o movimento da vida que se desloca em sentido ascensional .
Eis porque as religiões tendem a espiritualizar-se, porque estão estreitamente conexas com o fenômeno evolutivo. Na sua primeira aparição elas são vizinhas da animalidade, tanto mais quanto mais involuído é o homem. Mas com a evolução se elevam como toda a vida se eleva, espiritualizando-se, dado que, como agora dizíamos, o fenômeno evolutivo, quanto mais sobe tanto mais se torna fenômeno de espiritualização. O ponto de partida está em baixo, a base é dada pelos instintos do primitivo. Se as religiões são uma descida do alto em direção ao baixo, isto acontece porque este quer ser também um processo de elevação do baixo em direção ao alto, isto é, de sublimação dos instintos elementares do animal.
É assim que o Cristianismo é mais evoluído, mais espiritualizado, poder-se-ia mesmo dizer uma forma mais civilizada de hebraísmo, segundo os precedentes conceitos, respondendo mais à concepção feminina do que à masculina da divindade. Estas afirmações fazem surgir na mente mais vastos problemas. No desenvolvimento deste fenômeno vemos que se conectam, colocando-se paralelos estes conceitos: isto é, pensamos que existe uma relação entre o evoluir, o civilizar-se, que tanto pode ser um espiritualizar-se como pelo contrário um aristocratizar-se em sentido anti-masculino, de feminilização. O que significam estas concomitâncias que aproximam estas posições como numa parentela? Isto interessa às religiões, porque o ciclo do seu nascimento, desenvolvimento e decadência é um cicio biológico que faz parte do nascimento, desenvolvimento e decadência das civilizações, fenômeno por sua vez compreendido dentro do mais vasto representado, nos seus altos e baixos, com altos sempre mais altos e baixos cada vez menos baixos, através da onda progressiva da evolução (V "Trajetória típica dos motos fenomênicos", Cap. XXVI de A Grande Síntese).
No ciclo das civilizações vemos, no começo, a explosão de um povo jovem, guerreiro, conquistador, que na plena posse das suas qualidades masculinas, espacial e economicamente se expande, toma posse, domina, enriquece, até a um máximo em que o fenômeno se cansa, se torna mais lento, até afogar-se no ócio e no bem--estar. As qualidades se invertem. A primeira fase é de esforço, esfaimada, rude, a segunda é de repouso, saciada, requintada; a primeira é guerreira, destruidora, forte, masculina a segunda é pacífica, fecunda feminina. É assim que todas as revoluções por aburguesa-se, sentadas sobre as conquistas feitas.
Que significa isto? Mas então o processo civilizatório consiste em feminilizar o macho? Ou é, pelo contrário, num mais alto sentido, o processo evolutivo realizado em dois tempos e posições dois elementos opostos pelo que quando o homem terminou de a sua parte, deve ceder o passo à mulher que o substitui, colocando-o em posição secundária, e quando a mulher terminou a sua sucede o contrário? Mas, se o processo da civilização consiste no feminilizar o macho, então semelhante feminilização deve ter um conteúdo em sentido evolutivo que a justifique, isto é, ela não deve cumprir só a função de debilitar o macho no seu nível involuído de força, mas também de substituir este enfraquecimento compensando-o com a conquista de algum outro valor que preencha o vazio, de modo que a vida não fique em perda, que ela não toleraria, já que sempre quer avançar. Esta feminilização faz parte, pois, do processo evolutivo, no qual vemos que trabalha também o elemento feminino que, se é negativo, o é somente em relação ao elemento masculino, enquanto em si mesmo é igualmente construtivo, com qualidades, porém, diferentes das do homem. Assim este feminilizar-se não é um efeminar-se, isto é, um corromper-se nas qualidades inferiores da mulher, mas é também um sublimar-se nas suas qualidades superiores.
Deste modo os dois seres opostos trabalham alternativamente, cada um repousando e deixando-se arrastar quando o outro dirige e constrói, e por sua vez dirigindo e construindo quando o outro descansa e se deixa arrastar. Eis que não se trata senão de uma divisão de trabalho entre dois seres inversos e complementares, ou entre duas formas do mesmo ser, isto é, do ser no seu aspecto masculino e do ser no seu aspecto feminino. Então o período de decadência das civilizações por feminilização não é senão uma parada no exercício das qualidades masculinas, parada da qual a mulher se aproveita para ensíná-lo a tornar-se aquilo que ela já é, e que ele ainda não sabe ser. E não é fácil com a paciência saber vencer a violência, com o amor suavizar as arestas do egoísmo, com a bondade travar os excessos da força, e assim disciplinar, plasmando a matéria prima, dada pelo macho forte e feroz, para chegar a domesticá-lo transformando-o num ser civilizado.
Assim o elemento mulher aproveita-se do cansaço do homem para inculcar-lhe as qualidades que lhe faltam, enriquecendo-o e completando-o. Trata-se de duas posições diferentes do ato construtivo da vida, sempre construtivo, ainda que seja de valores diversos, por turno, mas todos úteis para a existência. Não se pode negar, com efeito, que, se a construção de impérios com o esforço bélico representa uma conquista da vida, é conquista, ainda que seja de outros valores, também a formação das aristocracias, feitas de elementos selecionados como requinte, sensibilização, mais aperfeiçoados na ciência das relações sociais, elite biológica produtora de valores mais apreciados, como a cultura, a arte, o pensamento em alto nível. O macho guerreiro, por si só, não saberia fazê-lo sem a ajuda de um mestre, o qual no entanto para poder educá-lo, sendo débil, tem necessidade de ser defendido pelo aluno, mestre em outra matéria. Mas este, em vez de proteger, freqüentemente usa a força para destruir estas construções superiores não armadas para a guerra. Assim Cristo, portador dos mais altos valores morais, foi morto por primitivos ferozes, assim foi dominada pela invasão dos bárbaros a civilização de Roma, assim, com a carnificina do Terror, a Revolução Francesa varreu com os requintes da aristocracia, acabou com aquele período feminino da história para lhe substituir um masculino, abandonando-se ao impulso oposto, o da expansão guerreira. Neste momento é o homem que toma a dianteira e se faz valer como é, ou seja, ele que não sabe criar senão numa atmosfera de destruição, esperando que venha depois a mulher que, com infinita paciência, recolha os restos partidos, os reordene, os reuna, faça deles, com as suas qualidades coesivas e conservadoras, uma casa, uma igreja, uma família, uma sociedade. Também o homem sabe fazer tudo isto, mas o faz impondo-o do exterior, à força, enquanto a mulher o faz, trabalhando por dentro, com amor. A mulher domina e o homem depende quando ele é débil por ser criança, doente, ou velho. Quando o homem é jovem e forte, então é ele quem domina e a mulher quem depende. Assim quando dizíamos que o cicio de uma civilização, na sua segunda fase, desce, se corrompe e se extingue, e que a grandeza por ele alcançada se desagrega, pensamos em função do homem tomado como nosso ponto de referência, vendo a aparente construção masculina mais do que a construção de tipo feminino, silenciosa e escondida, que assim nos aparece como se fora uma decadência. Mas isto é só em relação ao homem. A vida é sempre construtiva, ainda quando parece destrutiva, porque, nesta fase, ela realiza construções em sentido oposto àquele que, com mente masculina, chamamos construtivo.
O resultado de todo este trabalho é uma substituição dos valores mais baixos do primitivo pelos mais requintados valores do civilizado, o que significa a realização do processo evolutivo. A renovação em que ele consiste verifica-se através de uma destruição em baixo, compensada por uma reconstrução mais no alto. Em substância, trata-se de uma função criadora, operada através do transformismo, cujo verdadeiro significado agora compreendemos. As fases de decadência que corrompem servem para eliminar aquilo que é inferior, para dele se libertarem e substitui-lo pelo que é superior. A civilização corrompe o homem como animal para que nele desapareça a besta e se reconstrua no nível da moral, da inteligência, da organicidade social. É com esta substituição que a vida se salva da decadência, porque ela, lançando fora os valores mais involuídos e conquistando outros mais evoluídos, não se mutila, mas se renova, não se empobrece, antes se enriquece. Os dois movimentos da destruição e reconstrução, morte e renascimento, existem para resolver-se numa renovação. Encontramo-los compensando-se também no plano físico, no qual o homem mata com as guerras, e a mulher amando o homem, cria novos seres, colaborando assim para essa renovação com uma divisão de trabalho no destruir e reconstruir.
Chegados a este ponto, é necessário compreender um fato fundamental: que tudo isto acontece em função da evolução, faz parte da sua técnica construtiva. Para este objetivo existe o metabolismo da vida, feito de morte e renascimento. No plano físico, se os nascimentos não compensam as perdas da morte, tudo acaba num cemitério. No plano espiritual, se as reconstruções em alto nível evolutivo não compensam as destruições em baixo nível, se apenas matamos o involuído sem fazer renascer no seu lugar o evoluído, então negamos a evolução e vamos contra a vida. Se não se faz da morte um meio de renovação e superação, ela se torna o fim de tudo. A salvação está apenas na evolução, isto é, na capacidade de reconstruir-se mais no alto.
A salvação é problema fundamental e agora vemos como ele representa o termo conclusivo de uma concatenação de elementos. A salvação para a humanidade consiste no civilizar-se. Mas as civilizações, chegadas ao seu apogeu, corrompem-se ao feminilizar-se e assim decaem. Isto tem acontecido porque este feminilizar-se não constitui um acrescentar de qualidades novas às da masculinidade, mas uma substituição delas; é uma parada no caminho da evolução e não uma conquista que avança. Noutros termos, para ser vital o civilizar-se, deve ser alcançado, somando e não substituindo, isto é, deve ser constituído pela feminilidade somada com a masculinidade, e não em vez de masculinidade, como sucede no declínio das civilizações. Anteriormente fizemos notar este perigo também no momento histórico atual, no qual o tecnicismo nos prepara o luxo de muito tempo livre e correspondentes ócios.
As civilizações decaem porque representam uma feminilização que não se acrescentou à masculinidade mas a substituiu, cor- rompendo-a. Ora o civilizar-se deve representar uma evolução, requinte e aperfeiçoamento, uma continuação em sentido ascensional da masculinidade, e não de uma degeneração em inércia e debilidade. Engordar, mesmo sendo um enriquecer-se de reservas alimentícias, se se realizou com sacrifício dos ossos, sem conservar a sólida estrutura orgânica de base, não é saúde mas doença, e pode conduzir à morte. O civilizar-se deve ser constituído por um aperfeiçoamento das qualidades fundamentais de força sobre as quais se baseia a vida, e não por uma sua supressão a favor das qualidades opostas. O civilizar-se deve ser um enriquecimento e não uma mutilação da vida. A salvação está na evolução e esta é uma mudança para avançar, não para retroceder.
O fenômeno constitui-se dos seguintes momentos: 1) evolução e não enfraquecimento das próprias qualidades, tanto da parte do homem quanto da mulher, sem que cada um perca nada, desenvolvendo essas qualidades até um mais alto nível biológico; 2) enriquecer-se por parte de cada um dos dois elementos coma absorção das qualidades da outra metade, complementares as dele, de modo a ser cada vez menos "metade" e tornar-se cada vez mais um ser completo ; 3) fusão de todas as qualidades num único biótipo que as possua todas, nele atingindo assim, com a superação do atual estado de cisão, a unificação das duas metades.
Estes três momentos: 1) a evolução, 2) a absorção, 3) a unificação, estão conectados pelo fato que a aquisição das qualidades da metade complementar e o processo de unificação entre essas duas metades realizam-se mais facilmente num nível evolutivo superior. Isto significa que quanto mais o macho se torna homem e a fêmea mulher, e depois o homem se torna super-homem e a mulher super-mulher, tanto mais fácil é para cada um dos dois entender e assimilar as qualidades do outro, coisa impossível de levar a cabo, sem cair em desvios e inversões, no plano animal humano somente sexual com respeito a funções exclusivamente colocadas com anterioridade para fins de procriação. Aqui não se trata de mudar de sexo mas de ampliar a própria personalidade As qualidades fundamentais do elemento positivo ativo, o homem, são força agressividade. As do elemento negativo e passivo, a mulher, são debilidade e amor. No nível animal humano estas qualidades tomam a forma de egoísmo e prepotência no homem, e escravidão e sexo para a mulher. Num plano mais alto estas qualidades do lado do homem tornam-se inteligência e ação; do lado da mulher, intuição e bondade. É neste nível que pode ter lugar a absorção das qualidades opostas, isto é, que o homem pode sensibilizar-se e adquirir da mulher as qualidades do coração, e a mulher pode fortificar-se, tomando do homem as qualidades racionais da mente, como as da energia e potência realizadora.
O fato de tal processo de unificação se realizar mais facilmente num nível evolutivo superior, faz parte também do plano geral da evolução. Sabemos com efeito que o separatismo é tanto maior quanto evolutivamente mais baixo se encontra o ser, isto é, próximo do ponto máximo de revolta e cisão que é o Anti-Sistema e é tanto menor quanto mais alto o ser ascendeu, isto é, próximo ao ponto máximo de obediência e unificação que é o Sistema. É por isto que, quanto mais se é evoluído, tanto mais fácil é unificar-se, dado que o caminho da evolução vai do Anti-Sistema ao Sistema, isto é, do estado de separação ao estado de unidade.
Este fenômeno verifica-se também no plano das civilizações. No desenvolvimento do seu ciclo, parte em ascese e parte em descida, vemos que, num primeiro tempo, o elemento masculino começa e lança o movimento. Depois que este chegou ao seu ápice, a ação do elemento positivo cessa e toma a dianteira o elemento negativo, no que tudo termina por afogar-se. Isto acontece porque este é apenas "metade", e não aconteceria se contivesse também as qualidades do termo oposto. É assim que as civilizações se tornam cada vez mais estáveis quanto mais se enriquece o elemento negativo - com as qualidades positivas necessárias para substituir, no período de decadência, o outro termo cansado, sabendo-se reger por si só com funções positivas.
Eis que para o futuro a unificação entre as duas metades tornará as civilizações cada vez mais resistentes à decadência. Paralelamente poderão surgir outras mais avançadas pelas seguintes razões. O princípio masculino pode iniciar cada novo ciclo de civilização de um ponto de partida situado num nível mais alto do que aquele em que foi iniciada a anterior civilização. Este nível é dado pelo caminho ascensional percorrido por ela e representa o fruto do seu trabalho, fruto que a nova civilização pode recolher porque o encontra pronto como resultado do ciclo percorrido pela antiga. Partindo deste ponto mais avançado, o princípio masculino pode ascender mais do que da vez anterior e, proporcionalmente na fase de descida da civilização, decair menos. Isto significa aproximar-se cada vez mais do Sistema e afastar-se do Anti-Sistema. Como já dissemos anteriormente, a onda da civilização, por progressivas oscilações, desenvolve-se, deslocando o seu vértice cada vez mais em direção ao alto.
Assim as civilizações tornam-se cada vez menos unilaterais. Quanto mais alto está o seu nível evolutivo, tanto mais fácil é o recíproco completar-se dos dois termos, masculino e feminino, significando que o positivo se suaviza cada vez mais com as qualidades do negativo, e o negativo se reforça cada vez mais com as qualidades do positivo. E isto sucede num nível evolutivo sempre mais alto, em forma de enriquecimento recíproco e não de corrupção e decadência nas qualidades de baixo nível do termo oposto. Foi neste alto nível que o Cristo-amor completou o Moisés-força. Assim o Novo Testamento não destruiu mas desenvolveu o Velho. Cristo pôde construir mais no alto, porque devido ao esforço realizado pelo Hebraísmo, o ponto de partida do Cristianismo era mais avançado.
Assim nasceu a Igreja. O seu sinal é a cruz, a sua força é o martírio. Ela foi de fato fundada por Cristo, primeiro mártir, e pelos mártires dos primeiros séculos. O sinal masculino é a espada. Na passagem de um termo ao outro, constatamos um emborcamento de valores. Poder-se-iam chamar também sadismo e masoquismo. O valor da mulher está em saber sofrer, o do homem em saber fazer sofrer. A primeira está feita para suportar, o segundo para infligir dor. A estratégia da mulher é a fuga. A do homem perseguir e matar. Cristo não é guerreiro, pelo contrário, escolhe a posição de vítima. É o cordeiro inocente que se sacrifica. O homem, pelo contrário, é lobo, à procura de cordeiros, vítimas para devorar.
Mas nem por isto ao princípio feminino faltam meios de defesa que lhe garantam a sobrevivência. No plano animal tem o poder da fascinação do sexo com que subjuga o homem. No plano espiritual tem o poder do desarmado pelo ideal, que aparece também na Terra proveniente do mistério do além, onde também o homem terá por fim de ir parar e não sabe se a espada lhe servirá ainda, ou se, pelo contrário a vida, que é o que mais o preocupa, se defenderá, com a retidão e a inocência desarmada, em vez de o fazer armando-se. Surge a dúvida sobre se a outra vida é regida por outros princípios, pelos quais a vítima inocente, num regime de justiça onde se prestam as contas, seja, pelo contrário, o mais forte. Vacila então a fé do homem na força, que torna tudo lícito na Terra. O Cristianismo é debilidade, renúncia e pranto frente à força e vitalidade eufórica do mundo. Mas eis que a vítima vilipendiada na Terra, Cristo, ressurge fulgurante de poder para julgar. Invertem-se os papéis. O mais desprezado dos vencidos torna-se o senhor supremo. Então o triunfo da espada é efêmero. E depois, o que sucede na eternidade? Também na Terra, nas curvas da história está escondido o imponderável pronto a castigar inclusive os mais furtes, em nome de um princípio que não é a força.
Muitos são os recursos do princípio feminino, que transformam em poder a sua debilidade. O martírio, também na Terra, será verdadeiramente uma derrota? O sangue dos mártires fecunda a Terra onde cai e a idéia pela qual eles morreram germina gigantescamente. O martírio cria seguidores, porque é prova de verdade daquilo por que se dá a vida. Então o ideal se torna epidêmico. Levado ao plano da dor e do sangue, ele é compreensível a todos e com o exemplo sugestiona e arrasta. Tanto isto é verdadeiro que um partido que quer fazer-se forte, atraindo seguidores, se apressa em fabricar os seus próprios mártires. Usa-se semelhante indústria também em política. Eis que a inocência da vítima pode conquistar mais do que a espada do guerreiro. As perseguições difundem-se e fazem triunfar a idéia dos perseguidos. A força moral vence mais do que a material, o princípio feminino do sacrifício supera em potência ao masculino do domínio.
É assim que aquele princípio feminino pode ter uma importantíssima função, a de educar o homem. A tarefa do Cristianismo é a de inculcar-lhe as qualidades superiores do princípio oposto. Eis a obra civilizadora do Cristianismo, dirigida a domesticar no mundo o desencadeamento da prepotência dos homens, ensinando-lhes a virtude de saber trabalhar em colaboração num regime de paz. Portanto: desinteresse, retidão, espírito fraterno, não-resistência. A religião tende, enquadrando-o numa disciplina, a domesticar o homem forte e a defender a mulher débil. Os três votos franciscanos: pobreza, castidade, obediência, arrancam a prepotência pela raiz. Os primeiros a aceitar Cristo foram os humildes das classes mais pobres, porque Nele encontravam defesa contra os prepotentes. Perante o comando, a mulher obedece, o homem rebela-se. Perante Deus, a mulher reza, o homem blasfema. A mulher naturalmente adere à religião, porque esta, representando o princípio que pretende domesticar o homem, oferece-lhe defesa. Vemos isto no instituto do matrimônio. A mulher não tem necessidade de ser forçada a esses três votos porque freqüentemente já está em dependência econômica do homem, com o dever de castidade fora do matrimônio (adultério condenado só para a mulher) e ligada ao marido em posição de obediência.
O Cristianismo se enxerta plenamente no processo evolutivo, na medida em que ele trabalha pela superação da lei biológica da luta pela seleção a favor do mais forte, imperante nos planos mais baixos, para chegar a praticar, pelo contrário, o tipo de vida social orgânico próprio do homem civilizado no qual ao estado de luta do separatismo individualista se substitui um estado de paz na ordem coletiva. Para alcançar esta unificação, é necessário colocar em eficiência as virtudes femininas de compreensão e coesão, que são as mais adequadas para aproximar e coordenar em cooperação os ferozes egocentrismos masculinos que tratam de destruir-se reciprocamente. A função da mulher é a de tratar de separar os homens para que não se matem, é a de, pelo contrário, fazê-los trabalhar para produzir, não para destruir, mas para alimentar a vida.
Podemos agora compreender o significado do Cristianismo perante as formas de atividade dos dois termos biológicos fundamentais, perante o desenvolvimento do ciclo de uma civilização, perante o processo evolutivo. Explica-se assim também o tipo de paixão escolhida por Cristo e a forma pacífica de holocausto escolhida pelos seus seguidores nos primeiros séculos de fundação do Cristianismo. Perante as leis da vida, como se justifica este fato? Cristo tinha portanto estabelecido que o seu tipo de ação fosse de tipo feminino? Na realidade a sua bondade se tinha resolvido num convite ao uso da maldade por parte dos outros. As culpas de Judas, de Pilatos, do Sinédrio, dos hebreus, foram provocadas pela atitude de vítima, desejada por Cristo. Poder-se-ia dizer: ele o quis. A não-resistência atrai o agressor, a ingenuidade atrai o engano, porque a impunidade é o grande sonho de quem faz o mal. Na Terra é necessário impor o bem por disciplina e protegê-lo pela força. Em semelhante ambiente, a bondade torna-se culpa porque, deixando o mal impune, o encoraja. Cristo primeiramente declarou guerra ao mundo. Ele desafiou os seus inimigos, depois se ofereceu a eles sem armas. Que tática é esta? É evidente que não lhe restava senão o martírio. Isto é perfeitamente lógico, segundo as leis do mundo. Mas acaso Cristo não as conhecia? Segundo a lógica terrena da força, Ele era vítima, um vencido, um falido. O mais forte tinha o direito de eliminá-lo e com isso se terminava a luta.
Ao contrário, não teria Cristo conhecido tudo muito bem, mas querido vencer, manifestando-se como princípio feminino de civilização, dando ao mundo um impulso neste sentido, como depois de fato sucedeu? Não se pode igualmente dizer que Cristo fosse um vencido, porque soube vencer, embora numa forma muito estranha para o mundo, fora do seu terreno, isto é, depois de morto, o que é mais difícil que durante a vida. Venceu não ficando no âmbito das leis da Terra, mas superando-as, não passando pelo princípio masculino, mas vencendo-o por outras vias. Venceu em altíssimo nível, no plano do ideal. Mas de tudo isto o elemento humano viu e compreendeu bem pouco, e se interessou somente em vencer, no seu baixo nível, aquilo que aos seus olhos apareceu apenas como uma expressão do princípio feminino, existindo naturalmente para ser dominado pelo masculino. Representantes disto não faltam na vida, prontos a aproveitar-se de quem se apresenta desarmado, e logo apareceram. Do ideal de Cristo eles viram sobretudo o que lhes poderia servir em Terra. Transformando-o, assim, em interesse humano, puseram-no a serviço do mundo, fazendo do poder espiritual um poder temporal. Agora nos perguntamos: isto foi traição ou foi complementação?
Tratemos de compreender a lógica com a qual se desenvolveu o fenômeno. Já noutro lugar nos fizemos esta pergunta, mas a consideramos sob outros pontos de vista. O emborcamento teve lugar com a doação de Constantino. Naquele momento ao feminino que informa o Evangelho, se substitui o princípio masculino de domínio realizado por uma casta eclesiástica baseada na própria autoridade. A religião então, passada para as mãos de homens que atuavam com psicologia masculina, assumiu outro tipo de trabalho. Mudou de sinal, isto é, em vez de cruz tomou a espada, em vez do amor praticou a luta para o poder temporal, em vez de apontar em direção ao céu, tornou-se instrumento de domínio terreno.
Aqui não discutimos se isto foi mal, culpa ou necessidade. O nosso objetivo é compreender, não criticar. Se a vida o permitiu, ela deve ter tido as suas razões para fazê-lo. O fato do emborcamento permanece. Se ele se verificou, se está ainda de pé, isto significa que tinha uma função para cumprir. O que significa, então, tudo isto? A primeira coisa que se vê é que nos encontramos perante um Cristianismo que se colocou era posição invertida em relação ao seu fundador, perante uma religião que se tornou mundo e com isto passou para o lado do inimigo, uma religião, que mudou de sinal, assumindo o do princípio masculino. Esta não é a vitória de Cristo, mas a vitória do mundo sobre Cristo. Resultou dela uma religião que, em vez de assumir a tarefa da superação do separatismo egocêntrico que conduz à luta, para chegar a um estado orgânico de ordem coletiva, continuou esse separatismo e estado de luta, limitando-se em substância só a disfarçá-lo sob aparência de amor cristão, transformando-se assim numa forma de hipocrisia.
Teria sido uma necessidade? Se é verdade que isto, para imaturidade dos tempos, é tudo o que se podia exigir num primeiro momento, e se assim se pode justificar o que sucedeu, não se altera o fato positivo da existência de tal emborcamento. Pode ser que esta hipocrisia constitua somente um primeiro passo no esforço de domesticar o homem: esforço procedente do exterior em direção ao interior e conformando-se em princípio só com o externo, mas permanecendo mentira perante os impulsos íntimos, que ficam intactos, não atingidos pela religião. Mas permanece o fato da contradição, o contraste entre as palavras e os fatos, entre o que se professa e o que se faz. Mesmo que se trate apenas de uma fase necessária de transição, justificável porque no futuro deverá ser remediada, este é o atual estado do Cristianismo. Assim, ainda que seja vitorioso como organização ter rena, como função espiritual, ele está em posição inferior. A febre de ascese em direção ao alto, chama da religião, apaga-se no conservadorismo agarrado à evolução para detê-la, ou também se torna paixão masculina atraída pelo domínio econômico ou político, mesmo que formalmente velada de amor cristão. Então a religião transforma-se num aproveitamento utilitário em favor de elementos socialmente improdutivos, uma escola de preguiçosos comodismos, ou ainda, se pelo contrário prevalece a atitude masculina de luta, então tudo está falsificado e não pode dar por fruto senão mentira. Agora que compreendemos qual deveria ser a verdadeira função civilizadora do Cristianismo, perguntamo-nos se ele até hoje a cumpriu. E se ainda não a cumpre, as conseqüências podem ser graves, porque sabemos que a vida liquida com tudo o que não serve aos seus fins quando não realiza a função que lhe foi confiada.
Quem é atraiçoado neste caso é a vida e é impossível que ela não reaja. É seu objetivo fundamental, que neste caso está comprometido, isto é, a evolução, porque não temos o anjo que se substitui à besta, mas é a baixa animalidade humana envernizada de anjo, que pretende parecê-lo. Então tudo se reduz a uma mudança de estilo no antigo método de luta, pelo qual a arma da astúcia substitui a da força. É verdade que, na economia da vida, até isto serve, porque em vez dos músculos tende a desenvolver a mente, que já é coisa mais evoluída. Mas é desenvolvimento na forma oblíqua de engano, e a isto fica reduzida a ação evolutiva da religião. Então esta ação não consiste em eliminar a luta entre egoísmos, mas em continuá-la sob outra forma, isto é, em vez de se matarem, enganando-se reciprocamente. Com semelhante mudança a vida não se moraliza, mas se desmoraliza.
O conteúdo da religião não é então a luta pela superação evolutiva, mas um enquadramento terreno para radicar-se no mundo; é um organismo burocrático, composto de cargos, posições sociais, carreiras sobre bases econômicas. O meio acaba tornando-se o fim. Então, seja talvez mais por inconsciência e nesse caso sinceramente, as vocações surgem em função dessas vantagens positivas. Para uma mente positiva, que não sabe entender para além do ofício, isto pode ser totalmente moral. Na sua simplicidade um involuído, mesmo que seja ministro de Deus, em plena consciência, pode crer ser cristão apenas porque cumpre os atos de uma disciplina exterior inerente ao seu ministério, recebendo honestamente, em compensação deste seu trabalho, os meios para viver. Para quem não vê mais além do justo intercâmbio, isto também responde à retidão. Mas o Cristianismo é outra coisa, está situado noutro nível de evolução. Ele não é somente um serviço, como pode parecer às pequenas almas. Ele é uma paixão de espírito com funções criadoras, para transportar a vida a planos mais altos revelados pelo ideal, ainda que quem não está biologicamente maduro o entenderá a seu modo, procurando, portanto, baixá-lo ao seu nível, de ofício, crendo em boa fé ser cristão e chamado por Deus.
Mas deixemos de raciocinar com os homens e raciocinemos com Cristo e com a lógica da vida. A humana se explica em função do nível evolutivo de que é produto. Então perguntamo-nos: Cristo fez um trabalho inútil? Por que sofreu a sua paixão se estes são os resultados? Pode-se admitir que o homem se engane, mas não Cristo. Não sabia Ele a que biótipo se dirigia, que na ferra a vida obedece a outras leis e que portanto se faria da sua doutrina um uso emborcado? Então também a vida errou porque deixou deter a evolução, fez falir o ideal e assim vai desperdiçando os seus melhores valores e os esforços que custa produzi-los. Mas se tudo isto não é admissível, qual o significado do que parece um erro, e se o é, como se pode salvar sendo utilizado para o bem, que é o maior fim da vida?
Como sempre, quando parece que ela se engana, isto depende somente de nossa má perspectiva do problema. Observando bem veremos que cada coisa está no seu justo lugar e cumpre logicamente a sua função. A finalidade das religiões não será acaso a de espiritualizar sobretudo o indivíduo mais necessitado por ser imaturo? Acontece então que nas religiões é envolvido sobretudo aquele que é imaturo e por isso acredita que o método mais proveitoso de utilizar o ideal é o de desfrutá-lo para fins terrenos. É precisamente este tipo o que mais necessita de ser submetido a um estreito contato com as zonas do ideal, para assimilá-lo. Por este motivo precisamente este é submetido à dura disciplina do religioso e com isso recebe a lição mais enérgica, aquela que a tal tipo mais dói e que portanto será melhor sentida. Ela de fato lhe é imposta na forma mais adequada, isto é, de coação, tanto mais forçada quanto mais imaturo é o indivíduo, enquanto ela é tanto mais fácil, de espontânea aceitação, quanto mais o indivíduo é maduro. Já explicamos que o meio mais adequado para domar o involuído é a coação. Assim, proporcionando os meios à realidade e ao objetivo, o bem é alcançado na forma devida.
Se alguém, sem sê-lo, se quer fazer educador só para usufruir as vantagens do mestre, é um bem, a fim de que ele possa progredir, que seja preso como numa armadilha, na disciplina de educar. Eis então que a religião se torna uma prisão na qual automaticamente são fechados aqueles que mais têm necessidade de injeções de ideal para amadurecer num tipo de vida superior. Cumpre-se assim a função civilizadora da religião, começando por obrigar os aspirantes a educadores a educarem-se.
É inegável que na organização religiosa as posições materiais baseiam-se sobre princípios espirituais. Come-se e vive-se em função destes. Isto obriga a defendê-los porque são um meio para sobreviver, sendo pois transportados ao terreno real da luta pela vida, o que obriga tê-los em conta para salvar as posições materiais que sobre eles se baseiam, mesmo que em si mesmos, por amor ao ideal, eles não interessem. É assim que os princípios espirituais se tornam sagrados, preciosos, intangíveis. É assim que se forma a mistura de mundo e ideal. É assim que surge a necessidade de conhecer a espiritualidade, de tê-la presente, de sentir-se o seu peso e fazê-lo sentir. De outra maneira a espiritualidade passaria inobservada. É assim que, misturando-se com a Terra, na Terra consegue valorizar-se o ideal. A vida não errou, porque encontrou a forma que permite que em nosso mundo Cristo seja tomado em consideração.
Então Cristo também não errou, porque a religião cumpre a sua função civilizadora ainda que em posição emborcada de hipocrisia. Assim os mais astutos, que fazem melhor carreira e mais sobem nos cargos, são aqueles que mais se encontram ligados à figura de Cristo, mais em evidência, com a obrigação do exemplo, aqueles que mais estão obrigados a imitar o Mestre, o que significa alcançar o bem como um fim. Efetivamente quanto mais o indivíduo trata de enganar vestindo-se de hipocrisia, tanto mais, em tais posições, é constrangido pelo ideal e dele recebe as saudáveis lições. A massa popular, mais simples e irresponsável, está menos comprometida com ele e pode permitir-se mais evasões. Os mais aperfeiçoados na arte sutil de enganar o ideal, são aqueles que mais ficam atados a ele por toda a vida. Assim esta não se engana quando faz ministros de Deus aqueles que Dele mais necessitam.
Deste modo se realiza o jogo da vida que sabe aquilo que faz. Apesar de tudo, o Cristianismo cumpre a sua função civilizadora. De fato, quando ele é usado como hipocrisia, serve para transformar, como já indicamos, a brutalidade animal e a força física em trabalho e qualidades mentais, passando a exigir, então, a luta uma atividade cerebral, como o exige o uso da astúcia. Mas sucede que, ao mesmo tempo, isto obriga o indivíduo a viver em contato com os superiores princípios do ideal que o levam a transformar a astúcia em retidão, isto é, a levar as qualidades mentais ao nível de qualidades morais e espirituais. Eis que o trabalho, em sentido evolutivo, realiza-se plenamente, e assim a vida não se engana de maneira nenhuma porque alcança o seu fim, que é evoluir.
O jogo da vida se desenvolve, seguindo logicamente as leis e os objetivos desta. Homem e mulher funcionam como os dois pólos do mesmo circuito. O positivo é feito para enxertar-se no negativo, o negativo para ligar-se ao positivo. Então que outra alternativa restaria ao princípio feminino se não cair em poder do princípio masculino? É natural então que, logo que o elemento masculino encontre o feminino, tome posse dele e utilize para o seu egoísmo as suas qualidades de bondade e sacrifício. Este princípio funcionou também para o Cristianismo. Até a doação de Constantino, o Cristianismo foi heroísmo de martírio. O princípio feminino triunfava e o masculino estava à espera. Aquela doação levou o fenômeno para o terreno deste. Nesse momento o princípio masculino despertou e iniciou, dentro do Cristianismo, o seu oposto tipo de atividade, tomou posse do feminino, e o amou a seu modo, adorou-o e o levou consigo para torná-lo grande no seu mundo. Fez-lhe uma casa, milhões de casas, catedrais belíssimas, vestiu-o de imagens, de arte, de rito, cobriu-o de riquezas, deificou-o, mas naturalmente a seu serviço, isto é, pertencendo-lhe como homem egoísta e senhor, como ele faz com a esposa. Atraiçoou-o por isto? E a esposa se sente atraiçoada se o homem a domina para subordiná-la a si? Não, porque isto corresponde à sua natureza e função que é a de estar, nesta posição, a única possível para ela, junto ao homem dominador e assim induzi-lo a evoluir.
Foi o que sucedeu com a Igreja. Assim, com este matrimônio, o princípio masculino do mundo tomou posse do princípio feminino de Cristo para utiliza-lo a si, e o princípio de Cristo ligou-se ao do mundo para fazê-lo evoluir. E atendido assim, o que pode parecer um híbrido composto e uma contradição, é pelo contrário uma colaboração de opostos. No final o homem dominador fica dominado pelo seu termo complementar e assim se desenvolve no terreno oposto, adquirindo as qualidades que mais lhe faltam para ser completo. Por outra parte, o elemento feminino recebe em compensação a vantagem de poder penetrar no mundo e assim ser valorizada a sua função educadora. O espírito pode enxertar-se na realidade de nossa vida e trabalhar para civilizar o homem. Sem esta servidão ao homem, que se bem a utiliza para si no entanto lhe dá eficiência, a mulher ficaria estéril, sua presença inútil, sua existência falida. Todos vivemos em função de uma obra a realizar, de um fim a atingir. Se abdicarmos disto, a vida é inútil.
A Igreja, como organização humana ao se tornar poder terreno transformou o ideal de Cristo em mundo, biologicamente não traiu, mas cumpriu uma função que, dado o grau de evolução humana, era um mal inevitável, que no entanto se justifica como fase transitória do seu ciclo evolutivo. Tudo está feito para ascender. No final do ciclo a missão dos dois esposos terminou. A mulher, carregada de anos e jóias, está velha. O homem tornou-se um repetidor cansado de antigas fórmulas e não sabe viver senão de recordações. A vida os superou. O espírito deve renascer mais evoluído, enriquecido com experiência anteriores para iniciar um novo trecho do caminho, partindo de um ponto mais avançado, portanto mais espírito e menos mundo, para tornar-se ainda mais espírito e menos mundo. Um pouco mais adiante o mesmo jogo continua. O que fica é a evolução no caminho cada vez mais para o alto, em direção a Deus.
Tudo se explica e se encontra no lugar que lhe corresponde. Sem aquilo que parece traição ao ideal, este ficaria incorrompido nos céus e o mundo involuído e estacionário na Terra. Se para o progresso é necessário tal descida, esta só pode realizar-se sob a forma de conspurcação do ideal e traição por parte do mundo. A mentira deve-se à necessidade de emborcar o ideal para introduzi-lo no mundo, seu oposto, e não pode mudar de um momento para o outro; precisamente para muda-lo é que o ideal deve descer à Terra.
É por este caminho que se chega à construção do homem espiritual, que aprendeu a não abusar mais da sua força, antes de usa-la em forma de bondade benéfica, a que o levou o princípio feminino, em vez de usa-la sob a forma de egoísmo para prejuízo alheio, de acordo com a lição do princípio masculino. Paralelamente a potência do princípio masculino conduz à construção da mulher forte no plano da inteligência e do trabalho, não escrava, mas aliada do homem para colaborar com ele na obra da construção da civilização. Este ponto final é dado pela conjunção dos dois opostos no que de melhor eles são, isto é, pelo super-homem enriquecido pelas qualidades da super-mulher e ao contrário. Assim a evolução cura a cisão, levando cada vez mais o ser em direção ao máximo termo unitário, centro da unificação, Deus.
Neste e nos precedentes capítulos sobre o Cristianismo, dissemos que ele, além de representar a realização da idéia de Cristo na Terra, é uma adaptação que o mundo, como seu inimigo, fez de Cristo a si próprio. Para compreendê-lo bem, observamos o caso sob vários aspectos, mudando pontos de vista e de referência. Como sucede nas administrações deste mundo, os ministros tomam posse da propriedade alheia para usá-la como se fosse sua, para os seus próprios fins. Não seria possível que neste caso o homem mudasse improvisadamente de natureza para atuar, como ministro de Deus, em forma diferente. Concluímos, por fim, que nem por isto o Cristianismo faliu, porque, apesar de tudo, ele cumpre a sua função. As conclusões são, pois, otimistas, pelas seguintes razões:
1) O Cristianismo é fenômeno em evolução, concebemo-lo portanto como um Cristianismo progressivo, o que significa que ele poderá fazer amanhã o que não fez até hoje, isto é, tornar-se verdadeiramente cristão, superando o atual estado de hipocrisia. Não se trata, pois, de falência, como pode fazer pensar o passado, mas de uma futura realização da idéia de Cristo.
2) A função do Comunismo é de levar o Cristianismo à sua verdadeira posição estabelecida por Cristo, fazendo-o retomar o signo da cruz, o qual, no passado, foi substituído pela espada e hoje pela luta política e pelo poder econômico. Assim ou poderá surgir uma diferente organização eclesiástica para o lugar da atual, ou na atual haverá uma substituição por homens diferentes, que viverão o Cristianismo como Cristo o concebeu e não como eles o adaptaram.
3) Nas páginas precedentes, sustentamos que, apesar de tudo, o Cristianismo, que enfocamos no Catolicismo, cumpriu e cumpre a sua função civilizadora quando obriga os mais astutos, que gostariam de aproveitar-se da idéia de Cristo, acabam ficando ligados a ela, o que não pode deixar de educa-los à força, prendendo-os numa férrea disciplina moral.
É assim que as leis da vida, que querem a evolução, se cumprem, que a paixão de Cristo não foi inútil, que o fenômeno da descida dos ideais não deixa de se realizar. A falsificação alcança somente quem a realiza, e não quem obedece a vontade de Deus, impulsionadora do progresso. Os erros humanos podem retardar o caminho de quem os realiza, mas não podem deter a marcha da evolução. Assim nem Cristo nem a vida se enganaram. No fundo a corrupção do ideal, pelo fato de que a descida deste ao nível humano é uma necessidade, é um mal inevitável porque sem ele não haveria possibilidade de progresso para os menos evoluídos, ao mesmo tempo que é um mal útil, porque permite este progresso. É assim que tudo está no lugar que lhe corresponde e se move em direção ao seu fim. A descida dos ideais, apesar de tudo, funciona para a salvação do mundo.
Procuremos agora enfocar o problema do Cristianismo, observando sob vários de seus aspectos, sejam positivos ou negativos, particularmente numa espécie de psicanálise. Isto nos permitirá compreender como surgiram, como funcionam e em relação a que finalidades biológicas existem várias das suas formas, sejam elas produto consciente ou subconsciente da necessidade de alcançar o objetivo mais urgente, que é a conservação do grupo. Veremos que, se elas, perante a lógica do ideal pregado oficialmente, são contradição absurda, não o são perante a lógica das leis da vida que impõem a luta pela sobrevivência a qualquer custo. Veremos assim melhor ainda como a sua simbiose com o mundo maculou o ideal, submetendo-o às suas exigências materiais. Veremos como funcionam as leis da vida e da descida dos ideais no caso do Cristianismo. Procedemos sempre estando orientados por um sistema científico-filosófico completo, que nos dê a razão de tantos fenômenos biológicos e psicológicos inerentes ao funcionamento da vida.
Dissemos que a função das religiões é a de fazer descer os ideais à Terra, introduzindo assim e antecipando, num plano evolutivo inferior, as leis de um superior, para fazer ascender a humanidade até ele. Daí deriva a importância biológica das religiões, devida a esta sua alta função evolutiva. Então o trabalho que as espera é o de levar a animalidade humana ao nível do ideal, como também é o de adaptar o ideal à animalidade humana. Estas adaptações são o preço que o Sistema deve pagar ao Anti-Sistema, se quer que este lhe permita entrar e permanecer no seu terreno que é o mundo. Isto pode representar, com respeito ao alto, um processo de degradação por retrocesso involutivo, mas significa avanço com respeito ao plano baixo. Assim a superação da animalidade não se pode obter senão por meio deste contato entre os dois termos. Mas eles são antagônicos, portanto em luta, cada um para destruir e eliminar o outro. É assim que o primeiro ato do Anti-Sistema, quando entra em contato com o Sistema, é tratar de emborcá-lo para submetê-lo aos seus fins terrenos. O ideal desce do Sistema para levantar na sua direção o Anti-Sistema. Este responde, tratando de rebaixar o Sistema ao seu nível.
Assim nós explicamos o comportamento das religiões. Cristo não aceitou adaptações, não pactuou com o mundo. Este então o matou, O expulsou e Cristo foi viver em outro lugar. Mas os seus Ministros e seguidores devem continuar a viver na Terra, e portanto desceram a pactuar com o Anti-Sistema; desde que deixem de qualquer modo sobreviver o ideal no mundo, se adaptaram a conviver com o inimigo, pagando, com estas adaptações, o direito de habitar em casa alheia. Assim coabitam: o ideal tratando de santificar o mundo e este tratando de corromper o ideal. A posição das religiões perante as leis da vida terrena é, pois, clara. Explica-se assim o fenômeno de não cumprimento dos princípios de Cristo por parte dos seus representantes e seguidores
Tampouco o Cristianismo podia colocar-se fora das leis biológicas vigentes. Se os anjos querem viver no inferno, devem adaptar-se ao tipo de vida dos demônios. De outra maneira têm que ir-se embora. Eis o Evangelho reduzido a doses homeopáticas. Que encontramos na vida do princípio do desinteresse, da não resistência, do ama a teu próximo etc.? Eis um Evangelho diluído nos opostos métodos do mundo. Sob aparências contrárias, domina o instinto gregário, o espírito de grupo, a organização de interesses de casta. Esta é realidade subentendida, que se presume, com a qual tacitamente se concorda. Se surge quem quer atuar a sério, então tem lugar o choque, porque se descobre o mal-entendido, dado que os fatos não correspondem às teorias pregadas. Na realidade o ideal de Cristo está longínquo e se encontra, pelo contrário, a classe social que O representa: um exército em luta em primeiro lugar pela sobrevivência própria. Estamos na Terra e aqui este é o problema fundamental.
Se não quisermos perder-nos no irreal, a posição na Terra não pode ser colocada diversamente. Somos constrangidos a isto pelas próprias leis da vida que eliminam a quem não obedece a elas. Disto nasce uma série de conseqüências; em primeiro lugar, a necessidade de possuir, ainda que o Evangelho proponha o contrário. Esta contradição poderia autorizar alguém a criticar as religiões de não cumprimento e das ditas adaptações. Aqui fazemos imparcialmente só uma observação. Esta acusação valeria se fosse feita por amor à virtude por parte de quem a apresenta. Mas que vale quando é feita por quem só a prega e se serve dela para apanhar em falta os outros, ainda que seja com razão, voltando contra eles a sua própria pregação? Estas acusações são feitas com finalidade positiva, ou apenas com o objetivo de demolir um rival? Eis que se recai no terreno da luta e ninguém está ausente. Então o Evangelho é transformado por ambas as partes numa arma para destruir-se no duelo, ao exigir do outro, em nome de princípios, aquilo a que a cada um dos dois mais importa, isto é, uma renúncia que, empobrecendo o seu antagonista, o elimine da vida. E então, se a acusação de mentira se baseia na mentira, que vale esta acusação? Isto pode mostrar-nos para que serve o ideal na Terra.
Não nos iludamos. Mesmo para o triunfo de uma idéia na Terra é necessário vencer no plano humano, porque em nosso mundo só o vencedor tem o direito de estabelecer a verdade. O vencido é considerado culpável. Então o ideal deve submeter-se às leis da Terra. Depois da necessidade de possuir, indispensável meio de domínio, a necessidade de conservar esta posse. A eternidade dos princípios tende a concretizar-se numa eternidade de meios materiais necessários para sustentá-los na Terra. Disto nasceu em várias religiões, o instituto da castidade do clero; em vista de tais fins positivos fez-se dele uma virtude. A sua verdadeira função é, pelo contrário, a de eliminar as conseqüências econômicas da procriação. Evita-se assim o possuir em favor do grupo familiar em vez do grupo eclesiástico, evita-se a perda da obrigação de deixar por herança aos familiares, herdeiros legais, ao invés da coletividade religiosa. Sem filhos tudo fica dentro da organização eclesiástica. Assim se fecham as portas de saída, enquanto ficam abertas as da entrada.
Na Terra os grupos de qualquer gênero estão em rivais posições de guerra. Daí a necessidade de viverem compactados como soldados, sem ter entre os pés o travão de pesos mortos para arrastar, como são mulheres e filhos. Então o sexo torna-se pecado porque tem como resultado a procriação de rivais pretendentes à posse. Principalmente no passado quando, sendo desconhecidos os métodos de controle da natalidade, não havia outro meio senão a castidade para evitar a procriação.
Formou-se assim uma moral em função das leis da Terra onde o possuir representa a base da vida. No passado a conquista dos bens, mais do que o trabalho, se fazia com a violência, que aos eclesiásticos era proibido usar. Portanto para lutar não restava outro meio senão estas medidas. De tudo isto, ou seja, de razões econômicas na luta para a conservação do grupo nasceu a exaltação da castidade. É por isto que ela se tornou uma virtude, mesmo que biologicamente não o seja. Poderia sê-lo, se tal renúncia fosse útil a vida na medida em que se realizasse em função de uma correspondente conquista espiritual. Mas na realidade nem sempre acontece que esta negação num nível baixo seja compensada por uma afirmação noutro mais alto. Sucede então que para a maioria composta de imaturos, tudo se reduz a uma limitação, em vez de uma criação e expansão. Assim a castidade imposta à força por outras razões, em vez de levar à sublimação, leva ao contrário, à hipocrisia ou, o que é pior, as substituições e desvios patológicos. Tal virtude baseia-se em necessidades práticas e a idéia da catarse evolutiva, como fato excepcional, não basta para justificá-la.
De tudo isto nasceu um espírito de sexofobia dominante do Catolicismo. E compreende-se como, um Evangelho nada sexófobo, se insistiu tanto na castidade, enquanto se passa por cima do assunto riqueza, para o qual o Evangelho reserva as mais acerbas condenações. A razão disto reside no fato de que o verdadeiro objetivo escondido é a conservação do grupo e para esta finalidade a renúncia ao sexo representa uma ajuda, enquanto a renúncia à posse é um obstáculo. É por isto que tanto se insistiu em fazer da castidade uma virtude, apresentando-a como uma sublimação.
Os dois impulsos: fome e sexo, são tão fundamentais que derivaram deles dois biótipos, cada um especializado em uma destas duas funções. O primeiro dos dois é produtor de bens, e na luta pela sobrevivência está encarregado de defender a vida. Por isso é egoísta, apegado à posse, interessado, calculador, mas é também trabalhador e criador, se bem que sobretudo para si, com egoísmo e avareza. Adora ao deus dinheiro, em compensação é casto porque é frio. Em se tratando de sexo, é virtuoso e puro.
O segundo tipo é consumidor de bens e, na luta pela sobrevivência, está encarregado de continuar a vida. Por isso é altruísta, desprendido da posse, desinteressado, generoso, mas também anda em busca do apoio material que o sustente enquanto ele deve cumprir o seu diferente trabalho. De fato não sabe produzir, mas sabe amar e proteger. No sexo, ele é um pecador, mas a respeito da riqueza ele não tem apego e é virtuoso.
Temos assim uma divisão de trabalho, de aspectos, de juízos. No fundo o primeiro é tipo masculino, dominador, o segundo. é tipo feminino, obediente; ambos, em duas formas diferentes, empenhados no mesmo trabalho da luta pela sobrevivência. Vemos prevalecer o primeiro nos países frios, onde essa luta é mais dura. Assim, ao Norte da Europa, o Cristianismo se tornou rígido Protestantismo, que preferiu ao Evangelho a Bíblia, código de um povo guerreiro. O Segundo tipo prevalece nos países cálidos, onde aquela luta é menos dura. Assim, nas zonas meridionais, o Cristianismo transformou-se no Catolicismo mais acomodativo, que à Bíblia preferiu o Evangelho, baseado no amor.
Tudo isto nos diz a psicanálise das religiões, mostrando-nos uma diversa realidade escondida sob as aparências. Quem olha em profundidade não se deixa enganar pela vestimenta exterior. O que conta perante a vida é a realidade interior, aquilo que realmente se sente e se faz, aquilo em que de fato se crê e não aquilo que se diz que se crê. O mundo gosta de cobrir-se de ficções, que no entanto nada deslocam nem salvam. Somente se soubermos ver aquilo que se oculta atrás delas, a verdadeira vida, poderemos compreender o que está sucedendo no mundo.
Um outro importante aspecto do Cristianismo é representado pelo fenômeno do materialismo religioso. Isto deve-se ao fato de que o homem, quanto mais primitivo é, tanto mais concebe as coisas em forma materialista, em função do ambiente terrestre segundo o qual construiu a sua forma mental. Este modo tão comum de entender as coisas do espírito é devido ao grau de involução em que se encontra a humanidade, isto é, mais do lado do AS do que do lado do S, pele que é o primeiro que prevalece ainda sobre o segundo. Então o ideal, para poder existir no mundo, é abaixado ao nível deste, ou seja; submetido a retrocesso involutivo. É a forma que vence a substância, a qual fica sufocada dentro dela. O homem por comodidade, adapta tudo a si próprio, trazendo-o ao seu nível. É assim que encontramos os atributos do S torcidos na forma de AS, isto é, vemos nas religiões, em vez de um processo de espiritualização da matéria, um de materialização do espírito, em vez de uma elevação do homem ao nível do ideal, um rebaixamento do ideal ao nível do homem.
O Cristianismo, também ele, seguiu em alguns casos esta tendência bem humana pela qual as coisas do espírito são concebidas em forma materialista. Foi assim que a vitória de Cristo sobre a morte e a continuação da sua vida foi entendida principalmente no plano físico, como ressurreição do corpo. Mas Cristo não era o corpo, era o espírito que não estava morto e que, tendo ficado vivo, para permanecer como tal, não tinha necessidade de ressuscitar. Como se vê, o problema da ressurreição de Cristo foi apresentado em forma totalmente materialista, identificando Cristo com o seu corpo, e como se fosse necessária a sobrevivência deste para que ele pudesse ficar vivo, enquanto a vida do espírito, na qual consiste verdadeiramente a pessoa, é independente da morte do corpo. Assim foi entendido o fenômeno da sobrevivência de Cristo esquecendo-se que o seu verdadeiro ser é espiritual e não físico.
O que aqui queremos fazer ressaltar não é a negação da ressurreição de Cristo; afirmamos isto sim, que não havia nenhuma necessidade da sua ressurreição corpórea para que Ele pudesse permanecer vivo, como era necessário para ser triunfador. Mas esta era uma necessidade psicológica na mente dos seus seguidores, para que eles pudessem ter a segurança, para eles indispensável, de que Cristo não estava morto mas sim ainda vivo, não tinha desaparecido, mas estava presente para sustentá-los. Para quem vive no espírito esta ressurreição física passa a segundo plano, porque é só a de um acessório transitório da verdadeira personalidade que é eterna. Mas a lógica de uma mente materialista é diferente. O homem quer primeiramente satisfazer as suas necessidades psicológicas. Nós mesmos não choramos um defunto como morto? Assim para os discípulos de Cristo era antes de mais nada o homem que tinham visto morrer. Para que ficasse vivo era necessário portanto fazê-lo ressuscitar como corpo. Os próprios hebreus, matando o corpo de Cristo haviam desejado e crido matar a Cristo, mas não fizeram outra coisa senão libertá-lo de uma pesadíssima vestidura. Mas destruída a veste, que se acreditava ser o próprio Cristo, era necessário que Ele ressuscitasse vestido com ela, para que essa gente pudesse acreditar que Ele estava ainda vivo, indo para o Céu com o seu próprio corpo.
Com a mesma forma mental materialista foi concebida a Eucaristia, interpretando em sentido concreto as palavras de Cristo e com isto querendo dar-lhe um corpo, como se Ele, sem esta forma material, não pudesse existir entre nós. Eis a matéria trazida de novo a primeiro plano. É evidente que Cristo dela não necessita para estar presente entre nós. Quem tem necessidade dela é o homem, que não sabe conceber a existência sem uma forma material. Claro que toda a forma mental quer estar atendida nas suas exigências, mas corresponderia mais à verdade libertar-se desta idéia materialista que, para que Cristo possa estar presente, seja indispensável uma forma material; que Ele possa estar presente só na hóstia e lhe seja proibido estar fora dela. Com isto não queremos dizer que não esteja na hóstia, tanto mais que isto é necessário para satisfazer a necessidade da mente humana de localizar o espírito reduzindo-o na dimensão espaço. Mas dizemos que o espírito está livre destas materializações e que Cristo está presente também onde quer que haja uma alma que o compreenda e o ame.
Cristo tendo entendido tal necessidade psicológica do homem, ofereceu pão e vinho como formas materiais necessárias à concentração do pensamento e assim facilitar a sintonização espiritual.
Interpretar este fato como uma transformação do pão e do vinho em carne e sangue, pode gerar mal-entendidos. Dizemos isto devido à forma mental materialista, que chegou a procurar em laboratório a prova desta transformação. Tratando-se de fenômeno espiritual, foi um verdadeiro absurdo, encontrando portanto, um resultado negativo.
É necessário no entanto reconhecer que tem de servir à maioria e não se lhe pode exigir mais do que até certo limite. A espiritualização é progressiva, como é a evolução da qual ela faz parte. Se a religião quer cumprir a sua missão, deve adaptar-se às necessidades da maioria. Ora, não se pode negar que para os milênios passados algum progresso foi realizado. As relações entre e homem e Deus eram, antigamente, concebidas só antropomorficamente, como entre servo e amo, o primeiro procurando conquistar favores do segundo com ofertas e sacrifícios. No princípio, estas eram vítimas humanas, provavelmente com a intenção de saciar a fome de um deus antropófago. Depois sacrificaram-se animais que eram consumidos pelos ministros de Deus. Com o Cristianismo, o sacrifício é simbólico, sem derramamento de sangue, mas ainda ligado matéria. Com a evolução, este processo de purificação continuará, espiritualizando-se ainda mais.
Mas eis que o valor da eucaristia não cessa por isso. Basta permanecer no seu terreno que é espiritual, e não pretender fixá-lo em formas materiais. Então a existência de uma vestimenta exterior na dimensão espaço, perceptível aos sentidos como instrumentos do espírito, continua sendo uma coisa necessária, mas somente como meio para cumprir uma função espiritual.
Não estamos dizendo heresias. Nesta nossa época de atualização já há teólogos que admitem que quando se diz que o pão e o vinho da missa, misteriosamente, se tomam o corpo e o sangue de Cristo (Mysterium fidei), a transformação essencial reside no significado mais do que na substância dos elementos. Então a função da hóstia não consiste em se ter tornado carne mas em constituir um ponto de convergência psicológica em direção ao qual dirige e concentra a fé do crente, fé com imenso poder criador. A forma mental humana, instintivamente materialista, tem necessidade destes apoios no sensível e concreto, e isto é o que dessa maneira se lhe concede. Mas é necessário dar-lhe o seu verdadeiro valor, isto é, de meio para fins espirituais e não transformá-los naquilo que não são nem podem ser. Estamos no terreno somente espiritual. A substância é mental. Neste plano existem as coisas em que cremos. É uma existência feita de pensamento, que acaba depois por tornar-se material, porque a semente da realidade exterior está no interior.
Tudo isto não exige que alguma coisa se desloque na forma exterior. Ela pode ficar como é, com o valor de forma e não assumindo exclusivamente o de substância. A função criadora do ato material da comunhão baseia-se então, mais do que na transubstanciação, na formação interior da imagem de Cristo que, localizando-se na hóstia, pode assim tomar forma mental e chegar a existir no plano do espírito. Apoiando-se neste centro de focalização psicológica, se canaliza e com repetição se estabiliza uma corrente de pensamento orientada em direção a Cristo, cuja figura se constrói assim como uma realidade interior da alma do fiel. Tudo isto faz parte da técnica construtiva da personalidade por meio da aquisição de novas qualidades, conforme o método dos automatismos. Assim o fenômeno é visível em toda a sua estrutura e funcionamento e, em forma racional aceitável para todos, mostramos como alcança os seus fins.
É deste modo que o fenômeno espiritual da união com Cristo pode assumir o significado positivo da identificação com o modelo de vida superior, o que não tem mais o aspecto, que para alguns pode ter, de fantasia de místico, mas representa o fenômeno biológico da maturação evolutiva, que é um fato positivo que a ciência não pode negar. Pode-se assim chegar, com esta técnica psicológica, a assumir formas de vida mais elevada, fazendo dela um meio para realizar a evolução, antecipando-a com a descida dos ideais. Trata-se então não só de uma prática religiosa mas de um trabalho ascensional que se cumpre, apoiando-se numa posição biológica mais avançada, representada pelo modelo ideal. Trata-se de um problema que não diz respeito só às religiões, mas que é funda- mental para a vida: o progredir. Na sua vastidão exorbita os limites de uma regulamentação humana em função dos fins de uma determinada religião ou de uma certa casta eclesiástica. Para as almas prontas, a imensidade de Cristo não resiste mais dentro do cerco das formas, explode e as transborda, rompendo os diques postos para as massas pela mecânica das religiões. Então, por cima de todos os poderes humanos e as limitações estabelecidas pelos seus representantes, é o puro poder do espírito que triunfa com Cristo.
Pode parecer que estas observações se propõem a destruir os velhos castelos da fé, no entanto tendem a um fim construtivo, para substituí-los por algo sólido, baseado na realidade biológica, num momento no qual esses castelos estão caindo por si só. A hora da fé cega e da religião por sugestão terminou. Hoje o que não é claro e comprovado é deixado de parte. Estes escritos, além disso, não estão dirigidos às classes sociais que só pensam por sugestão. Eles não são perigosos porque se dirigem, pelo contrário, às camadas sociais superiores onde se pensa, se avalia, se tem o dever de compreender para assumir as próprias responsabilidades.
Do seu lado, a classe sacerdotal, apesar de tudo, soube cumprir a sua função que era a de fazer descer e fixar na Terra o ideal de Cristo, embora apenas na proporção em que a vida podia absorvê-lo nessa sua fase de evolução. Portanto, o objetivo, que durante aquele lapso de tempo se devia alcançar, foi atingido. Não há, pois, que escandalizar-se porque o resultado não podia ser diferente, devendo ficar proporcional ao próprio grau de evolução. Não importa que isto tivesse de suceder, já que a consciência estava em formação, usando o indivíduo como instrumento através do inconsciente, não importando em que forma se tivesse que resolver o problema, quando fosse resolvido. Assim se deixou funcionar o espírito de grupo quando isto servia para mantê-lo de pé e era necessário para manter a presença de um ideal na Terra. Deste modo a vida permitiu que ele ficasse envolvido em superstição, fanatismo, dogmatismo, sectarismo, já que, de qualquer modo, ele se libertaria no futuro destas escórias. Entretanto vinha-se realizando trabalho de evolução, mesmo que num baixo nível biológico. Um ideal cristão íntegro, aplicado de repente, haveria queimado tudo e sendo desproporcional à receptividade humana de então, teria sido destrutivo em vez de construtivo. Ele devia colocar-se a serviço do homem, para que o homem se pusesse a seu serviço. Para que este possa subir, o ideal deve descer, porque também o mundo em baixo tem as suas leis e exigências, como existem também no alto.
Assim o homem faz na Terra construções a serviço do ideal, mas as utiliza também a seu serviço, e habita dentro delas fazendo ali o que quer. Tais posições se fixam e se codificam em leis, instituições, hierarquia, com prerrogativas por toda a vida, inseparáveis de lugares e pessoas. A vida tolera tudo isto enquanto lhe sobra uma margem útil para os seus fins evolutivos. Mas, quando a matéria substitui o espírito e o mundo chega inclusive a sufocar o ideal, porque o hedonismo do grupo prevalece sobre o cumprimento da sua função, então a vida, na sua marcha progressiva, destrói estes que de instrumentos se tornaram obstáculos, e irrompe arrastando-os. Se, para perdurarem as posições, foram elas indissoluvelmente ligadas às pessoas, já que não há outro modo de libertar-se delas, liquidam-se com elas também essas pessoas. O que garante a continuação de uma posição é o cumprimento de uma função pela qual ela existe, e não a sua inamobilidade. A vida sabe varrer bem tudo o que vai contra os seus fins. Isto sucedeu com a monarquia e a aristocracia, por meio da revolução francesa e depois da russa, e pode suceder com qualquer instituição que resista à vida que quer avançar.
Dada a técnica da evolução, o grupo eclesiástico não pode deixar de encontrar-se suspenso entre o divino e o humano, encaixado dentro do dualismo ideal-mundo, envolvido na luta entre estes dois termos opostos, nela empenhados para vencer e progredir. Para sobreviver na Terra, o grupo deve no entanto defender a sua autoridade e posições terrenas, mesmo se com isto contradiz e se opõe ao ideal. A luta do anjo é para transformar a besta em anjo. A luta da besta é para transformar o anjo em besta. A lei do amor deve conseguir implantar-se no seio da do egoísmo, sendo praticada por quem pertence a esta segunda lei. Em semelhante ambiente - uma vez que os ministros de Deus são frutos desse ambiente - não se podia construir uma religião diferente. Era necessário utilizar o material humano existente, não se podia importá-lo do céu. De resto, com uma super-raça, o ideal já estaria realizado. Então ele não teria mais uma função civilizadora a cumprir, ao contrário do que sucede quando desce num nível inferior. Tal é a engrenagem das leis biológicas e da sua técnica funcional. Se se queria que a idéia de Cristo permanecesse na Terra, havia que degradá-la para adaptá-la a esta, porque sem um retrocesso involutivo, o ideal não é aplicável em nosso mundo. Eis o que significa tomar corpo na forma concreta de uma religião. Degradação do ideal, mas sublimação da animalidade humana, para encontrar-se no meio do caminho, que é de ideal degradado e de animalidade sublimada: uma posição híbrida que parece contradição e mentira, mas que é também aproximação de extremos opostos e trabalho de transformação do mais baixo a fim de que ele alcance um nível mais alto.
Assim, em vez da elevação do humano até ao divino, freqüentemente chegou-se só ao abaixamento do divino até ao humano. Na Terra o ideal não podia tornar-se senão um instrumento de luta. Aqui isto é quase uma necessidade. Deus está no alto, longínquo, invisível; o mundo está próximo, tangível, com as suas térreas exigências materiais. A lei da vida é de utilizar tudo para a própria conservação. Para ela, no nível humano, é lógico que o ideal deva ser usado primeiramente para viver na Terra, em vez de ser usado como esforço para subir aos céus. No plano animal-humano o ideal é um absurdo, uma loucura, é exigir que se viva segundo as leis de outros mundos demasiado diferentes do nosso. Aqui a existência da luta para viver e sublimar-se é utopia perigosa. Ê mais fácil defender-se do que subir. Não há margem para superações evolutivas.
Se queremos fazer uma idéia da estrutura do biótipo situado no pólo oposto, o do espírito, observemos a figura de Cristo. Nela encontramos qualidades de doçura feminina, não no nível sexo, mas no da bondade e amor de espírito; e masculinidade, não no nível de força para submeter egoisticamente, mas no nível de potência de espírito para ajudar. O primeiro está no plano do homem, o segundo no do super-homem. As reações de Cristo foram com efeito coerentes com essa Sua natureza. Daí o mal-entendido como seus contemporâneos. Judas atraiçoou Cristo porque estava provavelmente revoltado pelo fato de ver que o seu chefe, que ele exigia que fosse rico e poderoso, era somente bom, o que segundo ele significava ser inepto. Também os crucificadores de Cristo lhe diziam: "Se é verdade que és poderoso, salva-te, se és o filho de Deus, desce da cruz!" O mal-entendido é o mesmo. Para todos eles o valor e o poder que Cristo se atribuía devia consistir numa prova de força, no nível humano, terreno. Para eles a potência espiritual não tinha sentido, porque não servia para nada. Era loucura de sonhadores. Eles pensavam: de que te serve seres Deus, se agora te fazes matar? Eles não podiam compreender esse outro tipo de poder super-humano que do vencido de uma hora e de um pequeno grupo de homens, fez o vencedor nos milênios e o chefe espiritual da parte mais civilizada da humanidade.
No mundo vale só o que serve para viver. Por isso tudo transforma para sujeitá-lo às suas necessidades. Também por isso Cristo foi entendido sob duas formas diversas pelas duas raças que o aceitaram. Temos com efeito o tipo de Cristianismo latino, isto é, Catolicismo, e o tipo de Cristianismo anglo-saxônico, isto é, Protestantismo. Assim Cristo foi entendido em forma diferente pelos dois grupos, cada um segundo a sua própria natureza. Igualmente sucedeu com o Comunismo, que se dividiu em dois, em Rússia e China, cada um dos dois povos entendendo-o e usando-o a seu modo para os seus próprios fins.
A contradição entre ideal e realidade desaparece quando se entende o ideal não como um estado que deveria existir: já realizado, mas como uma meta ainda para alcançar. Então a religião já não é contradição, mas um processo evolutivo em ação, de contínua aproximação a Cristo. A quem está mais avançado parece não cristão quem se encontra mais atrasado, isto é, mais longe de Cristo. Pode pelo contrário crer-se bom cristão quem segue apenas algumas práticas exteriores, sem suspeitar o que significa ser cristão. Cada um entende Cristo segundo a sua natureza, o vê segundo a sua amplitude de visão, se aproxima da religião conforme as suas capacidades e a utiliza a seu modo, alguns para santificar-se, outros para mentir e desfruta-la, outros para salvar-se, outros para perder-se. Cristo pode ser usado também ao revés, para descer em vez de para subir. Há fervorosos praticantes e crentes ortodoxos, substancialmente piores que muitos ateus honestos e sinceros.
Para compreender o Cristianismo é necessário entendê-lo não como um edifício já feito, mas em via de construção, como uma perfeição a alcançar, um ideal em marcha, um plano de trabalho a cumprir ainda, cuja realização está situada no futuro. Esse ideal enxerta-se na vida gradualmente. Se atualmente ainda triunfa a imperfeição humana, caminha-se no entanto para a perfeição evangélica; se ainda predomina o animal humano, o anjo o espera no futuro. O valor do Cristianismo está dado pelo grau de concretização do ideal, alcançado na Terra. Ele deve ser julgado em função do trabalho evolutivo já cumprido e do que mostra que saberá cumprir. Assim, contradições, adaptações e enganos se explicam e se justificam perante as leis da vida.
Pode-se então dizer que o Cristianismo mais do que uma realidade é uma esperança. No estado anual as massas aceitaram o ideal, enquanto o puseram a serviço das suas necessidades. De Cristo a vida tomou o que lhe servia para satisfazer a sua necessidade de evoluir, que representa precisamente uma sua função fundamental. Deste modo, o mundo adaptou Cristo a si como melhor lhe convinha. Mas assim Cristo entrou e instalou-se no mundo, por sua vez para adaptá-lo a si e transformá-lo a seu modo. Sucedeu que, enquanto o mundo tratou de adaptar Cristo para seu próprio uso, teve no entanto de transformar-se um pouco para avizinhar-se Dele, figura junto à qual achou que tinha de viver. Esta coabitação na Terra obrigou a avizinharem-se os dois termos, permitindo deste modo que se cumprisse a função do ideal, que é a de realizar a evolução.
Não há dúvida de que a vida alcança este objetivo. A semente se adapta ao terreno, mas o utiliza também para desenvolver-se. Entre ideal e mundo há luta, um para vencer o outro, mas há também colaboração para o mesmo fim, que é evoluir. Para que os ideais possam exigir do homem o esforço de ascender a formas superiores de vida, devem satisfazer as suas exigências atuais; para induzi-lo ao esforço de criar-se um futuro maior devem ajudá-lo a viver no seu presente. Em resumo, Cristo devia adaptar-se a oferecer também uma utilidade imediata que satisfizesse um pouco o mundo. Para que seja possível a redenção, o evoluído deve descer ao nível do involuído. Assim Cristo desceu verdadeiramente, avizinhando-se do homem e permitindo que este o utilizasse para si a seu modo. Isto é intoxicação do ideal, mas é também como se fora um casamento com ele. Assim é que tudo o que é evoluído, e por isso positivo, poderoso e fecundo, vai para diante e arrasta consigo tudo o que é involuído, e portanto negativo, débil, para fecundá-lo e levá-lo mais para a frente. Temos assim o iniciador e os seus me- nos evoluídos seguidores.
Neste jogo de adaptações pode-se ver como o homem se satisfez tratando de utilizar a Cristo.
1) A primeira satisfação que o homem procurou em relação a Cristo, foi a de matá-Lo, e, mais ainda, torturando-O. Para eliminar um inimigo basta matá-lo. Mas aqui há um desabafo de sadismo próprio da natureza humana. Isto até há tempos recentes foi feito em nome da justiça. A sociedade tem o direito à legítima defesa e por isso à eliminação ou isolamento dos criminosos, mas não tem o direito de tornar-se cruel, o que é só prova de ferocidade. No passado se fazia dela, nas execuções, um espetáculo público, com o pretexto de executar assim uma função educativa exemplar.
2) Cumprido o primeiro disparate, a humanidade durante mil anos, gozou com a sádica recordação, Que pode haver de espiritual e de elevação para a alma na reconstrução mental da tortura física? Não se compreende. Não obstante a literatura religiosa aperfeiçoou em todos os detalhes tais descrições. Isto mostra em que forma negativa o homem vê o triunfo do espírito, isto é, mais como perseguição de corpo do que elevação de alma. Estamos nos planos baixos da evolução, nos quais se manifesta o subconsciente pelo qual "a tua morte é a minha vida", e portanto o triunfo vital é precisamente a morte alheia.
3) A paixão de Cristo foi utilizada para alcançar outra por parte dos cristãos, a de proclamar-se inocentes, desabafando assim o instinto de agressividade ao lançar sobre outros a culpa do delito de ter crucificado Cristo, sejam os romanos pagãos, sejam os hebreus deicidas, isto é, inimigos do próprio grupo por serem seguidores de outra religião. Mas não pertencerão todos à mesma humanidade? Culpar os outros não tira a responsabilidade, tanto mais que na Idade Média, mais ou menos todos, fizeram ainda pior. É sempre o mesmo homem que, com os mesmos instintos, faz as mesmas coisas.
4) A paixão de Cristo foi utilizada ainda de outra maneira,- isto é, como aproveitamento do esforço alheio para gozar as vantagens não merecidas, porque não ganhas com o próprio esforço. Cristo que biologicamente isto pode ser justo, mas só no nível do involuído, como meio para obter em benefício próprio a maior utilidade com o mínimo esforço. E dado que Cristo, a parte ofendida, se cala, não existindo da Sua parte reação para temer, não há razão- para não se aproveitar. Assim se formou, e permanece, o mito da redenção, obtida gratuitamente, porque Cristo, com a sua paixão pagou e deste modo o homem se salva sem esforço, ficando comodamente redimido pelas dores dos outros em vez de o ser pelas suas próprias. É conveniente e prova de habilidade saber utilizar para este fim também a infinita bondade de Deus, que se prestou amavelmente ao jogo enviando o Seu único filho, colocado a serviço do homem, que certamente o merecia por representar o mais alto produto e objetivo da criação. Que importa se, pelo contrário, a justiça exige que os erros de cada um se paguem com as dores de cada um e não com as dos outros, quando este segundo sistema é muito mais cômodo?
Eis que o homem colocou Deus a seu serviço, encarregando-o do trabalho de polir-lhe a alma, pagando os seus débitos. Daí se depreende que sentido de egoísmo e orgulho, que espírito de domínio está aninhado dentro do subconsciente humano. Lamentavelmente as coisas para o homem são diferentes do que ele deva crer. Deus deixa andar. Mas isto não evita que na realidade quem erra pague porque isto é necessário para aprender, e não há escapatórias. Cristo não sofreu para pagar em nosso lugar, mas para mostrar-nos, com o seu exemplo, como se deve pagar e como nós, cada um a parte que lhe respeita, deve pagar com a sua própria paixão. Cristo nos fez ver qual é o caminho que devemos percorrer para redimir-nos. Por isso devemos imitá-lo, fazendo nós aquilo que ele fez, e não só contando Sua vida ou tratando de explorá-Lo.
A idéia de Cristo é uma semente enxertada no sangue da humanidade, uma semente viva que quer crescer e dentro desta tornar-se grande e ser assimilada. Tratemos agora de ver o lado positivo do problema, isto é, quais são os elementos construtivos a favor da realização do ideal cristão na Terra. O homem, encontrando-se em baixo, oferece as resistências; a idéia, estando no alto, oferece os impulsos para o progresso. Enquanto o homem se preocupa em explorar o ideal, este, pelo contrário, tende a apossar-se do mundo para civilizá-lo.
A casta sacerdotal está no meio, entre as duas tendências. intermediária entre o ideal e o mundo. Nos períodos ascensionais, de espiritualidade, aquela casta cumpre a sua função no sentido da ascensão; nos de retrocesso involutivo ela descai e se corrompe. Quando a percentagem de conspurcação do ideal supera os limites que se podem suportar, aquele organismo desfaz-se e acaba. Então, como já referimos, a liquidação é automática. Quando uma instituição não serve mais aos fins da vida, esta a abandona, como estando à margem da lei, para que morra. Quando no grupo religioso o ideal fica só como um pretexto para finalidades terrenas, e assim desaparece a sua função evolutiva, então esse grupo biologicamente já não tem razão de existir, devendo, pois, ser liquidado. Tem direito de viver só quem satisfaz as exigências da vida, e entre elas é fundamental o evoluir.
Ora, o Cristianismo quis fixar-se em verdades absolutas. procurou assim apoiar-se em soluções alcançadas de um modo definitivo, a respeito das quais as possíveis objeções já tinham sido todas previstas. Depois, para evitar surpresas, a revelação foi definitivamente encerrada, de modo que, em conclusão, as posições terrenas já se não podiam destruir. No entanto continuou o tempo caminhando e o pensamento a avançar de maneira que a imobilidade serviu somente para deixar-se superar. O castelo fechado, que devia ser uma defesa, se tornou assim uma prisão. Deste modo a Igreja se encontrou como paralisada dentro daquelas suas soluções, em sua época aceitáveis porque proporcionadas aos tempos, mas que hoje já não o são mais, devido ao desenvolvimento mental moderno, perante o qual, tratando-se de verdades eternas, elas deviam permanecer verdadeiras. A Igreja assim ficou petrificada, sem elasticidade para avançar, impossibilitada de torcer a realidade dos fenômenos para fazê-la coincidir com o modelo fixado, como também transformá-lo para o fazer coincidir com essa realidade. A verdade é progressiva, move-se e caminha. O absoluto é estático e sólido, garante as posições de longa duração, sonho dos acomodados, mas não caminha e, num universo em marcha, isto significa ficar atrás, abandonado.
Mas quem conhece as leis da vida sabe que o ideal não pode morrer, porque ele deve realizar uma função evolutiva. Se o instrumento humano a que estava confiado esse dever se torna inadequado, será liquidado e substituído. Então aquela função será executada por outro, mas ela permanece, porque ninguém pode deter a evolução. A salvação da idéia de Cristo está, pois, garantida. As próprias leis da vida o exigem. É necessário apenas ver a que para o grupo a que foi confiada. Aos conservadores de posições isto poderá parecer um cataclismo destrutivo, mas isto significa a salvação espiritual. É neste sentido que as forças do inferno não podem prevalecer seja como for que o homem faça, Cristo vence. A maior arma da Igreja para a sua própria defesa é a de realizar a sua função espiritual conforme o comando de Cristo e as leis da vida.
Se a Igreja se decidiu hoje a formar uma frente única religiosa, reaproximando-se dos seus velhos inimigos, agora chamados irmãos separados, isto se deve a que as inimizades particulares desaparecem ao surgir um inimigo comum, que é hoje o Comunismo. Não significa isto que se passe da luta ao amor, mas que ela se transfere em direção a outro objetivo, e em vez de desabafar-se contra os indivíduos, se lança contra o inimigo de todos eles. Por isso hoje se procura a unificação. Mas esta é só estratégia de guerra. Os inimigos aceitam-se como amigos só para fazer força contra outro inimigo maior. Isto são só precauções humanas para defender as posições próprias. Pelo contrário, o programa da vida é evolução e esta, na fase atual, significa espiritualizar-se, fenômeno que se realiza com a descida dos ideais, e o executá-lo é dever das religiões.
É muito provável que o Catolicismo deva dar um grande passo para a frente, em direção à sua espiritualização, porque só nisto pode consistir a sua salvação. Trata-se de um processo contínuo e gradual de desarticulação de superestruturas, para reencontrar, no fundo das formas, viva a substância. Talvez um esclarecimento de posições levará a distinguir, mais além das aparências, entre os seguidores de Cristo e os administradores da sua propriedade terrena, entre o verdadeiro crente, ainda que não ortodoxo e praticante, e quem passa por religioso por ser exteriormente devoto, amigo do clero e do partido eclesiástico. Ser cristão é outra coisa e, para sê-lo, talvez não seja necessário ser católico no sentido ortodoxo. Uma coisa é pregar, outra é praticar; uma coisa é ser, outra é aparentar. Perante Deus, fazer crer aos outros a própria santidade não serve para nada. O valor não está no reconhecimento exterior, mas nas qualidades individuais, interiores. As glorificações oficiais servem perante o mundo, mas bem pouco perante Deus. Pode-se ser formalmente ótimo católico ou crente de qualquer religião e substancialmente péssimo cristão. O grupo necessita de seguidores para fazer-se forte, mas isto é coisa do mundo. Pode estar mais perto de Deus um condenado pela autoridade, do que esta que condena em nome de Deus. A consciência é tremendamente responsável, mas é livre, por sobre qualquer coação humana.
O mais importante numa religião não é o poder econômico, político, social, do grupo, mas antes, que se tenha experiências de Deus. Se aparece um santo, ele é acolhido com desconfiança. pela chamada prudência. Ao não comprometer-se com juízos, a autoridade pensa, antes de mais nada, em salvar-se a si própria. Às vezes condena, depois parece que aprova, e não se decide a reconhecer o santo senão, quando chegar o consentimento unânime que a liberta de todo o risco de erro. Havendo-se posto assim no seguro, santifica-o para a sua própria glória, mas quando o santo está bem morto e não podem surgir surpresas com fatos novos. Tudo está inteligentemente regulado.
Mas isto não impede que, particularmente, o indivíduo não possa ter experiência de Deus, e tomar-se santo por sua conta se desejar. É um problema de foro íntimo. No entanto, é lógico que este não pode pretender da autoridade um reconhecimento oficial, implicando responsabilidade. Então é natural, por parte da autoridade, uma legítima defesa contra quem quereria, que ela se comprometesse para vantagem dele, deixando à autoridade o risco do erro. Ora, só o fato de basear a santidade própria sobre reconhecimentos humanos, significa não ser santo e não se ter verdadeiras experiências de Deus; significa pelo contrário procurar a glória do mundo e pedi-la à Igreja, porque só ela dispõe dos meios materiais para referendá-lo. Portanto se queremos verdadeiramente fazer-nos santos, devemos fazê-lo em silêncio, só perante Deus, sem o dar a conhecer a ninguém, sem excitar o vespeiro dos juízos humanos.
A salvação da Igreja está na sua purificação. E esta é progressiva, solicitada pelas próprias leis da vida. Na Idade Média a Igreja estava no nível terreno do Império. Depois foi libertada do poder temporal. A evolução a libertará do poder econômico e político. Assim ela se avizinhará cada vez mais da sua forma mais pura, que é a do poder somente espiritual. A imprensa anuncia uma diminuição do número das vocações religiosas, de 152.000 sacerdotes em 1871, a 50.000 em 1965, enquanto, no mesmo lapso de tempo, a população duplicou. Este fato coincide com a perda do poder temporal, que antigamente devia representar uma atração para o sacerdócio reduzido a carreira, com a correlativa posição econômica, freqüentemente a base do surgir do muitas vocações.
Para o espírito, porém, este fato é um progresso. A perda em quantidade, como número, pode estar a favor da qualidade, isto é, menos elementos mais selecionados. O resultado pode ser uma religião mais perfeita. As dificuldades afastam os exploradores do ideal, e o espírito não poderá senão extrair benefício disso. Talvez uma perseguição comunista execute essa operação para purificar e salvar a Igreja espiritual. Ser-se-á então cristão de verdade e muitos, que hoje se classificam de católicos, se afastarão. Não servirá mais então o jogo da hipocrisia e não se tratará mais de recorrer a ele. A religião será um fato íntimo, mas sentido, não será classificável através do que se possa ver pelo culto externo, não realizável com exibicionismos. Quando não houver mais vantagem em enganar, ninguém será mais levado a fazê-lo. E a alma, colocada perante a dor, saberá sacudir o fácil ceticismo moderno e deverá na profundidade reencontrar a Deus.
Para compreender aquele estado, de fato, é necessário dar-se conta de qual é a forma mental do homem atual, E a religião é obrigada a respeitá-la. O motivo, na virtude, como no arrependimento, é egoísmo. A moral baseia-se na sanção final do paraíso ou do inferno, isto é, no cálculo da utilidade ou dano, em termos de alegria ou dor. O cálculo é fácil: o pecado é agradável, porque satisfaz a própria natureza inferior. Por isto se pratica. A renúncia para subir é penosa. Por isso se foge a ela. Então não se aceita praticá-la senão em vista de uma satisfação que nos compensa no sofrimento enfrentado e da satisfação perdida para seguir a virtude. É preciso que a alegria que se conquista seja maior do que a que se perde. Dizia S. Francisco: "Tanto é o bem que espero, que cada pena me deleita". Não se renuncia ao menos a não ser para conquistar o mais. Fugir da dor, buscar o prazer, ganhar cada vez mais, esta é a psicologia humana e também a lógica da vida. Nas religiões o jogo é mais vasto, chega mais longe, transportando-se a prazeres espirituais superiores na outra vida, mas o cálculo é o mesmo e baseia-se sempre na presunção de um lucro.
Isto implica uma conseqüência. Este motivo totalmente humano, tão profundamente egoísta, leva perante o ideal a uma moral imoral. Segundo ela, o indivíduo preocupa-se com o respeitar as normas impostas só em função do seu dano ou vantagem, o fundo desta sua moral é que, com semelhante código na mão, ele preocupa-se somente em salvar-se a si próprio. Isto significa que, realizada no seu interesse a estrita obrigação, sente que já cumpriu o seu dever. Se cai o mundo, isto não lhe diz respeito, porque ele já assegurou a própria salvação. Se as conseqüências da sua ação, executadas segundo as regras, são desastrosas para os outros, isto o deixa indiferente. A sua moral limita-se ao seu fato individual do sacrifício realizado e da recompensa a receber, enquanto que quem sente a moral do ideal ocupa-se de fazer o bem ao próximo para proveito deste e não só em função da própria salvação. Cumprido por cálculo o dever imposto, assegurado com isto o futuro, o indivíduo fica livre, sem outras ataduras, para fazer aquilo que quer. Temos assim a moral do fariseu, exatíssima nas formas, mas egoísta e calculadora. Pode-se dessa maneira, pensando só para si, seguir a mais irreligiosa das morais, permanecendo perfeitamente ortodoxo, praticante, perfeito cristão.
Qual é a atual psicologia do crente, com que ânimo se põe ele perante Deus? Quais são, atrás das aparências, as verdadeiras convicções que estão no fundo da alma humana? Aqueles que a moral oficial condena, enquanto ela não toca aos que foram bastante astutos para não se deixar apanhar em falta, são verdadeiramente malvados ou fazem a guerra normal, necessária na luta pela vida, como o impõe o ambiente terrestre? O crente sabe muito bem, por experiência atávica, nele radicada em forma de instinto, que a necessidade mais urgente não é ser bom, mas hábil no próprio interesse, que a justiça, a providência de Deus, a honestidade do próximo são coisas em que não é bom confiar demasiadamente, porque a realidade é diferente. Também os ministros de Deus o sabem. Não é culpa de ninguém se esta é a realidade da vida. É assim que as pessoas de bem, mesmo as mais crentes, pensam, antes de tudo, em fazer os seus negócios terrenos, deixando ao espírito o que resta de espaço vital. Não é que não agrade a ajuda de Deus. pelo contrário, até se sonha com isso e se invoca. Mas sabe-se que é mais positivo defender-se por si próprio, com os mais positivos métodos terrenos. Trata-se de jogos incertos de esperança, como o querer vencer na loteria. Eles são adequados aos débeis que não têm nem força nem inteligência para saber atuar por si só. Quem- possui estes meios os usa para si e, se não os usa, é porque não os possui. Então a religião serve, sobretudo, para recolher a guisa de hospital espiritual, os ineptos à vida. Os tipos biologicamente fortes não gostam de recolher-se nos recintos da virtude e vivem ao ar livre, segundo as leis da Terra, as da fera livre na selva. Eles aceitam a luta para vencê-la, sem religião entre os pés. É assim que de um desencadeamento de egoísmos, sob aparências enganadoras, é feita a realidade da vida social.
À religião resta então uma função de reservas: a de ser um refúgio para velhos, um hospital para doentes e feridos, uma consolação para aflitos, a enfermaria da vida. Estas são as suas retaguardas, protegidas, enquanto os mais fortes se arriscam em primeira linha, no meio da luta. Enquanto tudo vai bem, vive-se lutando descarada e abertamente. Quando vai mal e chega a dor, então nos retraímos da luta, feridos, e vamos à igreja para orar. Quando se perde na luta, procura-se sobreviver criando outra força com a esperança. Então se crê e se invoca a Deus para que nos salve. Esta é uma outra forma em que é utilizada a religião, isto é, como proteção e salvação dos vencidos. Assim eles podem curar as feridas e recuperar as forças para retomar a luta, como também podem encontrar um tipo de trabalho útil, que não seja o de fazer a guerra. A religião pode ter também uma função no plano animal humano. O homem, conforme as suas qualidades e condições, sempre a utiliza de algum modo. Se ele é forte, se liberta dela para lutar sem obstáculos; se é astuto, explora-a com o engano; se é débil ou vencido, se refugia nela em busca de proteção. Deixa-a pregar à vontade, escutá-la quando a religião nos quereria sinceros e desarmados. Mas cada um sabe em que mundo vive e que nele há bem outras coisas para fazer. E se existe alguém ainda com tão boa fé que queira viver aqueles ditames, a dura realidade rapidamente o dissuade, porque ele será esmagado pelos mais fortes e astutos, e porque de fato se encontrará em dissonância com aquilo de que estão convencidos e que praticam os pregadores de virtude, e num contínuo mal-entendido fora das bitolas sobre os quais caminha a sociedade humana.
Vejamos agora como o biótipo humano, sendo de tal natureza e feito para viver em semelhante ambiente, se acerca de Deus na oração e de que modo estabelece as suas relações com Ele. Claro que o homem não pode fazê-lo senão com a sua forma mental. Então ele primeiro fará os seus negócios no mundo, depois, se as coisas andam mal, entrará na igreja à procura de conforto e ali encontrará quem deveria ser o médico da alma, o qual, no entanto, vivendo deste trabalho, deve lutar para manter o domínio espiritual do qual a sua vida depende. O médico então procede à lavagem da alma do doente, fazendo-se juiz dele, transformado em pecador penitente e receitando-lhe o remédio que deveria curá-lo, na forma de penitência com a qual ele, sob ameaça de penas na outra vida, paga o débito contraído com Deus. Assim o pobrezinho foge de uma dor presente para ver surgir perante ele uma outra dor futura, sai da luta para defender a sua vida neste mundo, para entrar em luta para defender a sua vida no outro mundo. Em ambos os casos permanece a mesma forma mental, isto é, continua-se a luta com os mesmos métodos, conduzindo-a até perante Deus. De resto o homem não pode possuir senão uma mentalidade e é natural que a utilize para todos os usos da sua vida, tanto materiais como espirituais.
A religião satisfaz o desejo de continuar vivendo depois da morte, mas então também depois da morte lhe deixa o risco de cair na dor. O motivo é o mesmo: não há vida sem possibilidade de dor. O subconsciente por dura experiência o sabe bem e não o esquece. Eis então que o crente, na oração, se aproxima de Deus para salvar a sua vida no além, como no mundo luta para salvá-la no presente. Então como ele concebe a Deus? A idéia de pecador e inferno é certamente útil para a sobrevivência da casta sacerdotal, mas faz de Deus um senhor armado de sanções penais, que pode aplicar porque é o mais forte. Idéia aceita porque é fácil de conceber, porque é uma reprodução da do soberano terreno. Perante ele somos súditos, dependentes do seu beneplácito, que é mistério indecifrável; não se tem direitos, mas só o dever da obediência. Ele outorga dons e graças, a seu arbítrio, segundo critérios ignorados. Não resta senão inclinar-se e aceitar, ficando na obscuridade. Fala-se de justiça, mas nos fatos ela pouco se vê aplicada na Terra, torna-se portanto difícil imaginar que, noutro lugar, isto possa suceder. Talvez o seja no céu, mas é coisa que fica longínqua, quem sabe onde e quando, não é portanto controlável nem persuasiva.
Observemos a realidade. Se roubo e se o faço de maneira a que não me descubram e não tropece com a justiça, e assim me torno rico, o resultado é que vivo bem e sou respeitado. Se Deus está presente e este é o resultado, isto significa que se o sei fazer, Deus me recompensa deste modo. Este prêmio me prova com os fatos que agi segundo a Sua Vontade. Depois de me ter premiado deste modo, que me pede Deus ainda? Que eu me arrependa e o venere. Isto também é fácil, com confissões e práticas religiosas, depois do que fico em paz. Por que não resolver assim o problema se os resultados são tão bons? Não são estes os melhores e não é instintivo no subconsciente o procurar o caminho mais fácil para proteger a vida? Se Deus, nos fatos, deixa que na Terra vença o mal e se Ele é o dono, não corresponde ao servo ensiná-lo e exigir retidão. Seria orgulho, portanto deveria ser castigado. É melhor então, com todo o respeito, seguir a corrente, estando de resto a virtude no obedecer. Aceitamos a lei da Terra, porque esta é a que aqui ordena e não a do céu. Inclinemo-nos e desfrutemos da situação. Este é o natural raciocínio humano.
É inevitável que, estabelecida a posição na forma de relação entre patrão e dependente, ela traga consigo os defeitos que lhe são inerentes. De tal premissa não pode derivar outro tipo de conseqüências. O servo é o débil a quem corresponde obedecer. Ao patrão que é o mais forte, os direitos; ao outro, os deveres. Estabelecidas as relações entre homem e Deus, em semelhante base de luta entre egocentrismos opostos (devida certamente à involução humana, mas nem por isto menos real), ao súdito não lhe resta senão aplicar a Deus os métodos que na Terra usa para com os seus semelhantes. De resto isto é aquilo que o instinto lhe ensina. Então, tratando-se de um patrão mais forte, não resta senão inclinar-se para cativá-lo e obter favores. É necessário ir dizer-lhe que somos bons como ele quer, mas ter o cuidado de não o ser a sério, porque sabemos bem que seremos devorados. De resto o exemplo dos pregadores nos ensina que estas coisas são para serem ditas e não para serem feitas.
Aqui tratamos de explicar-nos como as religiões tendem a transformar-se em hipocrisia. Essa é a conseqüência deste modo de conceber as relações com Deus, segundo a forma mental humana, que freqüentemente é também a do clero. Portanto não colaborar com Deus, com a face descoberta, claramente e sem buscar escapatórias; não adular para obter graças devidas não a um mérito, que num regime de justiça é direito, mas ao capricho de um patrão, porque é o mais forte, oferece o que quer e a quem quer. O servo aspira a tornar-se um favorito e, faz-se de bom para tornar-se agradável e assim obter vantagens. Nasce daí um obséquio que tende a transformar-se em tentativa de corrupção do poder. Esta forma mental envolve o ideal quando desce à Terra e trata de corrompê-lo para adaptá-lo a si própria. É natural que o homem se coloque por si só em posição de servo, porque é nesta forma de relações que ele se habituou a viver na Terra. E o que pode no plano humano fazer um servo, se a arte de enganar o patrão é a que a sua posição lhe ensinou, a arma com a qual pode e sabe melhor defender-se?
Exigir um comportamento diverso seria pretender que o homem não fosse o resultado da longa história vivida por ele, e que ficou estampada no seu subconsciente. É verdade que com tal psicologia, conexa com o espírito de domínio, a classe sacerdotal salvou a sua sobrevivência, mas pagando-a com estas conseqüências espirituais. Daí provém uma oração com a qual se trata de cativar a simpatia do Senhor, trepando pela escala hierárquica dos santos, interpostos pela intervenção amistosa, pela qual se pode ser perdoado por um mal que se continua a fazer, por estar convencido de que ele é indispensável para sua sobrevivência, perdoado por um bem que não se realiza, porque não se é ingênuo para arruinar-se, ao fazê-lo, num mundo semelhante. Com os poderosos não se raciocina. Por serem fortes, eles têm o direito de estabelecer a verdade e de impô-la aos outros.
Tudo isto é certo no ambiente e nível humano. O que existe por cima dele ou nas profundidades já o explicamos nos volumes: O Sistema e Queda e Salvação. O fato é que existe uma Lei. estabelecida por Deus, escrita nos fenômenos, funcionando sempre e em toda a parte, Lei que começa por ser respeitada por Ele, porque assim obedece só a si mesmo. Esta Lei é o pensamento de Deus fixado de modo impessoal, sem egocentrismos, justa e incorruptível. É uma lei de harmonia, cuja presença se sente, deslocando-se evolutivamente em direção ao alto, e superando a atual forma mental humana.
Numa humanidade mais evoluída as relações entre homem e Deus serão concebidas em forma totalmente diversa. O erro atual está em crer que com Deus não se raciocina, o defeito está em não sentir o Seu pensamento que, no entanto, se expressa em todo o lugar e momento. Não se trata de egocentrismos rivais. mas de colaboração no interesse do próprio operário; não se trata de luta, mas de unificação que é útil à vida; não se trata de comando e obediência, mas de amizade inteligente. Nos planos mais altos da vida, a psicologia animal-humana da luta torna-se um absurdo contraproducente. Eis que então a relação entre os dois termos, homem e Deus, muda completamente de natureza. Nasce daí outro tipo de religião e outro estilo de oração. Mas para chegar a isto o homem deve superar a animalidade na qual ainda está submerso. Os que podem compreender tudo isto são raras exceções. Assim se continuará reduzindo o ideal às dimensões que se adaptam à maioria, segundo a sua forma mental.
Trata-se de alcançar um modo mais evoluído de conceber a vida, no qual o instinto de luta, o espírito de domínio, serão superados; a idéia de egoísmo e arbítrio de um patrão não terá mais sentido, a imposição forçada não será mais praticada. Então a vida será dirigida por uma justiça super-humana, estabelecida por uma Lei e funcionando conforme os equilíbrios de uma ordem soberana, na qual tudo conscientemente se coordenará e colaborará. No passado a ordem não pode existir a não ser imposta por coação, porque o mundo era caos, e os homens rebeldes. Então Deus não podia ser concebido como centro de uma ordem, senão como patrão absoluto no caos. Este é o ponto de partida, aquele é o ponto de chegada da evolução do conceito de Deus. Moisés o concebeu naquela fase inicial. Pôde-se assim começar a construir uma ordem, mas com meios coativos, que não foi compreendida nem convenceu. No entanto cumpriu a sua função e serve ainda, porque, evoluindo de semelhante estado inicial, se pode alcançar uma ordem cada vez menos coativa e cada vez mais compreendida e que convença, até atingir a fase orgânica da vida, que é a da cooperação inteligente e espontânea. Mas, para chegar a isto, o homem tem de superar a sua atual forma mental.
Então a velha psicologia religiosa, com a qual hoje ainda a alma se coloca perante Deus, cairá. O crente compreenderá que não se encontra perante um Deus que se pode enganar antropomorficamente e já não pensará em enganá-Lo. A tal modo de pensar, se substituirá a adesão espontânea a uma lei justa, que é útil respeitar. A mentira e a desordem não terão mais razão de ser, por- que se compreenderá que não convém, com tais métodos, fazer mal a si próprio. A vantagem residirá em estar unidos, o dano na luta entre rivais. Entender-se-á então que o amor ao próximo como a si mesmo é o negócio que dá mais lucro. O egoísmo será deixado aos involuídos, incapazes de compreender mais. Deus não será entendido como uma ameaça que se teme ou um patrão para enganar, mas como a primeira fonte de todo o nosso bem. A deslocação de posições é fundamental. Não se gravita mais como hoje em direção ao AS, mas em direção ao S. Deus não será um patrão que se sobrepõe para dominar, mas representará o mesmo que o cérebro e o coração em nosso corpo, dos quais depende a nossa vida. Então desaparece a idéia de domínio e de sujeição, devidos a interesses opostos e fica a da cooperação para um único interesse, o mesmo para todos. A posição do crente perante Deus toma-se então de espontânea obediência por livre e convicta adesão, de inteligente compreensão, confiança, unificação.
Antes de encerrar este tema, observemos outros aspectos da técnica usada pelas religiões para realizar a descida dos ideais. Sabemos que se trata de uma importante função biológica que elas executam em sentido evolutivo. É dever da classe sacerdotal o de proporcionar os meios para que este fenômeno possa realizar-se. O ideal é uma realidade futura, ainda a realizar. Trata-se de antecipar a existência de mais evoluídas formas de vida, que na realidade ainda não estão em ação. Elas então são criadas em primeiro lugar no pensamento com um ato que se chama "fé". No processo criador, o primeiro momento verifica-se na mente, da qual depois desce até tomar forma concreta na realidade exterior. Para este objetivo deifica-se um modelo humano e, assim sublimado, ele é colocado no mais alto dos altares para expressar que deve estar por sobre os nossos pensamentos, porque está por cima de nossa vida como uma meta a alcançar no caminho da evolução. À força de superações devemos tomar-nos iguais a esse modelo. Por isso se reveste de símbolos esplendorosos e se coloca num campo de luz e beleza. É apresentado com o ornamento de todas as virtudes, para que atraia- pela sua perfeição. Através desta representação, forma-se na mente uma imagem do modelo, na qual se concretiza. Efetua-se assim o primeiro passo da realização do ideal, pelo fato que desse modo, ele já começou a existir como realidade mental.
Uma vez fixada a meta, já não resta outra coisa senão procurar alcançá-la. O caminho está traçado e basta segui-lo. Pode-se então pôr em ação a afinidade emotiva que favorece a atuação de novos estados de ânimo. Coração, sentimento, paixão, podem dar um salto para a frente. O que ainda não existe na realidade material, pode assim encontrar-se como realidade espiritual, da qual derivará depois a material. Vemos manifestar-se o poder criador da fé. Agarrando-se ao ideal colocado no alto e tratando de elevar-se até ele, pensando-o e perseguindo-o, a realidade da vida transforma-se, evolui e se eleva. Uma vez criada a nova realidade psicológica, esta modelará também a exterior, concreta, construindo-a segundo o tipo que se pensou e se quis. Assim o ideal submete a vida a um contínuo processo de sublimação, lançando-a cada vez mais para o alto, em direção ao S. É assim que surgiu e se está fixando a idéia de Deus, de bem, bondade, justiça, num mundo animal feito de força bruta, mal, ferocidade, injustiça.
Com esta técnica começa-se a acender o desejo de um mundo melhor, de grande valor, porque desejar significa tender à sua realização, mesmo que represente uma realidade que ainda não existe de fato. Eis como a utopia de hoje está destinada a tornar-se a realidade de amanhã. Trata-se de uma técnica evolutiva, na qual estão chamadas a funcionar as forças espirituais para chegar ao resultado positivo de criar o homem novo. Tudo isto está implícito nas leis da vida que quer ascender. É sua insuprimível necessidade a de evoluir para um futuro mais alto. Por isso a fé é também uma necessidade e fator biológico, porque, com os seus poderes criadores, é elemento determinante do fenômeno da evolução. Efetivamente, as religiões mudam, mas a religiosidade permanece; mudam as crenças, mas fica a fé; variam os grupos sacerdotais, mas fica o sacerdócio. Com o tempo os meios de expressão acabam por sobrepor-se à idéia e a substituem, sufocando assim o primeiro impulso da vida, que por sua vez destrói esses meios, tornados já inúteis, porque vazios da idéia, seu princípio vital. Novos instrumentos são então chamados a cumprir a função de fazer descer o ideal à terra. porque os velhos não são um veículo, mas um obstáculo. Não obstante a função fica, mas confiada sucessivamente a órgãos que de- vem ser cada vez mais evoluídos para poder cumprir um trabalho também cada vez mais evoluído. Assim avança a grande marcha da evolução com a descida dos ideais, através do canal das religiões. A técnica é de tipo espiritual, interessa, pois, à psicologia. Dela constituem parte importante, as imagens, o simbolismo, a sugestão, a projeção do pensamento, toda a encenação do rito. Esta tarefa exterior serve para realizar outra, interior, que é a formação da imagem mental na qual a idéia é personificada e levada do plano espiritual, onde para o imaturo é irreal, ao plano sensório onde para este da é real.
A idéia em si é abstrata e foge à compreensão das massas. É necessário levá-la com representações concretas ao seu nível mental. Precisa-se pois, da construção de formas materiais que sirvam como instrumento de expressão da idéia, de modo que ela possa ser percebida com os sentidos. Com semelhantes meios se vai construindo o edifício mental estabelecido pelo ideal. Eles constituem o seu ponto de partida. A representação exterior outorga a imagem que concretiza a idéia; as práticas exteriores, com a repetição, a fixam; a fé abre as portas da alma a fim de que a idéia entre e ali fique. Por isso existe o rito e se insiste em praticar e crer. Estes são os momentos de uma sábia técnica psicológica que os representantes terrenos do ideal usam para se afirmarem no mundo, com o objetivo de criar novas formas de vida.
Trata-se de educar as massas. Aqueles que raciocinam, analisam e compreendem, são poucos. Elas recebem passivamente no subconsciente, aceitam por sugestão, sem compreender, como sucede na domesticação dos animais. Aprendem por repetição, sem pensar, tratando de esforçar-se o menos possível, continuando por inércia a moverem-se mecanicamente, ao longo do caminho dos velhos instintos, traçado pelo passado. O fenômeno é psíquico, mas nem por isso é consciente, o que não impede que ele funcione e alcance a sua meta. Por isso notamos anteriormente que a religião insiste nessa posição mental que se chama fé e dá grande importância ao fato de praticar, que serve para fixar o novo à força de repeti-lo. Estes são dois momentos da técnica psicológica dedicada a realizar, por assimilação automática, a descida dos ideais. Se na fé se elimina o controle racional, isto não significa que ela não tenha uma função construtiva. Mais ainda, se sem aquele controle o consciente é usado, pelo contrário, em atitude passiva, é precisamente para facilitar a receptividade do espírito e com )to a admissão de novas idéias. Para este objetivo o discutir com análise crítica pode ser contraproducente. A finalidade é de cumprir uma função educadora não de conquistar conhecimento, desenvolvendo a mente. Para quem não sabe pensar, colocar-se no terreno das análises pode só gerar confusão e cisões. Por isso o Catolicismo afirma uma verdade revelada que não se admite discutir, e prefere a inércia mental do fiel que crê e não pensa, cego mas obediente, ao desejo de conhecer a verdade por parte da mente aberta, mas independente. A massa é feita de primitivos que não sabem conduzir-se e ao Catolicismo serve esse tipo corrente, usando as formas pedagógicas a ele adequadas, para levá-lo mais adiante. É natural, no entanto, que para aquele que se encontra, por maturação própria mais adianta- do, semelhantes métodos façam atrasar em vez de fazer avançar. É assim que os mais evoluídos não podem marchar nas filas sem ficai- espiritualmente sufocados. Por isso eles permanecem religiosos, mas sem intermediários, os quais, se não são evoluídos, abaixam tudo ao seu nível, ainda que sejam sempre preciosos e indispensáveis para educar os menos evoluídos.
É assim que com a sugestão por meio da pregação com a longa repetição de pensamentos e de atos conexos a determinados estados de ânimo, com esta técnica que vai do externo ao interno, algo se imprime e se fixa no inconsciente. Em virtude de uma tendência, diria celular, à repetição rítmica, estabelecem-se mecanicamente automatismos, que depois se tomam hábitos, por fim instintos, o que significa criação de novas qualidades na personalidade que, enriquecendo-se, deste modo evolui. Esta é a técnica com a qual a vida conserva e armazena as suas experiências, a técnica proporcionada ao biótipo dominante, hoje ainda usada, funcionando em estado de inércia mental, por sugestão e imitação. Técnica sábia por ser adequada ao terreno no qual se trabalha, sabendo utilizar os seus escassos recursos, o que não é fácil, tendo que satisfazer a necessidade fundamental, que é a de fazer evoluir. O movimento está canalizado segundo a Lei e aponta em direção à grande meta, Deus. Tudo se encontra no seu devido lugar, adequado às condições do ambiente, à natureza humana, ao seu grau de desenvolvimento, à finalidade a alcançar. Eis que o Catolicismo usa a técnica mais adequada, dada a involução humana, para realizar a descida dos ideais à Terra. Estamos ainda nos primeiros graus da espiritualidade, nos primeiros passos de um caminho imenso. Mais não se pode pedir ao homem atual. As realizações espirituais possuídas conscientemente têm que se alcançar ainda no fundo e entretanto a fé as antecipa em forma de esperança e de sonho. A atuação do ideal está ainda longínqua. Cristo, do alto, observa, e espera, e o homem na Terra caminha, caminha, para chegar a realizar o reino de Deus.
Concluamos este escrito. Percorremos um longo caminho observando o trabalho que executam as religiões, sobretudo o Cristianismo, para realizar o fenômeno da descida dos ideais na Terra. Olhamos imparcialmente, não para julgar em base a teses preconcebidas ou interesses de grupo, mas sobretudo para compreender o significado do que vemos suceder no mundo. Se de qualquer maneira se devia fazer um diagnóstico, não se podia deixar de ver também o mal. Mas, onde o encontramos também vimos o bem para nos agarrarmos a ele e salvar o que se podia salvar. Apesar de tudo a nossa visão é otimista, porque temos fé na vida, na sua sabedoria que é a de Deus, que a dirige. Por dentro desta nova perspectiva, trabalhamos em sentido positivo, construtivo e não em sentido negativo, destrutivo. Falamos claro porque o mundo tem necessidade de clareza e os problemas resolvem-se, enfrentando-os, e não esquivando-os ou escondendo-os.
É necessário salvar a substância das religiões, porque os seus edifícios terrenos ameaçam cair. É necessário compreender que elas não podem liqüidar-se como hoje se quereria, porque cumprem uma função biológica fundamental: a de realizar, com a descida dos ideais, a evolução. A ciência, o materialismo, o comunismo, assaltam as velhas construções da fé que se desfazem na mente das massas, enquanto o mundo não tem ainda nada que as substitua no campo espiritual. O conservadorismo prudente, isto é, o ficar protegido dentro da casa quando esta se nos cai em cima, pode significar a morte. Não é honesto alimentar a hipocrisia de moda, colocando-se na sua corrente, porque vivemos numa hora decisiva e a via dos enganos pode ser catastrófica. Os velhos métodos para manter de pé as religiões e o seu poder, não servem mais. A vida deixa sobreviver somente aquilo que lhe é útil para evoluir e o campo espiritual é biologicamente importantíssimo. Hoje, as aparências já não bastam, as astúcias não persuadem. Desejam-se verdades positivas, sólidas, convincentes, para benefício das massas e não só de uma classe dominante.
O catolicismo procura atualizar-se. Mas não bastam os retoques. É necessário renovar a forma mental para reencontrar a substância sepultada sob as formas e recomeçar desde o princípio. É preciso regressar às fontes, ao Evangelho esquecido, tomando Cristo a sério e tirando do meio tudo aquilo que em tantos séculos foi sobreposto a Ele pelo homem e foi interposto entre Ele e nós. É necessário exumá-lo do túmulo dado pela mecânica da burocracia eclesiástica. A tarefa de salvar a idéia de Cristo corresponde ao Cristianismo.
Hoje, saltam aos olhos as contradições que antigamente passavam inobservadas, como pregar o amor evangélico e abençoar as armas, exaltar a pobreza e possuir riquezas, difundir o ideal com os métodos de luta política. Por sua parte a ciência, com a medicina por um lado, defende a vida, por outro, constrói a bomba atômica para destruí-la, e as religiões não têm nenhum poder para impedi-lo. Vivemos numa época de desagregação moral. Mas será o mundo imoral porque está corrompido, ou porque, hoje se deixa ver tudo por uma sã necessidade de sinceridade, como reação à hipocrisia do passado, que deixava tudo bem encoberto? Não será mais honesto falar abertamente, para que sem fugas e ficções tudo seja conhecido e enfrentado e possa ser melhor resolvido? Não será isto uma. necessidade de destruição do velho, mesmo do bom, contanto que se limpe a sujeira, onde tudo estava misturado?
É verdade que se nota em cada campo uma tendência à superação, que é ao mesmo tempo revolta destrucionista contra o passado e ânsia de encontrar qualquer coisa de novo e melhor. Mas, se não se conseguir criar algo melhor que substitua o que se destrói, esta ânsia de renovação nos deixará cair no vazio.
Compreende-se e justifica-se esta revolta. Mas ela constitui só o lado negativo do fenômeno. Ele, dada a ação lógica da vida, deve ter também o seu lado positivo. Não podemos, pois, deter-nos no seu aspecto destrutivo; se não quisermos ser unilaterais, temos de ver também o seu aspecto complementar, construtivo. Portanto nada de pessimismos nem filosofia de desespero, hoje em moda. Tudo isto é para os espíritos decadentes. Nós cremos na vida, no ideal, no futuro. Precisamente porque nos encontramos no meio da negatividade destrucionista, devemos ser positivos e construtivos. Neste escrito, a nossa crítica tem valor somente como meio de renovação e melhoramento. Exatamente porque o mundo está em descida, é necessário executar o esforço da reascensão. Pode-se sentir o atual desespero destrutivo e até tomar parte nele, mas só como uma fase que tem de atravessar para sair dela melhor, para curar-se e não para morrer. Estamos de acordo em que os velhos ideais, esplêndidos e altissonantes, estão reduzidos a hipocrisia, com o mau cheiro da mentira, mas precisamente por isso devemos purificá-los e criar outros novos com os quais se possa avançar.
Se o mundo está corrompido, há que reagir para salvar-se. Se a reação é em descida em vez de o ser em subida, é o fim. É necessário empreender o esforço da reascensão. Os débeis acabam no ateísmo, na inércia, nas drogas, no vício, no desespero, no suicídio. A esta tendência opomos a esperança, a fé criadora, a superação no espírito, a potência do ideal. O caminho da evolução está traçado, em subida não em descida. É necessário emergir em direção à vida que está cada vez mais no alto, e não deixar-se tragar pelo pântano, o que significa morte. Nestes escritos traçamos no alto um ideal e a ele nos agarramos para ascender, porque queremos a vida, sempre mais vida. Rebelamo-nos ao retrocesso involutivo, a grande ameaça atual em direção à qual tantos se lançam inconscientes e, aos ataques do Anti-Sistema respondemos com um grito de guerra em nome do Sistema.
Se os velhos ideais, reduzidos a poder do subconsciente instintivo, foram abaixados por este seu nível animal, temos de retomá-los e revivê-los levantando-os até ao plano racional e científico, sustentados pelo controle do pensamento. É preciso compreender que, se os ideais decaíram, não é porque foram falsos mas pelo abuso que se fez deles. Corrigido o abuso eles valem e servem à vida. Ficar no nível de uma ciência materialista espiritualmente agnóstica, significa não compreender a vida e querer deter a evolução. O futuro pertence a quem luta para avançar.
O mal é que, num mundo que se afunda, a reação de muitos consiste em deixar-se afundar cada vez mais, em tornar-se piores, acelerando a descida para perder-se em vez de salvar-se. Mas é o tipo de reação que mostra qual é o valor biológico do indivíduo, estabelece qual é o seu nível evolutivo e o seu futuro destino. Sabemos que a vida não deixa subir aos que não o merecem. Hoje é a hora em que se fazem as contas. Há um obstáculo a superar. Ele está interposto entre dois planos de evolução. Quem não o souber superar não passará e ficará em baixo, em seu inferior nível biológico
Este é o fenômeno a que estamos assistindo. É a hora do exame e do juízo. A vida está efetuando uma seleção para eliminar os indivíduos, nervosa mental e espiritualmente ainda não maduros, não adaptados a saber viver num plano evolutivo mais avançado. Hoje é hora do salto. Quem preparou para si mesmo as pernas salta para a frente; quem não as preparou fica atrás. Tem lugar a separação: à frente vão os evoluídos para formar um humanidade nova, verdadeiramente civilizada; atrás do obstáculo que não souberam superar, estão os involuídos, qual lastro e camada baixa da humanidade, à procura de outros níveis inferiores. Conhecemos os métodos da vida, que sabe colocar cada coisa em seu lugar, com o seu verdadeiro valor. No passado tal seleção realizou-se no plano da matéria e força bruta. O biótipo que a vida queria construir era o homem fisicamente forte, o guerreiro feroz e vencedor, domador de um mundo inimigo. Hoje a seleção realiza-se no. plano nervoso e cerebral, da inteligência e do espírito. O homem está adquirindo novas qualidades mais requintadas, potencializa-se e sensibiliza-se, está aprendendo a trabalhar em novos campos com novos meios, dominando novas forças. Isto exige outra consciência e conhecimento, poderes superiores de controle para dirigir as novas capacidades. Não mais cavaleiros da espada, mas da mente e do pensamento, da alta tensão psíquica, como é a vida moderna.
O homem novo não pode maus aninhar-se nas posições oferecidas pelos valores tradicionais, baseadas num consentimento convencional construído em tomo delas, antigamente necessário para dar uma certa estabilidade à sociedade humana em períodos de longa incubação. A tempestade atual destrói os ângulos mortos nos quais podiam entrincheirar-se os comodistas de antes. Os ideais do passado representam um produto cansado, já demasiadamente explorado, e o homem novo encontra-se perante problemas imensos e deve resolvê-los. Terminou o período da inércia espiritual conservadora no qual a animalidade, satisfeita pela vida vegetativa, não se propunha problemas. Hoje o Comunismo assoma para acabar com todas as religiões. Antigamente a propriedade era garantida e ficava numa família por séculos; hoje nos perguntamos quanto durará. Antes só alguns iam à guerra e os políticos que a declaravam ficavam em casa; hoje a bomba atômica destrói tudo e está suspensa sobre as cabeças de todos. Antigamente poucas idéias bastavam para viver e se transmitiam de pais para filhos; hoje a ciência com as descobertas e a técnica desloca cada dia os limites do conhecimento e as condições de vida. Antigamente dormia-se sobre o leito da tradição; hoje se estremece no caminho das revoluções.
Ai de quem se lança por atalhos para fugir ao esforço da ascensão no momento decisivo da curva, quando a evolução se dirige a uma solução. O período atual não é de espera e repouso. Quem não enfrenta o caminho que sobe pela encosta íngreme do monte, fica atrás, superado. Só a quem for para a frente, pertencerá um melhor futuro. Esta nova forma de seleção biológica não é senão o último momento de uma maturação milenária. Nesta transformação evolutiva aflora aquela longa preparação e irrompe, exigindo a sua conclusão.
Está escrito nas leis da vida que ela caminhe neste sentido. Semelhante escolha do caminho põe em jogo o problema da salvação. Deve-se avançar porque a vida não é um fim em si mesma mas está feita para evoluir, subindo cada vez mais em direção a Deus, em Quem se conclui a grande marcha ascensional. A salvação conquista-se de grau a grau, elevando-se cada vez a um nível biológico mais alto. A humanidade está saindo da menoridade e prepara-se para tomar as diretivas da evolução no seu planeta. A vida é vida só enquanto é uma superação contínua. Vai-se do AS ao S. Na curva atual tem lugar a passagem da esfera de atração do AS à de atração do S, isto é, do estado de caos ao de ordem orgânica. A humanidade se encaminha para a harmonização, a colaboração, a unificação, condições em que será superado e deixado para trás o tradicional estado de luta com todos os erros e dores com eles conexos. Trata-se de um tipo de vida mais alto e feliz, mas ele não se alcança sem um esforço que, no entanto, traz consigo a sua justa recompensa. Ela consiste em poder sair das camadas baixas da animalidade para transformar-nos em verdadeiros homens e amanhã em super-homens.
XII
CIÊNCIA E RELIGIÃO
A humanidade necessita chegar a uma religião científica, como também construir uma ciência que entenda e explique as religiões, sustentando-lhes o conteúdo; para melhor orientar-se, tem necessidade de utilizar todos os valores biológicos, isto é, todo o conhecimento, energias e idéias que possam ser úteis à vida. Hoje, pelo contrário, encontramo-nos ainda numa fase de inimizade entre ciência e fé. No entanto, a verdade é uma só, e estas não são senão duas diferentes maneiras de vê-la e apresentá-la. Cada um, partindo exclusivamente do seu ponto de vista, julga possuí-la toda e assim contrapõe a própria visão de um aspecto da verdade às outras visões e aspectos, condenando-os como erro. Daqui derivam atritos, exclusivismos, sectarismos nos quais se expressa, também neste campo, a lei da luta pela vida.
É necessário unificar o pensamento humano com uma síntese que possa fundir as especializações analíticas da ciência com as verdades intuitivas universais das religiões, não demonstradas mas complementares das científicas, racionalmente demonstradas. Hoje, o conhecimento está dividido, é unilateral, incompleto. Torna-se necessário uni-lo, fundi-lo numa verdade única que o abarque todo; tanto o particular como o universal. O atual espírito de análise deve ser integrado com um paralelo espírito de síntese, se queremos que a ciência não se perca em detalhes práticos e utilitários, sem alcançar o essencial e o universal. Hoje, a ciência tende a um tecnicismo dirigido a fins concretos. Escapam-lhe assim, cada vez mais os valores morais e espirituais, que no entanto são indispensáveis à vida para orientar-se e dirigir-se. Se não se obtiver uma visão de conjunto que, além da técnica do funcionamento dos fenômenos, nos diga também o porquê e a finalidade de tal funcionamento, ficaremos sem um princípio que nos guie em nossa conduta, inclusive na sábia utilização dos produtos da ciência. O cientista desdenha ser filósofo. O filósofo não é cientista. Uns e outros prescindem das religiões. Tanto progresso intelectual acabará numa torre de Babel onde será impossível compreenderem-se uns aos outros e coordenar os próprios esforços, fundindo o conhecimento numa única sabedoria? Não basta ver os fatos isolados. É necessário compreender também as suas relações e o significado do seu conjunto.
Que faremos de tantos especialistas isolados, tendentes sempre mais a separar-se, quase a eliminarem-se como rivais, dedicados a cavar no terreno da investigação um buraco fino e muito profundo, sem saber fazer surgir uma visão geral de todo o terreno sobre o qual trabalham? É necessário conhecer também isto, para se saber o que há à volta daquele ponto que se está aprofundando. Isto é necessário num universo orgânico no qual tudo está ligado num conjunto através de proximidade, causalidade, afinidade, e tanto mais repercute em todo o resto quanto mais lhe está próximo no espaço e no tempo. Assim, pelo contrário, se isola o fenômeno particular do total e universal. A ciência clássica distingue, enquadra, mas assim separa em vez de unir os elementos do todo. Para ela o resto é metafísica. Assim, separando as coisas nos seus elementos constitutivos, e os fenômenos nos momentos do seu desenvolvimento, não se obtém o conhecimento senão apenas uma sua parte ou aspecto.
Para o cientista, o filósofo não é positivo. A filosofia não merece atenção porque se ocupa de coisas afastadas da realidade. Para o filósofo, o cientista é um ignorante dos problemas universais. Se o filósofo se torna cientista, é julgado um incompetente. Se o cientista se torna filósofo, este o recusa porque não usa a linguagem e a técnica conceptual da investigação filosófica. Não obstante, sem a cooperação de todos os investigadores e sem a confluência de todos os rios da sabedoria não se conseguirá ver qual é o lugar que corresponde ao homem no universo da matéria, da vida e do espírito, não se conseguirá captar à completa dimensão biológica do homem. Uma visão limitada ao particular é uma visão incompleta.
Deste modo, a ciência deixa de lado fenômenos de imenso valor humano, como as indemonstráveis intuições das religiões que no entanto levaram a conseqüências históricas, sociais, políticas, de suma importância perante o fenômeno evolutivo da humanidade. Entre tais afirmações, sobretudo a judaico-cristã soube inserir o conceito de Deus na vida do homem, como princípio unitário, síntese máxima e ideal orientador da vida: visão de conjunto que permite uma compreensão mais ampla e profunda da história e do fenômeno social, na medida em que este não é senão um momento do fenômeno vida, e a história não é senão um momento do fenômeno evolução. Só assim o homem pode estabelecer a sua posição no tempo em relação a momentos muito longínquos, o que dá à sua existência um significado muito mais amplo e completo. Será um progresso imenso para o homem ampliar as dimensões de tempo e espaço em função das quais ele vive. Ele se encontrará existindo assim em função de um universo mais vasto e mais conhecido do que aquele em relação ao qual ele até agora viveu, o que lhe oferece possibilidade de uma sempre maior orientação, segurança e potência.
Uma visão de conjunto, síntese universal, pode dar-nos a concepção unitária do todo, na qual não poderá deixar de desaparecer a atual cisão do pensamento entre o aspecto materialista e o espiritualista da mesma verdade, superando assim aquela fase mais primitiva do conhecimento, qual seja a concepção separatista. Se hoje, como dizíamos, o cientista filósofo é condenado pelos cientistas porque não é bastante técnico e positivo, e pelos filósofos porque não sabe usar a linguagem e os conceitos filosóficos, pelo contrário a sua função é a de não ficar encerrado em nenhum dos dois campos, mas a de espraiar-se em ambos, dando às especulações da filosofia as bases positivas da ciência e elevando as constatações positivas da ciência até às abstratas generalizações da filosofia. Trata-se de alcançar uma fusão na qual cada uma das duas partes dê a sua contribuição completa, e não fazer uma união à força, na qual, em vez de cooperarem, procurem prevalecer uma sobre a outra, adaptando-a aos seus próprios objetivos. Não é um aproveitamento e deformação da ciência para fazê-la concordar com a filosofia ou religião, concordância do materialismo com o espiritualismo, nem uma contorção ou mutilação da filosofia ou religião, para fazê-la concordar com a ciência, deformação do espiritualismo para fazê-lo aderir ao materialismo. Nada de confucionismo ou acomodações oportunistas, mas convergência, através da qual as duas visões, de opostas se tornam complementares, e em lugar de lutar para eliminar-se, acercam-se para se compreenderem e colaborarem. Superando as negações mútuas, trata-se de somar e fundir ambas as afirmações. A ciência pode oferecer a parte experimentalmente provada e positivamente segura. As religiões podem oferecer o que a ciência não pode dar porque lhe falta, aquilo que as religiões alcançaram com outros meios, que a ciência não os possui. Quem decidiu que a intuição, a inspiração, a revelação não podem representar um meio de investigação e oferecer uma contribuição ao conhecimento? Este isolamento numa dada visão da verdade, fechando-se os olhos porque não se quer ver o que possa haver mais além, um tal exclusivismo e separatismo, são qualidades do primitivo egocêntrico e involuído, significam miopia, psicologia limitada, estreiteza de horizontes conceituais, aprisionamento mental apriorístico. A evolução do pensamento deverá abandonar esta sua atrasada fase e chegar assim a possuir a realidade numa dimensão mais completa. Nada nos autoriza aprioristicamente a afirmar que o método de investigação usado trela ciência deva ser o único e definitivo, e que ele, por evolução do instrumento psíquico humano não possa no futuro ser superado.
A nova realidade a que a ciência deverá positivamente chegar amanhã não poderá limitar-se à dimensão matéria. O problema do espírito existe e não se resolve, negando a sua existência, como até agora o fez a ciência materialista. É justo que se deva ser positivo e por isso evitar perder-se em lucubrações filosóficas fora da realidade. Mas só porque pelos caminhos da ciência não se consegue alcançar alguns aspectos da vida, e porque a metafísica não os explica em forma positiva, não se tem por isso o direito de suprimi-los desdenhando considerá-los e interessar-se, tomando conhecimento deles. Por que ao cientista - quando recolheu e tem diante dele uma série de fatos garantidos como verdadeiros, porque experimental e racionalmente controlados, inclusive nas suas conseqüências - se lhe deve proibir meditar sobre eles, transformando-se em filósofo pensador que deseja conhecer não só aquela realidade mas também o seu íntimo significado? Por que lhe deve ser proibido penetrá-la também neste seu nível mais profundo? Por que deve ser anticientífico interessar-se também por estas outras possíveis faces da verdade: Com que direito negar "a priori" uma possibilidade de ampliação do conhecimento positivo inclusive deste aspecto? Assim se corre o risco de ficar isolado na visão de alguns aspectos limitados dos fenômenos, permanecendo na ignorância a respeito dos outros.
É verdade que não podemos dizer que compreendemos o homem todo quando nos limitamos a observar só a sua estrutura orgânica, que no nível físico, químico e biológico expressa a sua personalidade através de um mecanismo nervoso cerebral. Não o teremos assim mutilado fazendo dele uma imagem incompleta e que por isso não responde à realidade? Por que não querer ver todo o fenômeno, inclusive nos seus níveis mais altos?
Temos motivo de crer numa dúplice estrutura do universo, num aspecto bifrontal, já intuído pelos pensadores e de que a ciência suspeita, duplicidade pela qual, além da realidade fenomênica exterior, deve existir outra interior, a qual constituiria a verdadeira substância do universo e que nos pode revelar o seu verdadeiro significado. Nós já defendemos isto, afirmando o dualismo S e AS. Então um pan-psiquismo anima todas as coisas, ilumina-as por dentro dando um profundo significado à sua existência, conceito ainda não alcançado pela ciência. Também a matéria se anima. Por que deve isto estar fora da realidade. Não está em oposição à ciência positiva, mas é um seu complemento, representa um edifício mais alto que se pode construir sobre as suas bases sólidas. Nestes níveis mais altos, a matéria continua existindo com as suas leis e propriedades, mas ainda que continue a segui-las, é utilizada para outros objetivos de tipo mais evoluído e complexo. Então o simples fenômeno físico-químico se aproxima e é levado a concordar com outros fenômenos afins mais adiantados. Ele aparece assim existindo numa nova dimensão, sendo coordenado em função de uma finalidade superior, para a qual é dirigido e em função da qual o fenômeno passa a existir com outro valor e significado, visto que já não está isolado e fechado em si mesmo, mas aberto e em movimento em direção àquela finalidade.
Esta nova perspectiva amplia e aumenta tanto, que tudo transforma. Já não se trata de um simples fato exterior, porque agora ele contém um psiquismo interior que veio anima-lo. Psiquismo que, antes desse fato, não existia, e do qual agora se tornou expressão. Então ele se nos revela sob uma luz diferente porque já não o vemos esgotar-se em si mesmo, completo apenas nessa sua forma, mas sim existir em função de outros valores interiores, até então desconhecidos de nós. Somente olhando mais acima algo mais vemos crescer nos fenômenos, um enriquecimento de qualidade e significado, como se vistos em função da evolução, movendo-se nesta nova dimensão eles se dilatassem e agigantassem.
Como se explica que na semente, o mais se desenvolve do menos? Tal crescimento parece um aumento para quem vê só a forma física, isto é, o instrumento material da existência. A ciência positiva parou somente neste aspecto do ser, aspecto que, se não constitui toda a realidade, é no entanto uma parte importante dela. Mas para compreendê-la toda é necessário ver também a outra parte, interna, escondida, que foge à investigação sensória e que é a verdadeira causa daquele "mais", representado pelas formas que depois vemos aparecer no exterior, em nosso plano sensório. Compreende-se então que este florescimento exterior não é uma criação, ainda que seja de progresso através da evolução, mas sim é uma restituição, isto é, uma reconstrução daquilo que pertenceu ao S e que agora por involução se encontra decaído no AS. A ciência atual vê somente o lado exterior do fenômeno do ser, isto é, uma parte dele. Isto não está errado; apenas é incompleto, porque ela ignora o lado oposto e complementar, que é o princípio interior animador das coisas.
A progressiva complexidade das formas que expressam o psiquismo não é a causa do seu progressivo aperfeiçoamento, mas o efeito deste. O sistema nervoso e cerebral, mais complexo no homem do que nos animais que o precederam evolutivamente e que hoje são inferiores a ele, não é a causa da sua maior inteligência, mas o instrumento mais complexo de que esta necessita para poder expressar-se no plano sensório e chegar ao contato com este plano. Ou, mais exatamente, as duas partes se compenetram num dualismo de duas complementariedades opostas que constituem a mesma unidade. O homem poderá construir cérebros eletrônicos, mas com isto somente reproduzirá o instrumento exterior do pensamento, a mecânica de que este se serve para a sua manifestação. Estas serão sempre máquinas inanimadas, geradas por ação exterior e não por uma autoconstrução interior. Falta-lhes a parte interior do fenômeno, a que encontramos na vida. Estas máquinas poderão ser um instrumento a mais que se acrescenta àqueles que o pensamento já construiu para si mesmo no plano orgânico, e que ele poderá utilizar junto àqueles instrumentos. Mas trata-se sempre de um instrumento subordinado ao pensamento e tem portanto que ficar sempre ao serviço deste pensamento que só o homem possui. A ciência materialista, para permanecer positiva, desinteressou-se, como se ele não existisse, deste outro lado do fenômeno que lhe escapava. Mas que na vida exista também esta contrapartida imaterial prova-o o fato de o instrumento com o qual ela se manifesta ser uma estrutura que se apóia num processo de renovação contínua. Trata-se de uma arquitetura não estática, mas dinâmica, funcionando organicamente por constante destruição e reconstrução, como sucederia num edifício cujos elementos componentes fossem continuamente substituídos por outros, colocando-se os novos exatamente no lugar dos velhos, de maneira que, mudando até a matéria-prima o edifício permaneça o mesmo, Assim o indivíduo se transforma, ficando no entanto o mesmo indivíduo. Isto permite que o ser, apesar de continuar sendo o mesmo, se transforme por meio daquelas imperceptíveis deslocações sucessivas; através das quais se realiza a evolução. Obtém-se assim um instrumento maleável, que se adapta às exigências do psiquismo que dele se serve segundo as suas necessidades, proporcionalmente ao seu diverso grau de evolução. Este transformismo é um fato positivo inegável. O que permanece estável no meio desta corrente de matéria flutuante é o tipo de organização que guia e disciplina os seus movimentos, é o princípio diretivo constante que dirige o fenômeno todo. Eis qual é a outra parte interior que o completa. Sem esta faltaria o que nele é constante, o que permanece onde tudo muda, o que une os momentos sucessivos do transformismo e impede que ele se disperse, canalizando-o ao longo de um caminho marcado e fazendo-o convergir em direção a um objetivo pré-estabelecido.
A unidade individual de cada ser, que o distingue de todos os outros, é este eu interior que é a alma do fenômeno vida. Deste fenômeno a ciência deverá chegar a ver, além do aspecto físico exterior, também o espiritual, e isto inclusive nos graus mais involuídos da existência, como na matéria. Ela é considerada inanimada, mas já se descobriu de que complexo pensamento está saturada, e que dirige o seu funcionamento. Graus diversos de psiquismo, mas psiquismo onipresente, em forma de pensamento, de princípio, de lei diretiva. Em qualquer nível o sistema é o mesmo: seja o psiquismo inferior ou superior, mais ou menos desenvolvido, mas sempre em evolução, o que está menos avançado contendo em germe o que depois aparecerá mais avançado. É uma espiritualidade universalmente imanente nas formas que lhe fornecem consistência física e constituem o seu instrumento de expressão. É assim que não se podem. separar um do outro, tanto o aspecto material como o espiritual do fenômeno, tanto o transcendente como o imanente. A matéria por si só não é completa nem auto-suficiente, não basta para explicar e governar a vida sem o suporte de um psiquismo animador e regulador.
A contraposição entre matéria e espírito deriva, como um momento seu, do principio universal do dualismo que abarca tudo e tudo envolve, pelo que devia surgir uma cisão também entre estas duas posições da existência. E isto corresponde à realidade. Mas o erro consiste em querer entender tudo isto como um antagonismo de opostos, quando se trata só de unilateralidade de termos complementares, dos dois pólos de uma mesma unidade, pólos que, em vez de a despedaçar em dois, fazem dela um compacto indivíduo, mantendo-se sempre como tal, não obstante sejam dois os momentos que o constituem. A realidade é dupla, mas é uma só. A divisão se deve ao fato de que ela pode ser observada sob dois pontos de vista diferentes. O céu e a Terra, o alto e o baixo, espírito e matéria, estão incluídos no mesmo universo. A realidade material e a espiritual são posições diferentes da mesma realidade, que pode ser vista tanto no seu aspecto científico como no metafísico. A unidade que de fato existe é um composto, uma fusão de dois momentos, o princípio espiritual que anima a forma material e a forma material que veste e expressa o princípio espiritual. Na realidade não existe o espírito por um lado e a matéria por outro, mas sim um espírito encarnado e uma matéria inteligentemente organizada. E a organização se torna sempre mais complexa quanto mais alto e espiritual é o grau de consciência que naquela forma encontra o instrumento da sua manifestação. A compenetração entre os dois termos é profunda; na posição em que eles se apresentam na Terra, durante a vida, não os podemos separar porque formam uma só realidade, mesmo que seja lógico que, depois da morte da parte física, o indivíduo se retraia no outro pólo do ser, pelo fato de o dualismo, sendo unidade, significar oscilação de um extremo ao outro dela. A ciência olha o lado material; a metafísica, o lado espiritual desta unida realidade que é o homem vivo. Medicina e biologia dedicam-se ao corpo, as religiões, à alma. Mas em vez de colaborar, somando os seus esforços, estes dois ramos do saber se eliminam. Quanto mais a ciência progredir, tanto mais deverá aprofundar a sua investigação, penetrando no terreno da metafísica; e quanto mais esta quiser ser completa, tanto menos poderá prescindir de conhecer o instrumento da manifestação do espírito.
Esta união de dois opostos, isto é, o mesmo dualismo no seio da mesma unidade, encontramo-lo em medida muito maior no fenômeno máximo de toda a criação, porque não se pode isolar Deus do Universo, o transcendente foi imanente, o espírito animador de todas as formas nas quais ele se manifesta. O princípio que rege o fenômeno é sempre o mesmo. Nós, que examinamos nos volumes: A Grande Síntese, Deus e Universo, O Sistema, Queda e Salvação, todo o ciclo involução-evolução, isto é, afastamento e regresso, sabemos que esta conjunção de opostos não é eterna, porque o dualismo no qual se cindiu a unidade é fenômeno transitório, devido à revolta e queda, e sanável com o retorno do termo emborcado, o AS, no seio do outro de origem, o S, isto é, Deus. Eis que a forma, o instrumento de expressão constituído pela matéria, é só um meio destinado a desaparecer no fim, reabsorvido no psiquismo animador. Assim a matéria voltará ao estado de origem: o espírito; o AS ao S; o Deus imanente, isto é, projetado na forma do universo físico, seu corpo e instrumento de expressão na fase evolutiva atual, voltará ao seu aspecto de Deus transcendente. Saneada, com a evolução, a queda por involução na matéria, tudo voltará ao estado original de pensamento. Esta atual necessidade pela qual o espírito não pode manifestar-se senão através do instrumento matéria, como vimos agora, esta obrigação de descer, fundindo-se nela para encontrar ali a sua expressão, é como uma corrupção por involução, e que, no entanto, por evolução aquele mesmo espírito vai cada vez mais se libertando, constituindo-se formas sempre menos materiais e mais refinadas e sutis, aptas a expressá-lo à medida que, evoluindo, se aperfeiçoa. Deste modo, ao longo do caminho da evolução a estrutura do instrumento se transforma nas suas características, estando em proporção ao grau de evolução da unidade espiritual que se deve servir dele para a sua manifestação. É assim que, com a evolução, o meio de expressão ou instrumento de trabalho, para acompanhar em posição paralela o desenvolvimento psíquico, se completa, se complica, se sutiliza, direi quase, se desmaterializa, se faz um órgão sempre mais inteligente, mais a fim do pensamento, que através de tal meio deve funcionar.
Esta é a história da evolução. Ela vai desde o pólo matéria ao pólo espírito. Hoje, no nível atual, encontramos estas duas posições do ser coexistindo e fundidas, porque a matéria não foi ainda superada e ainda falta para chegar ao espírito. Mas no fim o dualismo deverá cessar, porque o aspecto matéria da substância será reabsorvido no seu aspecto espírito. Se o instrumento no qual hoje vemos submergido este último, é um produto da involução, é lógico que, por evolução, ele deva perder sempre mais as qualidades da matéria, até desaparecer como tal, e adquirir sempre mais as qualidades do espírito, até ao ponto que, reconstruindo-se este em toda a sua potência e pureza, não tenha mais necessidade de enxertar-se em tais meios para funcionar e encontrar a sua expressão. Neste processo, vemos que a matéria sofre uma profunda transformação que a elabora, a organiza, dispondo os seus elementos constitutivos em formas sempre mais complicadas. Já notamos isto na diferença que há entre as células do sistema ósseo e muscular e as do sistema nervoso e cerebral. Na construção dos organismos, a tendência da evolução é superar e fazer desaparecer as qualidades físicas, para dar lugar às psíquicas. É assim que, sobre a matéria, termina por prevalecer cada vez mais o que é pensamento e espírito; sobre a quantidade, a qualidade; sobre a massa dos elementos, a complexidade da sua organização. Este amalgamar-se contínuo de espírito e matéria num único composto, transforma em profundidade a estrutura desta, levando-a desde este seu estado físico a um estado mais evoluído no qual perde as suas qualidades de matéria e, por uma espécie de redenção por evolução, adquire as do termo colocado no pólo oposto, ao que tudo tende, o espírito.
Vivemos num mundo de verdades relativas, que podem parecer contraditórias, enquanto são complementares. Assim espírito e matéria são aspectos diferentes do mesmo princípio, olhados de pontos de vista distintos. Trata-se de visões parciais que basta reunir numa visão global mais vasta, para que desapareça nela a contradição. O problema do espírito não se resolve, negando a sua existência senão enfrentando a dificuldade de compreender o fenômeno. Significa simplesmente renunciar ao conhecimento o fato de eliminar "a priori" os aspectos da realidade que nos incomodam porque não sabemos explicá-los e não sabemos onde colocá-los, porque não encontram lugar em nosso sistema.
A vida é portanto um processo de espiritualização. A evolução assume assim um sentido totalmente diferente do materialista darwiniano, torna-se um movimento ascensional, Uma obra de construção de valores em sentido espiritual . Aquele princípio evolucionista, que na sua primeira aparição foi combatido pelas religiões, porque lhes parecia contrário por ser ateu, negador do espírito, pode hoje ser entendido como uma sua confirmação cientifica, porque sustenta a ascensão espiritual dirigida para Deus, ponto conclusivo que explica e justifica o desenvolvimento de todo o processo evolutivo.
Assim matéria e espírito, de dois opostos inconciliáveis se reduzem a duas posições da existência. A tarefa da evolução é de mudar o valor dos dois termos, transformando o primeiro no segundo, de modo que, no fim, o dualismo seja sanado e venha a cessar a oscilação da existência de um ao outro dos dois pólos. Por fim, percorrido todo o ciclo involutivo-evolutivo, deve chegar o momento no qual - por ter toda a matéria sido reabsorvida no estado de espírito, e a forma mutável transformada na eterna substância, o universo físico (AS) substituído pelo universo da consciência (S) - também o Deus imanente se retrairá deste seu aspecto de manifestação exterior e voltará ao seu aspecto verdadeiro, eterno, imutável, de Deus transcendente, qual centro de sua verdadeira criação, que é o universo espiritual.
Observemos vários fatos e seu significado. Temos esta estrutura substancialmente unitária e só transitoriamente cindida num dualismo por sua natureza destinado a ser sanado; vemos que a cisão nos dois pólos é só um incidente dentro do princípio de unidade que permanece intato e soberano. Em todo o processo involução-evolução o ponto de partida como o ponto de chegada é o espírito, que só transitoriamente se desmoronou na matéria para reconstruir-se mais tarde no seu estado de origem. O eterno centro de tudo é o Deus transcendente, isto é, o espírito, mais acima do seu aspecto secundário e transitório de Deus imanente, submergido no ciclo involutivo-evolutivo, onde a transcendência não se anula, mas, apesar de interior, é sempre presente e ativa. Tudo isto nos mostra que a base da existência é o espírito, e que o instrumento de que ele se serve na sua atual posição dentro do ciclo involutivo-evolutivo, é só um acessório temporário, devido à necessidade de manifestar-se em nosso baixo plano de existência. Se hoje o ser se encontra em fase de oscilação entre o pólo espírito e o pólo matéria, e se, no estado de vida física, não podemos ver o espírito existir a não ser amalgamado na forma, sem a qual no plano físico ele não encontra expressão, isto não significa que noutras fases e posições da existência (ainda que estas não possam hoje ser tomadas em consideração pela ciência porque estão situadas fora do terreno positivo da realidade sensória), o espírito não se possa isolar e existir por si mesmo, sem ter necessidade de tal instrumento de sua manifestação, sem o qual hoje na Terra não se advertiria a sua presença.
Estas considerações nos levam a ter que admitir a sobrevivência do indivíduo no estado de espírito, o que significa a possibilidade de ele viver também sem corpo, independentemente deste seu meio de expressão no plano físico, meio do qual se separa com a morte, deixando-o como matéria insensível em decomposição porque dele fugiu a vida que está no espírito. É assim que a este lhe é possível, até durante a existência no plano físico, funcionam. independentemente de tal instrumento, por cima das possibilidades imateriais dele, transcendendo os seus limites. Esta possibilidade de superação do meio físico de expressão, por parte do espírito, corresponde a sua progressiva potencialização por evolução, o que é admissível para quem compreendeu que a função desta é uma libertação dele, espírito para devolvê-lo no fim ao seu estado de origem. Eis como surge a possibilidade de pensar não só cerebralmente, por lógica e raciocínio, mas também, espiritualmente, por intuição; e compreende-se como isto possa suceder nos indivíduos mais evoluídos que na vida se acostumaram a praticar especialmente esta segunda forma de pensamento. Isto forneceria uma prova de que é possível separar um funcionamento no plano do espírito, de um funcionamento no plano cerebral, isto é, separar a verdadeira mente do seu instrumento, de maneira que ela possa manifestar-se autônoma, e isto sucede tanto mais quanto mais por evolução esse espírito se potencializou e se tornou independente. De fato a evolução é um processo que faz libertar o espírito da necessidade de possuir um instrumento físico para poder alcançar a sua manifestação.
A evolução é um regresso a Deus. Dizemos "regresso" porque é absurdo ir em direção a Deus, movendo-se de um primeiro ponto de partida que não seja Deus. E Deus não é pessoa no sentido humano, isto é, de pensamento que para manifestar-se necessita de um instrumento físico. Se se quisesse ver a Deus nesta posição do ser, o encontraríamos tal no Seu aspecto imanente em nosso universo, que seria então o instrumento da Sua manifestação, como um Seu corpo, isto é, a forma que permite a sua expressão no plano físico. Mas Deus em sua verdadeira essência é transcendente, é puro pensamento, como o homem é antes de tudo espírito, pelo que a sua verdadeira essência é dada pelo seu ser espiritual que, no entanto, se une ao corpo como a um seu instrumento. Esta identificação a encontramos também entre Deus e a Sua manifestação que é o nosso universo. Isto significa que dentro deste, como o espírito no homem, encontramos Deus como princípio animador, sem o que o universo seria coisa morta, sem alma, um cadáver, como o é o nosso corpo quando o espírito o abandona. Assim a presença deste em nosso organismo físico não seria senão um caso menor daquele máximo, que é a imanência de Deus em nosso universo.
Ora, regresso a Deus por evolução significa regresso do ser ao estado transcendente (S) de puro pensamento, porque Deus em Si mesmo, por cima desta sua transitória projeção em nosso Uni- verso (AS) é puro pensamento, existente sem necessidade da forma que agora o expressa nas dimensões inferiores do plano da matéria.
Isto que parece separação entre transcendente e imanente não é cisão. Pelo contrário, tratando-se de dois pólos ou aspectos do ser, isto não os divide, mas os unifica, é uma ponte que os mantém ligados c comunicantes. É assim que encontramos o pensamento do Deus transcendente animando as formas da existência, princípio vital, sempre criador na regeneração da morte contínua, princípio diretivo do funcionamento orgânico do universo, qual inteligência que concebe a lei e vontade que a realiza. É deste modo que o céu tem o seu eco na Terra e aqui podemos voltar a encontrar os seus traços e a sua expressão. É este fato que mantém compactados Céu e Terra, espírito e matéria, a substância e a forma, transcendência e imanência, Deus e universo. Desta forma Ele está presente como numa Sua manifestação que O expressa e O revela. Nas entranhas da matéria, a afinidade e atração entre átomos e moléculas, por mais que tais manifestações estejam distantes do amor, dele nos oferecem um apelo e uma semelhança. Assim o que acontece na coordenação das partes e dos movimentos no seio de um organismo, repete-se nas leis que regulam os contatos e combinações mútuas entre os elementos componentes, indicando-nos a presença de uma mesma inteligência diretriz. É questão de grau de manifestação de um mesmo princípio fundamental, como de um motivo base, que aparece pouco a pouco e sempre se vai desenvolvendo mais até encontrar a sua plenitude no S. Vemos existir, já nas formas mais elementares, como encerrado numa semente, o que depois chegará a ser amor-sexo no nível vida, e consciência nos planos superiores desta, até chegar ao Amor e onisciência de Deus. Continuidade universal, pela qual não existe um momento do todo que se possa isolar do resto, que com ele não tenha relações e nele não se repercuta. O todo-Deus é um conjunto orgânico absolutamente incindível. Assim se compreende como esteja ligado ao espírito, que dispõe dele como de uma máquina que move, que controla e da qual se serve para poder viver no plano físico. Dada esta compenetração e colaboração, é natural que o instrumento tenha de acompanhar, com o seu aperfeiçoamento, a evolução do espírito, tornando-se assim sempre mais organicamente complexo, de modo a poder responder às crescentes exigências da personalidade que se serve dele. E quando dizemos que este instrumento é matéria, devemos recordar que matéria significa uma organização de cargas dinâmicas e uma lei reguladora dos seus impulsos, combinações e movimentos, tudo fundido no mesmo funcionamento, o que significa algo mais de tipo conceptual e dinâmico do que material. E então, para além de tantas distinções, não encontramos no fundo senão uma única realidade, uma mesma substância à qual todas as coisas são redutíveis.
Somos nós, porque imersos no relativo, que dividimos, isolamos e contrapomos os seus diversos aspectos. Mas no fundo ciência e misticismo, racionalidade positiva e intuição, não são senão diferentes modos de ver a mesma, única, universal realidade, que é Deus. Dele, suprema verdade, o pensamento humano se acerca gradualmente. No nível mais concreto e positivo, o da matéria, temos a análise científica com os meios sensórios e experimentais. Depois ternos as concepções reflexivas da filosofia que se elevam mais acima do concreto no universal, atuando por abstrações. Temos, finalmente, a teologia que se projeta no céu das causas primeiras. Cada um explora a sua zona e por espírito de domínio quereria dar-lhe valor universal, eliminando as outras que, não obstante, lhe são complementares. Assim, desta maneira é igualmente incindível o aspecto espiritual das coisas do seu aspecto material. Quem se detém num deles e nega o outro, dá prova com isto de falta de conhecimento. Quando não se sabe solucionar um problema, elimina-se, negando, a existência dos fatos em vez de se admitir a própria ignorância. Para libertar-nos do peso do desconhecido, suprimimos o que escapa à nossa compreensão. A ciência não chegou ainda a comprovar positivamente a existência de Deus, mas à medida que progride em profundidade, ela não poderá deixar de ver este princípio universal, inteligente e regulador de todos os fenômenos. Num primeiro momento ele deverá ser admitido pelo menos como hipótese indispensável para poder explicar tantos fatos que vemos harmonicamente coordenados num funcionamento orgânico, ligados por uma rede comum, segundo um plano de trabalho subordinado a um determinado fim: fatos que não se podem explicar a não ser em função de uma íntima sabedoria orientadora. Com o progresso da ciência, não se poderá deixar de descobrir que Deus é o ponto final da evolução, em função do qual ela existe; é o que a explica e assim se justifica o imenso trabalho de ter de percorrer um caminho tão longo; não se poderá deixar de descobrir que, naquele supremo ponto de convergência, o incessante transformismo fenomênico deverá encontrar a sua solução porque ele terá esgotado a sua tarefa, que é a de reconduzir a substância desde a sua fase de matéria (AS) à sua fase de espírito (SI).
Será um conceito novo para a ciência atual, afirmado e demonstrado por nós, este de uma evolução que é espiritualização, o que lhe dá um sentido e um valor superior, pelas religiões já visto e afirmado por intuição. Este é o nosso físio-dínamo-psiquismo, é o florescer de uma biosfera a partir da geosfera e de uma noosfera a partir da biosfera, como diria Teilhard de Chardin. Então ciência e religião se darão conta que contrapuseram, como inimigos, aqueles que não eram senão dois aspectos da mesma verdade. Então já não se condenará como panteísta quem não pode conceber Deus só no seu aspecto transcendente, isolado do universo, mas sim que O sente também no seu aspecto imanente, ali presente, qual pensamento diretivo e vontade animadora do transformismo fenomênico, identificado com as leis da existência, que são expressão do Seu pensamento: um Deus independente e não obstante intimamente ligado a todas as formas do ser, que não são senão formas do Seu ser. Então o natural e o sobrenatural não são duas posições contrapostas, mas dois graus do mesmo processo evolutivo, isto é, de reaproximação de Deus. Eles não se excluem, não se contrapõem, mas se completam, porque o grau superior é a continuação do inferior, no qual está contido como germe e do qual se desenvolve.
Um conceito completo de Deus não pode ser dado senão pela fusão dos seus dois aspectos: o central, ponto de convergência do todo, Deus pessoal e transcendente; e o periférico, divergente na multiplicidade das formas de sua manifestação, Deus impessoal e imanente. Trata-se de uma natureza sustentada pela presença de Deus, que a ajuda a elevar-se, até junto Dele, através do sobrenatural. É certo que a matéria encontra-se nos antípodas do espírito, representando a posição mais afastada de Deus. Mas isso não significa que ela fuja Dele, que Ele não a alcance, mantendo viva com a Sua presença a complexa organização. Não é panteísmo dizer que a unidade permaneceu íntegra por cima do dualismo e que o amor de Deus tudo reúne e mantém unido. E a idéia de Cristo nada perde em valor se o concebermos como incorporação do princípio de evolução que quer levar o homem a Deus, e se à redenção dermos um significado aceitável para a ciência, isto é, de salvação por evolução, realizada por ascensão da matéria ao espírito. Até à idéia do Satanás do Cristianismo se pode dar assim um significado aceitável enquanto o podemos conceber no pólo oposto do princípio de evolução e salvação (S) representado por Cristo, isto é, como personificação do princípio de involução e perdição (AS) situado no pólo oposto do dualismo interior da mesma unidade do todo-Deus.
Muitos conceitos do Cristianismo não são hoje aceitáveis porque são expressos em forma não científica, antiquada, dependentes de sistemas filosóficos superados; não são aceitos por serem apresentados em forma fideística irracional, agora já demasiadamente afastada da psicologia moderna positiva; por não ser enquadrados num sistema científico-filosófico que os explique e justifique, dado que eles nasceram por inspiração ou intuição, isto é, por visão não controlada objetivamente. Isto não significa que os conceitos estejam errados, mas assim ficam suspensos no ar à mercê do mistério, ao realizarem-se abandonados no subconsciente, porque na prática permitem adaptações e evasões, chocando-se às vezes com a realidade biológica, resolvendo-se até num absurdo. As religiões futuras, se quiserem sobreviver, deverão voltar a tomar, desde o início, este material imenso acumulado nos séculos, voltar a elaborá-lo, sistematiza-lo, completa-lo, atualizá-lo, não como se ensaia agora com retoques de superfície, mas com uma revisão e reorganização de fundo que incorpore e assimile o pensamento laico científico, outro material imenso ainda mais gigantesco.
Assim, como acabamos de dizer, o conceito do sobrenatural pode subsistir se é entendido como nível evolutivo mais avançado, e não como uma super-natureza, que se contrapõe à própria natureza, como se pudessem existir duas naturezas diferentes, dirigidas por duas leis diferentes, o que é absurdo. De fato, não temos senão diferentes graus de evolução da mesma natureza dentro da única Lei de Deus. O único sentido que se pode dar a esta concepção é evolucionista. A natureza é o nosso nível biológico com as suas respectivas formas de vida, no lado AS. A super-natureza pode significar níveis biológicos mais avançados, em direção ao S, antecipados hoje pelos ideais e alcançáveis amanhã por evolução. Assim a contradição entre dois opostos, dentro da mesma obra de Deus, desaparece porque se torna lógica sucessão de momentos consecutivos, ambos necessários dentro do mesmo processo evolutivo.
Da mesma forma se poderia dar ao conceito de "graça" um significado positivo racionalmente aceitável. Poder-se-ia chamar "graça" à resposta de elementos mais avançados, por parte dos graus superiores de evolução, em relação à tentativa do ser para ajudar a alcança-los; ao estender-se do S em direção ao AS para fazê-lo subir até ele, noutros termos, à manifestação da presença, no mundo, do Deus imanente que dirige e ajuda a evolução. Assim às várias intuições das religiões, apresentadas como verdades, se pode dar um significado que as faça aceitáveis, evitando que sejam lançadas ao esquecimento. Assim a "graça" poderia expressar o fenômeno da inspiração e conectar-se com o da descida dos ideais.
É certo que, se estes conceitos permaneceram até hoje de pé, isto se deve a que neles tem de haver algo de verdadeiro. Mas é necessário encontrá-lo e dizê-lo, se queremos que a mente moderna os tome em consideração. Eles são o produto de outros processos mentais superados hoje, conduzidos em função de outros pontos de referência, de modo que, apresentados como melhor convinha no passado ao qual eram adaptados, hoje resultam inaceitáveis pela mente moderna que os encontra sem sentido. Há que se levar em conta que hoje é diferente a maneira de conceber as coisas. Portanto é difícil fazer concordar uma religião filha do passado com o pensamento científico moderno. O grande drama espiritual do mundo atual consiste em que o desenvolvimento do pensamento diretivo passou da religião, que ficou para trás, à ciência que, pelo contrário progredindo, agora já tomou a iniciativa avançando por sua conta, independentemente da fé, tornada pensamento secundário. Hoje quem se deve atualizar é a religião transformada em serva da ciência, atrás de quem tem de correr para não ficar atrasada. Inverteram-se os papéis: é a sabedoria de Deus o que passou para a retaguarda e tem que fazer-se arrastar pela sabedoria do homem. A religião trata de salvar-se adaptando-se, mas a revolução do pensamento é demasiado grande para poder remediá-la com as habituais acomodações. Remendar a casa não resolve. Ela fui construída para inertes e tempos demasiados diversos, para que hoje se possa habitar ali. Se se pretende que não fique deserta, é necessário refazê-la sobre os mesmos fundamentos de Cristo, mas refazê-la desde os alicerces. Hoje, as afirmações metafísicas gratuitas e não provadas, baseadas sobre a tradição e o princípio de autoridade, apoiadas em pontos de referência arbitrários, não resistem ao contato com a realidade positiva dos fatos e não são mais levados em consideração. Não é que as verdades das religiões não sejam verdadeiras. Mas demasiadas incrustações e superestruturas medievais as taparam e as sufocaram. É necessário regressar às suas fontes, eliminar o supérfluo, dar-lhes a sua verdadeira dimensão, completá-las, desenvolvê-las à luz do progresso mental moderno. Seria necessário ter a força de realizar este passo para a frente e assim alcançar a ciência. Mas assusta o risco de sair das velhas estradas, falta a fé e a coragem para aventurar-se no novo, falta a visão clara de uma verdade mais evoluída e mais completa, pelo menos de uma sua apresentação em tal forma, e faltam os homens que saibam produzi-la, novos gênios da verdade que tomem o lugar dos sonolentos repetidores das velhas fórmulas, dos burocratas da fé, arraigados defensores das coisas velhas porque se encontram na base das suas posições terrenas.
A ciência move-se diretamente ao conhecimento do funcionamento dos fenômenos e do porquê das coisas, e não está obstaculizada pela preocupação de fazer concordar os fatos com as lendas bíblicas e a tradição, para lhes salvar o valor. Isso interessa somente àqueles que, sobre tais bases, apóiam a existência do seu grupo que os protege, mas não interessa aos investigadores da verdade, aqueles que querem saber como de fato tudo se desenvolveu no passado. Perante o pensamento moderno, muito mais maduro, que valor positivo podem ter afirmações provavelmente simbólicas, apresentadas em formas antropomórficas, a única linguagem que naquele tempo os homens podiam compreender? Como tomar ao pé da letra uma narração que devia esconder conceitos mais complexos, impossíveis de expor a quem não os podia entender? Como pode uma era de pensamento mais evoluído aceitar o pensamento mais primitivos das épocas anteriores? O investigador não pode trabalhar amarrado a tudo isso, paralisado pelo fardo de tantas soluções já estabelecidas, que desejariam fixar o seu pensamento, detendo-o num grau de evolução mental já superado. As teorias do passado podem interessar à história da filosofia, ao professor que as estuda, mas estorvam o caminho para quem quer, pelo contrário, construir e progredir.
É claro que as religiões continuarão tratando de conservar o seu patrimônio tal qual é. Elas deste modo assumem a função da conservação, mas certamente não a do progresso, pelo que o pensamento continua avançando por sua conta sem elas, que não têm o poder de detê-lo. A evolução é lei divina e fundamental da vida, e a ninguém é permitido paralisá-la. Mas eis que entretanto nasce assim a luta entre o velho que não quer morrer e o novo que deve desenvolver-se. O primeiro resiste, mas, por lei da vida, acaba sendo vencido pelo segundo. A renovação realiza-se através desta luta na qual triunfa o mais forte, que é o novo. É a própria lei de Deus que o quer. Vive-se para avançar. Hoje, as religiões representam o velho; a ciência, o novo. A função desta não é a de destruir as verdades daquelas, mas de esclarecê-las e atualizá-las, eliminando o que já não é aceitável, como também têm a função de demonstrá-las e desenvolvê-las. Eis que de fato na luta o novo coloca-se a serviço do velho, porque o ajuda a sobreviver no que ele tem de bom, enquanto que sem esta renovação apenas lhe restaria morrer definitivamente. Se soubermos pôr cada coisa no seu lugar, vemos que tudo cumpre a sua função e por isso é útil à vida e tem então a sua razão de existir que lhe justifica a presença.
A religião não se pode suprimir. Mas podemos imaginar quão mais inteligente e convincente deverá ser a religião do futuro, que produto mais racional da compreensão das leis da vida, em vez do cego produto do subconsciente instintivo. Será uma religião mais forte e mais pura, mais clara e mais honesta, porque caminhará paralela à ciência, sua aliada; será uma religião iluminada não só pelo relâmpago da intuição reveladora, mas também pela trabalhosa construção mental, fruto do esforço humano, para desembocar numa norma de conduta ou moral mais sólida, demonstrada, mais sincera e justa do que a atual, a qual é o resultado não de uma compreensão dos problemas, mas da luta pela vida. Não se pode parar a criação religiosa só porque neste terreno tanto já se fez no passado. O caminho dos profetas, dos grandes inovadores, dos gênios, dos santos e dos pensadores, não pode deter-se. Onde tudo evolui sem pausa, nem sequer as religiões podem parar. O trabalho do passado deve continuar noutras mãos, noutras formas, continuar com a vida que avança. Renovar não é destruir é prosseguir. Como aconteceu no caso de Cristo um novo testamento está sempre em ação para desenvolver o antigo. É o pensamento de Deus que avança na Terra, mostrando-se sempre mais. A revelação tomará outras formas, seja de descobrimento científico, de síntese filosófica, de revolução social, ou de nova ordem política, mas não pode parar. A evolução deve levar a uma purificação das religiões, porque conduz a um esclarecimento de posições, a uma superação da luta, entre antagonismos, a uma racionalização das relações entre os homens e Deus. Para o homem civilizado isto será mais produtivo, inclusive espiritualmente, porque se apoiará sempre menos sobre a coação psicológica do terror, instrumento de que se abusou demasiadamente até agora, e cada vez mais sobre a livre persuasão e convicção espontânea.
Antigamente, o céu, morada de Deus, era aquele espaço desconhecido que estava por sobre os cimos dos montes e dos pináculos das torres das igrejas. Hoje, esse céu os astronautas o estão explorando sem lá encontrar nem anjos nem santos. Hoje, as religiões necessitam do cientista que nos saiba dizer algo mais do que elas não sabem dizer. É necessário definir, com critérios mais positivos, os conceitos vagos que hoje são objeto de fé, aclarar o que se entende e o que se quer fazer com a espiritualidade, demonstrar para que ela serve, provando a sua utilidade e justificando a sua aceitação. Tudo isto é necessário, se se quer que as pessoas se interessem por tais coisas, porque a tendência atual é, com todo o respeito, a de simplesmente abandoná-las a um canto, como inúteis, e assim, sem nem sequer dar-se ao trabalho de destruí-las, deixá-las morrer por si só.
A crise mais profunda dos tempos modernos é o antagonismo entre ciência e fé. A primeira agora já avança por si própria e não se interessa mais pela segunda, da qual, dado que não serve, prescinde. Certas idéias, que antigamente foram fundamentais, parecem não dizer nada à mente moderna. As religiões dormem e a vida caminha. Elas pretenderiam deter a vida e a vida as deixa para trás. A ciência produziu coisas extraordinárias, e entusiasma, porque avança. As religiões permanecem ruminando as suas verdades eternas e já não interessam porque não produzem nada. Deter-se num mundo em marcha é morrer. Por motivo de se quererem conservar, este é o risco que correm as religiões. Se se intenta algo para avançar, a reação é a condenação. Ai de quem incomoda os que dormem! Quem o faz é um herético. E então, por que perder tempo numa luta inútil para fazê-las caminhar à força, quando isto é tão reprovável? Não é melhor deixá-las dormir e avançar sem elas? E hoje isto é possível porque a ciência construiu as suas próprias pernas e sabe andar só. E isto é precisamente o que o mundo hoje está fazendo. Mas, por que estamos obrigados a chegar a tais conclusões?
XIII
TRABALHO E PROPRIEDADE
I – As três fases da sua evolução
O homem encontra-se vivendo num mundo no qual cada ser tem de abastecer-se a si mesmo. É assim então que quem quer obter o que lhe é necessário para a sua vida deve ganhá-lo, lutando contra todos. Nada lhe cai gratuitamente do céu, mas tudo deve ser o resultado de um esforço seu. Esta é a origem daquilo que se chama trabalho. Também as feras na selva estão sujeitas ao trabalho, porque devem prover a sua comida, agredindo e matando os outros animais. Assim é que a lei do trabalho é uma lei biológica fundamental.
Corresponde a outra lei biológica fundamental o princípio de propriedade. Cada ser, inclusive o animal, considera que lhe pertence em propriedade o que ele conquistou com o seu esforço, isto é, trabalho, vencendo todos os obstáculos seja da natureza, seja dos seus rivais na luta pela vida. Assim as abelhas sabem que a colméia cheia de mel é produto seu, que lhes pertence, e por isso não deixam que se lhe roube o mel por direito de propriedade e de legítima defesa do fruto do seu trabalho. Assim o cão, que em troca do pão que recebe do seu dono lhe dá a defesa da casa onde este habita, sabe que deve compensar com este seu trabalho de defesa o soldo que recebe em forma de alimento, que depois, com pleno direito, defende como sua legítima propriedade. O cão compreende também quais são os limites desta, pelo fato de não morder quem passa pela estrada mas só quem entra no terreno ou na casa do seu dono.
O que queremos demonstrar com estes exemplos é que desde as suas primeiras origens e raízes biológicas, os princípios do trabalho e da propriedade são conexos, legitimados pelas próprias leis da vida e nela profundamente radicados. Eles são os princípios centrais porque fazem parte da lei básica da luta pela vida, da seleção do mais forte e capaz, como da lei do equilíbrio e justiça, pela qual tudo deve ser ganho com o nosso esforço, para chegar a ser nosso depois, de nossa propriedade e para nossa vantagem, enquanto o soubermos defender. quanto o soubermos defender. Trabalho e propriedade são princípios conexos porque, desde as suas formas de origem, é por meio do primeiro que se chega à segunda. Ora, tudo nos diz que trabalho e propriedade não são princípios teóricos, artificiais, superestrutura fora da realidade da vida, mas fenômenos biológicos e que sobre eles se baseiam as correspondentes instituições jurídicas e sociais. Estas têm, então, plenos direitos de existir pelo fato de que derivam não de abstrações, mas das próprias leis da vida, as quais se encontram por sobre toda a vontade humana, que não tem o poder de construí-las nem de destruí-las. O método melhor para encontrar um apoio seguro para as próprias afirmações é o de baseá-las sobre as indestrutíveis leis da vida. Se, apesar disto, vemos depois aparecer ataques contra o instituto da propriedade, constataremos que isto é devido a um outro fato, isto é, não que ela não seja justa, mas que dela se faz mau uso.
Para entender o fenômeno do trabalho e propriedade, é necessário observá-lo na sua evolução. Estabelecido o conceito fundamental da sua base biológica, veremos que, evoluindo com a civilização, tal fenômeno se transforma no seio da moderna organização social. Observamos primeiramente a evolução do trabalho. Aquilo que era, na sua primitiva forma individual, luta de um ser isolado contra todos, transforma-se e, porque isto é vantajoso, realiza-se, pelo contrário, através de um sistema de colaboração. Alcança-se, assim, uma posição mais conveniente porque, em vez de dever suportar um duro regime de luta contínua contra todos, cada um oferece aos outros aquilo que ele produz com o seu trabalho, recebendo em troca dos outros aquilo que, por sua vez, eles produzem também com o seu esforço. Por evolução a vida chega a esta forma que representa uma posição de menor atrito e correspondente menor gasto de força, e com isso a vantagem de uma maior produção, o que significa maior bem-estar para todos. Assim o pesado sistema do egoísmo separatista e agressivo transforma-se noutro de maior rendimento, o da convivência pacífica e da cooperação. É assim que se passa do mundo desorganizado, de luta feroz, dos animais, ao tipo de vida coletivamente organizada da sociedade humana civilizada. Tudo isto concorda plenamente com o princípio geral, que anteriormente tínhamos demonstrado, que afirma que está implícito nas leis da existência que esta seja tanto mais dura e difícil quanto mais baixo se encontra o ser na escala evolutiva, e ao contrário.
O mesmo fenômeno verifica-se no caso da evolução da propriedade. Acontece assim que, nos planos biológicos mais elevados, ela não continua sendo válida e se sustém somente enquanto o indivíduo tem a força para defendê-la com os seus braços e armas, mas dentro de um organismo social encontra-se garantida e defendida pelas leis e pelo respeito que cada indivíduo tem pela propriedade dos outros. Se cada um deve submeter-se a esta disciplina, ao mesmo tempo, por reciprocidade, ele recebe, em compensação do seu dever de respeitar a propriedade dos outros, a vantagem de ver que também a sua é respeitada. Só assim o indivíduo poderá possuir em paz o fruto protegido do seu trabalho, sem ter de lutar com as armas a cada momento para defendê-lo. Eis que, como dizíamos, a evolução conduz a um melhoramento nas condições de vida. A forma de propriedade, como se encontra nos países primitivos, regidos por uma economia de furto, é tremendamente fatigante e incerta, porque é totalmente instável, sustentável só a custo de uma guerra contínua que absorve todas as energias, não podendo produzir para todos senão miséria. Acontece assim que o regime de propriedade em comum em nenhum país é tão usado como nos regidos por uma economia de furto, onde na competição entre ladrões, ninguém sabe, nem sequer o que mais possui, o que poderá possuir amanhã, tudo ou nada, porque não há nenhuma estabilidade que garanta qualquer posição econômica. Assim a liberdade da qual o primitivo goza em maior medida que o homem civilizado, em última análise resolve-se numa escravidão às conseqüências do seu método, que são a guerra e a contínua falta de segurança. Assim o que parece ser um sistema de vida mais fácil e vantajoso, acaba sendo o sistema mais difícil e prejudicial. Tais são e assim funcionam as leis de vida e ninguém pode impedi-lo, nem pode fugir às conseqüências do seu funcionamento.
Nos países civilizados do mundo moderno, encontramos trabalho e propriedade em fase mais avançada, mais evoluída distante de sua origem, que tivemos de levar em conta para provar a existência das sólidas bases biológicas destas duas instituições. Veremos que quanto mais se civiliza uma sociedade humana, tanto mais o conceito de propriedade se transforma em sentido anti-separatista, isto é, em função de utilidade coletiva. E veremos também que o conceito de trabalho se transforma em sentido anti-egoísta, isto é, em função orgânica realizada em forma colaboracionista. Não se trata de destruição dos referidos princípios biológicos fundamentais, mas de uma sua transformação e aperfeiçoamento. Nisto consiste a sua necessária evolução. Quando tivermos compreendido que se trata de fenômenos biológicos que não é possível eliminar, mas apenas transformar por evolução, compreenderemos também que o princípio de propriedade pode ser aperfeiçoado, mas não suprimido. É por isso que não há comunismo que possa mudar as leis da vida, e qualquer que seja o programa ideológico, nunca poderá chegar a destruição, mas apenas a uma diferente distribuição de propriedade. Ela será mais justa, mais equilibrada, mas este é problema aperfeiçoamento evolutivo e não de destruição.
Eis quais são as transformações evolutivas às quais está submetido o fenômeno do trabalho e da propriedade. O resultado é que o primeiro ganha como poder produtivo alcançando um maior bem-estar, isto é, progride em sentido positivo, enquanto ao mesmo tempo a propriedade se liberta do peso da luta entre rivalidades, isto é, supera as negatividades dos níveis biológicos mais baixos; submetidos às incertezas de uma contínua instabilidade. Tudo isto representa uma vantagem e a vida, que é utilitária, está sempre pronta a aceitá-lo. De resto a finalidade maior da evolução, a qual representa a sua lei fundamental, é precisamente a de alcançar uma contínua melhoria das condições da existência. Na vida há uma irresistível vontade de progresso, que, em termos mais vastos, se pode chamar tendência a avizinhar-se cada vez mais do ponto final do caminho da existência, que é Deus. O fenômeno da evolução do trabalho e da propriedade faz parte deste programa, que é de ascensão, de aperfeiçoamento, de conquista do bem e libertação do mal. Assim, se nada pode ser destruído, tudo pode ser transformado por evolução. Isto quer dizer que a verdadeira função do princípio coletivista perante as leis da vida, não é a de ser um processo de destruição da propriedade, mas apenas da sua valorização como função coletiva que no novo estado orgânico da sociedade se torna cada vez mais importante com vantagem para todos, às custas da paralela desvalorização da função de vantagem individual, e do interesse particular, hoje preponderantes. A atual tendência da evolução é a de transformar uma propriedade, que no passado era só em favor do seu dono, numa propriedade concebida preponderantemente como função social de utilidade coletiva. Esta é a tendência atual, independentemente do comunismo que não é senão um aspecto do fenômeno e conseqüência do movimento evolutivo, tendência devida ao novo tipo de vida organizada alcançado pela humanidade.
Focalizando melhor a nossa observação sobre o fenômeno da propriedade, constatamos que existem três fases na sua evolução:
1) A fase da conquista por qualquer meio e da necessidade da defesa armada contínua para protegê-la.
2) A fase da legitimação legislativa, na qual o grupo vencedor, que já conquistou a propriedade, torna estável a sua posição de dono e, defendendo-a com um sistema de leis, se organiza como classe dirigente, no seio de uma ordem feita para ele, a seu favor. Assim nasceu o direito romano que, definindo com normas e deste modo regulando a conduta, tornou-se estável. A seguir o regime feudal medieval desembocou no capitalismo burguês.
3) A fase da socialização na qual a posse dos bens não está reservada só em favor de uma classe dominante, mas nesta posição é admitida toda a coletividade sem exclusão de uma parte. Prevalece, assim, uma outra forma de propriedade, alcançável por todos os que trabalham, e não mais reservada apenas a um grupo limitado e privilegiado. Se bem que semelhante transformação possa, para quem possui, parecer um sacrifício, ela representa para ele uma grande vantagem. Só nesta forma de livre socialização, só através de uma mais equilibrada distribuição capitalista, pelo fato de ser eliminada a classe inimiga e perigosa dos esfaimados, sempre prontos a assaltar o paraíso dos ricos, será possível, eliminando-lhe a causa, libertar-se das revoluções que são sempre movidas pelos que não possuem contra os que possuem, hoje submetidos a uma contínua ameaça que torna incerta a sua propriedade. É verdade que seria vantajoso eliminar este defeito das posições atuais, mas isto não é possível a não ser suprimindo a causa dos impulsos agressivos contra elas. O fato de que o instinto de todos é o de melhorar, leva pouco a pouco a esta outra forma de propriedade mais garantida e estável em favor de quem possui.
Agora que examinamos o fenômeno do trabalho e da propriedade, não como posição estática, mas dinâmica, isto é, como um transformismo através dos seus diferentes níveis de evolução, observemos como, segundo o seu diverso grau de desenvolvimento, os povos concebem e defrontam semelhantes problemas nas três formas agora descritas. Existem ainda povos primitivos, subdesenvolvidos, que concebem trabalho e propriedade na primeira daquelas três formas. E há povos mais civilizados que concebem tudo isto na segunda forma mais avançada.
1) Observemos o primeiro tipo de mentalidade. Para ele constitui legítima propriedade tudo aquilo que o indivíduo consegue agarrar com as suas mãos. Ele se considera dono de tudo isso, julgando-o justo, enquanto tem a força de defender-se do assalto dos outros. Neste nível a propriedade é só posse, de livre aquisição, sem outra lei ou limite que não seja a própria força para conquistá-la e defendê-la: tudo é livre, mas inseguro e instável ao máximo, por estar continuamente assediado pela equivalente liberdade alheia de empossar-se de tudo. Neste nível a propriedade é um estado de luta contínua, na qual o maior trabalho não é o de produzir mas o de roubar, o que nada produz, a não ser guerra e miséria para todos. Temos assim uma sociedade feita de ladrões, roubando-se sempre uns aos outros, e todos pobres, porque o furto não produz, se bem que reclame grande dispêndio de energia. Se esta fosse, pelo contrário, toda utilizada para produzir, eles poderiam ser ricos. Mas é pela sua ignorância que eles estão assim condenados a fazer um duro trabalho infernal, para por fim não produzir nada e acabar na miséria. Há ainda países que vivem desta economia de furto, e este é o resultado. De que me serve que me seja permitido roubar o próximo, quando ele pode fazer o mesmo comigo e por lei de reciprocidade, porque todos podemos roubar, todos acabamos sendo roubados? Assim, pela demasiada liberdade e pela voracidade de possuir tudo cada um para si, se chega à posição oposta, que é a de um coletivismo no qual não existe mais propriedade particular garantida e tudo é de todos, porque em cada momento cada um pode ganhar tudo, roubando, e perder tudo, sendo roubado.
2) No segundo caso, a propriedade é garantida, porque o furto não é admitido. Não se alcançou ainda um regime de justiça para todos, mas já existe uma disciplina e uma ordem. Esta tem no entanto o defeito de não ser completa, por estar limitada a um grupo ou classe social, de modo que existe sempre o perigo de revolução por rebelião da parte dos deserdados, excluídos do banquete dos que possuem. Ora, semelhante perigo poderá ser eliminado em favor da segurança da propriedade somente quando a posição privilegiada dos componentes dessa classe não seja mais exclusiva para eles, mas estendida a todos. Mas, entretanto, antes de chegar a esse ponto, um primeiro núcleo de ordem, como um modelo do novo tipo de vida coletiva, já se formou no meio do caos da liberdade absoluta do caso precedente e, dentro do terreno fechado daquele recinto, se deteve a luta e cessou a incerteza porque há leis que disciplinam a aquisição da propriedade e lhe garantem a posse. Neste sistema ela não se alcança, como no caso anterior, por meio do furto, mas do trabalho, não por meio da força, mas do direito, pelo qual por um princípio não de arbitrariedade mas de justiça, o indivíduo recebe da coletividade em troca e em proporção ao que ele lhe dá como produto do seu trabalho.
Sucede assim, e nisto consiste a evolução, que no sistema de aquisição desaparece cada vez mais a força e aparece a justiça. Esta transformação de método é fundamental do ponto de vista utilitário a favor do indivíduo e de todos, porque quanto mais se evolui em direção à justiça tanto mais tudo tende a ordenar-se num regime de equilíbrio, o que significa segurança e estabilidade. Trata-se de uma lei universal que vemos funcionar também no plano físico, pela qual uma construção é tanto mais estável, quanto mais. está equilibrada. No plano social, a esta lei corresponde outra, pela qual uma posição está tanto mais garantida quanto mais corresponde à justiça. É por isto que uma justa distribuição dos bens é condição fundamental e premissa indispensável para obter a segurança da posse. Isto não é programa político, mas é lei biológica universal à qual não se foge. Se queremos segurança e estabilidade, não há outro caminho senão basear-se sobre um princípio de justiça. Quanto mais vastos sejam os fundamentos do instituto da propriedade, tanto mais ela será garantida, e ao contrário. Quanto mais vivamos num regime de ordem, tanto mais luta e incerteza serão eliminadas, e ao contrário.
Vemos assim que esta segunda intermediária de uma ordem limitada a um grupo social não é perfeita, mas que, no entanto, ela é necessária para passar da primeira fase, de luta e caos, à terceira de disciplina e ordem para todos, fase que representa a posição completamente orgânica da humanidade civilizada do futuro. Neste nível biológico mais avançado as forças da coletividade, em vez de chocar-se umas contra as outras, o que torna mais difícil a vida, se coordenam, somando-se em sentido positivo, o que facilita a vida. A isto a humanidade não poderá deixar de chegar, impulsionada pelo seu instinto de melhoramento no qual se manifesta o impulso ascensional da evolução. A tudo isto hoje não se chega ainda devido à ignorância das leis do fenômeno, pelo que não se compreende quanto mais útil seja para todos o novo método de vida. O que impede semelhante progresso é a resistência que o indivíduo opõe ao sacrifício da própria liberdade, que é forçada a permanecer dentro de normas disciplinares. O primitivo não compreende com que vantagens semelhante sacrifício é compensado. Mais para além da sua utilidade imediata, não vê o benefício de viver dentro de uma ordem que, se sufoca a sua liberdade, em compensação lhe garante a defesa e segurança das suas posições, como não é possível no mundo livre do primitivo. A sua liberdade custa-lhe caro. O homem na floresta não está sujeito a nenhuma obrigação social, porque ali não há nem leis, nem polícias, mas ele deve estar sempre armado para defender-se de tudo e de todos, o que não é necessário na cidade onde está ligado a determinadas normas de vida. Isto poderá parecer uma restrição, mas o primeiro vive em contínuo perigo, enquanto o segundo vive muito mais seguro.
3) O terceiro caso pertence ao futuro e será vivido pelas gerações mais evoluídas.
Resumindo: na evolução da propriedade temos três fases:
Na primeira não há senão guerra e caos. A propriedade pertence a quem consegue com qualquer meio dela apossar-se e até que lhe seja tirada por outro. Assim ela é de todos, o que é como se ela não fora de ninguém.
Na segunda fase há disciplina e ordem. A propriedade é protegida, se estabilizou, mas pertence só a um grupo limitado que constitui o primeiro núcleo da organização social. Mas a amplitude deste grupo vai sempre aumentando, até que na fase sucessiva abarcará a todos. Antigamente, ele era apenas uma aristocracia feudal (propriedade adquirida como conquista de guerra), e depois se ampliou como burguesia capitalista (propriedade adquirida com o trabalho produtivo). Acabará por tomar-se uma sociedade capitalista (na qual todos trabalham, produzem e possuem). Neste terceiro regime de capitalismo universal e de propriedade para todos aqueles que trabalham e produzem, não existirá mais o perigo das revoluções econômicas.
Na terceira fase, a propriedade não é exclusiva de uma classe. Ela será mais distribuída no sentido de que cada indivíduo com a vida recebe o direito a possuir o mínimo indispensável para viver, junto com o correspondente dever do trabalho. A evolução consiste no transformar o furto em trabalho e para todos este em propriedade e bem-estar.
A estas três fases de evolução da propriedade correspondem três fases da evolução da forma de trabalho:
1) Trabalho-guerra. Não há senão luta material agressiva para apossar-se de tudo com a força, sem nenhuma ordem ou limite.
2) Trabalho-serviço obrigatório. Ele é regulado e protegido, não para apossar-se de tudo, mas para produzir, no entanto sujeito à obrigação e a cargo só de uma parte da coletividade, às ordens de uma classe dominante que, com as leis e a força, mantém uma ordem com a qual ela domina a classe dos seus dependentes.
3) Trabalho-produção, livre e universal. Ele é igualmente regulado e protegido para produzir, mas não está só a cargo de alguns a favor de uma classe limitada, pelo contrário é o trabalho de todos a favor de todo o organismo social, trabalho livre e organicamente realizado para o bem-estar de todos e não só de um grupo privilegiado.
II - Propriedade-abuso, economia de furto e cálculo das conseqüências.
Observamos o trabalho e a propriedade no seu movimento evolutivo e vimos que ele consiste em substituir à liberdade desordenada a disciplina, ao caos uma ordem, ao estado de guerra um estado de paz, ao método do tudo lícito o dos recíprocos direitos e deveres. No primeiro caso o tudo permitido para mim o é também para os outros, enquanto no outro caso o mesmo fato de eu reconhecer os meus deveres a favor dos direitos dos outros me dá o direito de exigir a meu favor os deveres dos outros. A evolução produz vantagens. Se não as produzisse, a vida não aceitaria um esforço inútil e não evolucionaria.
Um negro africano dizia: "porque devo fazer o trabalho de criar a minha vaca quando, roubando-a ao vizinho, a encontro já pronta?" Limitado ao interesse pessoal, por uma mente que não sabe ver para além dos limites do momento e da esfera individual, este raciocínio pode parecer justo. Mas ele não pensava que, depois, um outro vizinho lhe roubaria de novo a vaca, porque fazia o mesmo raciocínio. Então a segurança de possuir a própria vaca deve ser paga com o dever de respeitar a vaca dos outros. Não há outro meio. Muitos gostariam de viver num mundo onde fosse possível roubar o próximo, sem que eles pudessem por sua vez ser roubados, isto é, gozando de uma propriedade garantida só para eles. Mas por reciprocidade, que é lei que vigora em todas as coletividades, isto não é possível. Aos desonestos agradaria viver num mundo de honestos generosos e desinteressados para tirar deles melhor proveito, mas não compreendem que, com semelhante método de ir à pesca dos bons, trabalham a favor de uma seleção dos piores. Acaba assim por ficar só um mundo de parasitas, que terminam por morrer, porque não se pode viver explorando-se uns aos outros sem nada produzir. A vida está regida por leis às quais ninguém pode fugir. A imbecilidade do ignorante consiste em crer que com a astúcia, se possa atuar em plena liberdade, sem se importar nada com essas leis. Acontece então que ele cai na sua própria armadilha, porque depois tem de pagar as conseqüências.
Observemos agora como funciona este fenômeno, que freqüentemente indivíduos e povos estão vivendo por sua incapacidade de entender a estrutura de tais leis. Poderemos assim compreender como e por que desmoronam nações que se baseiam numa economia de furto, em vez de numa economia de trabalho. Observemos os princípios gerais dos quais também este fato deriva. Não há dúvida que o universo, e dentro dele o nosso mundo, em todos os seus aspectos, está funcionando. Funcionar implica uma norma, uma lei que dirige e regula esse funcionamento. Uma lei presume uma inteligência que a formulou e uma vontade e poder que impõe que essa lei se realize nos fatos. É evidente que tudo isto não pode ser o homem a fazê-lo, o homem que de cada fenômeno não sabe senão pouco ou nada. Ele existe dentro destas leis e não pode fazer outra coisa senão obedecer, enquanto que, com a ciência, trata de compreender o que está acontecendo.
Um dos aspectos destas leis é o econômico, aquele que estamos agora observando. Então também neste terreno reafirma-se o princípio geral, isto é, que quem não obedece deve depois pagar as conseqüências. Nos meus livros calculei o valor destas conseqüências em proporção ao erro cometido. Aqui no entanto estudamos o caso particular do mundo econômico. Ora, da maneira pela qual vemos enquadrado o problema, conclui-se que a nossa posição não é a do moralista que exige ou pelo menos aconselha uma determinada conduta. Estas nossas palavras não são para ordenar, já que não temos poder para isso, nem para aconselhar, porque nos falta autoridade, nem para exigir porque respeitamos a liberdade de todos. As nossas palavras são para demonstrar quais as conseqüências que nascem, não por vontade nossa, porque elas são fatais, mas pela automática reação por parte destas leis, conforme nós as excitamos com a nossa conduta. Cada um permanecendo livre de fazer aquilo que quer, podemos só mostrar o que é inevitável que suceda depois como resposta àquilo que quisemos fazer. Pertence à lei e não ao homem corrigir a quem errou. Ela sabe, pode fazê-lo e o faz. Nada podemos acrescentar, ou tirar, ou modificar, na sua justiça. Não tem sentido intrometer-se. O que é necessário é entender como automaticamente funciona o fenômeno. Quando fazemos movimentos errados, contra a Lei, não se pode fugir à sua reação. Esta se manifesta por meio da dor que se encarrega de avisar o indivíduo que ele errou, fazendo-lhe assim passar o desejo de continuar errando. Para que acrescentar palavras às quais estamos acostumados a não prestar ouvidos, quando a dor é uma linguagem tão clara e convincente que todos a compreendem? É por isso que aqui estamos só explicando, porque todo o resto acontece depois de per si. Espomos portanto só uma constatação de fatos, uma fotografia objetiva do automático funcionamento do fenômeno, de modo que saiba o que lhe sucederá quem, dentro da Lei em cujo seio todos vivemos, ainda não sabe mover-se, chocando-se assim com ela e provocando conseqüências dolorosas. Quando um indivíduo se põe contra as normas da lei da gravidade violando-as, é esta lei que vence e não o indivíduo, que acaba por cair e matar-se. Pode ele com a sua força e astúcia. paralisar esta lei, de modo que- ela não funcione?
Para o indivíduo a presença da lei significa disciplina,. dentro de uma ordem que exige ser respeitada. Ora, se a posição à qual a Lei tende a levar tudo é equilíbrio e justiça, é evidente que os métodos humanos da força ou astúcia para dobrar a Lei ou procurar fugir a ela, não podem alcançar mais do que um êxito de primeiro momento, fictício, constituído em realidade só por um débito para com a justiça, divida que depois é inevitável ter de pagar. Sucede então que quem quer vencer é vencido, quem quer enganar é enganado. É a Lei que se encarrega de restabelecer o equilíbrio, que o ser rebelde queria violar. Daí se origina o princípio pelo qual quem faz mau uso de uma coisa, seja poder, riqueza, saúde, acaba por perdê-la. É pelo mau uso que tudo se gasta e morre. Assim uma propriedade maculada por desonestidade, furto, exploração do próximo, uma riqueza contra a justiça, é um fenômeno. desequilibrado que não pode manter-se de pé e portanto tarde ou cedo acaba por resolver-se, desfazendo-se. As forças negativas de que tal propriedade se constituem a corroem por dentro e não se detêm enquanto não tenham destruído. O abuso dá frutos imediatos, mas traiçoeiros. O jogo seguro é só o de longo prazo, o da honestidade.
É assim que quando a classe dirigente, que possui os meios e com isto o dever da direção do país, não cumpre a sua função, a vida a elimina. Assim nasceram a revolução francesa e a russa. O comunismo foi gerado primeiro pelos ricos que fizeram mau uso da sua riqueza, e o mesmo fenômeno está pronto a repetir-se em todos os países onde se verifique o mesmo fato. Não por vontade deste ou daquele grupo político, mas por lei universal, histórica e biológica. Ora quem compreendeu como funciona este fenômeno, sabe qual é o sistema para evitar tal desastre. Semelhante assalto à propriedade não pode verificar-se quando não haja sido violada a lei de equilíbrio, isto é, justiça. Equilíbrio é necessário entre direitos e deveres, e a posição torna-se desequilibrada, e por isto perigosa, quando se estabelecem só os direitos e se esquecem os deveres. O equilíbrio da justiça exige que o nosso direito possa nascer somente quando primeiro tenhamos cumprido o nosso dever em favor do direito dos outros, e que o direito dos outros possa nascer somente quando eles tenham cumprido o seu dever a favor de nosso direito. Se a nossa propriedade e riqueza for um privilégio de classe, defendida com a força, se este é o princípio sobre o qual se baseia a nossa posição, ninguém poderá impedir que os que estão fora deste grupo, logo que consigam assenhorear-se daquela força, a utilizem para sua vantagem, como a classe dirigente, com o seu exemplo lhes ensinou o que deve fazer. A força é coação que sustém posições desequilibradas que se mantém de pé enquanto aquela força as sustém e que a Lei mantém em contínuo estado de sítio, circundando-as constantemente e minando-as para destruí-las. A história nos ensina que o sistema da força não resolve, porque leva a um regime de continuas reações revolucionárias. Se já existisse justiça econômica e se o Evangelho fosse praticado e não só pregado, as revoluções nada teriam que fazer e não haveria a causa que as provoca. Quando não existe abuso, não há lugar para a correção. Então existe um método para evitar as revoluções. O mal é que o homem não está ainda bastante evoluído para saber usá-lo.
Então a lei é que propriedade e riqueza podem subsistir de uma forma estável só quando quem as possui cumpre os deveres relativos a elas. Somente nestas condições a vida respeita o direito de quem possui. Fora deste equilíbrio pode existir somente um estado de guerra contínuo pela diferença do que se possui. Há povos que ainda vivem nesta dura fase involuída de primitivos. A posição das nações mais civilizadas é a de tender a um equilíbrio cada vez maior entre direitos e deveres, o único fato que pode garantir a segurança do que se possui.
Um dos maiores abusos da propriedade e riqueza é o de aproveita-los como meio de luxo e ócio, em vez de cumprir com o dever de utiliza-las como meio para realizar um maior trabalho produtivo, em proveito da sociedade. Eis então que luxo e ócio, em vez de trabalho e produção, representam uma posição invertida, contra a Lei, que reagirá destruindo-a. A posição duradoura não é a da exploração dos outros para vantagem própria, mas aquela na qual quem possui trabalha a favor da utilidade coletiva.
Aqui não falamos de destruição do instituto da propriedade. Ao contrário o defendemos e é por isso que estamos descrevendo os fatos que conduzem à sua destruição. Conforme o uso que se faz da propriedade e da riqueza, os países do mundo podem dividir-se em duas partes: de um lado os povos trabalhadores que, num regime de livre iniciativa, usam o capital como instrumento de produção, fazendo-o frutificar com a sua atividade; do outro lado os povos ociosos e escravagistas, que usam o capital só como instrumento de ócio, para fazer-se manter pelo trabalho dos outros, julgados servos. Trata-se de duas formas mentais opostas. Perante o problema fundamental, que é o da produção dos bens, eis que no primeiro caso o capital representa um valor ativo, positivo, útil, a favor da sociedade e do seu melhoramento. No segundo caso ele representa um valor passivo, negativo, uma economia de exploração prejudicial para a sociedade, que assim piora as suas condições e se dirige à sua destruição, porque tudo isto absorve em vez de produzir.
Num país, quando se estabelece uma economia de furto em vez de trabalho e produção, quando prevalece uma estrutura social de exploração e o valor não está na capacidade produtiva, mas na organização parasitária, então naquele país o terreno está pronto para que as leis da vida fatalmente lancem aquela reação que se chama revolução e que hoje toma o nome de comunismo. Esta é constatação de fatos, é o diagnóstico do normal desenvolvimento da doença.
Procuremos agora, seguindo as leis da vida, estabelecer a medida para calcular o peso deste perigo. Observemos agora como neste caso essas leis funcionam nos três planos: físico, biológico, econômico.
No plano físico vemos que uma torre que está inclinada para um lado não cai até que o seu centro de gravidade, isto é, a perpendicular que desce do centro da circunferência superior da torre não toque o terreno fora da circunferência base da mesma. Há equilíbrios estabelecidos e tudo se desmorona quando se transpõem os limites fixados por eles.
No plano biológico um organismo doente não morre enquanto a sua resistência orgânica, isto é, o poder das suas células sãs for maior que o ataque microbiano ou que o poder tóxico das suas células doentes. Quando o primeiro é menor e o segundo é maior, então o organismo morre. Também neste caso constatamos a presença de equilíbrios e limites, passados os quais o fenômeno fatalmente se resolve com a morte do doente.
No plano econômico vigora a mesma lei de equilíbrio. Um organismo econômico pode suportar até 50% de furto, exploração, corrupção, falsidade etc.; mas quando este limite é passado, a doença torna-se mortal e aquele organismo se desagrega. Tudo o que existe é um edifício construído com vários elementos, segundo um plano básico em que tudo está estabelecido em função de determinadas proporções. O edifício se mantém de pé pelo fato de que são respeitadas determinadas leis de equilíbrio entre forças positivas e negativas. Quando prevalecem as primeiras o organismo resiste; mas quando prevalecem as segundas, então não pode deixar de desmoronar-se. Neste caso está demasiadamente deteriorada para que possa salvar-se, já que o limite estabelecido foi superado. Uma vez alcançado aquele ponto, a torre automaticamente cai; não se ganha nada em alimentar o doente com transfusões de sangue são, porque também este acaba por deteriorar-se misturando-se com o sangue corrompido; assim num regime econômico, baseado sobre a corrupção e sobre o furto, nada resolvem transfusões de ajuda econômica do exterior; elas acabam por misturar-se e fundir--se absorvidas neste tipo de economia cancerosa, tornando-se assim alimento não para o doente mas para a doença.
Eis o que nos dizem as leis da vida, as mesmas em todos os níveis. Mas elas nos dizem também qual é o remédio. Se há um limite por elas estabelecido, o remédio está em não o superar, porque agora sabemos que, para além dele, a salvação não será mais possível, e a lei resolverá o caso, destruindo a construção mal feita e para isto não suficientemente forte para ter direito à vida. Destruir a construção mal feita, no plano econômico, pode significar desagregar os elementos constitutivos de uma ordem social para reuni-los novamente noutra forma, segundo outros princípios, o que pode levar à destruição do instituto da propriedade, porque dela foi feito mau uso. Assim, observando o tipo de economia de uma nação, e o nível da referida percentagem, pode-se, com antecedência, fazer o diagnóstico do mal e prever o desenvolvimento da doença. Come se pode calcular o momento em que a torre cai, ou em que o doente morrerá, assim se pode calcular o momento em que num país pode estalar a reação da lei e por falta de equilíbrio pode desmoronar o edifício, para que tome o seu lugar outra forma de vida. Esta reação da lei é, como o micróbio que mata o doente, uma força encarregada pela vida de cumprir a função, para ela importante, de liquidar os ineptos e destruir tudo o que está corrompido. Aqui falamos como o faz o médico, não com o fim de matar, mas de salvar o doente. Mas com isso não se pode impedir que quem faz o mau uso da saúde, como da propriedade e riqueza, acabe por perdê-la, porque é lei da vida que tudo o que foi arruinado por mau uso seja destruído.
Tudo isto pode acontecer em alguns países que se encontram em tais condições. Mas o mundo, no seu conjunto, vai pelo caminho oposto, o do trabalho produtivo. O novo impulso do mundo moderno é: trabalhar. Nisto concordam capitalismo e comunismo que não são senão dois métodos para fazer a mesma coisa: trabalhar para produzir e assim elevar o nível de vida. Se a forma é diversa, a substância é a mesma. Neste ponto fundamental. Estados Unidos, Europa, Rússia, China etc., serão de acordo, porque estão realizando o mesmo programa de trabalho. Não podia ser de outra maneira, porque ninguém tem o poder de modificar as leis da vida. Se se quer o bem-estar, meta universal do homem civiliza- do. é necessário conquistá-lo. Não há ideologia ou programa político que possa modificar este estado de fato. Nenhum homem pode sair das leis que regulam a vida. Assim o trabalho hoje não é, como na Idade Média, reservado só aos dependentes, considerados servos, num mundo no qual para o senhor não era vergonha mas honra o não fazer nada. Hoje o trabalho é de todos, se bem que em forma diferente, isto é, de quem está no alto para dirigir, como de quem está em baixo para executar. Só nesta forma de trabalho produtivo, para todos, o organismo econômico poderá resistir a qualquer agressão e ficar de pé. Ele será são e forte e ninguém poderá vencê-lo.
III – O valor do Trabalho
A nova palavra de ordem do mundo moderno é: trabalhar. Um dos principais fatores da atual transição evolutiva da humanidade consiste nesta sua nova atividade que se está realizando, assumindo um conceito novo do trabalho, bem diferente do que tinha na Idade Média. Tal superação de forma mental implica imensas conseqüências no terreno da produção, da riqueza, da elevação do nível de vida.
Na Idade Média o valor não consistia em trabalhar e produzir, mas em saber guerrear para dominar e fazer do próximo o seu próprio servo, explorando o seu trabalho. A nobreza baseava-se sobre este princípio. Era respeitável quem, como cavaleiro valoroso, sabia tudo conquistar com a espada, isto é, roubando e matando. Quem trabalhava e produzia era um servo, sujeito ao seu senhor. O valor e a honra consistiam em submeter e em mandar sem trabalhar. Ser ativo no produzir, que é o que constitui as bases da vida e do bem-estar, era considerado vergonha de servos. O mundo vivia ainda numa fase caótica na qual valia apenas quem sabia vencer na luta. A pirâmide do regime feudal apoiava-se sobre a opressão do povo, a favor dos poucos que emergiam por gestas guerreiras pessoais, num regime de ócio e pirataria, para vantagem própria e não da coletividade. O guerreiro não trabalha e não produz, mas vive de rapina. Quando se tem tal conceito do trabalho e não se valoriza a primeira fonte de toda a criação, não se pode recolher senão miséria. A aristocracia era filha da espada, isto é, violência e abuso, depois tudo legalizado, tornado hereditário, constituído em castas munidas com as suas ordenações jurídicas defensivas.
É desta forma mental e tipo de economia que hoje, não importa se em forma capitalista ou comunista, o mundo está saindo. Tal transformação está facilitada pelo fato de a técnica científica ter dado mais rendimento ao trabalho. Os grandes valores daquele tempo, como a coragem agressiva, o instinto guerreiro, a honra de soldado, o amor à pátria etc., estão passando de moda, porque não são mais estas as qualidades que servem para a sobrevivência do grupo, que portanto não tem mais razão Para exaltá-las. Com a nova técnica de guerra atômica têm mais valia o cientista e o organizador industrial e produtor de meios bélicos do que o feroz líder de exércitos; para a vida hoje são mais úteis a inteligência e o trabalho do que o primitivo instinto do guerreiro. Exalta-se assim mais do que o domador de homens, o dominador das forças da natureza.
Esta transformação de método de vida tem a sua profunda razão biológica. No passado a vida tinha necessidade de produzir um biótipo capaz de vencer para sobreviver num ambiente hostil. Hoje, pelo contrário, semelhante tipo de lutador é um gerador de atritos que se torna cada vez mais contraproducente numa sociedade coletivamente organizada. Pelas novas condições de vida, que apresentam utilitarismos de outro tipo, se tende assim a relegar para o terreno dos não civilizados ou delinqüentes, os guerreiros, antigamente triunfadores nos campos de batalha. Na atual passagem de grau de evolução a vida quer selecionar um outro tipo mais adequado às suas novas condições. No seu desenvolvimento a humanidade não pode deixar de seguir a lei das unidades coletivas, pela qual a evolução dá origem a unificações cada vez mais vastas dos elementos componentes. Ora em tal processo os individualismos separatistas por excessivo egocentrismo, antigamente preciosos para a sobrevivência, se tornam um perigo social que a coletividade procurará afastar do seu seio. Não há dúvida que a vida da humanidade em nosso planeta está tomando agora esta nova direção orgânica, de que as formas socialistas, comunistas, coletivistas etc., representam as primeiras tentativas de realização. Chegar-se-á assim a eliminar completamente o atrito dispendioso e a pesada passividade do guerrear, e a isolar, como um indivíduo à margem da lei, que não sabe enquadrar-se nesta nova ordem, depois de um trabalho tão fatigante de milênios hoje finalmente alcançada. Assim à medida que se vai formando uma maioria do novo tipo de homem, o velho, no qual persistem os instintos atávicos do involuído, será cada vez mais empurrado para a margem da sociedade, até ser expulso como elemento anti-social. E, pelo contrário, se afirmará o tipo evoluído que soube tornar-se adequado às novas condições de vida, isto é, o indivíduo pacífico, inteligente, ativo, apto a produzir com o seu trabalho o bem-estar no seio de uma sociedade que se tornou por evolução de um amontoado caótico num organismo coletivo.
É assim que hoje o homem, nas novas condições de ambiente, transformando a sua forma mental e chegando a um novo modo de conceber a vida, por sua vez reage sobre o ambiente, transformando-o mais rapidamente, entrando assim e fixando-se cada vez com maior estabilidade numa fase de evolução, como novo tipo biológico. A vida se encaminha deste modo para a superação das suas formas passadas, baseadas na lei da luta pela seleção do mais forte, do individualista egocêntrico anti-social, e se prepara para a construção de um novo homem social, adequado a viver já não guerreando no caos, mas como um elemento que forma parte de uma coletividade orgânica. Passar do estado caótico ao estado orgânico representa um imenso salto para a frente e implica uma mudança radical de método de vida. De resto é natural que, passando de um nível evolutivo a um superior, variem também as leis às quais o ser está sujeito e que portanto, neste caso, a lei animal da luta pela seleção individualista do mais forte seja abandonada para favorecer, pelo contrário, a seleção do mais adequado a viver em vez de isolado no caos, unificado com os seus semelhantes em forma orgânica. A biologia não deve ser concebida como fenômeno estático, mas dinâmico, isto é, não só em função de um dado tipo de lei, mas de uma série de tipos de leis, em contínua evolução, constituindo outros tantos degraus do caminho ascensional do ser. É natural então que, agora que o homem está para sair da sua fase animal, ele se afasta também da lei correspondente, que é a da luta por esse determinado tipo de seleção.
De cada fenômeno existem sempre as razões profundas e procurando-as, pode-se chegar às primeiras origens dele. O método preponderantemente animal, com o qual a vida humana funcionou até agora é de tipo involuído, atrasado, mais próximo da extremidade negativa da existência, que chamamos Anti-Sistema, do que da extremidade positiva, que chamamos Sistema. Segundo o nosso conceito de biologia em evolução, a cada plano de existência corresponde uma sua lei a ele proporcionada. Ora o método ainda vigente no nível atual animal-humano, isto é, o uso da força, imposição, coação, dependentes de um dominador que quer reduzir tudo em função do seu próprio egocentrismo, é o método do ser anárquico rebelde do Anti-Sistema. Mas dentro deste ficou Deus imanente, isto é, continua contra essa tendência de desordem funcionando, intimamente, com ação constante, corretiva, a tendência oposta para repor tudo na posição de ordem, equilíbrio e justiça, que é a do Sistema. O significado profundo do fenômeno da transição evolutiva que a humanidade está hoje cumprindo, consiste precisamente na deslocação que nos afasta um passo mais do Anti-Sistema e nos avizinha do Sistema.
Vemos esta transformação atuar nos campos mais diversos, que representam casos particulares dos referidos princípios gerais. Um destes casos é o que está hoje em ação, da emancipação da mulher. Referimo-nos a ele porque tal fenômeno está conectado com o da propriedade e do direito do mais forte. Efetivamente a posição da mulher no passado estava determinada pelo princípio que ela era propriedade do homem, tendo sobre ela direito somente em virtude da sua força. Se ela encontrava nele o dono que a possuía, encontrava também o proprietário que a defendia como coisa sua. Este conceito de mulher-propriedade prevaleceu durante milênios, porque convinha também a ela, resolvendo-lhe o problema, para ela grave, da defesa. Então ela devia consequentemente possuir uma personalidade adequada a tais condições de vida, isto é, devia primeiramente obedecer, servir, pensar com a cabeça do homem como um seu apêndice, ter os gostos dele porque, por direito divino fabricado por ele com a sua força, era o dono. Mas dono significava também aquele que sabe fazer a guerra para defender o grupo familiar dos inimigos, aquele que leva para casa a presa da caça para o alimento, ou seja, nos tempos modernos, o equivalente soldo para viver.
Enquanto nos países mais atrasados a mulher continua na posição de coisa possuída, o que lhe permite viver no ócio, o novo conceito correspondente ao dinamismo dos tempos modernos, a mulher que trabalha e produz. Vemos também aparecer neste campo a função e o valor do trabalho, o que entra em nosso tema. Este fato dá à mulher a independência econômica, o que implica importantes conseqüências, de fato a deslocação da sua posição. É assim que quem leva para casa os meios para viver não é só o homem, o que coloca a mulher no seu mesmo nível, que não é mais o de serva sua. Paralelamente, o homem, não tem mais apenas uma dependente a manter, funcionando como espelho no qual ele possa ver refletida a potência da sua força, mas tem junto de si uma colaboradora, uma companheira de luta que se coloca a seu lado no mesmo trabalho produtivo, uma aliada ativa, não uma coisa inerte possuída.
A superação evolutiva reside então no fato de que a união não se faz mais segundo o princípio da imposição forçada, conforme a lei biológica do animal, mas se realiza segundo o princípio orgânico-colaboracionista, que, por evolução, se vai afirmando em novo nível biológico que a humanidade se prepara a conquistar. Neste plano de vida vigora de fato uma outra lei, a da coordenação entre direitos e deveres, a da cooperação e não da luta entre elementos componentes. A união então realiza-se entre dois seres que compõem um par de forma diferente mas do mesmo valor, os quais se acasalam somando as suas capacidades produtivas. Então o valor e a honra que o defende, residem naquela capacidade. Assim avança o fenômeno evolutivo que está agora em ação, pelo qual o biótipo humano passa do nível animal, isto é, ventre, sexo, luta e trabalho físico, ao nível do qual, pelo contrário, prevalecem as funções nervosas e cerebrais, isto é, mente e inteligência. O fenômeno evolutivo avança em todos os seus aspectos. Também a procriação será realizada com sentido de responsabilidade, porque ela implica o dever da educação, base de civilização. Antigamente o homem gerava como o faz o animal. Uma vez nascido o filho, depois de rápidos cuidados maternos, ele era abandonado a si mesmo. Hoje fazer isto significa lançar na rua indivíduos que amanhã serão um perigo social, lançar nas costas da coletividade o peso morto de muitos seres inadaptados à vida civil, para manter com o trabalho dos outros. A natureza admite a abundante e indiscriminada procriação nos primitivos, para depois selecioná-los, matando uma boa parte deles. Nos países civilizados, para manter o nível alcançado, e não retroceder à barbárie medieval, é necessário, mais do que produzir a quantidade, selecionar a quantidade; mais do que uma prole abandonada e dizimada pela natureza, uma prole protegida para sobreviver, e depois ser educada para ter condições de produzir, servindo de ajuda e não de obstáculo ao progresso. Como se vê, em relação ao passado, as leis do novo plano biológico são diversas. E para evoluir, não se pode deixar de utilizá-las.
Eis que os mais diversos problemas da existência são nos tempos modernos vistos e resolvidos em forma diferente do passado. Aos nossos antepassados isto pareceria uma desapiedada exposição de verdades recônditas, que era conveniente não deixar ver. Mas o querer hoje banir estas verdades acomodadas ao uso do mais forte vencedor, é um ato de sinceridade que conduz à clareza e com isto à mais exata compreensão e justa solução dos problemas da vida. É mais honesto basear-se e procurar diretivas sobre leis biológicas positivas, racionalmente controladas, que sobre proclamados direitos divinos ou artificiais legalizações de interesses do grupo dominante. Hoje se começa a pensar e se quer ver e saber o que há atrás do cenário das aparências, das verdades gratuitamente afirmadas; quer-se saber o porquê do lícito e do ilícito. Para as mentes simples dos nossos pais bastavam as poucas regras da vida civil, ditadas pela religião e pela lei, para que tudo se resolvesse, observando-as. Isto era suficiente para fazer o bom cristão e o cidadão, a pessoa de bem, ainda que aquelas regras deixassem uma larga margem de escapatórias e permitissem uma elasticidade de atuação, que o conhecimento das leis biológicas, e uma ética positiva sobre elas baseada, não permite. Esta é u'a imoral mais profunda, que penetra na estrutura psicológica do indivíduo, antigamente fenômeno ignorado, assalta-o com a psicanálise, mas também o compreende, o ajuda, reconhece-lhe os direitos, clareando aquela névoa de mentiras a que ele estava constrangido por legítima defesa. Antigamente, cumpridas as vigentes regras formais, sancionadas pelo consentimento no qual a maioria, em defesa dos seus interesses achava conveniente concordar, era fácil fugir-lhes, continuando a satisfazer os seus desejos, desde que se soubesse camuflar debaixo das belas aparências. Mas quando a ética se baseia sobre leis da vida e se penetra no subconsciente até à raiz dos nossos pensamentos e atos, então a ficção não serve, as velhas armadilhas não funcionam mais. É mais honesto dizer que não se crê em muitas coisas, que simular que se crê e procurar fazer crer aos outros que se crê nelas, para poder assim fazer melhor os seus próprios negócios. O ateísmo é um erro. Mas é melhor a sinceridade do ateu, do que a religião da hipocrisia. Como um grande vento, a ciência, com a sua forma mental positiva, se encarrega de desmantelar tantas superestruturas seculares, que são também compromisso, contorção de verdades, adaptações cômodas, quando não são diretamente artifícios para esconder injustiças. O problema terreno está reduzido aos seus elementos essenciais: só quem trabalha e produz, isto é, dá à sociedade o equivalente daquilo que dela recebe, tem direito de ser cidadão. Conceito simples, posição clara, balanço de direitos e deveres, sem possibilidade de pretextos que permitam o ócio. Sã e saudável lei do trabalho, psicologia retilínea, filosofia dura mas honesta, aderente à realidade da vida. Valorização do trabalho, bem feito e bem pago, mas liquidação de quem não o faz ou faz mal.
Com esta nova forma mental o indivíduo vale pelo que sabe fazer, pela sua capacidade produtiva, pela sua atividade de trabalhador. A divisão mundial entre capitalismo e comunismo torna-se problema secundário perante o problema fundamental que, no plano econômico, é o de produzir. Só depois, quando se produziu, pode surgir o problema de como distribuir. Mas quando não há senão miséria, mesmo que se queira distribuí-la, permanece miséria. Insiste-se na distribuição antes da produção, porque o homem atua ainda com a psicologia do primitivo, aquele que vimos anteriormente que resolvia tudo roubando a vaca do vizinho, sem compreender que semelhante sistema é o caminho aberto não ao bem-estar mas às revoluções, isto é, destruição e pobreza, em vez de produção e abundância. O que leva a semelhante psicologia é também o fato de que freqüentemente prevalece o conceito de propriedade-ócio-exploração, sobre o de propriedade-trabalho produtivo.
É verdade que o capitalismo se torna um mal quando o rico é só um parasita, economicamente negativo, que sem trabalhar vive à custa de quem trabalha, fazendo-se assim manter pela sociedade. Quando o capital não serve para produzir mas para o ócio e para gozar, quando a riqueza se adquire com o furto e se mantém com o trabalho dos outros em vez do seu próprio, é claro que então, tendo-se ela tornado um mal, a vida procura eliminá-lo. Este é um princípio daquela ética biológica da qual agora falávamos, à qual era possível fugir no passado, mas hoje não. Quando em qualquer campo político religioso econômico social se insurge contra uma instituição não é esta em si a que é combatida, mas sobretudo o mau uso que dela se faz. Então para eliminar o abuso, procura-se destruir a instituição, para substituí-la por uma diferente, freqüentemente sem compreender que, enquanto o homem continua sendo o mesmo, ele será levado a realizar à custa de nova instituição, os mesmos abusos de antes, com as mesmas conseqüências agora observadas.
A história mostra-nos quais são as causas destas reações, que a vida desencadeia precisamente para libertar-se de um mal e reconquistar a saúde. Sabemos assim de que depende o ateísmo e como na medicina se conhecem as condições que preparam o terreno onde pode atacar uma doença, sabemos qual é num país a conduta que abre as portas ao comunismo. Como há indivíduos, pela sua estrutura orgânica predestinados a uma determinada doença assim há países predestinados ao comunismo. A culpa é do doente que com o abuso gastou o seu organismo, oferecendo com isso um convite ao assalto do mal. Assim a natureza põe à prova o indivíduo: ou sabe defender-se, vence e se cura; ou, pelo contrário, morre e é substituído. Também tudo isto forma parte da moral biológica, que trabalha com fatos e não com palavras. Então os povos trabalhadores invadirão a terra daqueles que o ócio fez ineptos, porque hoje não é mais lícito manter improdutivo o capital de um país rico de recursos naturais, sem o explorar. Dado que tal inaptidão pesa sobre a economia mundial, a sociedade humana, cedo ou tarde, acabará por realizar essa expropriação forçosa por razões de utilidade pública.
Mas como se explica esta tendência a tornar-se preguiçoso no parasitismo, que vemos aparecer logo que um indivíduo ou uma classe social alcança o bem-estar? Trata-se de um repouso que a vida concede aos que acabaram de triunfar, porque é merecido pelo esforço da conquista. Mas o mal é que eles quereriam acomodar-se definitivamente na bela posição de descanso, e então a vida os expulsa. Eles tratam de estabilizar definitivamente o nível alcançado, fixando-o e protegendo-o com leis e instituições, em formas hereditárias, de modo a poder conservar tudo para sempre. Mas é precisamente neste momento, em que crêem ter resolvido o problema da sua situação, que a vida começa a trabalhar contra eles. A existência fácil torna-os ineptos. A vida deixa que aqueles que perdem o exercício da luta se debilitem para elimina-los. Entretanto os excluídos do banquete, conservados despertos pela fome, os não triunfadores, empurram de baixo para chegar à superfície e se estão continuamente exercitando para o assalto. Enquanto os que gozam de bem-estar se debilitam, eles se exercitam e se fortificam. Os dois fenômenos, seguindo caminho oposto, tendem ao mesmo ponto, que é aquele em que, perante uma aristocracia debilitada, incapaz de defender-se, levanta-se o assalto dos rebeldes, tornados fortes pela vida dura, prontos a tudo devido ao desespero. Eles têm consigo as leis da vida, que quer o esforço e a vitória, e está pronta a premiá-la na medida que ela merece. A vida quer ao mesmo tempo também que esses rebeldes sejam utilizados como elementos de destruição desse não-valor biológico que aqueles ineptos representam, porque esta é a lei, isto é, que quem nada vale não tem direito à vida. Então enquanto se encerra o ciclo dos antigos triunfadores agora já em descida e liquidação, se inicia o dos novos que o realizarão todo, terminando-o em descida, como fizeram aqueles que eles eliminaram. Estas são as ondas segundo as quais se efetua a evolução humana na sua parte mais material, a do plano econômico. Este processo depende de uma lei geral que vemos realizar-se em menor escala para os indivíduos e famílias, seja em maior escala para as nações e povos.
Haveria um meio de evitar estes desmoronamentos, isto é, que os triunfadores usassem da sua posição privilegiada em benefício da coletividade e não só de si mesmos, como função social e não egoísta individual, procurando cumprir, no seio do organismo em que vivem, a parte que lhes corresponde como dever e não só aquela que eles proclamam como direito. Quando por evolução a sociedade humana chegar ao estado orgânico, a classe dirigente que dispõe dos meios de subsistência e das alavancas de comando, não pode ser mais a massa amorfa dos vencedores da vida que para se banquetearem se sentam sobre as costas dos vencidos, mas deve constituir, no organismo social, o grupo dos elementos escolhidos, das células selecionadas, colocadas no alto exatamente para cumprir, como o faz o cérebro, as funções diretivas e não as inferiores do estômago só para engordar. Numa evoluída sociedade orgânica, a atividade de cada elemento se coordena com a dos afins em função da utilidade coletiva. É assim, numa nova posição cada vez mais unificada, reabsorvido gradualmente o desagregante e egocêntrico separatismo individualista da precedente fase caótica. Então a posição de dirigente não é mais para conquistar em benefício próprio, mas função social com o objetivo da utilidade coletiva. Muda completamente o modo de entender o significado da própria posição privilegiada. Hoje com freqüência, especialmente nos países mais atrasados, as células dos tecidos musculares colocam-se no lugar das nervosas e cerebrais, não para produzir energia volitiva e pensamento, mas para extrair para si a produção alheia e as vantagens da coletividade. Esta é política cancerosa que mata o país. Numa humanidade civilizada, as células de tipo menos evoluído permanecerão no lugar que lhes corresponde para cumprir a função de que são capazes, porque corresponde à sua natureza; elas permanecerão ali para obedecer e executar. Mas por outra parte as células nervosas e cerebrais não abusarão da sua superioridade de dirigentes, mas exercitarão o seu domínio para a vantagem de todos, incluídos aqueles que estão em grau evolutivo subordinado; e. assumirão a responsabilidade e todos os deveres inerentes à sua posição de comando, exercitando-o somente para o fim supremo de todos, que é o bem coletivo. Deste exemplo se vê quão distante estamos ainda de uma sociedade civilizada, que verdadeiramente mereça tal nome.
Pode-se assim compreender como, mesmo hoje, quem se encontra no alto da escala social e não entende esta sua posição como função coletiva, mas só como utilidade pessoal, sem cumprir todo o trabalho que lhe corresponde, atraiçoa a sociedade de que faz parte. se ele deste modo abusa, com o seu exemplo ele semeia em todo o país o costume do abuso, educa para o mal, com as suas mãos forma uma raça de revoltados, prontos a saltar-lhe em cima, ou também de servos traidores dos quais não obterá senão mentira e engano. É inútil iludir-se que baste cobrir tudo com belas aparências. Quem está em baixo olha a substância, e quando esta queima, fica impressa no subconsciente, que um dia tomará a sua vingança. O exemplo que desce do alto é uma tremenda autorização à imitação, sobretudo quando convém, mesmo que se saiba que é mau. Assim a corrupção rapidamente se estende, invade e infesta tudo. Os astutos, que crêem saber enganar, acabam por receber de volta a mesma mercadoria que eles põem em circulação. Numa sociedade tudo funciona por reciprocidade e o mal não pode deixar de regressar à sua fonte. Quando no tão declamado sistema da liberdade se excede, cai-se na desordem, que é o estado que preludia as mais graves doenças sociais. Como poderia não desagregar-se- um organismo em que as funções cerebrais fossem executadas por células selecionadas de tecidos menos evoluídos, ou pior ainda por células de tecido canceroso?
A economia de furto é uma economia negativa de destruição, não positiva, de produção, é uma atividade parasitária em favor da doença, não da saúde, é a economia do cancro que prospera matando. O câncer é um pseudo-organismo, baseado sobre a anarquia é a desordem, sobre o egocentrismo separatista, o que significa um estado de primitivismo, uma posição involuída atrasada isto é, mais perto do caos do Anti-Sistema do que da ordem do Sistema. É tal posição involuída que implica na ignorância, da qual depende a incapacidade de compreender as vantagens de viver pelo contrário num estado orgânico, de disciplina e ordem. Pela lei das unidades coletivas a evolução realiza-se por unificações sempre mais vastas. É assim que quanto mais involuído é o indivíduo, tanto mais ele ficará egoisticamente isolado em guerra contra os seus próprios semelhantes (estado caótico, em que domina a lei da luta pela vida); e quanto mais evoluído for o indivíduo, tanto mais ele será induzido a unificar-se com os seus próprios semelhantes, (estado orgânico, no qual domina a lei da colaboração).
As células do câncer são involuídas, e é por isto que são incapazes de coordenar-se num organismo autônomo com um governo próprio central, isto é, de alcançar semelhante grau de unificação. Por esta sua incapacidade não sabem viver senão parasitariamente, apoiando-se num outro organismo, reproduzindo-se desordenadamente num regime de caos que se pode ver quão longe está do baseado na especialização de funções, depois coordenadas em colaboração, para constituir um organismo coletivo. Isto mostra como estão atrasadas aquelas células na sua capacidade de constituir-se em unidade, que é o que revela o grau de evolução.
Trouxemos este exemplo das células do câncer para fazer compreender a forma e o porquê da conduta de cada elemento de uma sociedade humana primitiva. Eles não sabem funcionar todos em conjunto, organicamente, mas só como rivais, anarquicamente. É a sua involução que os leva ao separatismo, pelo qual em vez de se coordenarem, rebelam-se a qualquer disciplina, põem-se a lutar para dominar, refratários a qualquer função unitária. Os indivíduos que aplicam a economia do furto, como as células do cancro, correspondem aos elementos de uma sociedade primitiva. Do mesmo modo que elas não se enxertam na ordem do organismo que as hospeda, para cooperar, mas tornam-se egoisticamente inimigos dele, assim aqueles indivíduos, em vez de cooperarem para produzir, põem-se a roubar, e em vez de unir-se opõem-se à coletividade para explorá-la. A sua natureza de involuídos não lhes permite compreender mais e atuar melhor. Como elementos inconscientes, eles atacam, devoram, acabam assim por matar o organismo em que vivem e morrem dentro dele.
A grande revolução moderna é a revolução do trabalho. Ela foi possível graças aos novos meios produtivos da técnica industrial. A humanidade prepara-se para dirigir a sua atividade de conquista cada vez menos para a guerra e cada vez mais para o trabalho. O mundo pôs-se hoje a trabalhar, não importa se em forma capitalista ou comunista. Se o comunismo tentou destruir a propriedade isto sucedeu porque ela se havia transformado em base de parasitismos, de abusos anti-sociais. As revoluções aparecem quando há que pagar essas culpas e sanear essas doenças. Nos Estados Unidos, onde possuir serve para trabalhar e produzir mais, não há nenhuma necessidade de destruir a propriedade a fim de fazer a revolução do trabalho, porque ela já está feita. Esta é necessária onde os ricos não trabalham e extraem o seu bem-estar do trabalho dos outros. Mas onde o capitalismo é um meio para trabalhar e produzir, não há nenhuma razão para que deva ser eliminado.
Este perigo, por mais absurdo que pareça, pode subsistir no seio do próprio comunismo, e veremos como. Ele não destruiu a propriedade, o que é impossível, mas só a atribui diversamente, fazendo-a subsistir em forma de capitalismo de estado. Eis que subsiste o perigo que anteriormente mostramos, pelo qual pode acontecer que os novos triunfadores, para gozar o fruto dos seus esforços, tomem os defeitos daqueles que substituíram, encaminhando-se assim para o mesmo fim. Uma revolução econômica e uma ideologia não têm o poder de transformar a natureza humana. Existe então o perigo de que a classe política dirigente, que tomou o lugar da antiga aristocracia, acabe por imitar a atuação e repetir os seus erros com as mesmas conseqüências, o que é tanto mais fácil quanto mais envelhece a revolução, isto é, se afaste das condições que determinaram o impulso de origem.
O despertar da humanidade baseia-se na produção de meios que lhe assegurem a sobrevivência. Isto é o que interessa à vida. Este despertar de atividade trabalhadora e produtora, combinado com o imenso rendimento que lhe pode dar a moderna organização científica, e a tendência a um coletivismo unitário, representam um novo modo de compreender a vida, e devido aos seus efeitos, assimilam a passagem de uma época a outra. Algumas nações já entraram nesta nova fase, libertando-se do passado e renovando-se plenamente. Mas há povos que, preguiçosos e pobres, permanecem ainda apegados a uma forma mental contraproducente, li- gados a uma moral de honra e desonra, de patrão e servo. que corrói toda a colaboração, produzindo só luta, rancores, caos, e por fim destruição de todos. Os mais progressistas começam, pelo contrário, a compreender que é mais conveniente pôr-se a trabalhar e produzir com o trabalho organizado do que pôr-se a roubar e explorar com a forca ou astúcia. A própria psicologia de guerra, com a balança do terror, isto é, a perspectiva de acabarem todos destruí- dos num mundo em alarme, está sujeita em parte a ser refreada. Eis que toda a psicologia medieval representa um modo de viver do qual o mundo procura afastar-se em direção a uma sua nova maturidade e superação evolutiva. Começa-se a compreender que é mais conveniente, em vez de gastar as energias em atritos, canalizá-las em direção ao trabalho produtivo. Assim se vão desvalorizando os velhos sistemas e cada vez mais se aprecia este que dá mais rendimento. Chegar a compreender uma nova verdade é o trabalho mais difícil, mas biologicamente o mais importante; possuí-la é o resultado de fatigantes experiências, mas representa a capacidade de assumir novas direções na evolução da vida. Adquirir uma nova verdade significa enriquecer o próprio patrimônio com conhecimento e potência, ter ascendido evolutivamente, com todas as conseqüências que tal fato implica; significa ter dado um novo passo em direção ao alto entrando num mais elevado nível de vida. Neste caso a nova verdade consiste no ter compreendido o valor do trabalho.
Fim.
[1] V. A Nova Civilização do Terceiro Milênio – Cap. V. “As Grandes Unidades Coletivas”. (N. da E.)
[2] Pietro Ubaldi (1886-1972) – (N. da E.)
[3] GUENOT – Conferência do padre Teilhard ao “Viking Fund” (N. do A.)
[4] Problemas do Futuro – Cap. III: “Experiências em Biologia Transcendental” (N. da E.)
[5] O Ser e o Nada
[6] V. os livros: A grande Síntese, Deus e Universo, O Sistema e Queda e Salvação.