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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Paulo e Estevão-Parte 2- Francisco Cândido Xavier

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— Quem te deu semelhantes idéias? — perguntou o jovem ralado de angústia.

- Esta noite, depois que partiste, senti que alguém se aproximava enchendo o quarto de luz... Era Jeziel que vinha ver-me... Ao avistá-lo, lembrei-me de Jesus no inefável mistério da sua ressurreição. Anunciou-me que Deus santificava os nossos propósitos de ventura, mas que eu seria levada ainda hoje à vida espiritual. En­sinou-me a quebrar o egoísmo de minhalma, encheu-me de bom ânimo e trouxe-me a grata nova de que Jesus ama-te muito, tem esperanças em ti!... Refleti, então, que seria útil entregar-me jubilosa às mãos da morte, pois, quem sabe, se ficasse no mundo não iria perturbar a missão que o Salvador te destinou... Jeziel afirmou que nós te ajudaremos de um plano mais alto! Por que, então, deixarei de ser tua companheira?... Seguirei teus passos no caminho, levar-te-ei onde se encontrem nossos irmãos do mundo, em abandono, auxiliarei teus racio­cínios a descobrir sempre a verdade!... Ainda não aceitaste o Evangelho, mas Jesus é bom e terá algum meio de nos unir os pensamentos na verdadeira com­preensão!...

O esforço da moribunda havia sido imenso. A voz extinguira-se-lhe na garganta. De seus olhos, profun­damente lúcidos, as lágrimas corriam abundantes.

— Abigail! Abigail! — gritava Saulo desesperado.

Mas, após longos minutos de angustiosa ansiedade, ela dizia num arranco supremo:

— Jeziel já veio ... buscar-me...

Instintivamente, Saulo compreendeu que era chega­do o momento fatal. Em vão chamou pela moribunda, cujos olhos se empanavam; debalde lhe beijou as mãos geladas, agora cobertas de um palor de neve translúcida. Como louco, gritou por Zacarias e Ruth. Esta, soluçante, desfeita em pranto, abraçou-se a Abigail que, desde a morte do filho, resumia todo o seu tesouro maternal.

A agonizante fixou o olhar, respectivamente, em cada um, como a evidenciar amoroso agradecimento. Depois... uma só lágrima silenciosa foi o seu último adeus.

Do jardim próximo chegavam perfumes brandos; o céu crepuscular tonalizava-se de nuvens aurifulgentes, enquanto os pássaros em recolhida cruzavam os ares alegremente...

Pesada amargura abatera-se sobre a mansão da estrada de Jope. Alara-se ao céu a filha dileta, a noiva amada, a amiga carinhosa das flores e dos passarinhos.

Saulo de Tarso ali se deixou ficar mudo, estarrecido enquanto Ruth, lavada em lágrimas, cobria de rosas a morta adorada, que parecia dormir.

10

No caminho de Damasco

Durante três dias, Saulo deixou-se ficar em com­panhia dos amigos generosos, recordando a noiva ines­quecível. Profundamente abatido, procurava remédio para as mágoas íntimas, na contemplação da paisagem que Abi­gail tanto amara. Como triste consolo ao coração deses­perado, buscava inteirar-se das preocupações da morta nos últimos tempos e, de olhos úmidos, ouvia as refe­rências carinhosas de Ruth a tudo que se relacionava com a morta querida. Acusava a si próprio de não haver chegado mais cedo para arrebatá-la à enfermidade dolo­rosa. Pensamentos amargos o atormentavam, tomado de angustioso arrependimento.

Afinal, com a rigidez das suas paixões, aniquilara todas as possibilidades de ven­tura. Com o rigorismo da sua perseguição implacável, Estevão encontrara o suplício terrível; com o orgulho inflexível do coração, atirara com a noiva ao antro inde­vassável do túmulo.

Entretanto, não podia esquecer que devia todas as coincidências penosas àquele Cristo cruci­ficado, que não pudera compreender. Por que topava, em tudo, traços do carpinteiro humilde de Nazaré, que seu espírito voluntarioso detestava? Desde a primeira con­trovérsia na igreja do “Caminho”, nunca mais conse­guira passar um dia sem encontrá-lo na fisionomia de algum transeunte, na admoestação dos amigos, na do­cumentação oficial das suas diligências punitivas, na boca dos míseros prisioneiros. Estevão expirara falando nele com amor e júbilo; Abigail nos últimos instantes consolava-se em recordá-lo e o exortava a segui-lo. Por todo esse acervo de considerações que se lhe represavam na mente exausta, Saulo de Tarso galvanizara o ódio pessoal ao Messias escarnecido. Agora que se encontrava só, inteiramente liberto de preocupações particulares, de natureza afetiva, buscaria concentrar esforços na puni­ção e corretivo de quantos encontrasse transviados da Lei. Julgando-se prejudicado pela difusão do Evangelho, renovaria os processos da perseguição infamante. Sem outras esperanças, sem novos ideais, já que lhe faltavam os fundamentos para constituir um lar, entregar-se-ia de corpo e alma à defesa da Lei de Moisés, preservando a fé e a tranqüilidade dos compatrícios.

Na véspera do seu regresso a Jerusalém, vamos en­contrar o jovem doutor em conversa particular com Za­carias, que procurava ouvi-lo atentamente.

— Afinal de contas — exclamava Saulo sombria-mente preocupado —, quem será esse velho que conse­guiu fascinar Abigail, a ponto de ela abraçar as doutrinas estranhas do Nazareno?

— Ora — replicava o outro sem maior interesse —, é um desses miseráveis eremitas que se entregam comu­mente a longas meditações no deserto. Zelando o patri­mônio espiritual da pupila que Deus me confiou, indaguei da sua origem e das atividades de sua vida, chegando a saber que se trata de um homem honesto, apesar de extremamente pobre.

— Seja como for — objetava o rapaz com austeri­dade —, ainda não pude compreender os motivos da tua tolerância. Como não te insurgiste contra o inovador? Tenho a impressão de que as idéias tristes e absurdas dos adeptos do “Caminho” contribuíram, de modo deci­sivo, para a moléstia que vitimou a nossa pobre Abigail.

— Ponderei tudo isso, mas a atitude mental da querida morta revestiu-se de imensa consolação, depois do contacto com esse anacoreta honesto e humilde. Ananias tratou-a sempre com profundo respeito, aten­deu-a sempre alegre, não exigiu qualquer recompensa, e assim procedeu com os próprios empregados, revelando uma bondade sem limites. Seria, então, lícito impugnar, desprezar benefícios? É verdade que, na esfera de minha compreensão, não poderei aceitar outras idéias além das que nos foram ensinadas por nossos avós, respeitáveis e generosos; mas não me julguei com o direito de subtrair aos outros o objeto de suas consolações mais preciosas. Tua ausência, ao demais, colocou-me em situação difícil. Abigail fizera da tua pessoa o centro de todos os seus interesses afetivos. Sem compreender as razões que te levaram a desaparecer de nossa casa, compadeci-me da sua amargura íntima, a traduzir-se em tristeza inalte­rável. A pobrezinha não conseguia ocultar suas mágoas aos nossos olhos amorosos. O encontro de um remédio era providencial. Desde a intervenção de Ananias, Abigail transformou-se, parecia converter toda a angústia em esperanças de uma vida melhor. Embora doente, recebia os mendigos que lhe vinham falar desse Jesus que, também, não consigo compreender. Eram amigos da vizinhança, gente simples, com quem ela parecia alegrar-se. Obser­vando o mal irremediável que a consumia, eu e Ruth acompanhávamos tudo isso enternecidamente. Como não proceder assim, se estava em jogo a paz espiritual de uma filha dileta, nos derradeiros dias da sua vida? Épossível que ainda não consigas entender o sentido da minha conduta, neste particular, mas em sã consciência estou justificado, porqüanto sei que cumpri meu dever, não lhe embargando os recursos que julgou necessários à sua consolação.

Saulo ouvia-o admirado. A serenidade e a pondera­ção de Zacarias infirmavam-lhe os estos mais fortes de reprimenda e severidade. As acusações veladas ao seu afastamento da noiva, sem motivo justificado, penetra­vam-lhe o coração com pruridos de remorso pungente.

— Sim — revidou menos áspero —, reconsidero me­lhor as razões que te induziram a suportar tudo isso, mas, não quero, não posso e não devo exonerar-me do compromisso que assumi em desafronta da Lei.

— Mas, a que compromisso te referes? — interro­gou Zacarias surpreendido.

— Quero dizer que preciso encontrar Ananias, a fim de castigá-lo devidamente.

— Que é isso, Saulo? — objetou Zacarias penosa­mente impressionado. — Abigail acaba de baixar ao sepulcro; seu espírito, de compleição sensibilíssima e afetuosa, sofreu profundamente por motivos que igno­ramos e que talvez conheças; o conforto único que ela encontrou foi, justamente, a amizade paternal desse velhinho bom e honesto; e queres puni-lo pelo bem que nos fez e à criatura inesquecível?

— Mas é a defesa da Lei de Moisés que está em jogo — respondeu o moço tarsense com firmeza.

— Entretanto — advertiu sensatamente Zacarias —, revistando os textos sagrados, não encontrei qualquer dispositivo que autorize a castigar os benfeitores.

O doutor da Lei esboçou um gesto de contrariedade em face da observação justa, mas, valendo-se da sua hermenêutica, considerou com sagacidade:

— Mas uma coisa é estudar a Lei e outra é defender a Lei. Na tarefa superior em que me encontro, sou obrigado a examinar se o bem não oculta o mal que condenamos. Aí reside a nossa divergência. Tenho de punir os transviados, como necessitas podar as árvores da tua chácara.

Fez-se prolongado silêncio. Absortos em profunda meditação, separados mental e intimamente, foi Saulo quem retomou a palavra perguntando:

— Desde quando Ananias se ausentou destas pa­ragens?

— Há mais de dois meses.

— E chegaste a conhecer o rumo que tomou?

- Abigail disse-me que ele fora chamado a Jeru­salém, a fim de confortar os doentes dos bairros pobres, dada a situação difícil que por lá se criara com a per­seguição.

— Pois a sua nefasta influência será igualmente ju­gulada pelas forças da nossa vigilância.

Regressando à cidade, amanhã, como pretendo, procurarei localizar-lhe o paradeiro.

Ananias não dementará outras cabeças! Ja­mais chegou a pensar na reação que provocou em minhal­ma, embora não nos conheçamos pessoalmente.

Zacarias não conseguiu dissimular o seu desgosto e sentenciou:

— Na simplicidade da minha vida rural não posso atinar com a razão das lutas religiosas de Jerusalém; mas, enfim, trata-se de problemas inerentes aos teus mis­teres profissionais e não devo intrometer-me nas provi­dências que mais convenham.

Saulo deixou-se ficar longo tempo pensativo, para, em seguida, imprimir novos rumos à conversação.

No dia seguinte, muito consternado, regressou àcidade, ansioso por encher o vácuo do coração, perdido no labirinto das horas vagas. A ninguém revelou a gran­de amargura que lhe ia na alma. Fechando-se em mu­tismo absoluto, retomou as funções religiosas, de sem­blante carregado.

Ao sol claro da manhã alta, vamos encontrá-lo no Sinédrio, interrogando um auxiliar de serviço, com vi­vacidade:

— Isaac, cumpriste minhas ordens para os informes desejados?

— Sim, senhor, encontrei entre os prisioneiros um rapaz que conhece o velho Ananias.

— Muito bem — disse o doutor de Tarso evidente­mente satisfeito —, e onde mora o tal Ananias?

— Ah! lá isso ele não quis dizer, apesar do muito que insisti. Alegou que não sabia.

— Entretanto, é possível que esteja mentindo —ajuntou Saulo com rancor. — Esses homens são capazes de tudo. Providencia, já, para que ele aqui compareça quanto antes. Saberei como arrancar-lhe a verdade.

Como quem já lhe conhecia as decisões irrevogáveis. Isaac obedeceu com humildade. Daí a uma hora mais ou menos, dois soldados penetravam no gabinete, acom­panhando um rapaz de fisionomia miserável. Sem trair qualquer comoção, Saulo de Tarso mandou que se reco­lhessem à sala de punições, onde iria ter com o prisioneiro dentro de alguns minutos.

Terminada a escrituração de alguns papiros, diri­giu-se, resoluto, ao salão dos castigos. Alinhavam-se, ali, todos os instrumentos odiosos e execráveis das per­seguições político-religiosas, que envenenavam Jerusalém nos embates da época.

Depois de sentar-se enfaticamente, o moço de Tarso inquiriu o mísero encarcerado com aspereza:

— Teu nome?

— Matatias Johanan.

— Conheces o velho Ananias, pregador ambulante da igreja do “Caminho”?

— Sim, senhor.

— Desde quando?

— Conheci-o nas vésperas de minha prisão, que se verificou há um mês.

— E onde reside esse adepto do carpinteiro?

— Isso não sei — exclamou o interpelado em voz tímida. — Quando o conheci, morava num bairro pobre de Jerusalém, onde ensinava o Evangelho. Mas Ananias não tinha pouso certo. Veio de Jope, estacionando em diversas aldeias, onde pregava as verdades de Jesus­-Cristo. Aqui, vivia de bairro em bairro, no seu piedoso mister.

O moço tarsense não prestou atenção naquela ati­tude de profunda humildade, e, franzindo o sobrolho, acrescentou ameaçadoramente:

— Achas que podes mentir a um doutor da Lei?

— Senhor, eu juro... — dizia o jovem ansiosamente.

Saulo não se dignou fixar-lhe o gesto suplicante. Dirigindo-se a um dos guardas, exclamou impassível:

— Júlio, não temos tempo a perder. Necessito da informação necessária. Aplica-lhe o tormento das unhas. Acredito que, por esse processo, não se animará a pros­seguir na dissimulação da verdade.

A ordem foi logo cumprida. Aguçadas pontas de ferro foram tiradas de um grande armário cheio de pó. Em poucos instantes, Júlio e o companheiro, depois de amarrarem o pobre rapaz num tronco rústico, aplicavam-lhe os instrumentos pontiagudos na ponta dos dedos, provocando-lhe gritos lancinantes. O jovem prisioneiro clamava, em vão, suas dores atrozes. Os verdugos ou­viam-no com indiferença. Quando o sangue começou a gotejar da unha arrancada violentamente, a vítima bra­dou em altas vozes:

— Por piedade!... Confessarei tudo, direi onde ele está!... Tende compaixão de mim!...

Saulo ordenou sustassem a punição por momentos, a fim de ouvir as novas declarações.

— Senhor! — acrescentou o infeliz entre lágrimas Ananias não se encontra mais em Jerusalém. – Em nossa última reunião, três dias antes de cairmos no cár­cere, o velho discípulo do Evangelho se despediu, afir­mando que ia fixar-se em Damasco.

Aquela voz lamentosa era um eco de profundas amarguras a se represarem num coração moço, mas repleto de penosas desilusões da vida. Saulo, entretanto, parecia não ter olhos de ver sofrimentos tão comove­dores.

— É tudo quanto sabes? — perguntou secamente.

— Juro-o — tornou o rapaz humildemente.

Diante daquela afirmação categórica, transparente no olhar sincero e na inflexão da voz comovente e triste, o doutor da Lei deu-se por satisfeito, mandando reco­lher o prisioneiro ao calabouço.

Daí a dois dias, o moço tarsense convocava uma reu­nião no Sinédrio, à qual atribuía singular importância. Os colegas acorreram ao chamado, sem exceção. Abertos os trabalhos, o doutor de Tarso esclareceu o motivo da convocação.

— Amigos — declarou ciosamente —, há tempos nos reunimos para examinar o caráter da luta religiosa que se criara em Jerusalém com as atividades dos asseclas do carpinteiro de Nazaré. Felizmente, nossa intervenção chegou a tempo de evitar grandes males, dada a argúcia dos falsos taumaturgos exportados da Galiléia. Á custa de grandes esforços, a atmosfera desanuviou-se. É ver­dade que os cárceres da cidade transbordam, mas a medida se justifica, porqüanto é indispensável reprimir o instinto revolucionário das massas ignorantes.

A cha­mada igreja do “Caminho” restringiu suas atividades àassistência aos enfermos desamparados. Nossos bairros mais humildes estão em paz. Voltou a serenidade aos nossos afazeres no Templo. Entretanto, não se pode afirmar o mesmo quanto às cidades vizinhas.

Minhas consultas às autoridades religiosas de Jope e Cesaréia dão a conhecer os distúrbios que os adeptos do Cristo vêm provocando, acintosamente, com prejuízo sério para a ordem pública. Não somente nesses núcleos precisamos desenvolver a obra saneadora, mas, ainda agora, che­gam-me notícias alarmantes de Damasco, a requererem providências imediatas.

Localizam-se ali perigosos ele­mentos. Um velho, chamado Ananias, lá está pertur­bando a vida de quantos necessitam de paz nas sinago­gas. Não é justo que o mais alto tribunal da raça se desinteresse das coletividades israelitas noutros setores. Proponho, então, estendermos o benefício dessa cam­panha a outras cidades. Para esse fim, ofereço todos os meus préstimos pessoais, sem ônus para a casa a que servimos. Bastar-me-á, tão-só, o necessário documento de habilitação, a fim de acionar todos os recursos que me pareçam acertados, inclusive o da própria pena de morte, quando a julgue necessária e oportuna.

A proposta de Saulo foi recebida com demonstrações de simpatia. Houve mesmo quem chegasse a propor um voto especial de louvor ao seu zelo vigilante, com aplau­sos unânimes da reduzida assembléia. Faltava ao cenáculo a ponderação de um Gamaliel, e o sumo-sacerdote, com­pelido pela aprovação geral, não hesitou em conceder as cartas indispensáveis, com ampla autorização para agir discricionariamente. Os presentes abraçaram o jovem ra­bino com muitos encômios ao seu espírito arguto e enér­gico. Francamente, aquela mentalidade moça e vigorosa constituía auspicioso penhor de um futuro maior, com a emancipação política de Israel. Alvo das referências lisonjeiras e estimuladoras dos amigos, Saulo de Tarso aguçava o orgulho de sua raça, esperançoso nos dias do porvir. Verdade é que sofria amargamente com a derrocada dos sonhos da juventude, mas empregaria a soledade da existência nas lutas que reputava sagradas, ao serviço de Deus.

De posse das cartas de habilitação para agir con­venientemente, em cooperação com as Sinagogas de Damasco, aceitou a companhia de três varões respeitáveis, que se ofereceram a acompanhá-lo na qualidade de ser­vidores muito amigos.

Ao fim de três dias, a pequena caravana se deslocou de Jerusalém para a extensa planície da Síria.

Na véspera da chegada, quase a termo da viagem difícil e penosa, o moço tarsense sentia agravarem-se as recordações amargas que lhe assomavam constantes. Forças secretas impunham-lhe profundas interrogações. Passava em revista os primeiros sonhos da juventude. Sua alma desdobrava-se em perguntas atrozes. Desde a adolescência que encarecia a paz interior: tinha sede de estabilidade para realizar a sua carreira. Onde en­contrar aquela serenidade, que, tão cedo, fora objeto das suas cogitações mais íntimas? Os mestres de Israel preconizavam, para isso, a observância integral da Lei. Mais que tudo, havia ele guardado os seus princípios. Desde os impulsos iniciais da juventude, abominava o pecado. Consagrara-se ao ideal de servir a Deus com todas as suas forças. Não hesitara na execução de tudo que considerava dever, ante as ações mais violentas e rudes. Se era incontestável que tinha inúmeros admi­radores e amigos, tinha igualmente poderosos adversá­rios, graças ao seu caráter inflexível no cumprimento das obrigações que considerava sagradas. Onde, então, a paz espiritual que tanto almejava nos esforços comuns? Por mais energias que despendesse, via-se como um labo­ratório de inquietações dolorosas e profundas. Sua vida assinalava-se por idéias poderosas, mas, no seu íntimo, lutava com antagonismos irreconciliáveis. As noções da Lei de Moisés pareciam não lhe bastar à sede devoradora. Os enigmas do destino empolgavam-lhe a mente. O mistério da dor e dos destinos diferenciais crivava-o de enigmas insolúveis e sombrias interrogações. Entretanto, aqueles adeptos do carpinteiro crucificado ostentavam uma serenidade desconhecida! A alegação de ignorância dos problemas mais graves da vida não prevalecia no caso, pois Estevão era uma inteligência poderosa e mos­trara, ao morrer, uma paz impressionante, acompanhada de valores espirituais que infundiam assombro.

Por mais que os companheiros lhe chamassem a atenção para os primeiros quadros de Damasco, que se desenhavam ao longe, Saulo não conseguia forrar-se ao solilóquio sombrio.

Parecia não ver os camelos resigna­dos, que se arrastavam pesadamente sob o sol de brasas, a pino, do meio-dia. Embalde foi convidado à refeição. Detendo-se por minutos num pequeno oásis delicioso, esperou que terminasse o leve repasto dos companheiros e prosseguiu na marcha, absorvido pela intensidade dos pensamentos íntimos.

Ele próprio não saberia explicar o que se passava. Suas reminiscências atingiam os períodos da primeira infância. Todo o seu passado laborioso aclarava-se, niti­damente, naquele exame introspectivo. Dentre todas as figuras familiares, a lembrança de Estevão e de Abigail destacava-se, como a solicitá-lo para mais fortes inter­rogações. Por que haviam adquirido, os dois irmãos de Corinto, tal ascendência em todos os problemas do seu ego? Por que esperava Abigail através de todas as estra­das da mocidade, na idealização de uma vida pura? Recor­dava os amigos mais eminentes, e em nenhum deles encontrou qualidades morais semelhantes às daquele jo­vem pregador do “Caminho”, que afrontara a sua auto­ridade político-religiosa, diante de Jerusalém em peso, desdenhando a humilhação e a morte, para morrer depois, abençoando-lhe as resoluções iníquas e implacáveis. Que força os unira nos labirintos do mundo, para que o seu coração nunca mais os esquecesse? A verdade dolorosa é que se encontrava sem paz interior, não obstante a conquista e gozo de todas as prerrogativas e privilégios, entre os vultos mais destacados da sua raça. Enfileirava, no pensamento, as jovens que havia conhecido no trans­curso da vida, as afeiçoadas da infância, e em nenhuma podia encontrar as mesmas características de Abigail, que lhe adivinhava os mais recônditos desejos. Atormen­tado pelas indagações profundas que lhe assoberbavam a mente, pareceu despertar de um grande pesadelo. Devia ser meio-dia. Muito distante ainda, a paisagem de Da­masco apresentava os seus contornos: pomares espessos, cúpulas cinzentas que se esboçavam ao longe. Bem montado, evidenciando o aprumo de um homem habituado aos prazeres do esporte, Saulo ia à frente, em atitude dominadora.

Em dado instante, todavia, quando mal despertara das angustiosas cogitações, sente-se envolvido por luzes diferentes da tonalidade solar. Tem a impressão de que o ar se fende como uma cortina, sob pressão invisível e poderosa. Íntimamente, considera-se presa de inesperada vertigem após o esforço mental, persistente e doloroso. Quer voltar-se, pedir o socorro dos companheiros, mas não os vê, apesar da possibilidade de suplicar o auxílio.

— Jacob!... Demétrio!... Socorram-me!... — gri­ta desesperadamente.

Mas a confusão dos sentidos lhe tira a noção de equilíbrio e tomba do animal, ao desamparo, sobre a areia ardente. A visão, no entanto, parece dilatar-se ao infinito. Outra luz lhe banha os olhos deslumbrados, e no caminho, que a atmosfera rasgada lhe desvenda, vê surgir a figura de um homem de majestática beleza, dando-lhe a im­pressão de que descia do céu ao seu encontro. Sua túnica era feita de pontos luminosos, os cabelos tocavam nos ombros, à nazarena, os olhos magnéticos, imanados de simpatia e de amor, iluminando a fisionomia grave e terna, onde pairava uma divina tristeza.

O doutor de Tarso contemplava-o com espanto pro­fundo, e foi quando, numa inflexão de voz inesquecível, o desconhecido se fez ouvir:

— Saulo!... Saulo!... por que me persegues?

O moço tarsense não sabia que estava instintiva-mente de joelhos. Sem poder definir o que se passava, comprimiu o coração numa atitude desesperada. Incoer­cível sentimento de veneração apossou-se inteiramente dele. Que significava aquilo? De quem o vulto divino que entrevia no painel do firmamento aberto e cuja presença lhe inundava o coração precípite de emoções desconhecidas?

Enquanto os companheiros cercavam o jovem ge­nuflexo, sem nada ouvirem nem verem, não obstante ha­verem percebido, a princípio, uma grande luz no alto, Saulo interrogava em voz trêmula e receosa:

— Quem sois vós, Senhor?

Aureolado de uma luz balsâmica e num tom de in­concebível doçura, o Senhor respondeu:

— Eu sou Jesus!...

Então, viu-se o orgulhoso e inflexível doutor da Lei curvar-se para o solo, em pranto convulsivo. Dir-se-ia que o apaixonado rabino de Jerusalém fora ferido de morte, experimentando num momento a derrocada de todos os princípios que lhe conformaram o espírito e o nortearam, até então, na vida. Diante dos olhos tinha, agora, e assim, aquele Cristo magnânimo e incompreendido! Os pregadores do “Caminho” não estavam iludidos! A palavra de Estevão era a verdade pura! A crença de Abigail era a senda real. Aquele era o Messias! A his­tória maravilhosa da sua ressurreição não era um recurso lendário para fortificar as energias do povo. Sim, ele, Saulo, via-o ali no esplendor de suas glórias divinas!

E que amor deveria animar-lhe o coração cheio de augusta misericórdia, para vir encontrá-lo nas estradas desertas, a ele, Saulo, que se arvorara em perseguidor implacável dos discípulos mais fiéis!. .. Na expressão de sinceridade da sua alma ardente, considerou tudo isso na fugacidade de um minuto. Experimentou invencível vergonha do seu passado cruel. Uma torrente de lágrimas impetuosas lavava-lhe o coração. Quis falar, penitenciar-se, clamar suas infindas desilusões, protestar fidelidade e dedicação ao Messias de Nazaré, mas a contrição sincera do espí­rito arrependido e dilacerado embargava-lhe a voz.

Foi quando notou que Jesus se aproximava e, contem­plando-o carinhosamente, o Mestre tocou-lhe os ombros com ternura, dizendo com inflexão paternal:

— Não recalcitres contra os aguilhões!...

Saulo compreendeu. Desde o primeiro encontro com Estevão, forças profundas o compeliam a cada momento, e em qualquer parte, à meditação dos novos ensinamen­tos. O Cristo chamara-o por todos os meios e de todos os modos.

Sem que pudessem entender a grandeza divina da­quele instante, os companheiros de viagem viram-no cho­rar mais copiosamente.

O moço de Tarso soluçava. Ante a expressão doce e persuasiva do Messias Nazareno, considerava o tempo perdido em caminhos escabrosos e ingratos. Doravante necessitava reformar o patrimônio dos pensamentos mais íntimos; a Visão de Jesus ressuscitado, aos seus olhos mortais, renovava-lhe integralmente as concepções reli­giosas. Certo, o Salvador apiedara-se do seu coração leal e sincero, consagrado ao serviço da Lei, e descera da sua glória estendendo-lhe as mãos divinas. Ele, Saulo, era a ovelha perdida no resvaladouro das teorias escal­dantes e destruidoras. Jesus era o Pastor amigo que se dignava fechar os olhos para os espinheirOS ingratos, a fim de salvá-lo carinhosamente. Num ápice, o jovem rabino considerou a extensão daquele gesto de amor. As lágrimas brotaram-lhe do coração amargurado, como a linfa pura, de uma fonte desconhecida. Ali mesmo, no santuário augusto do espírito, fez o protesto de entre­gar-se a Jesus para sempre. Recordou, de súbito, as provações rígidas e dolorosas. A idéia de um lar morrera com Abigail. Sentia-se só e acabrunhado. Doravante, porém, entregar-se-ia ao Cristo, como simples escravo do seu amor.

E tudo envidaria para provar-lhe que sabia compreender o seu sacrifício, amparando-o na senda es­cura das iniqüidades humanas, naquele instante decisivo do seu destino. Banhado em pranto, como nunca lhe acontecera na vida, fez, ali mesmo, sob o olhar assom­brado dos companheiros e ao calor escaldante do meio-dia, a sua primeira profissão de fé.

— Senhor, que quereis que eu faça?

Aquela alma resoluta, mesmo no transe de uma capitulaçãO incondicional, humilhada e ferida em seus princípios mais estimáveiS, dava mostras de sua nobreza e lealdade.

Encontrando a revelação maior, em face do amor que Jesus lhe demonstraVa solícito, Saulo de Tarso não escolhe tarefas para servi-lo, na renovação de seus esforços de homem.

Entregando-se-lhe de alma e corpo, como se fora ínfimo servo, interroga com humildade o que desejava o Mestre da sua cooperação.

Foi aí que Jesus, contemplando-o mais amorosa­mente e dando-lhe a entender a necessidade de os homens se harmonizarem no trabalho comum da edificação de todos, no amor universal, em seu nome, esclareceu gene­rosamente:

— Levanta-te, Saulo! Entra na cidade e lá te será dito o que te convém fazer!...

Então, o moço tarsense não mais percebeu o vulto amorável, guardando a impressão de estar mergulhado num mar de sombras. Prosternado, continuava chorando, causando piedade aos companheiros. Esfregou os olhos como se desejasse rasgar o véu que lhe obscurecia a vista mas só conseguia tatear no seio das trevas densas. Aos poucos, começou a perceber a presença dos amigos, que pareciam comentar a situação:

— Afinal, Jacob — dizia um deles, evidenciando grande preocupação —, que faremos agora?

— Acho bom — respondia o interpelado — enviar­mos Jonas a Damasco, requisitando providências ime­diatas.

— Mas, que se teria passado? — perguntava o velho respeitável que respondia por Jonas.

- Não sei bem — esclarecia Jacob impressiona­do —, a princípio, notei intensa luz nos céus e, logo em seguida, ouvi que ele pedia socorro. Nem tive tempo de atender, porque, no mesmo instante, ele caiu do ani­mal, sem poder esperar qualquer recurso.

— O que me preocupa — ponderava Demétrio — é esse diálogo com as sombras. Com quem conversará ele? Se lhe escutamos a voz e não vemos ninguém, que se passará aqui, nesta hora, sem que possamos com­preender?

— Mas não percebes que o chefe está em delírio? —-objetou Jacob prudentemente — as grandes viagens, com o sol causticante, costumam abater as organizações mais resistentes. Além disso, como vimos, desde a manhã, ele parece acabrunhado e doente. Não se alimentou, en­fraqueceu-se com o esforço destes dias tão longos, que vimos atravessando, desde Jerusalém, com grande sacri­fício. A meu ver — concluía abanando a cabeça entristecido — trata-se de um desses casos de febres que atacam repentinamente no deserto...

O velho Jonas, no entanto, de olhos arregalados, fixava o rabino soluçante, com grande admiração. De­pois de ouvir a opinião dos companheiros, falou, receoso, como se temesse ofender alguma entidade desconhecida:

— Tenho grande experiência destas marchas com o sol a pino. Gastei a mocidade conduzindo camelos através dos desertos da Arábia. Mas, nunca vi um doen­te, nesses lugares, com estas características — a febre dos que caem extenuados no caminho não se manifesta com delírio e com lágrimas. O enfermo cai abatido, sem reações. Aqui, porém, observamos o patrão como se estivesse a conversar com um homem invisível para nós.

Reluto em aceitar essa hipótese, mas estou desconfiado de que, em tudo isso, haja sinal dos sortilégios do “Ca­minho” Os seguidores do carpinteiro sabem processos mágicos que estamos longe de compreender. Não igno­ramos que o doutor se consagrou à tarefa de persegui-los onde se encontrem. Quem sabe planejaram contra ele alguma, vingança cruel?

Ofereci-me para vir a Damasco, a fim de fugir dos meus parentes, que parecem seduzidos por essas doutrinas novas. Onde já se viu curar a ce­gueira de alguém com a simples imposição das mãos? Entretanto, meu irmão curou-se com o famoso Simão Pedro. Só a feitiçaria, a meu ver, esclarecerá essas coisas. Vendo tantos fatos misteriosos, em minha pró­pria casa, tive medo de Satanás e fugi.

Recolhido em si próprio, surpreendido no meio das trevas densas que o envolviam, Saulo escutou os comen­tários dos amigos, experimentando grande abatimento, como se voltasse exausto e cego, de uma imensa derrota.

Limpando as lágrimas, chamou um deles com pro­funda humildade. Acudiram todos solicitamente.

— Que aconteceu? — perguntou Jacob preocupado e ansioso. — Estamos aflitos por vossa causa. Estais doente, senhor ?... Providenciaremos o que julgardes necessário...

Saulo fez um gesto triste e acrescentou:

— Estou cego.

— Mas que foi? — perguntoú o outro inquieto.

— Eu vi Jesus Nazareno! — disse contrito, inteira­mente modificado.

Jonas fez um sinal significativo, como a afirmar aos companheiros que tinha razão, entreolhando-se todos muito admirados. Entenderam, de modo instintivo, que o jovem rabino se havia perturbado. Jacob, que era pes­soa de sua intimidade, tomou a iniciativa das primeiras providências e acentuou:

Senhor, lamentamos vossa enfermidade. Precisa­mos resolver quanto ao destino da caravana.

O doutor de Tarso, entretanto, revelando uma humil­dade que jamais se coadunara com o seu feitio domina­dor, deixou cair uma lágrima e respondeu com profunda tristeza:

— Jacob, não te preocupes comigo... Relativamente ao que me cumpre fazer, preciso chegar a Damasco, sem demora. Quanto a vocês... — e a voz reticenciosa que­brantara-se dolorosamente, como premida de grande an­gústia, para concluir em tom amargo —, façam como qui­serem, pois, até agora, vocês eram meus servos, mas, de ora em diante, eu também sou escravo, não mais me per­tenço a mim mesmo.

Ante aquela voz humilde e triste, Jacob começou a chorar. Tinha plena convicção de que Saulo enlou­quecera. Chamou os dois companheiros à parte e ex­plicou:

— Vocês voltarão para Jerusalém com a triste nova, enquanto me dirijo à cidade próxima, com o doutor, a providenciar da melhor forma. Levá-lo-ei aos seus ami­gos e buscaremos o socorro de algum médico... Noto-o extremamente perturbado...

O jovem rabino cientificou-se das deliberações quase sem surpresa. Conformou-se passivamente com a resolução do servo. Naquela hora, submerso em trevas densas e profundas, tinha a imaginação repleta de conjeturas transcendentes. A cegueira súbita não o afligia. Do âmbito daquela escuridão que lhe enchia os olhos da carne, parecia emergir o vulto radioso de Jesus, aos seus olhos de Espírito. Era justo que cessassem as suas per­cepções visuais, a fim de conservar, para sempre, a lem­brança do glorioso minuto de sua transformação para uma vida mais sublime.

Saulo recebeu as observações de Jacob, com a humil­dade de uma criança. Sem uma queixa, sem resistência, ouviu o trotar da caravana que regressava, enquanto o velho servidor lhe oferecia o braço amigo, tomado de infinitos receios.

Com o pranto a escorrer dos olhos inexpressivos,

como perdidos nalguma visão indevassável no vácuo, o

orgulhoso doutor de Tarso, guiado por Jacob, seguiu a pé, sob o sol ardente das primeiras horas da tarde.

Comovido pelas bênçãos que recebera das esferas mais elevadas da vida, Saulo chorava como nunca. Es­tava cego e separado dos seus. Dolorosas angústias re­presavam-se-lhe no coração opresso. Mas a visão do Cristo redivivo, sua palavra inesquecível, sua expressão de amor lhe estavam presentes na alma transformada. Jesus era o Senhor, inacessível à morte.

Ele orientaria os seus passos no caminho, dar-lhe-ia novas ordens, se­caria as chagas da vaidade e do orgulho que lhe corroíam o coração; sobretudo, conceder-lhe-ia forças para reparar os erros dos seus dias de ilusão.

Impressionado e triste, Jacob guiava o chefe amigo, perguntando a si próprio a razão daquele pranto inces­sante e silencioso.

Envolvido na sombra da cegueira temporária, Saulo não percebeu que os mantos espessos do crepúsculo abraçavam a Natureza. Nuvens escuras precipitavam a queda da noite, enquanto ventos sufocantes sopravam da imensa planície. Dificilmente, acompanhava as pas­sadas de Jacob, que desejava apressar a marcha, receoso da chuva. Coração resoluto e enérgico, não reparava os obstáculos que se antepunham à sua jornada dolorosa. Faltava-lhe a visão, necessitava de um guia; mas Jesus recomendara que entrasse na cidade, onde lhe seria dito o que tinha a fazer. Era preciso obedecer ao Salvador que o honrara com as supremas revelações da vida. A passos indecisos, ferindo os pés em cada movimento inseguro, caminharia de qualquer modo para executar as ordens divinas. Era indispensável não observar as dificuldades, era imprescindível não esquecer os fins. Que importava o olhar em trevas, o regresso da caravana a Jerusalém, a penosa caminhada a pé em demanda de Damasco, a falsa suposição dos companheiros a respeito da inolvidável ocorrência, a perda dos títulos honoríficos, o repúdio dos sacerdotes seus amigos, a incompreensão do mundo inteiro, diante do fato culminante do seu destino?

Saulo de Tarso, com a profunda sinceridade que lhe caracterizava as mínimas ações, só queria saber que Deus havia mudado de resolução a seu respeito. Ser-lhe-ia fiel até ao fim.

Quando as sombras crepusculares se faziam mais densas, dois homens desconhecidos entravam nos subúr­bios da cidade. Embora a ventania afastasse as nuvens tempestuosas na direção do deserto, grossos pingos de chuva caíam, aqui e ali, sobre a poeira ardente das ruas.

As janelas das casas residenciais fechavam-se com es­trépito.

Damasco podia recordar o jovem tarsense, formoso e triunfador. Conhecia-o nas suas festas mais brilhantes, costumava aplaudi-lo nas sinagogas. Mas, vendo passar na via pública aqueles dois homens cansados e tristes, jamais poderia identificá-lo naquele rapaz que caminhava cambaleante, de olhos mortos...

SEGUNDA PARTE


1

Rumo ao deserto

— Aonde iremos, senhor? — atreveu-se Jacob a perguntar, timidamente, logo que entraram nas ruas tortuoSas.

O moço tarsense pareceu refletir um minuto e acen­tuou:

— É verdade que trago comigo algum dinheiro; en­tretanto, estou em situação muito difícil: sinto precisar mais de assistência moral que de repouso físico. Tenho necessidade de alguém que me ajude a compreender o que se passou. Sabes onde reside Sadoc?

— Sei — respondeu o servo compungido.

— Leva-me até lá... Depois de me avistar com algum amigo, pensarei numa estalagem.

Não se passou muito tempo e ei-los à porta de um edifício de singular e soberba aparência. Muralhas bem delineadas cercavam extenso átrio adornado de flores e arbustos.

Descansando junto ao portão de entrada, Saulo recomendou ao companheiro:

— Não convém que me aproxime assim, sem aviso. Jamais visitei Sadoc nestas condições. Entra no átrio, chama-o e conta-lhe o que se passou comigo. Esperarei aqui, mesmo porque não posso dar um passo.

O servo obedeceu prontamente. O banco de repouso distava alguns passos do largo portão de acesso, mas ficando só, ansioso de ouvir um amigo que o compreen­desse, Saulo identificou o muro, tateando-o. Vacilante e trêmulo, arrastou-se dificilmente e atingiu a entrada, ali permanecendo.

Acudindo ao chamado, Sadoc procurou saber o mo­tivo da visita inesperada. Jacob explicou, com humil­dade, que vinha de Jerusalém, acompanhando o doutor da Lei e desfiou os mínimos incidentes da viagem e os fins colimados; mas, quando se referiu ao episódio prin­cipal, Sadoc arregalou os olhos estupidificado. Custava-lhe acreditar no que ouvia, mas não podia duvidar da since­ridade do narrador, que, por sua vez, mal encobria o próprio assombro. O homem falou, então, do mísero estado do chefe: da sua cegueira, das lágrimas copiosas que vertia. Saulo a chorar? O amigo de Damasco re­cebia as estranhas notícias com imensa surpresa, sinteti­zando as primeiras impressões numa resposta desconcer­tante para Jacob:

— O que me conta é quase inverossímil; entretanto, em tais circunstâncias, torna-se impossível acolhê-los aqui. Desde anteontem tenho a casa cheia de amigos importantes, recém-chegados de Citium (1) para uma boa reunião na sinagoga, sábado próximo. Cá por mim, suponho que Saulo se perturbou, inesperadamente, e não quero expô-lo a juízos e comentários menos dignos.

— Mas, senhor, que lhe direi? — interpôs Jacob hesitante.

— Diga que não estou em casa.

— Entretanto... encontro-me só com ele, assim perturbado e enfermo e, como vedes, a noite é tempes­tuosa...

Sadoc refletiu um momento e acrescentou:

— Não será difícil remediar. Na próxima esquina vocês encontrarão a chamada “rua Direita” e, depois de caminhar alguns passos, encontrarão a estalagem de Judas, que tem sempre muitos cômodos disponíveis. Mais tarde, procurarei lá chegar para saber do ocor­rido.

(1) Nota da Editora — Cicio, cidade da ilha de Chipre.

Ouvindo palavras tais, que pareciam mais uma ordem que resposta a um apelo amigo, Jacob despediu-se sur­preso e desanimado.

— Senhor — disse ao rabino, regressando ao portão de entrada —, infelizmente vosso amigo Sadoc não se encontra em casa.

— Não está? — exclamou Saulo admirado — daqui lhe ouvi a voz, embora não distinguisse o que dizia. Será possível que meus ouvidos estejam igualmente pertur­bados?

Diante daquela observação tão expressiva e sincera, Jacob não conseguiu dissimular a verdade e contou ao rabino o acolhimento que tivera, a atitude reservada e fria de Sadoc.

Seguindo as pisadas do guia, Saulo tudo ouviu, mudo, enxugando uma lágrima. Não contava com seme­lhante recepção da parte de um colega que sempre con­siderara digno e leal, em todas as circunstâncias da vida. A surpresa chocava-o. Era natural que Sadoc temesse pela renovação de suas idéias, mas não era justo aban­donasse um amigo doente, às intempéries da noite. No entanto, no rebojar de mágoas que começavam a intu­mescer-lhe o coração, recordou repentinamente a visão de Jesus e refletiu que, efetivamente, possuía agora experiências que o outro não pudera conhecer, chegando à conclusão de que talvez fizesse o mesmo se os papéis estivessem invertidos.

Concluído o relato do companheiro, comentou re­signado:

— Sadoc tem razão. Não ficava bem perturbá-lo com a descrição do fato, quando tem à mesa amigos de responsabilidade na vida pública. Além disso, estou cego... Seria um estafermo e não um hóspede.

Essas considerações comoveram o companheiro, que, aliás, deixara perceber ao jovem rabino os próprios re­ceios. Nas palavras de Jacob, Saulo entrevira uma vaga expressão de temores injustificáveis. O procedimento de Sadoc talvez lhe houvesse aumentado as desconfianças. Suas advertências eram reticenciosas, hesitantes. Parecia intimidado, como se antevisse ameaças à sua tranqüili­dade pessoal. Nos conceitos mais simples evidenciava o medo de ser acusado como portador de alguma expressão do “Caminho”. Na sua amplitude de senso psicológico, o moço tarsense tudo compreendia. Fora verdade que ele, Saulo, representava o chefe supremo da campanha demolidora, mas, de ora em diante, consagraria a vida a Jesus, assim comprometendo a quantos dele se aproximassem direta e ostensivamente.

Sua transformação provocaria muitos protestos no ambiente farisaico. Pressentiu nas indecisões do guia o receio de ser acusado de algum sor­tilégio ou bruxedo.

Com efeito, depois de convenientemente instalados na modesta estalagem de Judas, o companheiro falou-lhe preocupado:

— Senhor, pesa-me alegar minhas conveniências, mas, consoante os projetos feitos, preciso regressar a Jerusalém, onde me esperam dois filhos, a fim de nos fixarmos em Cesaréia.

— Perfeitamente — respondeu Saulo, respeitando-lhe os escrúpulos —, poderás partir ao amanhecer.

Aquela voz, antes agressiva e autoritária, tornara-se agora compassiva e meiga, tocando o coração do servo nas suas fibras mais sensíveis.

— Entretanto, senhor, estou hesitando — disse o velho já picado de remorso —, estais cego, necessitais de auxílio para recobrar a vista e sinto sinceramente deixar-vos ao abandono.

— Não te preocupes por minha causa — exclamou o doutor da Lei resignado —; quem te disse que ficarei abandonado? Estou convicto de que meus olhos estarão curados muito em breve.

Aliás — continuou Saulo como a confortar-se a si mesmo —, Jesus mandou-me entrar na cidade, a fim de saber o que me convinha. Certo, não me deixará igno­rando o que devo fazer.

Assim falando, não pôde ver a expressão de piedade com que Jacob o contemplava, desconcertado e oprimido.

Entretanto, mau grado à mágoa que lhe causava o chefe em semelhante estado, e recordando os castigos infligidos aos seguidores do Cristo, em Jerusalém, não conseguiu subtrair-se aos íntimos temores e partiu aos primeiros albores da manhã.

Saulo, agora, estava só. No véu espesso das som­bras, podia entregar-se às suas meditações profundas e tristes.

A bolsa farta e franca assegurou-lhe a solicitude do estalajadeiro, que, de quando em quando, vinha saber suas necessidades, mas, em vão, o hóspede foi convidado a repastos e diversões, porque nada o demovia do seu taciturno insulamento.

Aqueles três dias de Damasco foram de rigorosa disciplina espiritual. Sua personalidade dinâmica havia estabelecido uma trégua às atividades mundanas, para examinar os erros do passado, as dificuldades do pre­sente e as realizações do futuro. Precisava ajustar-se à inelutável reforma do seu eu. Na angústia do espírito, sentia-se, de fato, desamparado de todos os amigos. A atitude de Sadoc era típica e valeria pela de todos os correligionárioS, que jamais se conformariam com a sua adesão aos novos ideais. Ninguém acreditaria no ascendente da conversão inesperada; entretanto, havia que lutar contra todos os cépticos, de vez que Jesus, para falar-lhe ao coração, escolhera a hora mais clara e ruti­lante do dia, em local amplo e descampado e na só companhia de três homens muito menos cultos que ele, e, por isso mesmo, incapazes de algo compreenderem na sua pobreza mental. No apreciar os valores humanos, experimentava a insuportável angústia dos que se encon­tram em completo abandono, mas, no torvelinho das lem­branças, destacava os vultos de Estevão e Abigail, que lhe proporcionavam consoladoras emoções. Agora com­preendia aquele Cristo que viera ao mundo principal­mente para os desventurados e tristes de coração. Antes, revoltava-se contra o Messias Nazareno, em cuja ação presumia tal ou qual incompreensível volúpia de sofrimento; todavia, chegava a. examinar-se melhor, agora, haurindo na própria experiência as mais proveitosas ilações. Não obstante os títulos do Sinédrio, as respon­sabilidades públicas, o renome que o faziam admirado em toda parte, que era ele senão um necessitado da proteção divina? As convenções mundanas e os preconceitos reli­giosos proporcionavam-lhe uma tranqüilidade aparente; mas, bastou a intervenção da dor imprevista para que ajuizasse de suas necessidades imensas. Abismalmente concentrado na cegueira que o envolvia, orou com fervor, recorreu a Deus para que o não deixasse sem socorro, pediu a Jesus lhe clareasse a mente atormentada pelas idéias de angústia e desamparo.

No terceiro dia de preces fervorosas, eis que o hote­leiro anuncia alguém que o procura. Seria Sadoc? Saulo tem sede de uma voz carinhosa e amiga. Manda entrar. Um velhinho de semblante calmo e afetuoso ali está, sem que o convertido possa ver-lhe as cãs respeitáveis e o sorriso generoso.

O mutismo do visitante indiciava o desconhecido.

— Quem sois? — pergunta o cego admirado.

— Irmão Saulo — replica o interpelado com doçu­ra —, o Senhor, que te apareceu no caminho, enviou-me a esta casa para que tornes a ver e recebas a iluminação do Espírito Santo.

Ouvindo-o, o moço de Tarso tateou ansiosamente nas sombras. Quem seria aquele homem que sabia os feitos lá da estrada! Algum conhecido de Jacob? Mas... aquela inflexão de voz enternecida e carinhosa?

— Vosso nome? — perguntou quase aterrado.

— Ananias.

A resposta era uma revelação. A ovelha perseguida vinha buscar o lobo voraz. Saulo compreendeu a lição que o Cristo lhe ministrava. A presença de Ananias revoca-lhe à memória os apelos mais sagrados. Fora ele o iniciador de Abigail na doutrina e o motivo da viagem a Damasco, onde encontrara Jesus e a verdade renovadora. Tomado de profunda veneração, quis avan­çar, ajoelhar-se ante o discípulo do Senhor, que lhe cha­mava ternamente “irmão”, oscular-lhe enternecido as mãos benfazejas, mas apenas tateou o vácuo, sem conseguir a execução do gratíssimo desejo.

— Quisera beijar vossa túnica — falou com hu­mildade e reconhecimento —, mas, como vedes, estou cego!...

— Jesus mandou-me, justamente para que tivesses, de novo, o dom da vista.

Comovidíssimo, o velho discípulo do Senhor notou que o perseguidor cruel dos apóstolos do “Caminho” estava totalmente transformado. Ouvindo-lhe a palavra plena de fé, Saulo de Tarso deixava transparecer, no semblante, sinais de profunda alegria interior. Dos olhos ensombrados, manaram lágrimas cristalinas. O moço apaixonado e caprichoso aprendera a ser humano e humilde.

— Jesus é o Messias eterno! Depus minha alma em suas mãos!... — disse entre compungido e esperançoso. Penitencio-me do meu caminho!...

Banhado no pranto do arrependimento sincero, sem saber manifestar o reconhecimento daquela hora, em vir­tude das trevas que lhe dificultavam os passos, ajoelhou-se com humildade.

O velhinho generoso quis adiantar-se, impedir aquele gesto de renúncia suprema, considerando a sua própria condição de homem falível e imperfeito; mas, desejando estimular todos os recursos daquela alma ardente, em favor da sua completa conversão ao Cristo, aproximou-se comovido e, colocando a mão calosa naquela fronte ator­mentada, exclamou:

— Irmão Saulo, em nome de Deus Todo-Poderoso eu te batizo para a nova fé em Cristo Jesus!...

Entre as lágrimas ardentes que corriam dos olhos, o moço tarsenSe acentuou, contrito:

— Digne-se o Senhor perdoar meus pecados e ilumi­nar meus propósitos para uma vida nova.

— Agora — disse Ananias, impondo-lhe as mãos nos olhos apagados e num gesto amoroso —, em nome do Salvador, peço a Deus para que vejas novamente.

— Se é do agrado de Jesus que isso aconteça — advertiu Saulo compungido —‘ ofereço meus olhos aos seus santos serviços, para todo o sempre.

E como se entrassem em jogo forças poderosas e invisíveis, sentiu que das pálpebras doridas caíam subs­tâncias pesadas como escamas, à proporção que a vista lhe voltava, embebendo-se de luz. Através da janela aberta, viu o céu claro de Damasco, experimentando indefinível ventura naquele oceano de claridades deslum­brantes. A aragem da manhã, como perfume do Sol, vinha banhar-lhe a fronte, traduzindo para o seu coração uma bênção de Deus.

— Vejo!... Agora vejo!... Glória ao redentor de minha alma!... — exclamava estendendo os braços num transporte de gratidão e de amor.

Ananias também não se conteve mais; em face da­quela prova inaudita da misericórdia de Jesus, o velho discípulo do Evangelho abraçou-se ao jovem de Tarso, a chorar de reconhecimento a Deus pelos favores rece­bidos. Trêmulo de alegria, levantou-o em seus braços generosos, amparando-lhe a alma surpreendida e per­turbada de júbilo.

— Irmão Saulo — disse pressuroso —, este é o nosso grande dia; abracemo-nos na memória sacrossanta do Mestre que nos irmanou em seu grande amor!...

O convertido de Damasco não disse palavra. As lágrimas de gratidão sufocavam-no.

Abraçando-se ao antigo pregador, num gesto expressivo e mudo, fê-lo como se houvesse encontrado o pai dedicado e amoroso da sua nova existência. Por momentos, ficaram mudos, maravilhados com a intervenção divina, como dois irmãos muito queridos que se houvessem reconciliado sob as vistas de Deus.

Saulo sentia-se agora fortalecido e ágil. Num mi­nuto, pareceu reaver todas as energias de sua vida. Voltando a si do contentamento divino que o felicitava, tomou a mão do velho discípulo e beijou-a com venera­ção. Ananias tinha os olhos rasos de pranto. Ele próprio não podia prever as alegrias infinitas que o esperavam na pensão singela da “rua Direita”.

— Ressuscitastes-me para Jesus — exclamou jubi­loso —; serei dele eternamente. Sua misericórdia suprirá minhas fraquezas, compadecer-se-á de minhas feridas, enviará auxílios à miséria de minhalma pecadora, para que a lama do meu espírito se converta em ouro do seu amor.

— Sim, somos do Cristo — ajuntou o generoso ve­lhinho com a alegria a transbordar dos olhos.

E, como se fosse de súbito transformado num me­nino ávido de ensinamentos, Saulo de Tarso, sentando-se junto do benfeitor amigo, rogou-lhe todos os informes a respeito do Cristo, dos seus postulados e atos imor­redouros. Ananias contou-lhe tudo quanto sabia de Jesus, por intermédio dos Apóstolos, depois da crucificação a que ele também assistira, em Jerusalém, na tarde trágica do Calvário. Esclareceu que era sapateiro em Emaús e tinha ido à cidade santa para as comemorações do Tem­plo, tendo acompanhado o drama pungente nas ruas re­gurgitantes de povo. Falou da compaixão que lhe causara o Messias coroado de espinhos e apupado pela turba furiosa e inconsciente. Profunda a emoção, ao descrever a marcha penosa com a cruz, protegido por soldados impiedosos, da fúria popular, que vociferava o crime hediondo. Curioso pelo desenrolar dos acontecimentos, seguira o condenado até ao monte. Da cruz do martírio, Jesus lançára-lhe um olhar inesquecível. Para o seu espírito, aquele olhar traduzia um chamamento sagrado, que era indispensável compreender. Profundamente im­pressionado, a tudo assistiu até ao fim. Daí a três dias, ainda sob o peso daquelas angustiosas impressões, eis que lhe chega a nova alvissareira de que o Cristo havia ressuscitado dos mortos para a glória eterna do Todo-Poderoso. Seus discípulos estavam ébrios de ventura. Então, procurou Simão Pedro para conhecer melhor a personalidade do Salvador. Tão sublime a narrativa, tão elevados os ensinamentos, tão profunda a revelação que lhe aclarava o espírito, que aceitou o Evangelho sem mais hesitação. Desejoso de compartilhar o trabalho que Jesus legara aos que lhe pertenciam, regressou a Emaús, dispôs dos bens materiais que possuía e esperou os Apóstolos galileus em Jerusalém, onde se associou a Pedro nas primeiras atividades da igreja do “Caminho”. A essência dos ensinamentos do Cristo vitalizara-lhe o espírito, Os achaques da velhice haviam desaparecido. Logo que João e Filipe chegaram a Jerusalém para cooperar com o antigo pescador de Cafarnaum na edificação evangélica, combinaram sua transferência para Jope, a fim de aten­der a inúmeros pedidos de irmãos desejosos de conhecer a doutrina. Ali estivera até que as perseguições intensificadas com a morte de Estevão obrigaram-no a re­tirar-se.

Saulo bebia-lhe as palavras com singular enlevo como quem franqueava um mundo novo. A referência às perseguições avivava os remorsos acerbos - Em com­pensação, a alma estava repleta de votos sinceros, pro­missores de uma vida nova.

— É verdade — dizia, enquanto o narrador fazia longa pausa —, vim a Damasco com outorga do Templo para vos levar preso a Jerusalém, mas fostes vós que chegastes com outorga de Jesus e a Ele me jungistes para sempre. Se vos algemasse, na minha ignorância, levar-vos-ia ao tormento e à morte; vós, salvando-me do pecado, me transformastes em escravo voluntário e feliz!

Ananias sorriu, sumamente satisfeito.

Saulo pediu-lhe, então, falasse de Estevão, no que foi atendido, com solicitude. Em seguida, pediu informes da sua viagem de Jope a Jerusalém. Com muita pru­dência, desejava do benfeitor qualquer alusão a Abigail. Formulando o pedido, fê-lo com tal inflexão carinhosa, que o velho discípulo, adivinhando-lhe o intuito, falou com brandura:

— Não precisarás confessar teus anseios de moço. Leio em teus olhos o que principalmente desejas. Entre Jope e Jerusalém, descansei muito tempo na vizinhança de um compatrício que, apesar de fariseu, nunca privou os empregados de receberem as sagradas alegrias da Boa Nova. Esse homem, Zacarias, tinha sob seu teto um verdadeiro anjo do céu.

Era a jovem Abigail, que, depois de receber o batismo de minhas mãos, confessou que te amava muito. Falava do teu amor com ternura ardente e muitas vezes me convidou a orar pela tua conversão a Jesus-Cristo! ...

Saulo ouvia emocionado e, após ligeiro intervalo em que o amoroso velhinho parecia meditar, voltou a dizer como se falasse consigo:

— Sim, se ela ainda vivesse!...

Ananias recebeu a observação sem surpresa e acen­tuou:

— Desde que se aproximou de mim, notei que Abigail não ficaria muito tempo na Terra.

Suas cores esmaecidas, o brilho intenso dos olhos, falavam-me da sua condição de anjo exilado. Mas, devemos crer que ela viva no plano imortal. E quem sabe? Talvez suas rogativas aos pés de Jesus hajam contribuído para que o Mestre te convocasse à luz do Evangelho, às portas de Damasco!...

O velho discípulo do “Caminho” estava comovido. Recebendo aquelas carinhosas evocações, Saulo chorava. Compreendia, sim, que Abigail não poderia estar morta. A visão de Jesus redivivo bastava para dissipar-lhe todas as dúvidas. Certamente, a escolhida de sua alma apie­dara-se de suas misérias, rogara ao Salvador, com insis­tência, lhe socorresse o espírito mesquinho e, por venturosa coincidência, o mesmo Ananias que lhe havia preparado o coração para as bênçãos do Céu, estende­ra-lhe igualmente as mãos amigas, cheias de caridade e perdão. Agora, pertenceria para sempre àquele Cristo amoroso e justo, que era o Messias prometido. Nas emoções extremas que lhe caracterizavam os sentimen­tos, passou a considerar o poder do Evangelho, exami­nando seus ilimitados recursos transformadores.

Queria mergulhar o espírito nas suas lições iluminadas e subli­mes, banhar-se naquele rio de vida, cujas águas do amor de Jesus fecundavam os corações mais áridos e desertos. Aquela meditação profunda empolgava-lhe, agora, a alma toda.

— Ananias, meu mestre — disse o ex-rabino, com entusiasmo —, onde poderei obter o Evangelho sagrado?

O antigo discípulo sorriu com bondade, e observou:

— Antes de tudo, não me chames mestre. Este é e será sempre o Cristo. Nós outros, por acréscimo da misericórdia divina, somos discípulos, irmãos na ne­cessidade e no trabalho redentor. Quanto à aquisição do Evangelho, somente na igreja do “Caminho”, em Jerusalém, poderíamos obter uma cópia integral das anota­ções de Levi.

E revolvendo o interior de surrada patrona, reti­rava alguns pergaminhos amarelentos, nos quais con­seguira reunir alguns elementos da tradição apostólica. Apresentando essas notas dispersas, Ananias acrescen­tava:

— Verbalmente, tenho de cor quase todos os ensi­namentos; mas, no que se refere à parte escrita, aqui tens tudo que possuo.

O moço convertido recebeu as anotações, assaz admi­rado - Debruçou-se imediatamente sobre os velhos rabis­cos e devorava-os com indisfarçável interesse.

Depois de refletir alguns minutos, acentuava:

— Se possível, pedir-vos-ia deixar-me estes precio­sos ensinamentos, até amanhã. Empregarei o dia em copiá-los para meu uso particular. O estalajadeiro me comprará os pergaminhos necessários.

E como que já iluminado daquele espírito missioná­rio que lhe assinalou as menores ações, para o resto da vida, ponderava atento:

— Precisamos estudar um meio de difundir a nova revelação com a maior amplitude possível. Jesus é um socorro do Céu. Tardar na sua mensagem é delongar o desespero dos homens. Aliás, a palavra “evangelho” significa “boas notícias”. É indispensável espalhar essas notícias do plano mais elevado da vida.

Enquanto o velho pregador do “Caminho” obser­vava-o interessado, o convertido de Damasco chamou o hoteleiro para comprar os pergaminhos. Judas surpreen­deu-se ao verificar a cura insólita. Satisfazendo-lhe a curiosidade, o jovem de Tarso falou sem rebuços:

— Jesus enviou-me um médico. Ananias veio curar-me em seu nome.

E antes que o homem se recobrasse do espanto, cumulava-o de recomendações a respeito dos pergami­nhos que desejava, entregando-lhe a quantia necessária.

Dando largas ao entusiasmo que lhe ia nalma, diri­giu-se novamente a Ananias, expondo-lhe seus planos:

— Até aqui, ocupava o meu tempo no estudo e na exegese da Lei de Moisés; agora, porém, encherei as horas com o espírito do Cristo. Trabalharei nesse mister até ao fim dos meus dias. Buscarei iniciar meu trabalho aqui mesmo em Damasco.

E, fazendo uma pausa, perguntava ao benfeitor que o ouvia em silêncio:

— Conheceis na cidade um rapaz fariseu de nome Sadoc?

— Sim, é quem tem chefiado as perseguições nesta cidade.

— Pois bem — continuava o jovem tarsense aten­cioso —, amanhã é sábado e haverá preleção na sinagoga. Pretendo procurar os amigos e falar-lhes publicamente do apelo que o Cristo me endereçou. Quero estudar vos­sas anotações ainda hoje, porque me darão assunto para a primeira prédica do Evangelho.

— Para ser sincero — disse Ananias com a sua experiência dos homens —, acho que deves ser muito prudente nesta nova fase religiosa. É possível que teus amigos da sinagoga não estejam preparados para rece­ber a luz da verdade toda. A má-fé tem sempre caminhos para tentar a confusão do que é puro.

— Mas se eu vi Jesus, não tenho o direito de ocultar uma revelação incontestável — exclamou o neófito, como a salientar, antes de tudo, a boa intenção que o animava.

— Sim, não digo que fujas do testemunho — expli­cou, calmo, o velho discípulo —‘ mas devo encarecer a maior prudência nas atitudes, não pela doutrina do Cristo, superior e invulnerável a quaisquer ataques dos homens, mas, por ti mesmo.

— Por mim nada posso temer. Se Jesus me res­tituiu a luz dos olhos, não deixará de iluminar meus caminhos. Quero comunicar a Sadoc a ocorrência que deu novos rumos ao meu destino. E o ensejo não poderia ser mais oportuno, porque sei que hospeda em sua casa, ainda agora, alguns levitas de renome, recém-chegados de Chipre.

— Que o Mestre te abençoe os bons propósitos — disse o velho sorridente.

Saulo sentia-se feliz. A presença de Ananias con­fortava-o sobremodo. Como velhos e fiéis amigos, almo­çaram juntos. Em seguida e sempre satisfeito, o gene­roso enviado do Cristo retirou-se, deixando o ex-rabino todo entregue à meticulosa cópia dos textos.

No dia seguinte, Saulo de Tarso levantou-se lépido e bem disposto. Sentia-se revigorado para uma vida nova. As recordações amargas lhe desertaram da me­mória. A influência de Jesus enchia-o de alegrias subs­tanciosas e duradouras. Tinha a impressão de haver aberto uma porta nova em sua alma, por onde sopravam céleres as inspirações de um mundo maior.

Depois da primeira refeição, não obstante o dissa­bor que a atitude de Sadoc lhe causara, procurou avis­tar-se com o amigo, levado pela sinceridade que lhe pautava os mínimos atos da vida. Não o encontrou, con­tudo, na residência particular. Um servo informou que o amo saíra com alguns hóspedes em direção à sinagoga.

Saulo foi até lá. Os trabalhos do dia estavam ini­ciados. Fora feita a leitura dos textos de Moisés. Um dos levitas de Citium havia tomado a palavra para os respectivos comentários.

A entrada do ex-rabino provocou curiosidade geral. A maioria dos presentes tinha conhecimento da sua im­portância pessoal, bem como do seu verbo ardoroso e seguro. Sadoc, porém, ao vê-lo, fez-se pálido, e mais ainda quando e jovem de Tarso lhe pediu uma palavra em particular. Embora contrafeito, foi-lhe ao encontro. Cumprimentaram-se sem dissimular a nova impressão que, já agora, mantinham entre si.

Em face das primeiras observações do novel evan­gelista, formuladas em tom amável, o amigo de Damasco explicou, evidenciando o seu orgulho ofendido:

— De fato, sabia que estavas na cidade e cheguei mesmo a procurar-te na pensão de Judas; tais foram, porém, as informações do hoteleiro, que me abstive de ir ao teu aposento. E cheguei até a pedir-lhe segredo da minha visita. Com efeito, parece incrível que te ren­desses, também tu, passivamente, aos sortilégios do “Caminho”! Não posso compreender semelhante transmuta­ção em tua robusta mentalidade.

— Mas, Sadoc — replicou o jovem tarsense muito calmo —, eu vi Jesus ressuscitado...

O outro fez grande esforço para conter uma ruidosa gargalhada.

— Será possível — objetou com zombaria — que tua índole sentimental, tão contrária a manifestações de misticismo, tenha capitulado nesse terreno? Acreditarias mesmo em tais visões? Não poderias imaginar-te vítima de algum desfaçado adepto do carpinteiro? Tuas atitudes de agora nos causarão profunda vergonha. Que dirão os homens irresponsáveis, que nada conhecem da Lei de Moisés? E a nossa posição no partido dominante, da raça? Os colegas do farisaísmo hão de arregalar os olhos, quando souberem da tua clamorosa defecção.

Quando aceitei o encargo de perseguir os companheiros do operá­rio de Nazaré, reprimindo-lhes as atividades perigosas, fi-lo pela amizade que te consagrava; e não te doerá a traição dos votos anteriores? Considera como se difi­cultará nosso escopo, quando se espalhar a notícia de que capitulaste perante esses homens sem cultura e sem consciência.

Saulo fitou o amigo, revelando imensa preocupação no olhar ansioso. Aquelas acusações eram as premissas do acolhimento que o aguardava no cenáculo dos velhos companheiros de lutas e edificações religiosas.

— Não — disse ele sentindo fundamente cada pa­lavra —, não posso aceitar as tuas argüições. Repito que vi Jesus de Nazaré e devo proclamar que nele reco­nheço o Messias prometido pelos nossos profetas mais eminentes.

Enquanto o outro fazia largo gesto admirativo, ao observar aquela inflexão de certeza e sinceridade. Saulo continuava convicto:

— Quanto ao mais, considero que, a todo tempo, devemos e podemos reparar os erros do passado. E é com esse ardor de fé que me proponho regenerar mi­nhas próprias estradas.

Trabalharei, doravante, pela minha certeza em Cristo Jesus. Não é justo que me perca em ponderações sentimentalistas, olvidando a ver­dade; e assim procederei em benefício dos meus pró­prios amigos. Os amantes das realidades da vida sempre foram os mais detestados, ao tempo em que viveram. Que fazer? Até aqui, minhas pregações nasciam dos textos recebidos dos antepassados veneráveis, mas, hoje, minhas asserções se baseiam não somente nos reposi­tórios da tradição, senão também na prova testemunhal.

Sadoc não conseguiu ocultar a surpresa.

— Mas... a tua posição? E os teus parentes? E

o nome? E tudo que recebeste dos que rodeiam tua personalidade com fervorosos compromissos? — pergun­tou Sadoc revocando-o ao passado.

Agora, estou com o Cristo e todos nós lhe per­tencemos. Sua palavra divina convocou-me a esforços mais ardentes e ativos. Aos que me compreenderem devo, naturalmente, a gratidão mais sagrada; entretanto, para os que não possam entender guardarei a melhor atitude de serenidade, considerando que o próprio Mes­sias foi levado à cruz.

— Também tu com a mania do martírio?

O interpelado guardou uma bela expressão de digni­dade pessoal e concluiu:

— Não posso perder-me em opiniões levianas. Espe­rarei que o teu amigo de Chipre termine a preleção, para relatar minha experiência diante de todos.

— Falar nisso aqui?

— Por que não?

— Seria mais razoável descansares da viagem e da enfermidade, meditando melhor no assunto, mesmo por­que tenho esperança nas tuas reconsiderações, relativa­mente ao acontecido.

— Sabes, porém, que não sou nenhuma criança e cumpre-me esclarecer a verdade, em qualquer circunstância.

— E se te apuparem? E se fores considerado traidor?

— A fidelidade a Deus deve ser maior que tudo isso, aos nossos olhos.

— É possível, no entanto, que não te concedam a palavra — ponderou Sadoc após esbarrar com a força daquelas profundas convicções.

— Minha condição é bastante para que ninguém se atreva a negar-me o que é de justiça.

— Então, seja. Responderás pelas conseqüências — concluiu Sadoc constrangido.

Naquele momento, ambos compreenderam a imen­sidão da linha divisória que os extremava. Saulo per­cebeu que a amizade que Sadoc sempre lhe testemunhara baseava-se nos interesses puramente humanos. Abando­nando a falsa carreira que lhe dava prestígio e brilho, via esfumar-se a cordialidade do outro. Mas, de tal cogi­tação, logo lhe veio à mente que, também ele, assim procederia, provavelmente, se não tivesse Jesus no coração.

Sereno e desassombrado, evitou aproximar-Se do local onde se acomodavam os visitantes ilustres, bus­cando aproximar-se do largo estrado em que se impro­visara uma nova tribuna. Terminada a dissertação do levita de Citium, Saulo surgiu à vista de todos os presentes, que o saudaram com olhares ansiosos. Cumpri­mentou, afável, os diretores da reunião e pediu vênia para expor suas idéias.

Sadoc não tivera coragem de criar um ambiente antipático, para deixar que tudo corresse à feição das circunstâncias, e foi por isso que os sacerdotes aperta­ram a mão de Saulo com a simpatia de sempre, acolhendo com imensa alegria o seu alvitre.

Com a palavra, o ex-rabino ergueu a fronte, nobre­mente, como costumava fazer nos seus dias triunfais.

— Varões de Israel! começou em tom solene — em nome do Todo-Poderoso, venho anunciar-vos hoje, pela primeira vez, as verdades da nova revelação. Temos ignorado, até agora, o fato culminante da vida da Hu­manidade, O Messias prometido já veio, consoante o afirmaram os profetas que se glorificaram na virtude e no sofrimento. Jesus de Nazaré é o Salvador dos pecadores.

Uma bomba que estourasse no recinto, não causa­ria maior espanto. Todos fixavam o orador, atônitos. A assembléia estava obstúpida. Saulo, contudo, prosse­guia intrépido, depois de uma pausa:

— Não vos assombreis com o que vos digo. Conhe­ceis minha consciência pela retidão de minha vida, pela minha fidelidade às leis divinas. Pois bem: é com este patrimônio do passado que vos falo hoje, reparando as faltas involuntárias que cometi nos impulsos sinceros de uma perseguição cruel e injusta. Em Jerusalém fui o primeiro a condenar os apóstolos do “Caminho”; pro­voquei a união de romanos e israelitas para a repressão, sem tréguas, a todas as atividades que se prendessem ao Nazareno; varejei lares sagrados, encarcerei mulhe­res e crianças, submeti alguns à pena de morte, ocasionei um vasto êxodo das massas operárias que trabalhavam pacificamente na cidade para seu progresso; criei para todos os espíritos mais sinceros um regime de sombras e terrores. Fiz tudo isso, na falsa suposição de defender a Deus, como se o Pai Supremo necessitasse de míseros defensores!... Mas, de viagem para esta cidade, auto­rizado pelo Sinédrio e pela Corte Provincial, para invadir os lares alheios e perseguir criaturas inofensivas e ino­centes, eis que Jesus me aparece às vossas portas e me pergunta, em pleno meio-dia, na paisagem desolada e deserta: — Saulo, Saulo, por que me persegues?

A essa evocação, a voz eloqüente se enternecia e as lágrimas lhe corriam copiosas.

Interrompera-se ao recordar a ocorrência decisiva do seu destino. Os ouvin­tes contemplavam-no assombrados.

— Que é isso? — diziam alguns.

— O doutor de Tarso graceja!... — afirmavam outros sorrindo, convictos de que o jovem tribuno esti­vesse buscando maior efeito oratório.

— Não, amigos — exclamou com veemência —, ja­mais gracejei convosco nas tribunas sagradas. O Deus justo não permitiu que minha violência criminosa fosse até ao fim, em detrimento da verdade, e consentiu, por misericórdia de acréscimo, que o mísero servo não encon­trasse a morte sem vos trazer a luz da crença nova!...

Não obstante o ardor da pregação, que deixava em todos os ouvidos ressonâncias emocionais, rompeu no recinto estranho vozerio. Alguns fariseus mais exalta­dos interpelaram Sadoc, em voz baixa, quanto ao ines­perado daquela surpresa, obtendo a confirmação de que Saulo, de fato, parecia extremamente perturbado, ale­gando ter visto o carpinteiro de Nazaré nas vizinhanças de Damasco. Imediatamente estabeleceu-se enorme con­fusão em toda a sala, porque havia quem visse no caso perigosa defecção do rabino, e quem opinasse por enfer­midade súbita, que o houvesse dementado.

— Varões de minha antiga fé — trovejou a voz do moço tarsense, mais incisiva —, é inútil tentardes empa­nar a verdade. Não sou traidor nem estou doente. Esta­mos defrontando uma era nova, em face da qual todos os nossos caprichos religiosos são insignificantes.

Uma chuva de impropérios cortou-lhe repentina-mente a palavra.

— Covarde! Blasfemo! Cão do “Caminho”!... Fora o traidor de Moisés!...

Os apodos partiam de todos os lados. Os mais afei­çoados ao ex-rabino, que se inclinavam a supô-lo vítima de graves perturbações mentais, entraram em conflito com os fariseus mais rudes e rigorosos. Algumas ben­galas foram atiradas à tribuna com extrema violencia. Os grupos, que se haviam atracado em luta, espalhavam forte celeuma na sinagoga, percebendo o orador que se encontravam na iminência de irreparáveis desastres.

Foi quando um dos levitas mais idosos assomou ao grande estrado, levantando a voz com toda a energia de que era capaz e rogando aos presentes acompanhá-lo na recitação de um dos Salmos de David. O convite foi aceito por todos. Os mais exaltados repetiram a prece, tomados de vergonha.

Saulo acompanhava a cena com profundo interesse.

Terminada a oração, disse o sacerdote, com ênfase irritante:

— Lamentemos este episódio, mas evitemos a con­fusão que em nada aproveita. Até ontem, Saulo de Tarso honrava as nossas fileiras como paradigma de triunfo; hoje, sua palavra é para nós um galho de espinhos. Com um passado respeitável, esta atitude de agora só nos merece condenação. Perjúrio? Demência? Não o sabemos com certeza. Outro fora o tribuno e apedrejá-lo-íamos sem pestanejar; mas, com um antigo colega os processos devem ser outros. Se está doente, só merece compaixão; se traidor, só poderá merecer absoluto desprezo. Que Jerusalém o julgue como seu embaixador. Quanto a nós, encerremos as pregações da sinagoga e recolhamo-nos à paz dos fiéis cumpridores da Lei.

O ex-rabino suportou a increpação com grande sere­nidade a lhe transparecer dos olhos.

Intimamente, sen­tia-se ferido no seu amor-próprio. Os remanescentes do “homem velho” exigiam revide e reparação imediata, ali mesmo, à vista de todos. Quis falar novamente, exigir a palavra, obrigar os companheiros a ouvi-lo, mas sen­tia-se presa de emoções incoercíveis, que lhe infirmavam os ímpetos explosivos. Imóvel, notou que velhos afeiçoa­dos de Damasco abandonavam o recinto calmamente, sem lhe fazer sequer uma ligeira saudação.

Observou, tam­bém, que os levitas de Citium pareciam entendê-lo, atra­vés de um olhar de simpatia, ao mesmo tempo que Sadoc fixava-o com ironia e risinhos de triunfo. Era o repúdio que chegava. Acostumado aos aplausos onde quer que aparecesse, fora vítima da própria ilusão, acreditando que, para falar com êxito, sobre Jesus, bastavam os louros efêmeros já conquistados ao mundo. Enganara-se. Seus cômparas punham-no à margem, como inútil.

Nada lhe doía mais que ser assim desaproveitado, quando lhe ardia nalma a devoção sacerdotal. Preferia que o esbofeteassem, que o prendessem, que o flagelassem, mas não lhe tirassem o ensejo de discutir sem peias, a todos vencendo e convencendo com a lógica de suas definições. Aquele abandono feria-o fundo, porque, antes de qual­quer consideração, reconhecia não laborar em benefício pessoal, por vaidade ou egoísmo, mas pelos próprios correligionários atidos às concepções rígidas e inflexíveis da Lei. Aos poucos a sinagoga ficara deserta, sob o calor ardente das primeiras horas da tarde. Saulo sentou-se num banco tosco e chorou. Era a luta entre a vaidade de outros tempos e a renúncia de si mesmo, que começava. Para conforto da alma opressa, recordou a narrativa de Ananias, no capítulo em que Jesus dissera ao velho dis­cípulo que lhe mostraria quanto importava sofrer por amor ao seu nome.

Acabrunhado, retirou-se do Templo, em busca do benfeitor, a fim de reconfortar-se com a sua palavra.

Ananias não se mostrou surpreendido com a expo­sição das ocorrências.

— Vejo-me cercado de enormes dificuldades — dizia Saulo um tanto perturbado.

Sinto-me no dever de es­palhar a nova doutrina, felicitando os nossos semelhan­tes; Jesus encheu-me o coração de energias inesperadas, mas a secura dos homens é de amedrontar os mais fortes.

— Sim — explicava o ancião paciente —, o Senhor conferiu-te a tarefa do semeador; tens muito boa-von­tade, mas, que faz um homem recebendo encargos dessa natureza? Antes de tudo, procura ajuntar as sementes no seu mealheiro particular, para que o esforço seja profícuo.

O neófito percebeu o alcance da comparação e per­guntou:

— Mas, que desejais dizer com isso?

— Quero dizer que um homem de vida pura e reta, sem os erros da própria boa-intenção, está sempre pronto a plantar o bem e a justiça no roteiro que perlustra; mas aquele que já se enganou, ou que guarda alguma culpa, tem necessidade de testemunhar no sofrimento próprio, antes de ensinar. Os que não forem integralmente puros, ou nada sofreram no caminho, jamais são bem compreendidos por quem lhes ouve simplesmente a palavra. Contra os seus ensinos estão suas próprias vidas. Além do mais, tudo que é de Deus reclama gran­de paz e profunda compreensão. No teu caso, deves pensar na lição de Jesus permanecendo trinta anos entre nós, preparando-se para suportar nossa presença durante apenas três. Para receber uma tarefa do Céu, David con­viveu com a Natureza apascentando rebanhos; para desbravar as estradas do Salvador, João Batista meditou muito tempo nos ásperos desertos da Judéia.

As ponderações carinhosas de Ananias caíam-lhe na alma opressa como bálsamo vitalizante.

— Quando hajas sofrido mais — continuava o ben­feitor e amigo sincero —, terás apurado a compreensão dos homens e das coisas, Só a dor nos ensina a ser humanos. Quando a criatura entra no período mais perigoso da existência, depois da matinal infância e antes da noite da velhice; quando a vida exubera ener­gias, Deus lhe envia os filhos, para que, com os tra­balhos, se lhe enterneça o coração. Pelo que me hás confessado, é possível não venhas a ser pai, mas terás os filhos do Calvário em toda parte. Não viste Simão Pedro, em Jerusalém, rodeado de infelizes? Natural­mente, encontrarás um lar maior na Terra, onde serás chamado a exercer a fraternidade, o amor, o perdão... É preciso morrer para o mundo, para que o Cristo viva em nós...

Aquelas observações tão sadias e tão mansas pene­traram o espírito do ex-rabino como bálsamo de con­solação de horizontes mais vastos. Suas palavras cari­nhosas fizeram-no recordar alguém que o amava muito. De cérebro cansado pelos embates do dia, Saulo esfor­çava-se por fixar melhor as idéias. Ah!... agora se lembrava perfeitamente. Esse alguém era Gamaliel. Veio-lhe de súbito o desejo de se avistar com o velho mestre. compreendia a razão daquela lembrança. É que, tam­bém ele, pela última vez, lhe falara da necessidade que sentia dos lugares ermos, para meditar as sublimes ver­dades novas. Sabia-o em Palmira, na companhia de um irmão. Como não se recordara ainda do antigo mestre, que lhe fora quase um pai? Certamente, Gamaliel rece­bê-lo-ia de braços abertos, regozijar-se-ia com as suas conquistas recentes, dar-lhe-ia conselhos generosos quan­to aos rumos a seguir.

Engolfado em recordações cariciosas, agradeceu a Ananias com um olhar significativo, acrescentando sen­sibilizado:

— Tendes razão... Buscarei o deserto em vez de voltar a Jerusalém precipitadamente, sem forças, talvez, para enfrentar a incompreensão dos meus confrades. Tenho um velho amigo em Palmira, que me acolherá de bom grado. Ali repousarei algum tempo, até que possa internar-me pelas regiões ermas, a fim de meditar as lições recebidas.

Ananias aprovou a idéia com um sorriso. Ainda ficaram conversando longo tempo, até que a noite mer­gulhou a alma das coisas no seu velário de sombras espessas.

O velho pregador conduziu, então, o novo adepto para a humilde reunião que se realizava nesse sábado de grandes desilusões para o ex-rabino.

Damasco não tinha propriamente uma igreja; en­tretanto, contava numerosos crentes irmanados pelo ideal religioso do “Caminho”. O núcleo de orações era em casa de uma lavadeira humilde, companheira de fé, que alugava a sala para poder acudir a um filho paralítico. Profundamente admirado, o moço tarsense enxergou ali a miniatura do quadro observado pela primeira vez, quando tivera a curiosidade invencível de assistir às célebres pregações de Estevão em Jerusalém. Em torno da mesa rústica, juntavam-se míseras criaturas da plebe, que ele sempre mantivera separada da sua esfera social. Mulheres analfabetas com crianças ao colo, velhos pe­dreiros rudes, lavadeiras que não conseguiam conjugar duas palavras certas. Anciães de mãos trêmulas, amparando-se a cajados fortes, doentes misérrimos que exibiam a marca de enfermidades dolorosas. A cerimônia parecia ainda mais simples que as de Simão Pedro e seus com­panheiros galileus. Ananias chefiava e presidia o ato. Sentando-se à mesa, qual patriarca no seio da família, rogou as bênçãos de Jesus para a boa-vontade de todos. Em seguida, fez a leitura dos ensinos de Jesus, respi­gando algumas sentenças do Mestre Divino nos per­gaminhos esparsos. Depois de comentar a página lida, ilustrando-a com a exposição de fatos significativos, do seu conhecimento, ou da sua experiência pessoal, o velho discípulo do Evangelho deixava o lugar, percorria as filas de bancos e impunha as mãos sobre os doentes e necessitados. Comumente, segundo o hábito das pri­meiras células cristãs do primeiro século, ao memorar as alegrias de Jesus quando servia o repasto aos dis­cípulos, fazia-se modesta distribuição de pão e água pura, em nome do Senhor. Saulo serviu-se do bolo simples, enternecidamente. Para sua alma, o cibo mesquinho tinha o sabor divino da fraternidade universal. A água clara e fresca da bilha grosseira soube-lhe a fluído de amor que partia de Jesus, comunicando-se a todos os seres. Ao fim da reunião, Ananias orava fervorosamente. Depois de contar a visão de Saulo e a sua própria, nos comentários singelos daquela noite, pedia ao Salvador prote­gesse o novo servo em demanda a Palmira, a fim de meditar mais demoradamente na imensidão de suas mise­ricórdias. Ouvindo-lhe a rogativa que o calor da amizade revestia de amavio singular, Saulo chorou de reconheci­mento e gratidão, comparando as emoções do rabino que fora, com as do servo de Jesus que agora queria ser. Nas reuniões suntuosas do Sinédrio, jamais ouvira um companheiro exorar ao Céu com aquela sinceridade su­perior. Entre os mais afeiçoados só encontrara elogios vãos, prontos a se transformarem em calúnias torpes, quando lhes não podia conceder favores materiais. Em toda parte, admiração superficial, filha do jogo dos interesses inferiores. Ali, a situação era outra. Nenhuma daquelas criaturas desfavorecidas da sorte viera pedir-lhe fácilidades; todos pareciam satisfeitos ao serviço de Deus, que assim os congregava a termo de trabalhos exaustivos e penosos. E, por fim, ainda rogavam a Jesus lhe concedesse paz de espírito para o seu empreendimento.

Terminada a reunião, Saulo de Tarso tinha lágri­mas nos olhos. Na igreja do “Caminho”, em Jerusalém, os Apóstolos galileus o trataram com especial deferência, atentos à sua posição social e política, senhor das rega­lias que as convenções do mundo lhe conferiam; mas os cristãos de Damasco impressionaram-no mais vivamente, arrebataram-lhe a alma, conquistando-a para uma afei­ção imorredoura, com aquele gesto de confiança e cari­nho, tratando-o como irmão.

Um a um, apertaram-lhe a mão com votos de feliz viagem. Alguns velhos mais humildes beijaram-lhe as mãos. Tais provas de afeto davam-lhe novas forças. Se os amigos do judaísmo lhe desprezavam a palavra, acintosos e hostis, começava agora a encontrar no seu caminho os filhos do Calvário. Trabalharia por eles, consagraria ao seu consolo as energias da mocidade. Pela primeira vez na vida, revelou interesse pelo sor­riso das criancinhas. Como se desejasse retribuir as demonstrações de carinho recebidas, tomou nos braços um menino doente. Diante da pobre mãe sorridente e agradecida, fez-lhe festas, acariciou-lhe os cabelos desajeitadamente. Entre os acúleos agressivos de sua alma apaixonada, começavam a desabrochar as flores de ter­nura e gratidão.

Ananias estava satisfeito. Junto dos irmãos de mais confiança, acompanhou o neófito até à pensão de Judas. Aquele modesto grupo desconhecido percorreu as ruas banhadas de luar, estreitamente unido e reconfortando-se em comentários cristãos. Saulo admirava-se de haver encontrado tão depressa aquela chave de harmonia que lhe proporcionava segura confiança em todos. Teve a impressão de que nas genuínas comunidades do Cristo a amizade era diferente de tudo que lhe dava expressão nos agrupamentos mundanos. Na diversidade das lutas sociais o traço dominante das relações cifrava-se agora, a seus olhos, nas vantagens do interesse individual; ao passo que, na unidade de esforços da tarefa do Mestre, havia um cunho divino de confiança, como se os com­promissos tivessem o ascendente divino, original.

Todos falavam, como nascidos no mesmo lar. Se expunham uma idéia digna de maior ponderação, faziam-no com serenidade e geral compreensão do dever; se versavam assuntos leves e simples, os comentários timbravam franca e confortadora alegria. Em nenhum deles notava a preocupação de parecer menos sincero na defesa dos seus pontos de vista; mas, ao invés, lhaneza de trato sem laivos de hipocrisia, porque, em regra, sentiam-se sob a tutela do Cristo, que, para a consciência de cada um, era o amigo invisível e presente, a quem ninguém deveria enganar.

Consolado e satisfeito de haver encontrado amigos na verdadeira acepção da palavra, Saulo chegou à estalagem de Judas, despedindo-se de todos profundamente comovido. Ele próprio surpreendia-se com o sabor de Intimidade com que as expressões lhe afloravam aos lábios. Agora compreendia que a palavra “irmão”, lar­gamente usada entre os adeptos do “Caminho”, não era fútil e vã. Os companheiros de Ananias conquistaram-lhe o coração.

Nunca mais esqueceria os irmãos de Da­masco.

No dia imediato, contratando um serviçal indicado pelo estalajadeiro, Saulo de Tarso, ao amanhecer, em­bora surpreendesse o dono da casa com o seu ânimo resoluto, pôs-se a caminho da cidade famosa, situada num oásis em pleno deserto.

Nas primeiras horas da manhã, saíam das portas de Damasco dois homens modestamente trajados, à fren­te de pequeno camelo carregado das necessárias pro­visões.

Saulo fizera questão de partir assim, a pé, de modo a iniciar a vida com rigores que lhe seriam sumamente benéficos mais tarde. Não viajaria mais na qualidade de doutor da Lei, rodeado de servos, sim como discípulo de Jesus, adstrito aos seus programas. Por esse motivo, considerou preferível viajar como beduíno, para apren­der a contar, sempre, com as próprias forças. Sob o calor calcinante do dia, sob as bênçãos refrigeradoras do crepúsculo, seu pensamento estava fixo naquele que o chamara do mundo para uma vida nova. As noites do deserto, quando o luar enche de sonho a desolação da paisagem morta, são tocadas de misteriosa beleza. Sob as frondes de alguma tamareira solitária, o conver­tido de Damasco aproveitava o silêncio para profundas meditações. O firmamento estrelado tinha, agora, para seu espírito, confortadoras e permanentes mensagens. Estava convicto de que sua alma havia sido arrebatada a novos horizontes, porque, através de todas as coisas da Natureza, parecia receber o pensamento do Cristo que lhe falava carinhosamente ao coração.

2

O tecelão

Apesar de acostumados ao espetáculo permanente da chegada de estrangeiros à cidade, dada a sua privi­legiada situação no deserto, os transeuntes de Palmira notaram, com profundo interesse, a passagem daquele beduíno seguido de humilde serviçal a puxar um mísero camelo arquejante de cansaço. Sem dúvida, reconhece­ram-lhe o perfil de judeu -nos traços característicos do rosto, na energia serena que lhe transparecia do olhar.

Saulo, por sua vez, transitava com ar indiferente, como se convivesse naquele cenário, de há muito tempo.

Ciente de que o irmão do antigo mestre era ali negociante dos mais conhecidos e abastados, não teve dificuldade em obter informações de um compatrício, que lhe indicou a residência.

Acomodando-se numa estalagem comum para ref a­zer-se das fadigas da viagem, consultou a bolsa para regular o seu programa. O dinheiro esgotava-se, mal chegaria para remunerar o companheiro dedicado que lhe fôra amigo fiel em toda a penosa viagem. Depois de informado do “quantum” a pagar, verificando a insu­ficiência dos recursos, falou-lhe com humildade:

— Judá, de momento não tenho o bastante para compensar melhor o serviço que me prestaste. Entre­tanto, dou-te metade da importância e mais o camelo em pagamento do restante.

O próprio servo comoveu-se com o tom humilde da proposta.

— Não precisa tanto, senhor — respondeu confu­so —, o valor do animal basta e sobra. Desse modo, não ficará desprevenido. Contento-me com algumas moedas, apenas o necessário para custear a volta.

Saulo teve para ele um olhar de reconhecimento e, alegando a impossibilidade de o reter por mais tempo, despediu-o com expressões de conforto e votos de feliz regresso a Damasco.

Depois, recolhendo-se ao quarto pobre que tomara, entrou a meditar, acuradamente, nos últimos aconteci­mentos da sua vida.

Estava só, sem parentes, sem amigos, sem dinheiro. Pouco antes daquela resolução de partir no encalço de Ananias, não vacilaria em decretar a morte de quem profetizasse o futuro que o esperava. Sua existência, seus planos, estavam transformados nos detalhes mais íntimos. Que fazer agora? E se não encontrasse em Palmira o socorro de Gamaliel, conforme aguardava em suas esperanças secretas? Considerou a extensão das dificuldades que se desdobravam a seus olhos. Tudo di­fícil. Estava como o homem que houvesse perdido a família, a pátria e o lar. Profunda amargura ameaçava invadir-lhe o coração. Repentinamente, porém, recor­dou-se do Cristo e a lembrança da visão gloriosa encheu-lhe de conforto o espírito desolado. Confiando muito mais naquele que lhe estendera as mãos, do que em suas próprias forças, procurou acalmar os sobressaltos íntimos, dando repouso ao corpo fatigado.

No dia seguinte, manhã alta, saiu à rua preocupado e ansioso. Obedecendo aos informes recolhidos, parou à porta de confortável edifício, à frente do qual funciona­vam grandes lojas comerciais.

Procurando Ezequias, foi logo atendido por um ho­mem idoso, de semblante risonho e respeitável, que o saudou com muita simpatia. Tratava-se do irmão de Gamaliel, que, logo se familiarizando com o patrício recém-chegado de longe, proporcionou-lhe confortadora palestra. Buscando informar-se, delicadamente, a res­peito do venerável rabino de Jerusalém. Saulo obtinha de Ezequias os esclarecimentos necessários, tomado de profundo interesse:

— Meu irmão — dizia ele preocupado — desde que chegou a Palmira pareceu-me muito diferente. É pos­sível que a mudança de Jerusalém tenha influído para essa profunda transformação. A diferença de ambiente social, a alteração de hábitos, o clima, a ausência dos trabalhos usuais, tudo isso pode ter-lhe prejudicado a saúde.

— Como assim? — perguntou o moço sem dissi­mular a estranheza.

— Passa dias e dias numa cabana abandonada que possuo, à sombra de algumas tamareiras, num dos mui­tos oásis que nos rodeiam; e isso, veja, tão-só para ler e meditar um manuscrito sem importância, que não consegui compreender. Além disso, parece-me completa­mente desinteressado de nossas práticas religiosas, vive como que alheio ao mundo.

Fala em visões do céu, re­fere-se constantemente a um carpinteiro que se trans­formou em Messias do povo e alimentava-se de coisas imaginárias, de sonhos irreais. As vezes, é com pro­fundo pesar que lhe observo a decadência mental. Minha mulher, porém, tudo atribui à idade avançada e eu quero crer seja antes, ou pelo menos em grande parte, devido à intensidade do estudo, das meditações prolongadas.

Ezequias fez uma pausa, enquanto Saulo fixava nele o olhar percuciente e significativo, compreendendo a con­dição do velho mestre.

A uma nova observação do moço tarsense, conti­nuava o outro, loquaz:

— No seio de minha família, Gamaliel é tratado como se fora o nosso pai. Aliás, devo meu início de vida às suas imensas dedicações fraternais. Por isso mesmo, eu e minha mulher combinamos com os filhinhos, relativamente à atmosfera de paz que deverá cercar aqui o prezado e nobre enfermo. Quando ele discorre sobre as ilusões religiosas que o empolgam no seu desequilíbrio mental, ninguém nesta casa o contradiz. Já sabemos que não fala mais por si. A mentalidade poderosa esmaeceu, a estrela se apagou. Considerando essas penosas circunstâncias, ainda rendo graças a Deus que mo trouxe aqui, para terminar seus dias aquecido pelo nosso afeto fami­liar, e indene do escárnio de- que talvez pudesse ser objeto em Jerusalém, onde nem todos estão à altura de lhe compreender e honrar o passado ilustre.

— Mas a cidade sempre venerou nele um mestre inesquecível — ajuntou o rapaz como se quisesse defender seus próprios sentimentos de amizade e admiração.

— Sim — esclareceu o negociante, convicto —, um homem do seu nível intelectual estaria preparado a en­tender tudo, mas os outros? O senhor não ignora, natu­ralmente, a perseguição implacável, movida pelas autori­dades do Sinédrio e do Templo, contra os simpatizantes do famoso carpinteiro nazareno. Palmira teve notícias dos fatos, por intermédio de inúmeros patrícios pobres, que deixaram Jerusalém à pressa, ameaçados de prisão e morte.

Ora, foi justamente com a personalidade desse homem que Gamaliel deu as primeiras demonstrações de fraqueza mental. Se estivesse por lá, que seria da sua velhice desamparada?

Naturalmente muitos amigos, como o senhor, estariam a postos para a defesa; mas, o caso podia tomar aspectos mais graves, surgirem inimigos políticos reclamando medidas ingratas. E de nossa parte nada poderíamos tentar para restabelecer a situação, por­que, na verdade, a sua loucura é pacífica, quase imper­ceptível e de maneira alguma conseguiríamos suportar sua apologia ao celerado que o Sinédrio mandou à cruz dos ladrões.

Saulo sentia extremo mal-estar ouvindo aquelas ob­servações, agora tão injustas e superficiais ao seu ver. Compreendia a delicadeza do momento e a natureza dos recursos psicológicos a empregar, para não se compro­meter, agravando, ainda mais, a posição do mestre ilustre.

Desejando imprimir novo rumo à conversa, pergun­tou com serenidade:

— E os médicos? qual a opinião dos entendidos?

— No último exame a que se submeteu, por insis­tência nossa, descobriram que o estimado doente, além de perturbado, padece de singular astenia orgânica, que lhe vai consumindo as últimas forças vitais.

Saulo fez ainda algumas observações, contristado, e, depois de reconsiderar as primeiras impressões rela­tivamente à amável hospitalidade de Ezequias, auxiliado por um pequeno servo da casa, demandou o local, onde o antigo mentor o recebeu com surpresa e alegria.

O ex-discípulo notou que Gamaliel, com efeito, apre­sentava sintomas de profundo abatimento. Foi com infinito júbilo que o apertou afetuosamente nos braços, osculando-lhe, amoroso, as mãos encarquilhadas e trê­mulas. Seus cabelos pareciam mais brancos; a epiderme sulcada de rugas veneráveis dava impressão do alabastro uma palidez indefinível.

Falaram longamente das saudades, dos sucessos de Jerusalém, dos amigos distantes.

Depois dos preâmbulos afetuosos, o moço tarsense relatou ao mestre venerando as graças recolhidas às portas de Damasco - A voz de Saulo tinha a inflexão vibrante da paixão e da sinceri­dade que costumava imprimir às emoções próprias. O velhinho ouviu-lhe a narrativa com indizível espanto; nos olhos vivos e serenos, rorejavam lágrimas de emo­ção, que não chegavam a cair. Aquela prova enchia-o de profundo consolo. Não havia aceitado, em vão, aquele Cristo sábio e amoroso, incompreendido dos colegas. Ao término da exposição, Saulo de Tarso tinha o olhar ve­lado em pranto. O bondoso ancião abraçou-o comovida­mente, atraindo-o ao coração.

— Saulo, meu filho — disse exultante —, bem sabia que me não enganava a respeito do Salvador, que tão profundamente me falou à velhice exausta, através da luz espiritual do seu Evangelho de redenção. Jesus dignou-se estender as mãos amorosas ao teu Espírito dedicado.

A visão de Damasco bastará para a consagra­ção de tua existência inteira ao amor do Messias. É verdade que muito trabalhaste pela Lei de Moisés, sem hesitar na adoção de medidas extremas, na sua defesa. Entretanto, é chegado o momento de trabalhares por quem é maior que Moisés.

— Sinto-me, porém, grandemente desorientado e con­fundido — murmurou o jovem de Tarso, cheio de con­fiança. Desde a ocorrência noto que estou sendo objeto de singulares e radicais transformações. Obediente ao meu feitio absolutamente sincero, quis começar meu es­forço pelo Cristo, em Damasco, e, no entanto, recebi dos nossos amigos, dali, as maiores manifestações de des­prezo e ridículo, que muito me fizeram sofrer. Repen­tinamente, vi-me sem companheiros, sem ninguém. Al­guns componentes da reunião do “Caminho” consolaram minhalma abatida com as suas expressões de fraterni­dade, mas não foram bastantes para ressarcir as amar­gas desilusões experimentadas. O próprio Sadoc, que, na infância, foi pupilo de meu pai, cobriu-me de recriminações e zombarias. Desejei voltar a Jerusalém, mas, através do quadro da Sinagoga de Damasco, compreendi o que me esperava em grande escala junto às autoridades do Sinédrio e do Templo. Naturalmente, a profissão de rabino não me poderá interessar o espírito sincero, por­que, de outro modo, seria mentir a mim mesmo. Sem trabalho, sem dinheiro, acho-me num labirinto de ques­tões insolúveis, sem o auxílio de um coração mais expe­riente que o meu. Resolvi, então, demandar o deserto e procurar-vos para o socorro necessário.

E concluindo a rogativa, com os olhos súplices, revelando as ansiedades tormentosas que lhe povoavam a alma, exclamou:

— Mestre amado, sempre enxergastes as soluções do bem, onde minha imperfeição não devassava senão sombras amargurosas!... Amparai meu coração mer­gulhado em dolorosos pesadelos. Preciso servir Àquele que se dignou arrancar-me das trevas do mal, não posso dispensar vosso auxílio neste transe difícil da minha vida!...

Essas palavras eram ditas com inflexão profunda­mente comovedora. Olhos firmes, embora iluminados de intensa ternura, o generoso velhinho acariciou-lhe as mãos e começou a falar comovidamente:

— Examinemos tuas dúvidas, de maneira particular, a fim de estudarmos uma solução adequada a todos os problemas, à luz dos ensinamentos que hoje nos iluminam.

E, após uma pausa em que parecia catalogar os assuntos, continuava:

— Falas do desprezo experimentado na Sinagoga de Damasco; mas, os exemplos são claros e convincentes. Também eu, atualmente, sou considerado como louco pacífico, no ambiente dos meus. Em Jerusalém, viste Simão Pedro vilipendiado por amar os pobres de Deus e dar-lhes acolhida; viste Estevão morrer sob pedradas e que mais? O próprio Cristo, redentor dos homens, não se furtou aos martírios de uma cruz infamante, entre malfeitores condenados pela justiça do mundo. A lição do Mestre é grande demais para que seus discípulos estejam a espera de dominações políticas ou de altas expressões financeiras, em seu nome. Se ele que era puro, e inimitável, por excelência, andou entre sofri­mentos e incompreensões neste mundo, não é justo aguar­demos repouso e vida fácil em nossa miserável condição de pecadores.

O moço tarsense ouvia aquelas palavras mansas e enérgicas, com a alma dolorida, mormente no que se referia às perseguições infligidas a Pedro e no capítulo das lembranças de Estevão, às quais o velho amigo tinha a delicadeza de não aludir nominalmente ao verdugo.

— A respeito das dificuldades que dizes experimen­tar depois dos sucessos de Damasco — prosseguia Ga­maliel serenamente —, nada mais justo e natural a meus olhos experimentados nos problemas do mundo. Nossos avós, antes de receber o maná do céu, atravessaram tempos sombrios de miséria, escravidão e sofrimento. Sem as angústias do deserto, Moisés jamais encontraria na rocha estéril a fonte de água viva. E talvez ainda não tenhas meditado melhor nas revelações da Terra Prometida. Que região seria essa, se, guardando a com­preensão mais vasta de Deus, descobrimos em todos os pontos do mundo mananciais de sua proteção? Há tama­reiras, frondosas e amigas, medrando nos areais ardentes. Essas árvores generosas não transformam o próprio deserto em caminhos abençoados, cheios do pão divino para matar nossa fome? Nas minhas reflexões solitárias, cheguei à conclusão de que a Terra Prometida pelas divinas revelações é o Evangelho do Cristo Jesus. E a meditação nos sugere comparações mais profundas. Quando nossos ascendentes mais corajosos trabalhavam por conquistar a região privilegiada, numerosas pessoas tentavam desanimar os mais pertinazes, asseverando que o terreno era inóspito, que os ares eram insalubres e portadores de febres mortais; que os habitantes eram intratáveis, devoradores de carne humana; mas Josué e Caleb, num esforço heróico, penetraram a terra desconhecida, venceram os primeiros obstáculos e voltaram dizendo que dentro da região manavam leite e mel. Não temos aí um símbolo perfeito? A revelação divina deve referir-se a uma região bendita, cujo clima espi­ritual seja feito de paz e luz. Adaptarmo-nos ao Evangelho é descobrir outro país, cuja grandeza se perde no Infinito da alma. A nosso lado permanecem aqueles que tudo fazem por nos desanimar na empresa conquistada. Acusam a lição do Cristo de criminosa e revolucionária, enxergam no seu exemplo intuitos de desorganização e de morte; qualificam um apóstolo, como Simão Pedro, de pescador presunçoso e ignorante; mas pensando na­quela estupenda serenidade com que Estevão entregou a alma a Deus, vi nele a figura do companheiro corajoso e digno, que voltava das lições do “Caminho” para nos afirmar que na Terra do Evangelho há fontes do leite da sabedoria e do mel do amor divino. É preciso, pois, marchar sem repouso e sem contar os obstáculos da via­gem. Procuremos a mansão infinita que nos seduz o coração.

Gamaliel fizera uma pausa em suas expressões ami­gas e altamente consoladoras. Saulo estava admirado. Aquelas comparações tão simples, aquelas deduções pre­ciosas do estudo da Antiga Lei, com relação a Jesus, deixavam-no perplexo. A sabedoria do ancião renovava-lhe as forças.

— Alegas tua estranheza — continuou o venerando amigo, enquanto o jovem o fixava com interesse crescente — com a mudança de profissão e a falta de dinheiro para as necessidades mais imediatas... Entretanto, Saulo, basta meditar um pouco na realidade dos fatos, para que vejas claramente. Um velho, como eu, está na situação de Moisés contemplando a Terra Pro­metida, sem poder alcançá-la. Mas, quanto a ti, é pre­ciso convir que estás ainda muito moço. Podes mul­tiplicar as energias com o adestramento de tuas forças e penetrar o terreno das aspirações do Salvador, a nosso respeito. Para isso, é indispensável simplificar a vida, recomeçar a luta. Josué não poderia ter vencido os óbices do caminho tão-só com a leitura dos textos sa­grados, ou com os favores de quantos o estimavam. Certamente, manipulou instrumentos rudes, aplainou es­tradas onde havia abismos, à custa de esforços sobre-humanos.

— E que me aconselhais neste sentido? — interro­gou o rapaz com profunda atenção, enquanto o velho mestre fazia longa pausa.

— Quero dizer que conheço teu pai, bem como sua situação de abastança. Naturalmente, nas suas expres­sões de afeto, não se negaria a te prestar todo o auxílio, nesta emergência.

Mas teu pai é humano e pode ser chamado amanhã à vida espiritual. Seu amparo, portanto, seria valioso, mas não deixaria de ser precário, se não cooperasses com teu esforço próprio na solução dos teus problemas. E vives uma fase em que todo trabalho enérgico se faz indispensável. Examinada a questão de família, vejamos tua condição profissional. Até agora foste rabino da Lei, preocupado com os erros alheios, com as discussões da casuística, com a situação de evidência entre os doutores; ganhavas dinheiro na vigilância dos outros, mas Deus te chamou à verificação dos teus próprios desvios, como chamou a mim mesmo. A Terra Prometida desenha-se aos nossos olhos. Ë pre­ciso vencer os obstáculos e marchar.

Como doutor da Lei, isso não mais te seria possível. Então é necessário recomeçar a tarefa como o homem que procurava inutil­mente o ouro no lugar onde ele não existia. O problema é de trabalho, de esforço pessoal.

O moço de Tarso demorou o olhar úmido de emoção no velho generoso e exclamou:

— Sim, agora compreendo...

— Que aprendeste na infância, antes da posição conquistada? — perguntou o ancião previdente.

— Consoante os costumes da nossa raça, meu pai mandou-me aprender o ofício de tecelão, como sabeis.

— Não podias receber das mãos paternas dádiva mais generosa — acrescentou Gamaliel com um sorriso sereno —; teu pai foi previdente, como todos os chefes de família do povo de Deus, procurando afeiçoar tuas mãos ao trabalho, antes que o cérebro se povoasse de muitas idéias. Está escrito que devemos comer o pão com o suor do rosto, O trabalho é o movimento sagrado da vida.

Fazendo um intervalo, como que procurando refletir mais profundamente, o velho mentor da mocidade fa­nanica voltou a dizer:

— Foste humilde tecelão antes de conquistares os títulos honoríficos de Jerusalém...

Agora que te can­didatas a servir ao Messias na Jerusalém da Humanidade, é bom que voltes a ser modesto tecelão. As tarefas apagadas são grandes mestras do espírito de submissão. Não te sintas humilhado regressando ao tear que nos surge, presentemente, qual amigo generoso. Estás sem dinheiro, sem recursos materiais... À primeira vista, considerando tua situação de realce no mundo, seria justo recorrer a parentes ou amigos. Mas não estás doente, nem envelhecido. Tens a saúde e a força. Não será mais nobre convertê-las em elemento de socorro a ti mesmo? Todo trabalho honesto está selado com a bênção de Deus.

Ser tecelão, depois de ter sido rabino, é para mim mais honroso que descansar sobre os títulos ilusórios, conquistados num mundo onde a maioria dos homens ignora o bem e a verdade.

Saulo compreendeu a grandeza dos conceitos e, to­mando-lhe a mão, beijou-a com profundo respeito, mur­murando:

— Não esperava de vós senão esta franqueza e esta sinceridade que iluminam meu espírito. Aprenderei, de novo, o caminho da vida, encontrarei no ruído do tear os estímulos brandos e amigos do trabalho santificante. Conviverei com os mais desfavorecidos da sorte, pene­trarei mais intimamente nas suas amarguras de cada dia; em contacto com as dores alheias hei de saber dominar meus próprios impulsos inferiores, tornando-me mais paciente e mais humano!...

Tomado de grande alegria, o sábio velhinho acari­ciou-lhe os cabelos, exclamando emocionado:

— Deus abençoará tuas esperanças!...

Longo tempo ficaram em silêncio, como desejosos de prolongar, indefinidamente, aquele instante glorioso de compreensão e harmonia.

Foi Saulo quem, denotando no olhar as muitas preo­cupações íntimas, quebrou o silêncio, dizendo receoso:

— Pretendo retomar o ofício da primeira idade, mas estou sem dinheiro para a viagem. Se fosse possível, exerceria a profissão aqui mesmo, em Palmira...

Falava hesitante, deixando perceber ao venerável amigo a vergonha que experimentava com o fazer-lhe essa confissão.

— Como não? — obtemperou Gamaliel solícito - considero que as dificuldades da volta não seriam pe­quenas. Entretanto, não incluo nos obstáculos os pro­blemas do dinheiro, porque, de qualquer forma, podería­mos obtê-lo para as despesas mais urgentes. Refiro-me simplesmente aos perigos da situação que passou. Acho justo que regresses a Jerusalém ou a Tarso, plenamente integrado nos teus novos deveres. Toda planta é frágil quando começa a crescer. As tricas do farisaísmo, a falsa ciência dos doutores, as vaidades familiares pode­riam abafar a semente gloriosa que Jesus te lançou no coração ardente, O rebento mais promissor não se desen­volverá se o cobrirmos de detritos e lama. Ë bom que voltes ao berço, aos nossos companheiros e à família, como árvore frondejante, honrando a dedicação do Divino Cultivador.

— Mas que fazer? — tornou Saulo preocupado.

O antigo mestre refletiu um instante e esclareceu:

— Sabes que as zonas do deserto são grandes mer­cados dos artigos de couro, O serviço de transporte. depende inteiramente dos tecelões mais hábeis e dedica­dos. Assim o compreendendo, meu irmão estabeleceu diversas tendas de trabalho nos oásis mais distantes, para atender às necessidades do seu comércio. Conver­sarei com Ezequias a teu respeito. Não direi que se trata de um grande chefe de Jerusalém, que pretende exilar-se por algum tempo, não pelo receio de envergo­nhar teu nome ou tua origem, mas por julgar útil que proves a humildade e a solidão no teu novo caminho. As considerações convencionais poderiam perturbar-te, agora que necessitas exterminar o “homem velho” a golpes de sacrifício e disciplina.

— Compreendo e obedeço em meu próprio benefício murmurou Saulo com atenção.

— Aliás, Jesus exemplificou tudo isso, permane­cendo em nosso meio, sem que o percebêssemos.

O moço tarsense pôs-se a meditar na elevação dos alvitres recebidos. Iniciaria uma existência nova. To­maria o tear com humildade. Alegrava-se, ao recordar que o Mestre não desdenhara, por sua vez, o banco de carpinteiro. O deserto lhe proporcionaria consolação, trabalho, silêncio. Ganharia não mais o dinheiro fácil da admiração indevida, mas os recursos necessários à existência, com o subido valor dos obstáculos vencidos. Gamaliel tinha razão. Não era lícito rogar o favor dos homens quando Deus lhe havia feito o maior de todos os favores, iluminando-lhe a consciência para sempre. É verdade que em Jerusalém havia sido cruel verdugo, mas contava apenas trinta anos. Buscaria reconciliar-se com todos a quem havia ofendido no seu rigorismo sectário. Sentia-se jovem, trabalharia para Jesus enquanto lhe restassem energias.

A palavra carinhosa do ancião veio arrancá-lo das profundas cismas.

— Tens o Evangelho? — perguntou o velhinho com bondoso interesse.

Saulo mostrou-lhe a parte fragmentária que trazia, explicando-lhe o trabalho que teve, em Damasco, para copiá-la dos manuscritos do generoso pregador que lhe curara a cegueira repentina. Gamaliel examinou-a com atenção e, depois de concentrar-se longo tempo, acrescentou:

— Tenho uma cópia integral das anotações de Levi, cobrador de impostos em Cafarnaum, que se fez Após­tolo do Messias — lembrança generosa de Simão Pedro à minha pobre amizade: presentemente não necessito mais desses pergaminhos, que considero sagrados. Para gravar na memória as lições do Mestre, procurei copiar todos os ensinos, fixando-os na retentiva, para sempre. Já possuo três exemplares completos do Evangelho, sem a cooperação de escriba algum. Desse modo, por con­siderar a dádiva de Pedro como santificada relíquia de nobre afeição, quero depô-la em tuas mãos. Levarás con­tigo as páginas escritas na igreja do “Caminho”, como fiéis companheiras do teu novo trabalho.

O ex-rabino escutava-lhe as declarações afetuosaS, tomado de profunda emoção.

— Mas, por que desfazer-vos de uma lembrança cari­nhosa, por minha causa? — perguntou sensibilizado. —Ficaria muito contente com uma das cópias feitas por vossas mãos!...

O velho mestre fixou o olhar tranqüilo na paisagem e murmurou com voz profética:

— Cheguei ao fim da carreira, devo esperar a morte do corpo. Se hei de abandonar a dádiva de Pedro a pes­soas que lhe não podem reconhecer o valor que lhe atribuímos, é justo entregá-la a um amigo fiel, que pode ajuizar do seu caráter sagrado. Além disso, tenho a convicção de que não mais poderei voltar a Jerusalém; neste mundo, não me será possível qualquer entendi­mento direto com os Apóstolos galileus, a respeito das luzes que o Salvador derramou em meu espírito. E temo que os adeptos de Jesus te não possam compreender de pronto, quando regressares à cidade santa. Terás, então, esta lembrança para te apresentares a Pedro em meu nome.

Aquele tom profético impressionava o moço tarsense, que baixou a cabeça, de olhos úmidos.

Depois de longo intervalo, como que procurando recompor as idéias com perfeita sabedoria, Gamaliel con­tinuava solícito:

— Vejo-te, no futuro, dedicado a Jesus, com o mes­mo zelo ardente com que te conheci consagrado a Moisés! Se o Mestre te chamou ao serviço é porque confia na tua compreensão de servo fiel. Quando o esforço das mãos te haja granjeado a liberdade para escolheres o novo caminho a seguir, Deus há de abençoar-te o coração, para difundires a luz do Evangelho entre os homens, até ao último dia de vida aqui na Terra. Nesse labor, meu filho, se topares incompreensão e luta em Jerusalém, não deses­peres nem esmoreças. Semeaste por lá certa confusão nos espíritos, é justo recolhas os resultados. Em toda tarefa, porém, lembra-te do Cristo e passa adiante com o teu esforço sincero. Não te perturbem as desconfianças, a calúnia e a má-fé, atento a que Jesus venceu ga­lhardamente tudo isso!...

Saulo sentia profundo descanso naquela exortação amorosa, terna, leal. Ouvindo-a, deixou-se ficar, longo tempo, entre lágrimas ardentes que testemunhavam o arrependimento do passado e as esperanças do futuro.

Naquela tarde, Gamaliel deixou a rústica choupana, dirigindo-se com o ex-discípulo à casa do irmão, que acolheu, desde então, o jovem tarsense sob o seu teto, com indisfarçável contentamento.

A inteligência fulgurante e a juventude comunica­tiva do ex-doutor da Lei conquistaram Ezequias e os seus, numa bela expressão de amizade espontânea.

Nessa mesma noite, concluídas as cerimônias do­mésticas da última colação habitual, o velho rabino de Jerusalém expôs ao negociante a situação do seu pro­tegido. Explicou-lhe que Saulo fora seu discípulo, desde menino, exaltando-lhe o valor pessoal e concluindo com a exposição de suas necessidades econômicas, verdadei­ramente críticas. E diante do próprio interessado, que acentuava sua admiração por aquele velhinho sábio e generoso, esclareceu que ele tencionava trabalhar como tecelão nas tendas do deserto, rogando a Ezequias auxiliasse, com sua bondade, tão nobres aspirações de traba­lho e esforço próprios.

O comerciante de Palmira admirou-se.

— Mas o rapaz, de modo algum — advertiu aten­cioso — necessitará insular-se para ganhar a vida. Tenho meios de localizá-lo aqui mesmo, na cidade, onde ficará em contacto permanente conosco.

— Entretanto, preferiria vosso amparo generoso lá no deserto — acentuou Saulo em tom significativo.

— Por quê? — indagou Ezequias interessado — não compreendo mocidades como a tua exiladas nos esten­dais de areia intermináveis. Os imigrantes do êxodo de Jerusalém, na condição de solteiros, não toleraram os elementos que lhes ofereci nos oásis distantes.

Apenas alguns casais aceitaram as propostas e partiram. Quanto a ti, com os teus dotes intelectuais, não compreendo como preferes ser tecelão humilde, segregado de todos...

Gamaliel compreendeu que a estranheza do irmão poderia levá-lo a suposições errôneas, acerca do jovem amigo, e, antes que alguma suspeita injusta se lhe esbo­çasse ao espírito indagador, ponderou com prudência:

— Tua pergunta, Ezequias, é natural, pois as re­soluções de Saulo inspiram estranheza a qualquer homem prático. Trata-se de um moço cheio de talento, credor de belas promessas e, ao demais, muito instruído. Os menos avisados poderão chegar ao extremo de presumi­rem na sua atitude o desejo de fugir a conseqüências de algum crime. Mas não há tal. Para ser mais franco, devo dizer que meu antigo discípulo quer consagrar-se, mais tarde, à difusão da palavra de Deus. Achas, então, que Saulo se elegesse a carreira da mocidade triunfante, da nossa época, preferiria Palmira a Jerusalém? A situa­ção, portanto, não é apenas de necessidade pecuniária, é também de carência de meditação nos problemas mais graves da vida. Bem sabemos que os profetas e homens de Deus foram aos lugares ermos, a fim de sentirem as reais inspirações do Altíssimo, antes de ministrarem, com êxito, a santidade da palavra.

— Se é assim... replicou o outro, vencido.

E após meditar alguns momentos, o negociante vol­tou a dizer:

— Na região que conhecemos por “oásis de Dan”, daqui distante mais de cinqüenta milhas, precisamente, instalei há cerca de um mês um jovem casal de tecelões que chegou na última leva de refugiados. Trata-se de Áquila, cuja mulher, de nome Prisca, foi serva de minha esposa, quando menina, é órfã desamparada. Esses bons operários são, atualmente, os únicos habitantes do oásis. Saulo poderá fazer-lhes companhia. Ali há tendas pró­prias, casa confortável e teares indispensáveis ao serviço.

— E qual o sistema do trabalho? — interrogou o jovem tarsense interessado pela nova tarefa.

— A especialidade desse posto avançado — esclare­ceu Ezequias com certo orgulho — é a preparação de tapetes de lã e dos tecidos resistentes de pelo caprino, destinados a barracas de viagem. Esses artigos são for­necidos por nossa casa comercial, em grande escala, mas, situando a manufatura desse trabalho tão distante, tive em vista as necessidades urgentes dos grupos de camelos de minha propriedade, empregados no meu tráfico comer­cial com toda a Síria e pontos outros mais florescentes, do comércio em geral.

— Tudo farei por corresponder à vossa confiança —confirmou o ex-rabino confortado.

A palestra prosseguiu ainda, longo tempo, no comen­tário das perspectivas, das condições e vantagens do negócio.

Daí a três dias, Saulo despedia-se do mestre, debaixo de profunda comoção. Figurava-se-lhe que aquele abraço afetuoso era o último e, até que os camelos da caravana largassem em direção da imensa planície, o jovem envol­veu o venerando ancião nas vibrações caridosas do an­gustioso adeus.

No dia imediato, os serviçais de Ezequias, ladeando a extensa fila de camelos resignados, deixavam-no com vultosa carga de couros, na companhia de Áquila e sua mulher, no grande oásis que florescia em pleno deserto.

Os dois operários da pequena oficina receberam-no com as melhores mostras de fraternidade e simpatia. Saulo reconheceu neles, de relance, as mais nobres qua­lidades espirituais. A mocidade do generoso casal ex­pandia-se em formosas expressões de trabalho e bom ânimo. Prisca desdobrava-se em atividades para assi­nalar em tudo as preciosidades do seu carinho. Suas velhas canções hebraicas ressoavam no grande silêncio como notas de soberana e harmoniosa beleza. Termina­dos os serviços domésticos, ei-la junto do companheiro, nas lides do tear, até às horas mais avançadas do crepúsculo. O marido, por sua vez, parecia um tempera­mento privilegiado, desses que se movimentam sem a pre­sença do aguilhão. Plenamente integrado nas responsabilidades que lhe competiam, Áquila trabalhava sem des­canso à sombra das árvores acolhedoras e amigas.

Saulo compreendeu a bênção que havia recebido. Tinha a impressão de encontrar naquelas duas almas fraternas, que nunca mais se haviam de separar espi­ritualmente da grandeza de sua missão, dois habitantes de um mundo diferente que, até então, não lhe fora dado conhecer na vida.

Áquila e Prisca, antes que esposos, pareciam ver­dadeiros irmãos. No primeiro dia de esforço conjunto, o ex-doutor da Lei observou-lhes o respeito mútuo, a perfeita conformidade de idéias a elevada noção de deveres que lhes caracterizava as menores atitudes e, sobretudo, a alegria sã que irradiava dos seus menores gestos. Seus costumes puros e generosos encantavam-lhe a alma desiludida das hipocrisias humanas. As re­feições eram simples; cada objeto tinha o seu aproveitamento e lugar adequado, e as palavras, quando saíam do círculo da alegria comum, jamais incidiam em male­dicência ou frivolidade.

O primeiro dia correu com agradabilíssimas surpre­sas para o ex-rabino, sequioso de paz e solidão para os seus novos estudos e meditações. O companheiro de trabalho desfazia-se em gentilezas para atender-lhe às pequeninas dificuldades no mister que há longo tempo deixara de praticar. Áquila estranhou, naturalmente, as mãos delicadas, as maneiras diferentes, em nada seme­lhantes às de um tecelão comum; mas, com a nobreza que o caracterizava, nada perguntou relativamente aos motivos do seu insulamento.

Naquela mesma tarde, cessada a tarefa, o casal acomodou-se ao pé de frondosa palmeira, não sem lançar ao novo companheiro olhares indagadores, que tradu­ziam indisfarçável inquietude. Silenciosos, desenrolaram uns velhos pergaminhos e começaram a ler com muita atenção.

Saulo percebeu aquela atitude receosa e aproxi­mou-se.

— De fato — disse carinhoso — a tarde no deserto convida à meditação... o lençol infinito de areia parece um oceano parado... a aragem branda representa a mensagem das cidades distantes. Tenho a impressão de estarmos num templo de paz imperturbável, fora do mundo...

Áquila admirou-se daquelas imagens evocativas e experimentou maior simpatia por aquele rapaz anônimo, segregado talvez dos afetos mais caros, a contemplar a planície sem-fim, com imensa tristeza.

— É verdade — respondeu atencioso —, sempre acreditei que a Natureza conservou o deserto como altar de silêncio divino, para que os filhos de Deus tenham na Terra um local de perfeito repouso. Aproveitemos, pois, nosso estágio na solidão, para pensar no Pai justo e santo, considerando sua magnanimidade e grandeza.

A esse tempo, Prisca debruçava-se sobre a primeira parte do rolo de pergaminhos, absorvida na leitura.

Lendo casualmente, de longe, o nome de Jesus, Saulo aproximou-se ainda mais e, sem conseguir ocultar seu grande interesse, perguntou:

- Áquila, tenho tanto amor ao profeta nazareno que me permito indagar se tua leitura sobre a grandeza do Pai Celestial é feita pelos ensinamentos do Evangelho.

O jovem casal experimentou profunda surpresa em face do inesperado de semelhante pergunta.

— Sim... — esclareceu o interpelado hesitante —, mas, se vens da cidade, não ignoras as perseguições movidas a quantos se encontram em ligação com o “Caminho” do Cristo Jesus...

Saulo não dissimulou sua alegria, verificando que os companheiros, amantes da leitura, estavam em con­dições de permutar mais elevadas idéias do novo apren­dizado.

Animado pela confissão do outro, sentou-se nas pedras rústicas e, tomando os pergaminhos com inte­resse, perguntava:

— Anotações de Levi?

— Sim — esclareceu Áquila mais senhor de si e certo de se encontrar em face de um irmão de ideal —, copiei-as na igreja de Jerusalém, antes de partir.

Num instante, Saulo buscou a cópia do Evangelho que constituía para seu coração uma das mais preciosas lembranças da vida. Conferiram, satisfeitos, os textos e os ensinos.

Tomado de sincero interesse fraternal, o ex-rabino interrogou com solicitude:

— Quando saíram de Jerusalém? Folgo imenso quan­do encontro irmãos que conhecem de perto nossa cidade santa. Quando saí de Damasco, não previa que Jesus me reservasse tão gratas surpresas.

— Faz meses que de lá saímos — explicou Áquila, agora cheio de confiança na espontaneidade das palavras ouvidas. — Fomos compelidos a isso pelo movimento das perseguições.

Aquela referência brusca e indireta ao seu passa­do, perturbava o jovem tarsense no mais recôndito do coração.

— Chegaste a conhecer Saulo de Tarso? — per­guntou o tecelão com uma grande ingenuidade a trans­parecer-lhe dos olhos. Aliás — continuava, enquanto o interpelado buscava o que responder —, o célebre ini­migo de Jesus tem nome igual ao teu.

O ex-rabino considerou que seria melhor seguir à risca o conselho de Gamaliel. Era preferível ocultar-se, experimentar a reprovação justa do seu passado condenável, humilhar-se ante o juízo dos outros, por mais implacáveis que fossem, até que os irmãos do “Caminho” lhe comprovassem plenamente a fidelidade do testemunho.

— Conheci-o — replicou vagamente.

— Pois bem — prosseguia Áquila, iniciando a nar­ração das suas vicissitudes —, é bem possível que, pela tua passagem em Damasco e Palmira, não tivesses conhe­cimento perfeito dos martírios que o famoso doutor da Lei nos impôs, muitas vezes, arbitrariamente. Talvez o próprio Saulo, segundo creio, não pudesse saber as atrocidades cometidas pelos homens inescrupulosos que tinha às suas ordens, porque as perseguições foram de tal natureza que, como irmão do “Caminho”, não posso admitir que um rabino educado pudesse assumir a res­ponsabilidade pessoal de tantos feitos iníquos.

Enquanto o ex-doutor procurava, em vão, uma res­posta adequada, Prisca entrava na conversa, exclamando com simplicidade:

— É claro que o rabino de Tarso não podia conhe­cer todos os crimes cometidos em seu nome. O próprio Simão Pedro. na véspera de partirmos, ocultamente, à noite, nos afirmou que ninguém devia odiá-lo, porque, não obstante o papel que representou na morte de Estevão, era impossível fosse o mandante de tantas medi­das odiosas e perversas.

Saulo compreendia, agora que ouvia os mais hu­mildes, a extensão da campanha criminosa que desenca­deara, dando ensanchas a tantos abusos de subalternos e apaniguados.

— Mas — perguntou admirado — sofreste tanto assim? Foste condenado a alguma pena?

— Não foram poucos os que sofreram vexames Iguais aos que experimentei murmurou Áquila expli­cando-se —, dado o condenável procedimento de uns tan­tos energúmenos fanáticos, escolhidos como auxiliares prestimosos do movimento.

— Como assim? inquiriu Saulo sumamente inte­ressado.

— Dar-te-ei um exemplo. Imagina que um patrício de nome Jochal, várias vezes interpelou meu pai relativamente à possibilidade da compra de uma padaria em Jerusalém. Eu cuidava de minha tenda; meu velho ge­nitor, de seus serviços. Vivíamos felizes e, considerando nossa paz, apesar das investidas do ambicioso, meu pai jamais pensou em alienar a fonte dos seus recursos. Jochaí. entretanto, logo no início das perseguições, logrou posição de realce. Em tais feitos, os caracteres mesqui­nhos sempre levam a palma. Bastou lhe dessem um pouco de autoridade e o invejoso logo expandiu seus criminosos desejos. É verdade que eu e Prisca fomos dos primeiros a freqüentar a igreja do “Caminho”, não só por afinidade de sentimento, como por dever a Simão Pedro a cura de antigos males que me vinham da infância. Meu pai, no entanto, apesar da simpatia pelo Salvador, sempre ale­gava estar bastante idoso para mudar de idéias religiosas. Aferrado à Lei de Moisés, não podia compreender uma renovação geral de princípios em matéria de fé. Isso, todavia, não invalidou os instintos perversos do ambi­cioso. Certo dia, Jochaí nos bateu à porta acompanhado de escolta armada, com ordem de prisão para os três. Era inútil resistir. O doutor de Tarso lançara um edito em que toda resistência significava morte. Lá nos fomos à prisão. Em vão meu pai jurou fidelidade à Lei. Depois do interrogatório, eu e Prisca recebemos ordem de re­gressar a casa, mas o velho foi encarcerado sem com­paixão. Os bens modestos foram-lhe imediatamente con­fiscados. Depois de muitas providências de nossa parte, conseguimos voltasse ele à nossa companhia e o valorosu velhinho, cujo único arrimo era a minha dedicação filial, na sua senectude e viuvez, expirou em nossos braços no dia imediato ao livramento por nós ansiosamente espe­rado. Quando nos reveio parecia um fantasma. Guar­das caridosos trouxeram-no quase agonizante. Ainda lhe pude ver os ossos quebrados, as feridas abertas, a epi­derme lanhada de açoites. Em palavras titubeantes, descreveu as cenas lamentáveis do cárcere. O próprio Jochaí, rodeado de sequazes, foi o autor dos últimos suplícios. Não podendo resistir aos sofrimentos, entre­gou a alma a Deus!

Áquila estava profundamente comovido. Furtiva lá­grima viera associar-se às penosas recordações.

— E a autoridade do movimento? — perguntou Saulo emocionado ao extremo — estaria alheia a esse crime?

— Creio que sim. A crueldade foi demasiada para que se lhe atribuísse tão-só a punição por motivos re­ligiosos.

— Mas não te valeste de alguma petição de justiça?

— Quem se atreveria a fazê-lo? — perguntou o em­pregado de Ezequias com admiração.

— Tenho amigos que chegaram a recorrer, mas pagaram com castigos mais violentos o desejo de justiça.

O ex-rabino compreendeu a justeza dos conceitos. Somente agora tinha bastante largueza de vistas espi­rituais para avaliar a velha cegueira que lhe negrejara a alma. Áquila tinha razão. Muitas vezes fora surdo às rogativas mais comovedoras. Invariavelmente, man­tinha as decisões mais absurdas dos seus prepostos in­conscientes. Recordava-se do próprio Jochaí, que lhe parecia tão prestimoso nos dias de ignorância.

— E que pensas de Saulo? — perguntou brusca­mente.

Longe de saber com quem permutava as idéias mais íntimas, Áquila respondeu sem titubear:

— O Evangelho manda considerá-lo irmão extre­mamente necessitado da luz de Jesus-Cristo. Nunca o vi, mas, temendo as iniqüidades praticadas em Jerusalém, aqui vim parar em fuga precipitada, e tenho orado a Deus por ele, esperando que um raio do céu o esclareça, não tanto por mim, que nada valho, mas por causa de Pedro, que considero um segundo pai muito querido. Acredito que se operariam maravilhas se a igreja do “Caminho” pudesse trabalhar livremente. Julgo que os Apóstolos galileus são dignos de um campo sem espinhos para a sementeira de Jesus.

Dirigindo-se à esposa, enquanto o moço de Tarso silenciava, o tecelão exclamava com interesse:

— Lembras-te, Prisca, como se exorava pelo per­seguidor nas preces íntimas da igreja?

Muitas vezes, para esclarecer nosso espírito fraco no perdão, Pedro nos ensinava a considerar o implacável rabino como a um irmão que as violências obscureciam. Para que nos­sos ressentimentos mais vivos se desfizessem, historiava o seu passado, dizendo que, também ele, por ignorância, chegara a negar o Mestre, mais de uma vez. Salientava nossas fraquezas humanas, induzia-nos a melhor compreensão. Certo dia chegou a declarar que toda a per­seguição de Saulo era útil, porque nos levava a pensar em nossas próprias misérias, a fim de estarmos vigi­lantes nas responsabilidades com Jesus.

O ex-discípulo de Gamaliel tinha os olhos úmidos.

— Sem dúvida, o famoso pescador de Cafarnaum é um dos grandes irmãos dos infelizes — murmurou con­victamente.

A palestra desviou-se para outros comentários, de­pois da intervenção de Prisca nas derradeiras notas do assunto, revelando conhecer muitas mulheres de Jeru­salém, que, tendo marido e filhos encarcerados, pediam sinceramente a Jesus pela iluminação do célebre perse­guidor do “Caminho”. Em seguida, falaram do Evan­gelho. O manto de estrelas cobriu suas grandiosas esperanças, enquanto Saulo bebia a longos haustos a água pura da amizade sincera, naquele novo mundo tão re­duzido.

Nessas palestras carinhosas e fraternais, os dias se foram passando rápidos. De quando em quando, chega­vam de Palmira reforços de abastecimentos e outros re­cursos. Os três habitantes do oásis silencioso entrelaça­vam aspirações e pensamentos em torno do Evangelho de Jesus, o único livro de suas meditações naquelas para­gens tão remotas.

O ex-rabino modificara o próprio aspecto, ao con­tacto direto das forças agressivas da Natureza. A epi­derme queimada pelo sol dava a impressão de um homem acostumado à inclemência do deserto. A barba crescida transformara-lhe o semblante. As mãos afeitas ao trato dos livros tornaram-se calosas e rudes. Entretanto, a solidão, as disciplinas austeras, o tear laborioso, lhe haviam enriquecido a alma de luz e serenidade. Os olhos calmos e profundos atestavam os novos valores do espí­rito. Entendera, finalmente, aquela paz desconhecida que Jesus desejara aos discípulos; sabia, agora, interpretar a dedicação de Pedro, a tranqüilidade de Estevão no Instante da morte ignominiosa, o fervor de Abigail, as virtudes morais dos freqüentadores do “Caminho”, que perseguira em Jerusalém. A auto-educação, na ausência dos recursos da época, ensinara-lhe à alma ansiosa o segredo sublime de se entregar ao Cristo, para repousar em seus braços misericordiosos e invisíveis. Desde que se consagrara ao Mestre, de alma e coração, os remorsos, as dores, as dificuldades como que se afastaram do seu espírito. Recebia todo trabalho como um bem, toda ne­cessidade como elemento de ensino. Sem esforço, afei­çoou-se a Áquila e sua mulher, como se houvessem nascido juntos. Certa vez, o companheiro adoeceu e es­teve à morte, prostrado por violenta febre. A situação dolorosa, a multiplicação das tempestades de areia, aba­teram igualmente o ânimo de Prisca, que se recolheu ao leito com poucas esperanças de vida. Saulo, porém, mos­trou-se de uma coragem e desvelo inauditos. Tomado de sincera confiança em Deus, esperou a restauração da calma e da alegria. Jubiloso, viu o regresso de Áquila ao tear e a volta da companheira aos labores domésticos, cheios de novas expressões de paz e confiança.

Quando mais de um ano havia corrido sobre aquela soledade, uma caravana vinda de Palmira trazia-lhe um bilhete lacônico. O negociante comunicava-lhe a morte súbita do irmão, aliás de há muito esperada.

A partida de Gamaliel para os reinos da morte não deixou de ser uma dolorosa surpresa.

O velho mestre, depois do pai, foi o maior amigo que encontrou na vida. Meditou seus últimos conselhos, ponderou-lhe a profunda sabedoria. Ao seu influxo, conseguira a paz desejada para ajustar-se à situação espiritual necessária, de ma­neira a reorganizar a existência. Nesse dia, pensamentos de profunda saudade martirizaram-lhe a alma sensível.

Á tarde, após a refeição e na hora das meditações costumeiras, o ex-rabino contemplou o casal com ternura maior a transparecer dos olhos francos.

Cada qual se engolfava na meditação do Evangelho Divino, quando o moço tarsense falou com certa timidez, em desacordo com seus gestos resolutos:

— Áquila, muita vez, na solidão do nosso trabalho, tenho pensado na enormidade do mal que te causou o doutor de Tarso. Que farias se um dia te visses repen­tinamente em face do verdugo?

— Procuraria estimar nele um irmão.

— E tu, Prisca? — perguntou à mulher que o fixa­va curiosa.

— Seria ótima ocasião para testemunhar o amor que Jesus exemplificou em suas lições divinas.

O ex-doutor da Lei recobrou a serenidade e, alteando a voz, exclamou convictamente:

- Sempre considerei que um homem, chamado a administrar, responde por todos os erros de seus pre­postos, no que toca ao plano geral dos serviços. Por­tanto, no meu modo de pensar, não culparei tanto, a Jochaí que se arvorou em criminoso vulgar, abusando de uma prerrogativa que lhe foi conferida para execução de tantas vinganças torpes.

— A quem imputarias, então, o assassínio de meu pai? — perguntou Áquila impressionado, enquanto o amigo fazia ligeira pausa.

— Julgo que Saulo de Tarso deveria responder pelo processo. Ë verdade que ele não autorizou o feito cruel, mas, tornou-se culpado pela indiferença pessoal, quanto aos detalhes da tarefa que competia ao seu tirocínio.

Os cônjuges entraram a meditar no motivo de tais perguntas, enquanto o moço se calava, retraído.

Por fim, com voz humilde e comovedora, recomeçou a falar:

— Meus amigos, sob a inspiração do Senhor, é justo confessarmo-nos uns aos outros.

Minhas mãos calejadas no trabalho, meu esforço por bem aprender as virtudes da fé, que ambos têm exemplificado a meus olhos, devem ser um atestado da minha renovação espiritual. Sou Saulo de Tarso, o sanhoso perseguidor, transformado em servo penitente. Se muito errei, hoje muito neces­sito. Na sua misericórdia, Jesus rasgou a túnica miserável das minhas ilusões. Os sofrimentos regeneradores chegaram-me ao coração, lavando-o com lágrimas dolo­rosas. Perdi tudo que significava honrarias e valores do mundo, por tomar a cruz salvadora e seguir o Mestre na trilha da redenção espiritual. Ë verdade que ainda não pude abraçar-me ao madeiro das lutas construtivas e santificantes, mas persevero no esforço de negar-me a mim mesmo, desprezando o passado de iniqüidades para merecer a cruz da minha ascese para Deus.

Áquila e a mulher contemplavam-no com assombro. Não duvideis da minha palavra — continuou de olhos úmidos. — Assumo a responsabilidade dos meus tristes feitos. Perdoem-me, porém, levando em conta a minha ignorância criminosa!...

O tecelão e a esposa compreenderam que as lágri­mas lhe sufocavam a voz. Como que tolhido por singular emoção, Saulo começou a chorar convulsivamente. Áquila aproximou-se e abraçou-o. Aquela atitude carinhosa pa­recia agravar a contrição penosa, porque o pranto jorrou mais abundante. Recordou o momento em que encon­trara a afetividade sincera de Ananias, e, sentindo-se ali, nos braços de um irmão, deixou que as lágrimas lhe lavas­sem plenamente o coração. Sentia necessidade de expan­dir sentimentos afetuosos; A velha vida de Jerusalém era convencionalismo e secura. Como doutor destacado, tivera muitos admiradores, mas em nenhum chegara a sentir afinidades fraternas. Naquele recanto do deserto, porém, o quadro era outro. Tinha à frente um homem digno e honesto, companheiro dedicado e trabalhador, antiga vítima das suas perseguições inflexíveis e cruéis. Quantos, como Áquila e sua mulher, não estariam dis­persos no mundo, comendo o pão amargo do exílio por sua causa? Os grandes sentimentos nunca povoam a alma de uma só vez, em sua beleza integral. A criatura envenenada no mal é qual recipiente de vinagre, que necessita ser esvaziado pouco a pouco. A visão de Jesus constituía um acontecimento vivo, imorredouro; mas, para que pudesse compreender toda a extensão dos seus novos deveres, impunha-se-lhe o caminho estreito das provas ríspidas e amargosas. Vira o Cristo; mas, para ir ter com Ele, era indispensável voltar atrás e transpor abismos. As desilusões da Sinagoga de Damasco, o re­conforto junto dos irmãos humildes sob a direção de Ananias, a falta de recursos financeiros, os conselhos austeros de Gamaliel, o anonimato, a solidão, o abandono dos entes mais caros, o tear pesado sob o sol ardente, a penúria de todo e qualquer conforto material, a meditação diária nas ilusões da vida — tudo isso representara auxílio precioso para sua decisão vitoriosa. O Evangelho funcionara como lâmpada na jornada difícil, para o descobrimento de si mesmo, a fim de ajuizar as necessidades mais prementes.

Abraçando-se estreitamente ao amigo, que buscava enxugar-lhe as lágrimas, recordava-se de que em Da­masco, após a grande visão do Messias, talvez ainda guardasse no íntimo o orgulho de saber ensinar, o amor à cátedra de mestre em Israel, a tendência despótica de obrigar o semelhante a pensar com ele; ao passo que agora podia examinar o passado culposo e sentir o júbilo da reconciliação, dirigindo-se com humildade à sua vítima. Naquele instante, teve a impressão de que Áquila representava a comunidade de todos os ofendidos por seus desmandos cruéis. Serenidade branda enchia-lhe o coração. Sentia-se mais distanciado do orgulho, do amor­-próprio, das idéias amargas, dos remorsos terríveis. Cada gota de pranto era um pouco de fel que expungia da alma, renovando-lhe as sensações de tranqüilidade e de alívio.

— Irmão Saulo — disse o tecelão sem ocultar seu júbilo —, regozijemo-nos no Senhor, porque, como irmãos, estávamos separados e agora nos encontramos juntoS novamente. Não falemos do passado, comentemos o poder de Jesus, que nos transforma por seu amor.

Prisca, que também chorava, interveio com ternura:

— Se Jerusalém conhecesse esta vitória do Mestre, renderia graças a Deus!...

Sentados os três sobre a relva rala do oásis, ao sopro do vento que abrandava os rigores da tarde quente, irmanados na sublimidade da fé comum, o moço tarsense narrou-lhes o sucesso inolvidável da jornada de Damasco, revelando as profundas transformações da sua vida.

O casal chorou de emoção e alegria ouvindo o feito da misericórdia de Jesus, que, a seus olhos piedosos, não representava apenas um gesto de carinho ao servo desviado, mas uma bênção de amor para a Humanidade inteira.

Daí por diante, a tarefa lhes parecia mais leve, as dificuldades menos penosas. Nunca mais passou um crepúsculo sem que comentassem a dádiva gloriosa do Cristo às portas de Damasco.

— Agora que o Mestre nos reuniu — exclamava Áquila satisfeito —, saiamos do deserto, proclamemos os favores de Jesus pelo mundo inteiro. Eu e Prisca não temos muitas obrigações de família. Com a morte de meu pai, estamos sós no tocante aos deveres mais pesa­dos e é razoável não perdermos o ensejo de auxiliar a difusão da Boa Nova. Além das lições de Levi, temos agora a visão de Jesus ressuscitado, para ilustrar nossa palavra.

Depois de muito tempo, às vésperas de retornarem à luta nos grandes centros populosos, em lhes ouvindo os apelos entusiásticos, Saulo indagou dos projetos que acalentavam.

— Desde a tua revelação — exclamou o tecelão con­fiante e esperançoso — alimento um grande ideal. Parece incrível à primeira vista; mas, antes de morrer, sonho ir a Roma e anunciar o Cristo aos irmãos da velha Lei. Tua visão no caminho de Damasco enche-me de coragem! Narrarei o fato aos mais indiferentes e darei um pouco de luz aos mais insensatos.

Como servidor humilde dos homens, saberei dedicar-me aos interesses do Salvador.

— Mas, quando pretendes partir?

— Quando o Mestre rasgar o caminho com o pri­meiro ensejo. Isto posto, abandonaremos Palmira.

Depois de uma pausa em que Saulo se conservava pensativo, o outro murmurou:

— Por que não vais conosco a Roma?

— Ah! se eu pudesse!... — disse o ex-rabino dan­do a entender o seu desejo. — Julgo que Jesus desejará ver-me, antes de tudo, inteiramente reconciliado com quantos ofendi em Jerusalém. Além disso preciso rever meus pais, matando as saudades do coração.

Com efeito, depois da passagem da grande caravana que lhes trazia os substitutos, servidos de um camelo, os três irmãos do “Caminho” deixaram o oásis em dire­ção a Palmira, onde a família de Gamaliel os acolheu com desvelado carinho.

Áquila e a mulher ali ficariam algum tempo ao serviço de Ezequias, até que pudessem realizar o formoso ideal de trabalho na poderosa Roma dos césares, mas Saulo de Tarso, agora resistente como um beduíno, depois de agradecer a generosidade do benfeitor e despedir-se dos amigos com lágrimas nos olhos, tomou novamente o rumo de Damasco, radicalmente transformado pelas meditações de três anos consecutivos, passados no de­serto.

3

Lutas e humilhações

A jornada se fez sem incidentes. Entretanto, em sua nova soledade, o moço tarsense reconhecia que for­ças invisíveis proviam-lhe a mente de grandiosas e con­soladoras inspirações. Dentro da noite cheia de estrelas, tinha a impressão de ouvir uma voz carinhosa e sábia, a traduzir-se por apelos de infinito amor e de infinita esperança. Desde o instante em que se desligara da com­panhia amorável de Áquila e sua mulher, quando se sen­tiu absolutamente só para os grandes empreendimentos do seu novo destino, encontrou energias interiores até então imprevistas, por desconhecidas.

Não podia definir aquele estado espiritual, mas o caso é que dali por diante, sob a direção de Jesus, Estevão conservava-se a seu lado como companheiro fiel.

Aquelas exortações, aquelas vozes brandas e amigas que o assistiram em todo o curso apostolar e atribuidas diretamente ao Salvador, provinham do generoso mártir do “Caminho”, que o seguiu espiritualmente durante trinta anos, renovando-lhe constantemente as forças para execução das tarefas redentoras do Evangelho.

Jesus quis, dessarte, que a primeira vítima das per­seguições de Jerusalém ficasse para sempre irmanada ao primeiro algoz dos prosélitos de sua doutrina de vida e redenção.

Ao invés dos sentimentos de remorso e perplexidade em face do passado culposo; da saudade e desalento que, às vezes, lhe ameaçavam o coração, sentia agora radiosas promessas no espírito renovado, sem poder explicar a sagrada origem de tão profundas esperanças. Não obs­tante as singulares alterações fisionômicas que a vida, o regime e o clima do deserto lhe produziram, entrou em Damasco com alegria sincera na alma agora devo­tada, absolutamente, ao serviço de Jesus.

Com júbilo indefinível abraçou o velho Ananias, pondo-o ao corrente de suas edificações espirituais. O respeitável ancião retribuiu-lhe o carinho com imensa bondade. Dessa vez, o ex-rabino não precisou insular-se numa pensão entre desconhecidos, porque os irmãos do “Caminho” lhe ofereceram franca e amorosa hospitali­dade. Diariamente, repetia a emoção confortadora da primeira reunião a que comparecera, antes de recolher-se ao deserto. A pequena assembléia fraternal congrega­va-se todas as noites, trocando idéias novas sobre os ensinamentos do Cristo, comentando os acontecimentos mundanos à luz do Evangelho, permutando objetivos e conclusões. Saulo foi informado de todas as novidades atinentes à doutrina, experimentando os primeiros efeitos do choque entre os judeus e os amigos do Cristo, a propósito da circuncisão. Seu temperamento apaixo­nado percebeu a extensão da tarefa que lhe estava re­servada. Os fariseus formalistas, da sinagoga, não mais se insurgiam contra as atividades do “Caminho”, desde que o seguidor de Jesus fosse, antes de tudo, fiel obser­vador dos princípios de Moisés. Somente Ananias e alguns poucos perceberam a sutileza dos casuístas que provocavam deliberadamente a confusão em todos os setores, atrasando a marcha vitoriosa da Boa Nova re­dentora. O ex-doutor da Lei teconheceu que, na sua ausência, o processo de perseguição tomara-se mais pe­rigoso e mais imperceptível, porqüanto, às caracterís­ticas cruéis, mas francas, do movimento inicial, sucediam as manifestações de hipocrisia farisaica, que, a pretexto de contemporização e benignidade, mergulhariam a per­sonalidade de Jesus e a grandeza de suas lições divinas em criminoso e deliberado olvido. Coerente com as novas disposições do foro íntimo, não pretendia voltar à sinagoga de Damasco, para não parecer um mestre pretensioso­ a pugnar pela salvação de outrem, antes de cuidar do aperfeiçoamento próprio; mas, diante do que via e coligia com alto senso psicológico, compreendeu que era útil arrostar todas as conseqüências e demonstrar as disparidades do formalismo farisaico com o Evangelho:

o que era a circuncisão e o que era a nova fé. Expondo a Ananias o projeto de fomentar a discussão em torno do assunto, o velhinho generoso estimulou-lhe os propó­sitos de restabelecer a verdade em seus legítimos funda­mentos.

Para esse fim, no segundo sábado de sua perma­nencia na cidade, o vigoroso pregador compareceu à sinagoga. Ninguém reconheceu o rabino de Tarso na sua túnica rafada, na epiderme tostada de sol, no rosto des­carnado, no brilho mais vivo dos olhos profundos.

Terminada a leitura e a exposição regulamentares, franqueada a palavra aos sinceros estudiosos da religião, eis que o desconhecido galga a tribuna dos mestres de Israel e, buscando interessar a numerosa assistência, falou primeiramente do caráter sagrado da Lei de Moisés, detendo-se, apaixonado, nas promessas maravilhosas e sábias de Isaías, até que penetrou o estudo dos profetas. Os presentes escutavam-no com profunda atenção. Alguns se esforçavam por identificar aquela voz que lhes não parecia estranha. A pregação vibrante suscitava ilações de grande alcance e beleza. Imensa luz espiritual trans­bordava dos raptos altiloqüentes.

Foi aí que o ex-rabino, conhecendo o poder magné­tico já exercido sobre o vultoso auditório, começou a falar do Messias Nazareno comparando sua vida, feitos e ensinamentos, com os textos que o anunciavam nas sagradas escrituras.

Quando abordava o problema da circuncisão, eis que a assembléia rompe em furiosa gritaria.

— É ele!... É o traidor!... clamavaM os mais audaciosos, depois de identificar o ex-doutor de Jerusa­lém. — Pedra ao blasfemo!... É o bandido da seita do “Caminho”!...

Os chefes do serviço religioso, por sua vez, reconhe­ceram o antigo companheiro, agora considerado trânsfuga da Lei, a quem se deviam impor castigos rudes e cruéis.

Saulo assistia à repetição da mesma cena de quando se fazia ouvir na seleta reunião, com a presença dos levi­tas de Chipre. Enfrentou impassível a situação, até que as autoridades religiosas conseguissem acalmar os ânimos turbulentos.

Após as fases mais agudas do tumulto, o arqui-si­nagogo, tomando posição, determinou que o orador des­cesse da tribuna para responder ao seu interrogatório.

O convertido de Damasco compreendeu de relance toda a calma de que necessitava para sair-se com êxito daquela difícil aventura, e obedeceu de pronto, sem pro­testar.

— Sois Saulo de Tarso, antigo rabino em Jerusa­lém? — perguntou a autoridade com ênfase.

— Sim, pela graça do Cristo Jesus! — respondeu em tom firme e resoluto.

— Não vem ao caso referências quaisquer ao car­pinteiro de Nazaré! Interessa-nos, tão-só, a vossa prisão imediata, de acordo com as instruções recebidas do Templo — explicou o judeu em atitude solene.

— Minha prisão? — interrogou Saulo admirado.

— Sim.

— Não vos reconheço o direito de efetuá-la — es­clareceu o pregador.

Diante daquela atitude enérgica, houve um movi­mento de admiração geral.

— Por que relutais? O que só vos cumpre é obe­decer.

Saulo de Tarso fixou-o com decisão, explicando:

— Nego-me porque, não obstante haver modificado minha concepção religiosa, sou doutor da Lei e, além disso, quanto à situação política, sou cidadão romano e não posso atender a ordens verbais de prisão.

— Mas estais preso em nome do Sinédrio.

— Onde o mandado?

A pergunta imprevista desnorteou a autoridade. Ha­via mais de dois anos, chegara de Jerusalém o documento oficial, mas ninguém podia prever aquela eventualidade. A ordem fora arquivada cuidadosamente, mas não podia ser exibida de pronto, como exigiam as circunstâncias.

— O pergaminho será apresentado dentro de pou­cas horas — acrescentou o chefe da sinagoga um tanto indeciso.

E como a justificar-se, acrescentava:

— Desde o escândalo da vossa última pregação em Damasco, temos ordem de Jerusalém para vos prender.

Saulo fixou-o com energia, e, voltando-se para a assembléia, que lhe observava a coragem moral, tomada de pasmo e admiração, disse alto e bom som:

— Varões de Israel, trouxe ao vosso coração o que possuía de melhor, mas rejeitais a verdade trocando-a pelas formalidades exteriores. Não vos condeno. Las­timo-vos, porque também fui assim como vós outros. Entretanto, chegada a minha hora, não recusei o auxílio generoso que o céu me oferecia. Lançais-me acusações, vituperais minhas atuais convicções religiosas; mas, qual de vós estaria disposto a discutir comigo? Onde o sin­cero lutador do campo espiritual que deseje sondar, em minha companhia, as santas escrituras?

Profundo silêncio seguiu-se ao repto.

— Ninguém? — perguntou o ardoroso artífice da nova fé, com um sorriso de triunfo.

Conheço-vos, porque também palmilhei esses caminhos. Entretanto, convenhamos em que o farisaísmo nos perdeu, atirando nossas esperanças mais sagradas num oceano de hipocrisias. Venerais Moisés na sinagoga; tendes excessivo cuidado com as fórmulas exteriores, mas qual a feição da vossa vida doméstica? Quantas dores ocultais sob a túnica brilhante! Quantas feridas dissimulais com pa­lavras falaciosas! Como eu, devíeis sentir imenso tédio de tantas máscaras ignóbeis! Se fôssemos apontar os feitos criminosos que se praticam à sombra da Lei, não teríamos açoites para castigar os culpados; nem o número exato das maldições indispensáveis à pintura de seme­lhantes abominações! Padeci de vossas úlceras, enve­nenei-me também nas vossas trevas e vinha trazer-vos o remédio imprescindível. Recusais-me a cooperação fra­terna; entretanto, em vão recalcitrais perante os pro­cessos regeneradores, porque somente Jesus poderá sal­var-nos! Trouxe-vos o Evangelho, ofereço-vos a porta de redenção para nossas velhas mazelas e inda quereis compensar meus esforços com o cárcere e a maldição? Recuso-me a receber semelhantes valores em troca de minha iniciativa espontânea!... Não podereis prender-me, porque a palavra de Deus não está algemada. Se a rejeitais, outros me compreenderão. Não é justo abandonar-me aos vossos caprichos, quando o serviço, a fazer, me pede dedicação e boa-vontade.

Os próprios diretores da reunião pareciam domina­dos por forças magnéticas, poderosas e indefiníveis.

O moço tarsense passeou o olhar dominador sobre todos os presentes, revelando a rigidez do seu ânimo poderoso.

— Vosso silêncio fala mais que as palavras — con­cluiu quase com audácia. — Jesus não vos permite a prisão do servo humilde e fiel. Que a sua bênção vos ilumine o espírito na verdadeira compreensão das reali­dades da vida.

Assim dizendo, caminhou resoluto para a porta de saída, enquanto o olhar assombrado da assembléia lhe acompanhava o vulto, até que, a passo firme, desapare­ceu em uma das ruas estreitas que desembocavam na grande praça.

Como se despertasse, após o audacioso desafio, a reunião degenerou em acaloradas discussões. O arqui­-sinagogo, que parecia sumamente impressionado com as declarações do ex-rabino, não ocultava a indecisão, relu­tando entre as verdades amargas de Saulo e a ordem de prisão imediata. Os companheiros mais enérgicos procuraram levantar-lhe o espírito de autoridade. Era preciso prender o atrevido orador a qualquer preço. Os mais decididos puseram-se à procura imediata do pergaminho de Jerusalém e, logo que o encontraram, resolveram pedir auxílio às autoridades civis, promo­vendo diligências. Daí a três horas, todas as medidas para a prisão do audacioso pregador estavam assentadas. Os primeiros contingentes foram movimentados às portas da cidade. Em cada uma postou-se pequeno grupo de fariseus, secundados por dois soldados, a fim de burla­rem qualquer tentativa de evasão.

Em seguida, iniciaram a devassa em bloco, na re­sidência de todas as pessoas suspeitas de simpatia e relações com os discípulos do Nazareno.

Saulo, por sua vez, afastando-se da sinagoga, pro­curou avistar-se com Ananias, ansioso da sua palavra amorosa e conselheira.

O sábio velhinho ouviu a narração do acontecido, aprovando-lhe as atitudes.

— Sei que o Mestre — dizia o moço por fim —condenou as contendas e jamais andou entre os discuti­dores; mas, também, jamais contemporizou com o mal. Estou pronto a reparar meu passado de culpas. Afron­tarei as incompreensões de Jerusalém, a fim de paten­tear minha transformação radical. Pedirei perdão aos ofendidos pela insensatez da minha ignorância, mas, de modo algum poderei fugir ao ensejo de afirmar-me sin­cero e verdadeiro. Acaso serviria ao Mestre, humilhan­do-me diante das explorações inferiores? Jesus lutou quanto possível e seus discípulos não poderão proceder de outro modo.

O bondoso ancião acompanhava-lhe as palavras com sinais afirmativos. Depois de confortá-lo com a sua aprovação, recomendou-lhe a maior prudência. Seria ra­zoável afastar-se quanto antes dali, do seu tugúrio. Os judeus de Damasco conheciam a parte que tivera na sua cura. Por causa disso, muita vez lhes suportara as injú­rias e remoques. Certo, procurá-lo-iam, ali, para pren­dê-lo. Assim, era de opinião que se recolhesse à casa da consóror lavadeira, onde costumavam orar e estudar o Evangelho. Ela saberia acolhê-lo com bondade.

Saulo atendeu ao conselho sem hesitar.

Daí a três horas, o velho Ananias era procurado e interpelado. Atenta a sua conduta discreta, foi recolhido ao cárcere para ulteriores averiguações.

O fato é que, inquirido pela autoridade religiosa, apenas respondia:

— Saulo deve estar com Jesus.

Nos seus escrúpulos de consciência, o generoso ve­lhinho entendia que, desse modo, não mentia aos homens nem comprometia um amigo fiel. Depois de preso e incomunicável 24 horas, deram-lhe liberdade após receber castigos dolorosos. A aplicação de vinte bastonadas dei­xara-lhe o rosto e as mãos gravemente feridos. Contudo, logo que se viu livre, esperou a noite e, cautamente, enca­minhou-se à choupana humilde onde se realizavam as prédicas do “Caminho”. Reencontrando-se com o amigo, expôs-lhe o plano que vinha remediar a situação.

— Quando criança — exclamou Ananias prazeroso — assisti à fuga de um homem sobre os muros de Jeru­salém.

E como se recapitulasse os pormenores do fato, na memória cansada, perguntou:

— Saulo, terias medo de fugir num cesto de vime?

— Por quê? — disse o moço sorridente. — Moisés não começou a vida num cesto sobre as águas?

O velho achou graça na alusão e esclareceu o pro­jeto. Não muito longe dali, havia grandes árvores junto dos muros da cidade. Alçariam o fugitivo num grande cesto, e depois, com insignificantes movimentos, ele po­deria descer do outro lado, em condições de encetar a viagem para Jerusalém, conforme pretendia. O ex-rabino experimentou imensa alegria. Na mesma hora, a dona da casa foi buscar o concurso dos três irmãos de mais confiança. E quando o céu se fez mais sombrio, depois das primeiras horas da meia-noite, um pequeno grupo se reunia junto a muralha, em ponto mais distante do centro da cidade. Saulo beijou as mãos de Ananias, quase com lágrimas. Despediu-se em voz baixa dos amigos, enquanto um lhe entregava volumoso pacote de bolos de cevada. Na copa da árvore frondosa e escura, o mais jovem esperava o sinal, O moço tarsense entrou na sua embarcação improvisada e a evasão se deu no âmbito silencioso da noite.

Do outro lado, saiu lesto do cesto, deixando-se em­polgar por estranhos pensamentos.

Seria justo fugir assim? Não havia cometido crime algum. Não seria covarde deixar de comparecer perante a autoridade civil para os esclarecimentos necessários? Ao mesmo tempo, considerava que sua conduta não provinha de sentimen­tos pueris e inferiores, pois ia a Jerusalém desassom­brado, buscaria avistar-se com os antigos companheiros, falar-lhes-ia abertamente, concluindo que também não seria razoável entregar-se inerme ao fanatismo tirânico da Sinagoga de Damasco.

Aos primeiros raios de sol, o fugitivo ia longe. Levava consigo os bolos de cevada como única provisão, e o Evangelho presenteado por Gamaliel como lembrança de tanto tempo de solidão e de luta.

A jornada foi assaz difícil e penosa. O cansaço obrigava-o a paradas constantes. Mais de uma vez re­correu à caridade alheia, no trajeto penoso. Com auxílio de camelos, cavalos ou dromedários, a viagem de Da­masco a Jerusalém não exigia menos de uma semana de marchas exaustivas. Saulo, porém, ia a pé. Poderia talvez valer-se do concurso definitivo de alguma caravana, onde conseguisse os recursos imprescindíveis, mas preferiu familiarizar a vontade poderosa com os obstá­culos mais duros. Quando a fadiga lhe sugeria o desejo de aguardar a cooperação eventual de outrem, buscava vencer o desânimo, punha-se novamente de pé, apoiava-se em cajados improvisados.

Depois de suaves recordações no local em que tivera a visão gloriosa do Messias ressuscitado, voltou a expe­rimentar carinhosas emoções ao penetrar na Palestina, atravessando vagarosamente extensas regiões da Galiléia. Fazia questão de conhecer o teatro das primeiras lutas do Mestre, identificar-se com as paisagens mais queridas, visitar Cafarnaum e Nazaré, ouvir a palavra dos filhos da região. Naquele tempo, já o ardoroso Apóstolo dos gentios desejava inteirar-se de todos os fatos referentes à vida de Jesus, ansiava por coordená-los com segurança, de maneira a legar aos irmãos em Humanidade o melhor repositório de informações sobre o Emissário Divino.

Quando chegou a Cafarnaum, um crepúsculo de ouro entornava maravilhas de luz na bucólica paisagem. O ex-rabino desceu religiosamente às margens do lago. Embebeu-se na contemplação das águas marulhosas. Pen­sando em Jesus, no poder do seu amor, chorou, dominado por singular emoção. Queria ter sido pescador humilde para captar os ensinamentos sublimes na fonte de suas palavras generosas e imortais.

Por dois dias ali permaneceu em suave embeveci­mento. Sem revelar-se, procurou Levi, que o recebeu de boa-vontade. Mostrou-lhe sua dedicação e conheci­mento do Evangelho, falou da oportunidade de suas anotações. O filho de Alfeu alegrou-se ao contágio da­quela palavra inteligente e confortadora. Saulo viveu em Cafarnaum horas deliciosas para o seu espírito emo­tivo. Fora o local das pregações do Mestre; mais adiante, a casinha de Simão Pedro; além, a coletoria onde o Mes­tre fora chamar Levi para o desempenho de importante papel entre os apóstolos. Abraçou homens fortes, da localidade, que tinham sido cegos e leprosos, curados pelas mãos misericordiosas do Messias; foi a Dalmanuta, onde conheceu Madalena. Enriqueceu o mundo impres­alvo de suas observações colhendo informes inéditos.

Daí a dias, depois de repousar em Nazaré, ei-lo às portas da cidade santa dos israelitas, extenuado de fadiga, das caminhadas penosas, das noites de vigília cujos sofrimentos muita vez lhe pareceram sem-fim.

Em Jerusalém, todavia, aguardavam-no outras sur­presas não menos dolorosas.

Estava empolgado por ansiosas interrogações. Não mais tivera notícia dos pais, dos amigos, da irmã cari­nhosa, dos familiares sempre vivos na sua retentiva. Como o receberiam os companheiros mais sinceros? Não poderia esperar amáveis recepções do Sinédrio. O episó­dio de Damasco dava-lhe a perceber o estado de ânimo dos membros do Tribunal.

Certo, fora sumariamente expulso do cenáculo mais conspícuo da raça. Em com­pensação, fora admitido pelo Cristo no cenáculo infinito das verdades eternas.

Dominado por essas reflexões, atravessou a porta da cidade, recordando o tempo em que, numa biga veloz, saía, noutro local, buscando a casa de Zacarias, na dire­ção de Jope. As reminiscências das horas mais venturosas da mocidade encheram-lhe os olhos de pranto. Os transeuntes de Jerusalém estavam longe de imaginar quem era aquele homem magro e pálido, barba grande e olhos encovados, que passava arrastando-se de fadiga.

Após grande esforço, atingiu um prédio residencial do seu conhecimento, O coração palpitou-lhe apressado. Como simples mendigo, bateu à porta, em ansiosa ex­pectativa.

Um homem de semblante severo atendeu secamente.

— Podeis informar, por favor — disse com humil­dade —, se ainda aqui reside uma senhora chamada Dalila?

— Não —, respondeu o outro, ríspido.

Aquele olhar duro não ensejava novas perguntas, mas, ainda assim, aventurou:

— Poderíeis dizer, por obséquio, para onde se mudou?

— Ora esta! — replicou o dono da casa irrita­diço — dar-se-á que tenha de prestar contas a um mendigo? Daqui a pouco o senhor me perguntará se comprei esta casa; depois me pedirá o preço, exigirá datas, reclamará novas informações sobre os antigos moradores, tomará meu tempo com mil interrogações ociosas.

E, fixando em Saulo os olhos impassíveis, rematou de chofre:

— Nada sei, está ouvindo? Ponha-se na rua!...

O fugitivo de Damasco voltou serenamente para a via pública, enquanto o homenzinho dava expansão aos nervos doentes, batendo a porta com estrondo.

O ex-discípulo de Gamaliel refletiu na realidade amarga daquela primeira recepção simbólica. Jerusalém, certamente, nunca mais poderia conhecê-lo. Não obstante a impressão dolorosa, não se deixaria empolgar pelo desânimo. Resolveu procurar Alexandre, parente de Cai­fás e seu companheiro de atividades no Sinédrio e no Templo. Cansadíssimo, bateu-lhe à porta, com minguadas esperanças. Um servo da casa, depois da primeira per­gunta, vinha trazer-lhe a alvissareira notícia de que o amo não se demoraria a atender.

Com efeito, daí a pouco, Alexandre recebia o des­conhecido com indisfarçável surpresa.

Satisfeito por conseguir a atenção de um velho amigo, Saulo adiantou-se, cumprimentando-o com efusão.

O israelita ilustre não conseguiu ocultar o desa­pontamento e sentenciou com alguma generosidade nas palavras:

— Amigo, a que vindes a esta casa?

— Será possível que me não reconheças? — inter­rogou bem-humorado, apesar da imensa fadiga.

— Vossa fisionomia não me é de todo estranha, en­tretanto...

— Alexandre! — exclamou por fim, prazenteiro —não te recordas mais de Saulo?

Um grande abraço foi a resposta do amigo, que per­guntava solícito, modificando o tratamento:

— Muito bem! Até que enfim! Graças a Deus vejo que estás curado! Não me enganei esperando que vol­tasses! Grande é o poder do Deus de Moisés!

Saulo compreendeu de pronto a ambigüidade da­quelas expressões. Sentindo dificuldade em fazer-se en­tendido, procurava o melhor meio de explicar-se com êxito, enquanto o amigo prosseguia:

— Mas que aspecto é este? Olha que mais pareces um beduíno do deserto... Dize-me: quanto tempo durou a enfermidade pertinaz?

Saulo encheu-se de coragem e acentuou:

— Mas, há engano com certeza, ou estarás mal informado, porque nunca estive doente.

— Impossível! — disse Alexandre visivelmente de­sapontado depois de tantas demonstrações afetuosas. — Jerusalém anda repleta de lendas a teu respeito. Sadoc veio até aqui, há três anos, pedir providências enérgicas do Sinédrio para que se esclarecesse tua situação e, depois de longos debates, levou uma ordem de prisão contra ti. Desde essa época, lutei desesperadamente para que se modificassem as disposições da peça con­denatória. Provei que, se havias adotado uma atitude simpática para com a gente do “Caminho”, certo, essa decisão obedecia a fins que não estávamos habilitados a compreender de pronto, como, por exemplo, o de sondar melhor a extensão de suas atividades revolucionárias.

Saulo não pôde conter-se e revidou, antes que o amigo continuasse:

— Mas, nesse caso, seria um hipócrita refalsado e indigno do cargo e de mim mesmo.

O outro, contrafeito, carregou o sobrolho.

— Aliás, ponderei todas as hipóteses e como não podia tomar-te por hipócrita — acentuou Alexandre procurando emendar a mão — consegui provar que tua atitude em Damasco provinha de transitória demência. Não era justo pensar de outro modo, mesmo porque, do contrário, serias também insincero, conosco, na esfera do farisaísmo.

O ex-rabino sentiu a delicadeza do impasse. Havia renovado as concepções religiosas, mas estava diante de um amigo. Quando muitos o abandonavam, aquele o recebia fraternalmente. Era necessário não magoá-lo. Todavia, era impossível mascarar a verdade.

Sentiu os olhos úmidos. Impunha-se-lhe testemunhar o Cristo, a qualquer preço, embora tivesse de perder as maiores afeições do mundo.

— Alexandre — disse humildemente —, é verdade que iniciei o grande movimento de perseguição ao “Ca­minho”; mas, agora, é indispensável confessar que me enganei. Os Apóstolos galileus têm razão. Estamos no limiar de grandes transformações. Às portas de Damasco, Jesus me apareceu na sua gloriosa ressurreição e exortou-me ao serviço do seu Evangelho de amor.

A palavra saía-lhe tímida, lavada no desejo de não ferir as crenças do amigo, que, não obstante, deixava transparecer profunda decepção no rosto lívido.

— Não digas tais absurdos! — exclamou irônico e sorridente — desgraçadamente, vejo que o mal con­tinua minando-te as forças físicas e mentais. A Sinagoga de Damasco tinha razão. Se não te conhecesse da infân­cia, dar-te-ia agora o título de blasfemo e desertor.

O moço tarsense, não obstante a energia viril, estava desapontado.

— Aliás — prosseguiu o outro, assumindo ares de protetor —, desde o início de tua viagem não concordei com o mísero cortejo que levavas. Jonas e Demétrio são quase boçais, e Jacob vive de caduquices. Com seme­lhante companhia, qualquer perturbação da tua parte ha­veria de acarretar grandes desastres morais para a nossa posição.

— No entanto, Alexandre — dizia o ex-rabino um tanto humilhado —, devo insistir na verdade. vi com estes olhos o Messias de Nazaré; ouvi-lhe a palavra de viva voz.

Compreendendo os erros em que vivia, na minha defeituosa concepção da fé, demandei o deserto. Lá estive três anos em serviço rude e longas meditações. Minha convicção não é superficial. Creio, hoje, que Jesus é o Salvador, o Filho do Deus Vivo.

— Pois tua enfermidade — repetia Alexandre alta­neiro, modificando o diapasão da intimidade — trans­tornou a vida de toda a tua família. Envergonhados com as notícias chegadas da Síria, Jaques e Dalila mu­daram-se de Jerusalém para a Cilícia. Quando soube da ordem de prisão lavrada pelo Sinédrio contra a tua pes­soa, tua mãe faleceu em Tarso. Teu pai, que te educou com esmero, esperando da tua inteligência os maiores galardões de nossa raça, vive acabrunhado e infeliz. Teus amigos, cansados de suportar as ironias do povo, em Jerusalém, vivem esquivos e humilhados depois de te procurarem em vão. Não te doerá a visão deste qua­dro? Uma dor como esta não bastará para refazer-te o equilíbrio mental?

O ex-doutor da Lei tinha o coração ralado de angús­tia. Tantos dias ansiosos, tantas amarguras vividas no intuito de lograr alguma compreensão e repouso junto dos seus, via, agora, era tudo ilusão e rumaria. A família desorganizada, a mãe morta, o pai infeliz; os amigos execravam-no; Jerusalém lançava-lhe ironias.

Vendo-o em tal atitude, o amigo regozijava-se íntimamente, esperando ansioso o efeito de suas palavras.

Depois de concentrar-se um minuto, Saulo acentuou:

— Lamento ocorrências tão tristes e tomo a Deus por testemunha de que não cooperei intencionalmente para Isso. No entanto, mesmo aqueles que ainda não aceitaram o Evangelho deveriam compreender, segundo a antiga Lei, que não devemos ser orgulhosos. Moisés, nada obstante a energia das recomendações, ensinou a bondade. Os profetas, que lhe sucederam, foram emis­sários de mensagens profundas para o nosso coração, que se perdia na iniqüidade. Amós nos concitou a buscar Jeová para conseguirmos viver. Lastimo que os meus afeiçoados se julguem ofendidos; mas é preciso consi­derar que, antes de ouvir qualquer julgamento ocioso do mundo, devemos buscar os juízos de Deus.

— Quer dizer que persistes nos teus erros? — per­guntou Alexandre quase hostil.

— Não me sinto enganado. Dada a incompreensão geral — comentou o ex-rabino dignamente —, também me encontro em penosa situação; mas o Mestre não me faltará com o seu auxílio. Lembro-me dele e experimento grande conforto. Os afetos da família e a consideração dos amigos eram no mundo minha única riqueza. Con­tudo, encontrei nas anotações de Levi o caso de um moço rico, que me ensina a proceder nesta hora (1). Desde a infância procurei cumprir rigorosamente meus deveres; mas, se é preciso lançar mão da riqueza que me resta, para alcançar a iluminação de Jesus, renunciarei à pró­pria estima deste mundo!...

Alexandre pareceu comover-se com o tom melancó­lico das últimas palavras. Saulo dava a impressão de alguém que estivesse prestes a chorar.

— Estás fundamente transtornado — objetou Ale­xandre —, só um demente poderia proceder assim.

— Gamaliel não era um louco e aceitou Jesus como o Messias prometido — acrescentou o ex-doutor invo­cando a venerável memória do grande rabino.

— Não creio! — disse o outro com ar superior.

Saulo baixou a fronte silencioso. Grande a humi­lhação daquela hora. Depois de havido como demente, era tido por mentiroso. Apesar disso, no auge da per­plexidade, considerou que o amigo não estava em con­dições

(1) Mateus, capítulo 19º, versículos 16 a 23.

de compreendê-lo integralmente. Refletia na situa­ção embaraçosa, quando Alexandre voltou a dizer:

— Infelizmente, preciso convencer-me do estado pre­cário do teu cérebro. Por enquanto, poderás ficar em Jerusalém à vontade, mas será justo não multiplicar o escândalo da tua enfermidade, com falsos panegíricos do carpinteiro de Nazaré. A decisão do Sinédrio, que consegui com tantos sacrifícios, poderia modificar-se. Quanto ao mais — terminava como a despedi-lo —, sabes que continuo às tuas ordens para uma retificação defi­nitiva de atitudes, a qualquer tempo.

Saulo compreendeu a advertência; não era preciso dilatar a entrevista. O amigo expulsava-o com boas maneiras.

Em dois minutos achou-se novamente na via pública. Era quase meio-dia, um dia quente.

Sentiu sede e fome. Consultou a bolsa, estava quase vazia. Um resto do que recebera das mãos generosas do irmão de Gamaliel, ao deixar Palmira definitivamente. Procurou a pensão mais modesta de uma das zonas mais pobres da cidade. Em seguida a frugal refeição e antes que caíssem as sombras cariciosas da tarde, encaminhou-se esperançado para o velho casarão reformado, onde Simão Pedro e companhei­ros desenvolviam toda a atividade em prol da causa de Jesus.

No trajeto, recordou-se de quando fora ouvir Estevão em companhia de Sadoc. Como tudo, agora, se passava inversamente! O crítico, de oútrora, voltava para ser criticado. O juiz, transformado em réu, mergulhava o coração em singulares ansiedades. Como o receberiam na igreja do “Caminho”?

Parou à frente da habitação humilde. Pensava em Estevão. mergulhado no passado, de alma opressa. Ante os colegas do Sinédrio, entestando as autoridades, do judaísmo, outra era a sua atitude. Conhecia-lhes as fraquezas peculiares. passara também pelas máscaras farisaicas e podia aquilatar de seus erros clamorosos. No entanto, defrontando os Apóstolos galileus, sagrada veneração se lhe impunha à consciência. Aqueles homens poderiam ser rudes e simples, podiam viver distanciados dos valores intelectuais da época, mas tinham sido os primeiros colaboradores de Jesus. Além disso, não pode­ria aproximar-se deles sem experimentar profundo re­morso. Todos haviam sofrido vexames e humiliações por sua causa.

Não fosse Gamaliel, talvez o próprio Pedro teria sido lapidado... Precisava consolidar as noções de humildade para manifestar seus desejos arden­tes de cooperação sagrada com o Cristo. Em Damasco, lutara na sinagoga contra a hipocrisia de antigos com­panheiros; em Jerusalém, enfrentara Alexandre com todo o desassombro; entretanto, parecia-lhe que outra deveria ser sua atitude ali, onde tinha necessidade de renúncia para alcançar a reconciliação com aqueles a quem havia ferido.

Assomado de profundas reflexões, bateu à porta quase trêmulo.

Um dos auxiliares do serviço interno, de nome Prócoro, veio atender solicitamente.

— Irmão — disse o moço tarsense em tom humil­de —, podeis informar se Pedro está?

— Vou saber — respondeu o interpelado, amistoso.

— Caso esteja — acrescentou Saulo algo indeciso —, dizei-lhe que Saulo de Tarso deseja falar-lhe em nome de Jesus.

Prócoro gaguejou um “sim”, com extrema palidez, fixou no visitante os olhos assombrados e afastou-se com dificuldade, sem dissimular a enorme surpresa. Era o perseguidor que voltava, depois de três anos. Lembra­va-se, agora, daquela primeira discussão com Estevão, em que o grande pregador do Evangelho sofrera tantos insultos. Em poucos momentos alcançava a câmara onde Pedro e João confabulavam sobre os problemas internos.

A notícia caiu entre ambos como uma bomba. Ninguém poderia prever tal coisa. Não acreditavam na lenda que Jerusalém enfeitava com detalhes desconhecidos, em cada comentário. Impossível que o algoz implacável dos discípulos do Senhor estivesse convertido à causa do seu Evangelho de amor e redenção.

O ex-pescador do “Caminho”, antes de recambiar o portador ao inesperado visitante, mandou chamar Tiago para resolverem os três a decisão a tomar.

O filho de Alfeu, transformado em rígido asceta, arregalou os olhos.

Depois das primeiras opiniões que traduziam re­ceios justos e emitidas precipitadamente, Simão excla­mou com grande prudência:

— Em verdade, ele nos fez o mal que pôde; entre­tanto, não é por nós que devemos temer e sim pela obra do Cristo que nos está confiada.

— Aposto em que toda essa história da conversão se resume numa farsa, a fim de que venhamos a cair em novas ciladas — replicou Tiago um tanto displicente.

— Por mim — disse João —, peço a Jesus nos esclareça, embora me recorde dos açoites que Saulo man­dou aplicar-me no cárcere. Antes de tudo, é indispen­sável saber se o Cristo, de fato, lhe apareceu às portas de Damasco.

— Mas saber como? — dizia Pedro com profunda compreensão. — Nosso material de reconhecimento é o próprio Saulo. Ele é o campo que revelará ou não a planta sagrada do Mestre. A meu ver, tendo a zelar um patrimônio que nos não pertence, somos obrigados a proceder como aconselha a prudência humana. Não é justo abrirmos as portas, quando não lhe conhecemos o intuito. Da primeira vez que aqui esteve, Saulo de Tarso foi tratado com o respeito que o mundo lhe con­sagrava. Busquei-lhe o melhor lugar para que ouvissse a palavra de Estevão. Infelizmente, sua atitude desres­peitosa e irônica provocou escândalo, que culminou na prisão e morte do companheiro. Veio espontaneamente e voltou para prender-nos. Ao carinho fraternal, que lhe oferecemos, retribuiu com algemas e cordas. Assim me externando, também não devo esquecer a lição do Mestre, relativamente ao perdão, e por isso reafirmo que não penso por nós, mas pelas responsabilidades que nos foram conferidas.

Ante considerações tão justas, os outros calaram, enquanto o ex-pescador acrescentava:

— Por conseguinte, não me é permitido recebê-lo nesta casa, sem maior exame, ainda que me não falte sincera boa-vontade para isso. Resolvendo o assunto por essa forma, convocarei uma reunião para hoje à noite. O assunto é muito grave. Saulo de Tarso foi o primeiro perseguidor do Evangelho. Quero que todos cooperem comigo nas decisões a tomar, pois, de mim mesmo, não quero parecer nem injusto, nem imprevidente.

E depois de longa pausa, dizia para o emissário:

— Vai, Prócoro. Dize-lhe que volte depois, que não posso deixar os quefazeres mais urgentes.

— E se ele insistir? — perguntou o diâcono preo­cupado.

— Se ele de fato aqui vem em nome de Jesus, saberá compreender e esperar.

Saulo aguardava ansiosamente o mensageiro. Era-lhe preciso encontrar alguém que o entendesse e lhe sentisse a transformação. Estava exausto. A igreja do “Caminho” era a derradeira esperança.

Prócoro transmitiu-lhe o recado com grande inde­cisão. Não era preciso mais para que tudo compreen­desse. Os Apóstolos galileus não acreditavam na sua palavra. Agora examinava a situação com mais clareza. Percebia a indefinível e grandiosa misericórdia do Cristo visitando-o, inesperadamente, no auge do seu abismo es­piritual às portas de Damasco.

Pelas dificuldades para ir ter com Jesus, avaliava quanta bondade e compaixão seriam necessárias para que o Mestre o acolhesse, ende­reçando-lhe sagradas exortações, no encontro inesque­cível.

O diácono fixou-o com simpatia. Saulo recebera a resposta altamente desapontado.

Ficou pálido e trêmulo, como que envergonhado de si mesmo. Além disso, tinha aspecto doentio, olhos encovados, era pele e osso.

— Compreendo, irmão — disse de olhos molha­dos — Pedro tem motivos justos..

Aquelas palavras comoveram a Prócoro no mais íntimo da alma e, evidenciando seu bom desejo de am­pará-lo, exclamou a demonstrar perfeito conhecimento dos fatos:

— Não trazeis de Damasco alguma apresentação de Ananias?

— Já tenho comigo as do Mestre.

— Como assim? — perguntou o diácono admirado.

— Jesus disse em Damasco — falou o visitante com serenidade — que mostraria quanto me compete sofrer por amor ao seu nome.

Intimamente, o ex-doutor da Lei sentia imensa sau­dade dos irmãos de Damasco, que o haviam tratado com a maior simplicidade. Entretanto, considerou, si­multaneamente, que semelhante proceder era justo, porqüanto dera provas na sinagoga e junto de Ananias, de que sua atitude não comportava simulação. Ao refletir que Jerusalém o recebia, em toda parte, como vulgar mentiroso, sentiu lágrimas quentes lhe afluirem aos olhos. Mas, para que o outro não lhe visse a sensibili­dade ferida, exclamou justificando-se:

— Tenho os olhos cansados pelo sol do deserto! Podereis fornecer-me um pouco de água fresca?

O diácono atendeu prontamente.

Daí a instantes, Saulo mergulhava as mãos num grande jarro, lavando os olhos em água pura.

— Voltarei depois — disse em seguida, estendendo a mão ao auxiliar dos apóstolos, que se afastou impres­sionado.

Amargando a fraqueza orgânica, o cansaço, o aban­dono dos amigos, as desilusões mais acerbas, o moço de Tarso retirou-se cambaleante.

À noite, consoante deliberara, Simão Pedro, eviden­ciando admirável bom-senso, reuniu os companheiros de mais responsabilidade para considerar o assunto. Além dos Apóstolos galileus, estavam presentes os irmãos Ni­canor, Prócoro, Pármenas, Timon, Nicolau e Barnabé, este último incorporado ao grupo de auxiliares mais dire­tos da igreja, por suas elevadas qualidades de coração.

Com permissão de Pedro, Tiago iniciou as conversa­ções, manifestando-se contrário a qualquer espécie de auxílio imediato ao convertido da última hora. João ponderou que Jesus tinha poder para transformar os espíritos mais perversos, como para levantar os mais infortunados da sorte. Prócoro relatou suas impressões a respeito do pertinaz perseguidor do Evangelho, ressal­tando a compaixão que seu estado de saúde despertava nos corações mais insensíveis. Chegada a sua vez, Bar­nabé esclareceu que, ainda em Chipre, antes de trans­ferir-se definitivamente para Jerusalém, ouvira alguns levitas descreverem a coragem com que o convertido falara na Sinagoga de Damasco, logo após a visão de Jesus.

O ex-pescador de Cafarnaum solicitou pormenores do companheiro, impressionado com a sua opinião. Bar­nabé explicou quanto sabia, manifestando o desejo de que resolvessem a questão com a maior benevolência.

Nicolau, percebendo a atmosfera de boa-vontade que se formava em torno da figura do ex-rabino, objetava com a sua rigidez de princípios:

— Convenhamos que não é justo esquecer os alei­jados que se encontram nesta casa, vítimas da odiosa truculência dos asseclas de Saulo. Ë das escrituras que se exija cuidado com os lobos que penetram no redil sob a pele das ovelhas. O doutor da Lei, que nos fez tanto mal, sempre deu preferência às grandes expressões espe­taculares contra o Evangelho, no Sinédrio. Quem sabe nos prepara atualmente nova armadilha de grande efeito?

A tal pergunta, o bondoso Barnabé curvou a fronte, em silêncio. Pedro notou que a reunião se dividia em dois grupos. De um lado estavam ele e João chefiando os pareceres favoráveis; do outro, Tiago e Filipe enca­beçavam o movimento contrário. Acolhendo a admoesta­ção de Nicolau, exprimiu-se com brandura:

— Amigos, antes da enunciação de qualquer ponto de vista pessoal, conviria refletirmos na bondade infi­nita do Mestre. Nos trabalhos de minha vida, anteriores ao Pentecostes, confesso que as faltas de toda sorte aparecem no meu caminho de homem frágil e pecador.

Não hesitava em apedrejar os mais infelizes e cheguei, mesmo, a advertir o Cristo para fazê-lo! Como sabeis, fui dos que negaram o Senhor na hora extrema. Entre­tanto, depois que nos chegou o conhecimento pela ins­piração celeste, não será justo olvidarmos o Cristo em qualquer iniciativa. Precisamos pensar que, se Saulo de Tarso procura valer-se de semelhantes expedientes para desferir novos golpes nos servidores do Evangelho, então ele é ainda mais desgraçado que antes, quando nos ator­mentava abertamente. Sendo, pois, um necessitado, de qualquer modo não vejo razões para lhe recusarmos mãos fraternas.

Percebendo que Tiago preparava-se para defender o parecer de Nicolau, Simão Pedro continuou, depois de ligeira pausa:

— Nosso irmão acaba de referir-se ao símbolo do lobo que surge no redil com a pele das ovelhas genero­sas e humildes. Concordo com essa expressão de zelo. Também eu não pude acolher Saulo, quando hoje nos bateu à porta, atento à responsabilidade que me foi confiada.

Nada quis decidir sem o vosso concurso, O Mestre nos ensinou que nenhuma obra útil se poderá fazer na Terra sem a cooperação fraternal. Mas, apro­veitando o parecer enunciado, examinemos, com since­ridade, o problema imprevisto. Em verdade, Jesus reco­mendou nos acautelássemos contra o fermento dos fari­seus, esclarecendo que o discípulo deverá possuir con­sigo a doçura das pombas e a prudência das serpentes. Convenhamos em que, de fato, Saulo de Tarso possa ser o lobo simbólico. Ainda aí, após esse conhecimento hipotético, teríamos profunda questão a resolver. Se es­tamos numa tarefa de paz e de amor, que fazer com o lobo, depois da necessária identificação? Matar? Sabe­mos que isso não entra em nossa linha de conta. Não seria mais razoável refletir nas possibilidades da domesticação?

Conhecemos homens rudes que conseguem domi­nar cães ferozes. Onde estaria, pois, o espírito que Jesus nos legou como sagrado patrimônio, se por temores mesquinhos deixássemos de praticar o bem?

A palavra concisa do Apóstolo tivera efeito singular. O próprio Tiago parecia desapontado pelas anteriores re­flexões. Em vão Nicolau procurou argumentos novos para formular outras objeções. Observando o pesado si­lêncio que se fizera, Pedro sentenciou serenamente:

— Desse modo, amigos, proponho convidarmos Barnabé para visitar pessoalmente o doutor de Tarso, em nome desta casa. Ele e Saulo não se conhecem, valori­zando-se melhor semelhante oportunidade, porque, ao vê-lo, o moço tarsense nada terá que recordar do seu passado em Jerusalém. Se fosse visitado, pela primeira vez, por um de nós, talvez se perturbasse, julgando nossas palavras como de alguém que lhe fosse pedir contas.

João aplaudiu a idéia calorosamente. Em face do bom-senso que as expressões de Pedro revelavam, Tiago e Filipe mostravam-se satisfeitos e tranqüilos. Combi­nou-se a diligência de Barnabé para o dia seguinte. Aguardariam Saulo de Tarso com interesse. Se, de fato, sua conversão fosse real, tanto melhor.

O diácono de Chipre destacava-se por sua grande bondade. Sua expressão carinhosa e humilde, seu espí­rito conciliador, contribuíam, na igreja, para a solução pacífica de todos os assuntos.

Com um sorriso generoso, Barnabé abraçou o ex-ra­bino, pela manhã, na pensão em que ele se hospedara. Nenhum traço da sua nova personalidade indiciava aquele perseguidor famoso, que fizera Simão Pedro decidir a convocação dos amigos para resolver o seu acolhimento. O ex-doutor da Lei era todo humildade e estava doente. Indisfarçável fadiga transparecia-lhe nos mínimos gestos. A fisionomia não iludia um grande sofrimento. Corres­pondia às palavras afetuosas do visitante com um sor­riso triste e acanhado. Via-se-lhe, entretanto, a satis­fação que a visita lhe causava, O gesto espontâneo de Barnabé sensibilizava-o. A seu pedido, Saulo contou-lhe a viagem a Damasco e a gloriosa visão do Mestre, que constituía o marco inolvidável da sua vida, O ouvinte não dissimulou simpatias.

Em poucas horas sentia-se tão identificado com o novo amigo, quais se fossem conhecidos de longos anos. Após a conversação, Barnabé pretextou qualquer coisa para dirigir-se ao dono da hos­pedaria, a quem pagou as despesas da hospedagem. Em seguida, convidou-o a acompanhá-lo à igreja do “Cami­nho”. Saulo não deixou de hesitar, enquanto o outro insistia.

— Receio — disse o moço tarsense um tanto in­deciso —, pois já ofendi muito a Simão Pedro e demais companheiros. Só por acréscimo de misericórdia do Cristo consegui uma réstia de luz, para não perder totalmente meus dias.

— Ora essa! — exclamou Barnabé, batendo-lhe no ombro com bonomia — quem não terá errado na vida? Se Jesus nos tem valido a todos, não é porque o mere­çamos, mas pela necessidade de nossa condição de pe­cadores.

Em poucos minutos, encontravam-se a caminho, no­tando o emissário de Pedro o penoso estado de saúde do antigo rabino. Muito pálido e abatido, parecia ca­minhar com esforço; tremiam-lhe as mãos, sentia-se fe­bril. Deixava-se levar como alguém que conhecesse a necessidade de amparo. Sua humildade comovia o outro, que, a seu respeito, ouvira tantas referências desairosas.

Chegados a casa, Prócoro lhes abriu a porta, mas, desta vez, Saulo não ficaria a esperar indefinidamente. Barnabé tomou-lhe a mão, afetuoso, e dirigiram-se para o vasto salão, onde Pedro e Timon os esperavam. Sau­daram-se em nome de Jesus. O antigo perseguidor empalidecera mais. Por sua vez, ao vê-lo, Simão não ocultou um movimento de espanto ao notar-lhe a diferença física.

Aqueles olhos encovados, a extrema fraqueza orgâ­nica, falavam aos Apóstolos galileus de profundos sofri­mentos.

— Irmão Saulo — disse Pedro comovido —, Jesus quer que sejas bem-vindo a esta casa.

— Assim seja — respondeu o recém-chegado, de olhos úmidos.

Timon abraçou-o com palavras afetuosas, em lugar de João que se ausentara ao amanhecer, a serviço da confraria de Jope.

Em breves momentos, vencendo o constrangimento do primeiro contacto com os amigos pessoais do Mestre, depois de tão longa ausência, o moço tarsense, atenden­do-lhes ao pedido, relatava a jornada de Damasco com todos os pormenores do grande acontecimento, evidenciando singular emotividade nas lágrimas que lhe banhavam o rosto. Sensibilizara-se, sobremaneira, ao relem­brar tamanhas graças. Pedro e Timon já não tinham dúvidas. A visão do ex-rabino tinha sido real. Ambos, em companhia de Barnabé, seguiram a descrição até ao fim, com olhos cheios de pranto. Efetivamente, o Mestre voltara, a fim de converter o grande perseguidor da sua doutrina. Requisitando Saulo de Tarso para o redil do seu amor, revelara, mais uma vez, a lição imortal do perdão e da misericórdia.

Terminada a narrativa, o ex-doutor da Lei estava cansado e abatido. Instado a explanar suas novas espe­ranças, seus projetos de trabalho espiritual, bem como o que pretendia fazer em Jerusalém, confessou-se desde logo profundamente reconhecido por tanto interesse afetuoso e falou com certa timidez:

— Necessito entrar numa fase ativa de trabalho com que possa desfazer meu passado culposo. É ver­dade que fiz todo o mal à igreja de Jesus, em Jerusalém; mas, se a misericórdia de Jesus dilatar minha perma­nência no mundo, empregarei o tempo em estender esta casa de amor e paz a outros lugares da Terra.

— Sim — replicou Simão ponderadamente —, certo que o Messias renovará tuas forças, de modo a poderes atender a tão nobre cometimento, na época oportuna.

Saulo parecia confortar-se com a palavra de enco­rajamento; deixando perceber que desejava consolidar a confiança dos ouvintes, arrancou das dobras da túnica rafada um rolo de pergaminhos e, apresentando-o ao ex-pescador de Cafarnaum, disse sensibilizado:

— Aqui está uma relíquia da amizade de Gamaliel, que trago invariavelmente comigo.

Pouco antes de mor­rer, ele deu-me a cópia das anotações de Levi, concer­nentes à vida e feitos do Salvador. Tinha em grande conta estas notas, porque as recebeu desta casa, na primeira visita que lhe fez.

Simão Pedro, evocando gratas recordações, tomou os pergaminhos com vivo interesse. Saulo verificava que o presente de Gamaliel tivera a finalidade prevista pelo generoso doador.

Desde esse instante, os olhos do antigo pescador fixaram-se nele com mais confiança. Pedro falou da bondade do generoso rabino, informan­do-se da sua vida em Palmira; dos seus últimos dias, do seu traspasse. O discípulo atendia satisfeito.

Voltando ao assunto das suas novas perspectivas, explicou-se mais amplamente, sempre humilde:

— Tenho muitos planos de trabalho para o futuro, mas, sinto-me combalido e doente. O esforço da última viagem, sem recursos de qualquer natureza, agravou-me a saúde. Sinto-me febril, o corpo dolorido, a alma exausta.

— Tens falta de dinheiro? — interrogou Simão bondosamente.

— Sim... — respondeu hesitante.

— Essas necessidades — esclareceu Pedro — já foram providas em parte. Não te preocupes em dema­sia. Recomendei a Barnabé que pagasse as primeiras despesas da hospedaria e, quanto ao mais, convidamos-te a repousar conosco o tempo que quiseres. Esta casa é também tua. Usa de nossas possibilidades como te aprouver.

O hóspede sensibilizou-se. Recordando o passado, sentia-se ferido no seu amor-próprio; mas, ao mesmo tempo, rogava a Jesus o auxiliasse para não desprezar as oportunidades de aprendizado.

— Aceito... — respondeu em voz reticenciosa, re­velando acanhamento —, ficarei convosco enquanto mi­nha saúde necessitar de tratamento...

E como se tivesse extrema dificuldade em acrescen­tar um pedido ao favor que aceitava, depois de longa pausa em que se lhe notava o esforço para falar, solicitou comovedoramente:

— Caso fosse possível, desejaria ocupar o mesmo leito em que Estevão foi recolhido, generosamente, nesta casa.

Barnabé e Pedro ficaram altamente emocionados. Todos haviam combinado não fazer alusão ao pregador massacrado sob apupos e pedradas. Não queriam re­lembrar o passado perante o convertido de Damasco, ainda mesmo que sua atitude não fosse essencialmente sincera.

Ouvindo-o, o antigo pescador de Cafarnaum chegou quase a chorar. Com extrema dedicação, satisfez-lhe o pedido e, assim, foi ele conduzido ao interior, onde se acomodou entre lençóis muito alvos. Pedro fez mais: compreendendo a profunda significação daquele desejo, trouxe ao convertido de Damasco os singelos pergami­nhos que o mártir utilizava diariamente no estudo e meditação da Lei, dos Profetas e do Evangelho. Ape­sar da febre, Saulo regozijou-se. Tomado de profunda comoção, nas passagens prediletas dos pergaminhos sa­grados, leu o nome de “Abigail”, grafado diversas vezes. Ali estavam frases peculiares à dialética da noiva amada, datas que coincidiam, perfeitamente, com as suas reve­lações íntimas, quando ambos se entretinham a falar do passado, no pomar de Zacarias. A palavra “Corinto” era repetida muitas vezes. Aqueles documentos pareciam ter uma voz. Falavam-lhe ao coração, de um grande e santo amor fraternal. Ouvia-a em silêncio e guardou as conclusões avaramente. Não revelaria a ninguém suas íntimas dores. Bastavam aos outros os grandes erros da sua vida pública, os remorsos, as retificações que, apesar de verificadas em campo aberto, raros ami­gos conseguiam compreender. Observando-lhe a atitude de constante meditação, Pedro desdobrou-se na tarefa de assistência fraternal. Eram as palavras amigas, os co­mentários acerca do poder de Jesus, os caldos suculen­tos, as frutas substanciosas, a palavra de bom ânimo. Por tudo isso, sensibilizava-se o doente, sem saber como traduzir sua gratidão imperecível.

Entretanto, notou que Tiago, filho de Alfeu, re­ceoso, talvez, dos seus antecedentes, não se dignava dirigir-lhe uma palavra. Arvorado em rígido cumpridor da Lei de Moisés, dentro da igreja do “Caminho”, era percebido, de vez em quando, pelo moço tarsense, qual sombra impassível a deslizar, balbuciando preces silen­ciosas, entre os enfermos. A princípio, sentiu quanto lhe doía aquele desinteresse; mas logo considerou a necessidade de humilhar-se diante de todos. Nada fizera, ainda, que pudesse positivar suas novas convicções.

Quando dominava no Sinédrio, também não perdoava as adesões de última hora.

Logo que entrou a convalescer, já plenamente identificado com a afeição de Pedro, pediu-lhe conselhos sobre os planos que tinha em mente, encarecendo a máxima franqueza, para que pudesse enfrentar a situa­ção, por mais duras que lhe fossem as circunstâncias.

— De minha parte — disse o Apóstolo ponderadamente — não me parece razoável permaneceres em Je­rusalém, por enquanto, neste período de renovação. Para falar com sinceridade, há que considerar teu novo estado dalma como a planta preciosa que começa a germinar. É necessário dar liberdade ao germe divino da fé. Na hipótese da tua permanência aqui, encontrarias, dia­riamente, de um lado os sacerdotes intransigentes em guerra contra o teu coração; e de outro, as pessoas incompreensíveis, que falam nas extremas dificuldades do perdão, embora conheçam, de sobra, as lições do Mes­tre nesse sentido. Não deves ignorar que a perseguição aos simpatizantes do “Caminho” deixou traços muito profundos na alma popular. Não raro, aqui chegam pessoas mutiladas, que amaldiçoam o movimento. Isso para nós, Saulo, está num passado que jamais voltará; contudo, essas criaturas não o poderão compreender assim, de pronto. Em Jerusalém estarias mal colocado. O germe de tuas novas convicções encontraria mil ele­mentos hostis e talvez ficasses à mercê da exasperação.

O rapaz ouviu as advertências ralado de angústia, sem protestar. O Apóstolo tinha razão.

Em toda a cidade encontraria críticas soezes e destruidoras.

— Voltarei a Tarso... — disse com humildade —, é possível que meu velho pai compreenda a situação e ajude meus passos. Sei que Jesus abençoará meus es­forços. Se é preciso recomeçar a existência, recome­çá-la-ei no lar de onde provim...

Simão contemplou-o com ternura, admirado daquela transformação espiritual.

Diariamente, ambos reatavam as palestras amisto­sas. O convertido de Damasco, inteligência fulgurante, revelava curiosidade insaciável a respeito da personalidade do Cristo, dos seus mínimos feitos e mais sutis ensinamentos. Outras vezes, solicitava ao ex-pescador todos os informes possíveis sobre Estevão, regozijan­do-se com as lembranças de Abigail, embora guardasse avaramente os pormenores do seu romance da mocidade. Inteirou-se, então, dos pesados trabalhos do pregador do Evangelho quando no cativeiro; da sua dedicação a um patrício de nome Sérgio Paulo; da fuga em miserável estado de saúde, no porto palestinense; do ingresso na igreja do “Caminho” como indigente, das primeiras noções do Evangelho e conseqüente iluminação em Cristo Jesus. Encantava-se, ouvindo as narrativas simples e amorosas de Pedro, que revelava sua veneração ao mártir evitando melindrá-lo na sua condição de verdugo repeso.

Logo que pôde levantar-se da cama, foi ouvir as pregações naquele mesmo recinto onde insultara o irmão de Abigail, pela primeira vez. Os expositores do Evan­gelho eram, mais freqüentemente, Pedro e Tiago. O primeiro falava com profunda prudência, embora se valesse de maravilhosas expressões simbólicas. O segundo, entretanto, parecia torturado pela influência judaizante. Tiago dava a impressão de reingresso na maioria dos ouvintes, nos regulamentos farisaicos. Suas preleções fugiam ao padrão de liberdade e de amor em Jesus­-Cristo. Revelava-se encarcerado nas concepções estrei­tas do judaísmo dominante. Longos períodos de seus discursos referiam-se às carnes impuras, às obrigações para com a Lei, aos imperativos da circuncisão. A assembléia também parecia completamente modificada. A igreja assemelhava-se muito mais a uma sinagoga comum. Israelitas, em atitude solene, consultavam per­gaminhos e papiros que continham as prescrições de Moi­sés. Saulo procurou, em vão, a figura impressionante dos sofredores e aleijados que vira no recinto, quando ali esteve pela primeira vez. Curiosíssimo, notou que Simão Pedro atendia-os numa sala contígua, com grande bon­dade. Aproximou-se mais e pôde observar que, enquanto a pregação reproduzia a cena exata das sinagogas, os aflitos se sucediam ininterruptamente na sala humilde do ex-pescador de Cafarnaum. Alguns saíam conduzindo bilhas de remédio, outros levavam azeite e pão.

Saulo impressionou-se. A igreja do “Caminho” pare­cia muito mudada. Faltava-lhe alguma coisa. O ambiente geral era de asfixia de todas as idéias do Nazareno. Não mais encontrou ali a grande vibração de fraterni­dade e de unificação de princípios pela independência espiritual. Depois de aturadas reflexões, tudo atribuía à falta de Estevão. Morto este, extinguira-se o esforço do Evangelho livre; pois fora ele o fermento divino da renovação. Somente agora se capacitava da grandeza da sua elevada tarefa.

Quis pedir a palavra, falar como em Damasco, zurzir os erros de interpretação, sacudir a poeira que se adensava sobre o imenso e sagrado idealismo do Cristo, mas lembrou as ponderações de Pedro e calou-se. Não era justo, por enquanto, verberar o procedimento de outrem, quando não dera obras de si mesmo, por teste­munhar a própria renovação. Se tentasse falar, podia ouvir, talvez, reprimendas justas. Além disso, notava que os conhecidos de outros tempos, freqüentadores agora da igreja do “Caminho”, sem abandonar, de modo algum, seus princípios errôneos, olhavam-no de soslaio, sem dissimular desprezo, considerando-o em perturbação mental. No entanto, era com esforço supremo que sopi­tava o desejo de terçar armas, mesmo ali, para restau­ração da verdade pura.

Após a primeira reunião, procurou oportunidade de estar a sós com o ex-pescador de Cafarnaum, a fim de se inteirar das inovações observadas.

— A tempestade que desabou sobre nós — explicou Pedro generosamente, sem qualquer alusão ao seu pro­cedimento de outrora — levou-me a sérias meditações. Desde a primeira diligência do Sinédrio nesta casa, notei que Tiago sofrera profundas transformações. Entregou-se a uma vida de grande ascetismo e rigoroso cum­primento da Lei de Moisés.

Pensei muito na mudança das suas atitudes, mas, por outro lado, considerei que ele não é mau. É companheiro zeloso, dedicado e leal. Calei-me para mais tarde concluir que tudo tem uma razão de ser. Quando as perseguições apertaram o cerco a atitude de Tiago, embora pouco louvável, quanto à liberdade do Evangelho, teve seu lado benéfico. Os dele­gados mais truculentos respeitaram-lhe o devocionismo moisaico e suas amizades sinceras no judaísmo nos per­mitiram a manutenção do patrimônio do Cristo. Eu e João tivemos horas angustiosas, na consideração desses problemas. Estaríamos sendo insinceros, falsearíamos a verdade?

Ansiosamente rogamos a inspiração do Mestre. Com o auxílio de sua divina luz, chegamos a criteriosas conclusões. Seria justo lutar a videira ainda tenra com a figueira brava? Se fôssemos atender ao impulso pessoal de combater os inimigos da independência do Evangelho, esqueceríamos fatalmente, a obra coletiva. Não é lícito que o timoneiro, por testemunhar a excelência de conhe­cimentos náuticos, atire o barco contra os rochedos, com prejuízo de vida para quantos confiaram no seu esforço. Consideramos, assim, que as dificuldades eram muitas e precisávamos, enquanto mínima fosse a nossa possibili­dade de ação, conservar a árvore do Evangelho ainda tenra, para aqueles que viessem depois de nós.

Além do mais, Jesus ensinou que só conseguimos elevados objetivos neste mundo, cedendo alguma coisa de nós mesmos. Por intermédio de Tiago, o farisaísmo acede em caminhar conosco. Pois bem: consoante os ensina­mentos do Mestre, caminharemos as milhas possíveis. E julgo mesmo que, se Jesus assim nos ensinou, é porque na marcha temos a oportunidade de ensinar alguma coisa e revelar quem somos -

Enquanto Saulo o contemplava com redobrada admi­ração pelos judiciosos conceitos emitidos, o Apóstolo re­matava:

— Isso passa! A obra é do Cristo. Se fosse nossa, falharia por certo, mas nós não passamos de simples e imperfeitos cooperadores.

Saulo guardou a lição e recolheu-se pensativo. Pedro parecia-lhe muito maior agora, no seu foro íntimo. Aquela serenidade, aquele poder de compreensão dos fatos mínimos, davam-lhe idéia da sua profunda ilumi­nação espiritual.

De saúde refeita, antes de qualquer deliberação sobre o novo caminho a tomar, o moço tarsense desejou rever Jerusalém num impulso natural de afeição aos lugares que lhe sugeriam tantas lembranças cariciosas. Visitou o Templo, experimentando o contraste das emoções. Não se animou a penetrar no Sinédrio, mas procurou, ansioso, a Sinagoga dos cilicianos, onde presumia reencontrar as amizades nobres e afáveis de outros tempos.

Entretanto, mesmo ali onde se reuniam os conterrâneos residentes em Jerusalém, foi recebido friamente. Ninguém o con­vidou ao labor da palavra. Apenas alguns conhecidos de sua família apertaram-lhe a mão secamente, evitando-lhe a companhia, de modo ostensivo.

Os mais irônicos, termi­nados os serviços religiosos, dirigiram-lhe perguntas, com sorrisos escarninhos. Sua conversão às portas de Damasco era glosada com ditérios acerados e deprimentes.

— Não seria algum sortilégio dos feiticeiros do “Caminho”? — diziam uns. — Não seria Demétrio que se vestira de Cristo e lhe deslumbrara os olhos doentes e fatigados? — interrogavam outros.

Percebeu as ironias de que estava sendo objeto. Tratavam-no como demente. Foi aí que, sem sopitar a impulsividade do coração honesto, subiu ousadamente num estrado e falou com orgulho:

— Irmãos da Cilícia, estais enganados. Não estou louco. Não buscais argüir-me porque eu vos conheço e sei medir a hipocrisia farisaica.

Estabeleceu-se luta imediata. Velhos amigos voci­feravam impropérios. Os mais ponderados cercaram-no como se o fizessem a um doente e pediram-lhe que se calasse. Saulo precisou fazer um esfoço heróico para conter a indignação. A custo, conseguiu dominar-se e retirou-se. Em plena via pública, sentia-se assaltado por idéias escaldantes. Não seria melhor combater aberta­mente, pregar a verdade sem consideração pelas más­caras religiosas que enchiam a cidade? A seus olhos, era justo refletir na guerra declarada aos erros farisai­cos. E se, ao contrário das ponderações de Pedro, assu­misse em Jerusalém a chefia de um movimento mais vasto, a favor do Nazareno? Não tivera a coragem de perseguir-lhe os discípulos, quando os doutores do Si­nédrio eram todos complacentes? Por que não assumir, agora, a atitude da reparação, encabeçando um movi­mento em contrário? Havia de encontrar alguns amigos que se lhe associassem ao esforço ardente. Com esse gesto, auxiliaria o próprio irmão na sua tarefa dignifi­cante em prol dos necessitados.

Fascinado com tais perspectivas, penetrou no Templo famoso. Recordou os dias mais recuados da infância e da primeira juventude. O movimento popular no recinto já lhe não despertava o interesse de outrora. Instintiva­mente, aproximou-se do local onde Estevão sucumbira. Lembrou a cena dolorosa, detalhe por detalhe. Penosa angústia assomava-lhe ao coração. Orou com fervor ao Cristo. Entrou na sala onde estivera a sós com Abigail, a ouvir as últimas palavras do mártir do Evangelho. Compreendia, enfim, a grandeza daquela alma que o perdoara in extremis. Cada palavra do moribundo res­soava-lhe agora, estranhamente, nos ouvidos. A eleva­ção de Estevão fascinava-o. O pregador do “Caminho” havia-se imolado por Jesus! Por que não fazê-lo tam­bém?. Era justo ficar em Jerusalém, seguir-lhe os passos heróicos, para que a lição do Mestre fosse com­preendida. Na recordação do passado, o moço tarsense mergulhava-se em preces fervorosas. Suplicava a inspi­ração do Cristo para seus novos caminhos. Foi aí que o convertido de Damasco, exteriorizando as faculdades espirituais, fruto das penosas disciplinas, observou que um vulto luminoso surgia inopinadamente a seu lado, falando-lhe com inefável ternura:

— Retira-te de Jerusalém, porque os antigos com­panheiros não aceitarão, por enquanto, o testemunho!

Sob o pálio de Jesus, Estevão seguia-lhe os passos na senda do discipulado, embora a posição transcendental de sua assistência invisível. Saulo, naturalmente, cuidou que era o próprio Cristo o autor da carinhosa advertên­cia e, fundamente impressionado, demandou a igreja do “Caminho”, informando a Simão Pedro o que ocorrera.

— Entretanto — acabou dizendo ao generoso Após­tolo que o ouvia admirado —, não devo ocultar que tencionava agitar a opinião religiosa da cidade, defender a causa do Mestre, restabelecer a verdade em sua feição Integral.

Enquanto o ex-pescador escutava em silêncio, como a reforçar a resposta, o novo discípulo continuava:

— Estevão não se entregou ao sacrifício? Sinto que nos falta aqui uma coragem igual à do mártir, su­cumbido às pedradas da minha ignorância.

— Não, Saulo — replicou Pedro com firmeza —, não seria razoável pensar assim. Tenho maior experiência da vida, embora não tenha cabedais de inteligência seme­lhantes aos teus.

Está escrito que o discípulo não poderá ser maior que o mestre. Aqui mesmo, em Jerusalém, vimos Judas cair numa cilada igual a esta. Nos dias angustiosoS do Calvário, em que o Senhor provou a excelência e a divindade do seu amor e, nós, o amargo testemunho da exígua fé, condenamos o infortunado com­panheiro. Alguns irmãos nossos mantêm, até o presente, a opinião dos primeiros dias; mas, em contacto com a realidade do mundo, cheguei à conclusão de que Judas foi mais infeliz que perverso. Ele não acreditava na validade das obras sem dinheiro, não aceitava outro poder que não fosse o dos príncipes do mundo. Estava sempre inquieto pelo triunfo imediato das idéias do Cristo. Muitas vezes, vimo-lo altercar, impaciente, pela construção do Reino de Jesus, adstrito aos princípios políticos do mundo. O Mestre sorria e fingia não enten­der as insinuações, como quem estava senhor do seu divino programa. Judas, antes do apostolado, era nego­ciante. Estava habituado a vender a mercadoria e receber o pagamento imediato. Julgo, nas meditações de agora, que ele não pôde compreender o Evangelho de outra forma, ignorando que Deus é um credor cheio de mise­ricórdia, que espera generosamente a todos nós, que não passamos de míseros devedores.

Talvez amasse profun­damente o Messias, contudo, a inquietação Fê-lo perder na oportunidade sagrada. Tão-só pelo desejo de apressar a vitória, engendrou a tragédia da cruz, com a sua falta de vigilância.

Saulo ouvia assombrado aquelas considerações jus­tas e o bondoso Apóstolo continuava:

— Deus é a Providência de todos. Ninguém está esquecido. Para que ajuizes melhor da situação, admi­tamos que fosses mais feliz que Judas. Figuremos tua vitória pessoal no feito.

Concedamos que pudesses atrair para o Mestre toda a cidade. E depois? Deverias e poderias responder por todos os que aderissem ao teu es­forço? A verdade é que poderias atrair, nunca, porém, converter. Como não te fosse possível atender a todos, em particular, acabarias execrado pela mesma forma. Se Jesus, que tudo pode neste mundo sob a égide do Pai, espera com paciência a conversão do mundo, por que não poderemos esperar, de nossa parte? A melhor posição da vida é a do equilíbrio. Não é justo desejar fazer nem menos, nem mais do que nos compete, mesmo porque o Mestre sentenciou que a cada dia bastam os seus tra­balhos.

O convertido de Damasco estava surpreso a mais não poder. Simão apresentava argumentos irretorquí­veis. Sua inspiração assombrava-o.

— À vista do que ocorreu — prosseguiu o ex-pes­cador serenamente —, importa que te vás logo que caia a noite. A luta iniciada na Sinagoga dos cilícios é muito mais importante que os atritos de Damasco. É possível que amanhã procurem encarcerar-te - Além disso, a adver­tência recebida no Templo não é de molde a procrastinar­mos providências indispensáveis.

Saulo concordou de boamente com o alvitre. Poucas vezes na vida escutara observações tão sensatas.

— Pretendes voltar à Cilícia? — disse Pedro com inflexão paternal.

— Já não tenho mais aonde ir — respondeu com resignado sorriso.

- Pois bem, partirás para Cesaréia. Temos ali ami­gos sinceros que te poderão auxiliar.

O programa de Simão Pedro foi rigorosamente cum­prido. À noite, quando Jerusalém se envolvia em grande silêncio, um cavaleiro humilde transpunha as portas da cidade, na direção dos caminhos que conduziam ao grande porto palestinense.

Torturado pelas apreensões constantes da sua nova vida, chegou a Cesaréia decidido a não se deter ali muito tempo. Entregou as cartas de Pedro que o recomen­davam aos amigos fiéis. Recebido com simpatia por todos, não teve dificuldades em retomar o caminho da cidade natal.

Dirigindo-se agora para o cenário da infância, sen­tia-se extremamente comovido com as mínimas recorda­ções. Aqui, um acidente do caminho a sugerir cariciosas lembranças; ali, um grupo de árvores envelhecidas a des­pertarem especial atenção. Várias vezes, passou por cara­vanas de camelos que lhe faziam relembrar as iniciativas paternas. Tão intensa lhe fora a vida espiritual nos últi­mos anos, tão grandes as transformações, que a vida do lar se lhe figurava um sonho bom, de há muito desva­necido. Através de Alexandre, recebera as primeiras notícias de casa. Lamentava a partida de sua mãe, justa­mente quando tinha maior necessidade da sua compreen­são afetuosa; mas entregava a Jesus os seus cuidados, nesse particular. Do velho pai não era razoável esperar um entendimento mais justo. Espírito formalista, radi­cado ao farisaísmo de maneira integral, certo não apro­varia a sua conduta.

Atingiu as primeiras ruas de Tarso, de alma opressa. As recordações sucediam-se ininterruptas.

Batendo à porta do lar paterno, pela fisionomia indiferente dos servos compreendeu como voltava trans­formado. Os dois criados mais antigos não o reconhece­ram. Guardou silêncio e esperou. Ao fim de longa espera, o genitor foi recebê-lo. O velho Isaac amparando-se ao cajado, nas adiantadas expressões de um reumatismo per­tinaz, não dissimulou um gesto largo de espanto. É que reconhecera de pronto o filho.

— Meu filho!... — disse com voz enérgica, pro­curando dominar a emoção — será possível que os olhos me enganem?

Saulo abraçou-o afetuosamente, dirigindo-se ambos para o interior.

Isaac sentou-se e, buscando penetrar o íntimo do filho, com o olhar percuciente interrogou em tom de censura:

— Será que estás mesmo curado?

Para o rapaz, tal pergunta era mais um golpe des­ferido na sua sensibilidade afetiva.

Sentia-se cansado, derrotado, desiludido; necessitava de alento para reco­meçar a existência num idealismo maior e até o pai o reprovava com perguntas absurdas! Ansioso de com­preensão, retrucou de maneira comovedora:

— Meu pai, por piedade, acolhei-me!... Não estive doente, mas sou agora necessitado pelo espírito! Sinto que não poderei reiniciar minha carreira na vida sem algum repouso!... Estendei-me vossas mãos!...

Conhecendo a austeridade paterna e a extensão das próprias necessidades naquela hora difícil do seu cami­nho, o ex-doutor de Jerusalém huinilhou-se inteiramente, pondo na voz toda a fadiga que se lhe represava no coração.

O ancião israelita contemplou-o firme, solene, e sen­tenciou sem compaixão:

— Não estiveste doente? Que significa então a tris­te comédia de Damasco? Os filhos podem ser ingratos e conseguem esquecer, mas os pais, se nunca os retiram do pensamento, sabem sentir melhor a crueldade do seu proceder... Não te doeria ver-nos vencidos e huinilhados com a vergonha que lançaste sobre nossa casa? Ralada de desgostos, tua mãe encontrou lenitivo na morte; mas, eu? Acreditas-me insensível à tua deser­ção? Se resisti, foi porque guardava a esperança de buscar Jeová, supondo que tudo não passasse de mal-entendido, que uma perturbação mental houvesse atirado contigo na incompreensão e nas críticas injustificáveis do mundo!... Criei-te com todo o desvelo que um pai, da nossa raça, costuma dedicar ao único filho varão... Sintetizavas gloriosas promessas para nossa estirpe.

Sa­crifiquei-me por ti, cumulei-te de afagos, não poupei esforços para que pudesses contar com os mestres mais sábios, cuidei da tua mocidade, enchi-te com a ternura do coração e é desse modo que retribuis as dedicações e os carinhos do lar?

Saulo podia enfrentar muitos homens armados, sem abdicar a coragem desassombrada que lhe assinalava as atitudes. Podia verberar o procedimento condenável dos outros, ocupar a mais perigosa tribuna para o exame das hipocrisias humanas, mas, diante daquele velhinho que não mais podia renovar a fé, e considerando a am­plitude dos seus sagrados sentimentos paternais, não reagiu e começou a chorar.

— Choras? — continuou o ancião com grande se­cura. — Mas eu nunca te dei exemplos de covardia! Lutei com heroismo nos dias mais difíceis, para que nada te faltasse. Tua fraqueza moral é filha do perjúrio, da traição. Tuas lágrimas vêm do remorso inelutável!

Como enveredaste, assim, pelo caminho da mentira exe­crável? Com que fim engendraste a cena de Damasco para repudiar os princípios que te alimentaram do berço? Como abandonar a situação brilhante do rabino de quem tanto esperávamos, para arvorar-se em companheiro de homens desclassificados, que nunca tiveram a tradição amorosa de um lar?

Ante as acusações injustas, o moço tarsense solu­çava, talvez pela primeira vez na vida.

— Quando soube que ias desposar uma jovem sem pais conhecidos — prosseguia o velho implacável —, sur­preendi-me e esperei que te pronunciasses diretamente. Mas tarde, Dalila e o marido eram compelidos a deixar Jerusalém precipitadamente, ralados de vergonha com a ordem de prisão que a Sinagoga de Damasco requisitava contra ti. Várias vezes conjeturei se não seria essa cria­tura inferior, que elegeste, a causa de tamanhos desastres morais. Há mais de três anos levanto-me diariamente para refletir no teu criminoso proceder em detrimento dos mais sagrados deveres!

Ao ouvir aqueles conceitos injustos à pessoa de Abigail, o rapaz cobrou ânimo e murmurou com hu­mildade:

— Meu pai, essa criatura era uma santa! Deus não a quis neste mundo! Talvez, se ela ainda vivesse, teria eu o cérebro mais equilibrado para harmonizar a minha nova vida.

O pai não gostou da resposta, embora a objeção fosse feita em tom de obediência e carinho.

— Nova vida? — glosou irritado — que queres com isso dizer?

Saulo enxugou as lágrimas e respondeu resignado:

— Quero dizer que o episódio de Damasco não foi ilusão e que Jesus reformou minha vida.

— Não poderias ver em tudo isso rematada lou­cura? — continuou o pai com espanto.

Impossível! como abandonar o amor da família, as tradições venerá­veis do teu nome, as esperanças sagradas dos teus, para seguir um carpinteiro desconhecido?

Saulo compreendeu o sofrimento moral do genitor quando assim se exprimia. Teve ímpetos de atirar-se-lhe nos braços amorosos; falar-lhe do Cristo, proporcionar-lhe entendimento real da situação. Mas, prevendo si­multaneamente a dificuldade de se fazer compreendido, observava-o resignado, enquanto ele prosseguia de olhos úmidos, revelando a mágoa e a cólera que o dominavam.

— Como pode ser isso? Se a doutrina malfadada do carpinteiro de Nazaré impõe criminosa indiferença pelos laços mais santos da vida, como negar-lhe nocividade e bastardia? Será justo preferir um aventureiro, que mor­reu entre malfeitores, ao pai digno e trabalhador que envelheceu no serviço honesto de Deus?

— Mas, pai — dizia o moço em voz súplice —, o Cristo é o Salvador prometido!...

Isaac pareceu agravar a própria fúria.

— Blasfemas? — gritou. — Não temes insultar a Providência Divina? As esperanças de Israel não pode­riam repousar numa fronte que se esvaiu no sangue do castigo, entre ladrões!... Estás louco! Exijo a reconsi­deração de tuas atitudes.

Enquanto fazia uma pausa, o convertido objetou:

— É certo que meu passado está cheio de culpas quando não hesitei em perseguir as expressões da ver­dade; mas, de três anos a esta parte, não me recordo de ato algum que necessite reconsideração.

O ancião pareceu atingir o auge da cólera e excla­mou áspero:

— Sinto que as palavras generosas não quadram à tua razão perturbada. Vejo que tenho esperado em vão, para não morrer odiando alguém. Infelizmente, sou obrigado a reconhecer nas tuas atuais decisões um louco, ou um criminoso vulgar. Portanto, para que nossas atitudes se definam, peço-te que escolhas em definitivo, entre mim e o desprezível carpinteiro!.

A voz paternal, ao enunciar semelhante intimativa, era abafada, vacilante, evidenciando profundo sofrimento. Saulo compreendeu e, em vão, procurava um argumento conciliador. A incompreensão do pai angustiava-o. Nunca refletiu tanto e tão intensamente no ensino de Jesus sobre os laços de família. Sentia-se estreitamente ligado ao generoso velhinho, queria ampará-lo na sua rigidez in­telectual, abrandar-lhe a feição tirânica, mas compreen­dia as barreiras que se antepunham aos seus desejos sinceros. Sabia com que severidade fora formado o seu próprio caráter. Prejulgando a inutilidade dos apelos afe­tivos, murmurou entre humilde e ansioso:

— Meu pai, ambos precisamos de Jesus!...

O velho, inflexível, endereçou-lhe um olhar austero e retrucou com aspereza:

— Tua escolha está feita! Nada tens a fazer nesta casa!...

O velhinho estava trêmulo. Via-se-lhe o esforço espiritual para tomar aquela decisão.

Criado nas con­cepções intransigentes da Lei de Moisés, Isaac sofria como pai; entretanto, expulsava o filho depositário de tantas esperanças, como se cumprisse um dever. O cora­ção amoroso sugeria-lhe piedade, mas o raciocínio do homem, encarcerado nos dogmas implacáveis da raça, abafava-lhe o impulso natural.

Saulo contemplou-o em atitude silenciosa e supli­cante. O lar era a derradeira esperança que ainda lhe restava. Não queria crer na última perda. Cravou no ancião os olhos quase lacrimosos e, depois de longo mi­nuto de expectação, implorou num gesto comovedor que lhe não era habitual:

— Falta-me tudo, meu pai. Estou cansado e doente! Não tenho dinheiro algum, necessito da piedade alheia.

E acentuando a queixa dolorosa:

— Também vós me expulsais?...

Isaac sentiu que a rogativa lhe vibrava no mais íntimo do coração. Mas, julgando talvez que a energia era mais eficiente que a ternura, no caso, respondeu secamente:

— Corrige as tuas impressões, porque ninguém te expulsou. Foste tu que votaste os amigos e os afetos mais puros ao supremo abandono!... Tens necessidades? Ë justo que peças ao carpinteiro as providências acertadas... Ele que fez tamanhos absurdos, terá poder bas­tante para valer-te.

Imensa dor represou-se no espírito do ex-rabino. As alusões ao Cristo doíam-lhe muito mais que as repri­mendas diretas que recebera. Sem conseguir refrear a própria angústia, sentiu que lágrimas ardentes rola­vam-lhe nas faces queimadas pelo sol’ do deserto. Nunca experimentara pranto assim amargo. Nem mesmo na cegueira angustiosa, conseqüente à visão de Jesus, cho­rara tão penosamente. Não obstante esquecido numa pensão sem-nome, cego e acabrunhado, sentia a prote­ção do Mestre que o convocara ao seu divino serviço.

Guardava a impressão de estar mais perto do Cristo. Regozijava-se nas dores mais acerbas, pelo fato de haver recebido, às portas de Damasco, o seu apelo glo­rioso e direto.

Mas, depois de tudo, procurava, em vão, apoio nos homens para iniciar a sagrada tarefa.

Os mais amigos recomendavam-lhe a distância. Por último, ali estava o pai, velho e abastado, a recusar-lhe a mão no instante mais doloroso da vida. Expulsava-o. Manifes­tava aversão por suas idéias regeneradoras. Não lhe tolerava a condição de amigo do Cristo. No pranto que lhe borbulhava dos olhos, recordou-se, porém, de Ananias. Quando todos o abandonavam em Damasco, surgira o mensageiro do Mestre, restituindo-lhe o bom ânimo.

Seu pai falara-lhe, ironicamente, dos poderes do Senhor. Sim, Jesus não lhe faltaria com os recursos indispensáveis. Lançando ao genitor um olhar inolvidável, disse humil­demente:

— Então, adeus, meu pai!... Dizeis bem, porque estou certo de que o Messias não me abandonará!...

A passos indecisos, aproximou-se da porta de saída. Vagou o olhar nevoado de pranto pelos antigos adornos da sala. A poltrona de sua mãe estava na posição ha­bitual. Recordou o tempo em que os olhos maternos liam para ele as primeiras noções da Lei. Julgou divi­sar-lhe a sombra a lhe acenar com amoroso sorriso. Jamais experimentara tamanho vácuo no coração. Estava só. Teve receio de si mesmo, porqüanto, jamais se vira em tais conjunturas.

Depois da meditação dolorosa, retirou-se em silêncio. Olhou, indiferente, o movimento da rua, como alguém que houvesse perdido todo o interesse de viver.

Não dera ainda muitos passos, no seu incerto des­tino, quando ouviu chamarem-no com insistência.

Deteve-se à espera e verificou tratar-se de velho servidor do pai, que corria ao seu encalço.

Em poucos instantes, o criado entregava-lhe uma bolsa pesada, exclamando em tom amistoso:

— Vosso pai manda este dinheiro como lembrança.

Saulo experimentou no íntimo a revolta do “homem velho”. Imaginou invocar a própria dignidade para de­volver a dádiva humilhante. Assim procedendo ensinaria ao pai que era filho e não mendigo. Dar-lhe-ia uma lição, mostraria o valor próprio, mas considerou, ao mesmo tempo, que as provações rigorosas talvez se veri­ficassem com assentimento de Jesus, para que seu coração ainda voluntarioso aprendesse a verdadeira humildade. Sentiu que havia vencido muitos tropeços; que se havia mostrado superior em Damasco e em Jerusalém; que dominara as hostilidades do deserto; que suportara a ingratidão dos climas e as canseiras dolorosas; mas, que o Mestre agora lhe sugeria a luta consigo mesmo, para que o “homem do mundo” deixasse de existir, ensejando o renascimento do coração enérgico, mas amoroso e terno, do discípulo. Seria, talvez, a maior de todas as batalhas. Assim compreendeu, num relance, e buscando vencer-se a si mesmo, tomou a bolsa com resignado sorriso, guar­dou-a humildemente entre as dobras da túnica, saudou o servo com expressões de agradecimento e disse, esfor­çando-se por evidenciar alegria:

— Sinésio, conte a meu pai o contentamento que me causou com a sua carinhosa oferta e diga-lhe que rogo a Deus que o ajude.

Seguindo o curso incerto de sua nova situação, viu na atitude paterna o reflexo dos antigos hábitos do judaísmo. Como pai, Isaac não queria parecer ingrato e inflexível, procurando ampará-lo; mas como fariseu nunca lhe suportaria a renovação das idéias.

Com ar indiferente, tomou leve refeição em modesta locanda. Entretanto, não conseguia tolerar o movimento das ruas. Tinha sede de meditação e silêncio. Precisava ouvir a consciência e o coração, antes de assentar os novos planos de vida. Procurou afastar-se da cidade. Como eremita anônimo, buscou o campo agreste. Depois de muito caminhar sem destino, atingiu os arredores do Tauro. Começava o cortejo das sombras tristes da tarde.

Exausto de fadiga, descansou junto de uma das inume­ráveis cavernas abandonadas.

Muito ao longe, Tarso re­pousava entre arvoredos. As auras vespertinas vibravam no ambiente, sem perturbar a placidez das coisas. Mer­gulhado na quietude da Natureza, Saulo recuou mental­mente ao dia da sua radical transformação. Lembrou o abandono na pensão de Judas, a indiferença de Sadoc à sua amizade. Rememorou a primeira reunião de Da­masco, na qual suportara tantos apupos, ironias e sar­casmos. Demandara Palmira, ansioso pela assistência de Gamaliel, a fim de penetrar a causa do Cristo, mas o nobre mestre lhe aconselhara o insulamento no deserto. Recordou as duras dificuldades do tear e a carência de recursos de toda a espécie, no oásis solitário. Naqueles dias silenciosos e longos, jamais pudera esquecer a noiva morta, lutando por erguer-se, espiritualmente, acima dos sonhos desmoronados. Por mais que estudasse o Evan­gelho, intimamente experimentava singular remorso pelo sacrifício de Estevão, que, a seu ver, fora a pedra tumular do seu noivado futuroso. Suas noites estavam cheias de infinitas angústias. Às vezes, em pesadelos dolorosos, sentia-se de novo em Jerusalém, assinando sentenças iníquas. As vítimas da grande perseguição acusavam-no, olhando-o assustadas, como se a sua fisionomia fosse a de um monstro. A esperança no Cristo reanimava-lhe o espírito resoluto. Depois de provas ásperas, deixara a solidão para regressar à vida social. Novamente em Damasco, a sinagoga o recebeu com ameaças. Os amigos de outros tempos, com profunda ironia, lançavam-lhe epítetos cruéis. Foi-lhe necessário fugir como criminoso comum, saltando muros pela calada da noite. Depois, bus­cara Jerusalém, na esperança de fazer-se compreendido. Contudo, Alexandre, em cujo espírito culto pretendia en­contrar melhor entendimento, recebera-o como visionário e mentiroso. Extremamente fatigado, batera à porta da igreja do “Caminho”, mas fora obrigado a recolher-se a uma reles hospedaria, por força das suspeitas justas dos Apóstolos da Galiléia. Doente e abatido, fora levado à presença de Simão Pedro, que lhe ministrara lições de alta prudência e excessiva bondade, mas, a exemplo de Gamaliel, aconselhara-lhe prévio recolhimento, discrição, aprendizado em suma. Embalde procurava um meio de harmonizar as circunstâncias, de maneira a cooperar na obra do Evangelho e todas as portas pareciam fechadas ao seu esforço. Afinal, dirigira-se a Tarso, ansioso do amparo familiar para reiniciar a vida. A atitude paterna só lhe agravara as desilusões.

Repelindo-o, o genitor lan­çava-o num abismo. Agora começava a compreender que, reencetar a existência, não era volver à atividade do ninho antigo, mas principiar, do fundo dalma, o esforço interior, alijar o passado nos mínimos resquícios, ser outro homem enfim.

Compreendia a nova situação, mas não pôde impedir as lágrimas que lhe afloravam copiosas.

Quando deu acordo de si, a noite havia fechado de todo. O céu oriental resplandecia de estrelas. Ventos suaves sopravam de longe, refrescando-lhe a fronte ia­candescida. Acomodou-se como pôde, entre as pedras agrestes, sem coragem de eximir-se ao silêncio da Natu­reza amiga. Não obstante prosseguir no curso de suas amargas reflexões, sentia-se mais calmo. Confiou ao Mestre as preocupações acerbas, pediu o remédio da sua misericórdia e procurou manter-se em repouso. Após a prece ardente, cessou de chorar, figurando-se-lhe que uma força superior e invisível lhe balsamizava as chagas da alma opressa.

Breve, em doce quietude do cérebro dolorido, sentiu que o sono começava a empolgá-lo.

Suavíssima sensação de repouso proporcionava-lhe grande alívio. Estaria dor­mindo?

Tinha a impressão de haver penetrado uma região de sonhos deliciosos. Sentia-se ágil e feliz. Tinha a impressão de que fora arrebatado a uma campina to­cada de luz primaveril, isenta e longe deste mundo. Flores brilhantes, como feitas de névoa colorida, desa­brochavam ao longo de estradas maravilhosas, rasgadas na região banhada de claridades indefiníveis.

Tudo lhe falava de um mundo diferente. Aos seus ouvidos toavam harmonias suaves, dando idéia de cavatinas executadas ao longe, em harpas e alaúdes divinos. Desejava identificar a paisagem, definir-lhe os contornos, enriquecer observações, mas um sentimento profundo de paz deslum­brava-o inteiramente. Devia ter penetrado um reino ma­ravilhoso, porqüanto os portentos espirituais que se pa­tenteavam a seus olhos excediam todo entendimento. (1)

Mal não havia despertado desse deslumbramento, quando se sentiu presa de novas surpresas com a apro­ximação de alguém que pisava de leve, acercando-se de mansinho. Mais alguns instantes, viu Estevão e Abigail à sua frente, jovens e formosos, envergando vestes tão brilhantes e tão alvas que mais se assemelhavam a peplos de neve translúcida.

(1) Mais tarde na 2ª Epístola aos Coríntios (capítulo 12º, versículos de 2 a 4), Saulo afirmava: — “Conheço um homem em Cristo que há 14 anos (se no corpo não sei, se fora do corpo não sei; Deus o sabe) foi arrebatado até ao terceiro céu. E sei que o tal homem foi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inefáveis, de que ao homem não é lícito falar”. Dessa gloriosa expe­riência o Apóstolo dos gentios extraiu novas conclusões sobre suas idéias notáveis, referentemente ao corpo espiritual. — (Nota de Emmanuel)

Incapaz de traduzir as sagradas comoções de sua alma, Saulo de Tarso ajoelhou-se e começou a chorar.

Os dois irmãos, que voltavam a encorajá-lo, apro­ximaram-Se com generoso sorriso.

— Levanta-te, Saulo! — disse Estevão com pro­funda bondade.

— Que é isso? Choras? — perguntou Abigail em tom blandicioso. — Estarias desalentado quando a tarefa apenas começa?

O moço tarsense, agora de pé, desatou em pranto convulsivo. Aquelas lágrimas não eram somente um desa­bafo do coração abandonado no mundo. Traduziam um júbilo infinito, uma gratidão imensa a Jesus, sempre pró­digo de proteção e benefícios. Quis aproximar-se, oscular as mãos de Estevão, rogar perdão para o nefando passado, mas foi o mártir do “Caminho” que, na luz de sua res­surreição gloriosa, aproximou-se do ex-rabino e o abra­çou efusivamente, como se o fizesse a um irmão amado. Depois, beijando-lhe a fronte, murmurou com ternura:

— Saulo, não te detenhas no passado! Quem haverá, no mundo, isento de erros? Só Jesus foi puro!...

O ex-discípulo de Gamaliel sentia-se mergulhado em verdadeiro oceano de venturas.

Queria falar das suas alegrias infindas, agradecer tamanhas dádivas, mas indô­mita emoção lhe selava os lábios e confundia o coração. Amparado por Estevão, que lhe sorria em silêncio, viu Abigail mais formosa que nunca, recordando-lhe as flores da primavera na casa humilde do caminho de Jope. Não pôde furtar-se às reflexões do homem, esquecer os sonhos desfeitos, lembrando-os, acima de tudo, naquele glorioso minuto da sua vida. Pensou no lar que poderia ter cons­tituído; no carinho com que a jovem de Corinto lhe cuidaria dos filhos afetuosos; no amor insubstituível que sua dedicação lhe poderia dar. Mas, compreendendo-lhe os mais íntimos pensamentos, a noiva espiritual aproxi­mou-se, tomou-lhe a destra calejada nos labores rudes do deserto e falou comovidamente:

— Nunca nos faltará um lar... Tê-lo-emos no cora­ção de quantos vierem à nossa estrada.

Quanto aos filhos, temos a família imensa que Jesus nos legou em sua mise­ricórdia... Os filhos do Calvário são nossos também... Eles estão em toda parte, esperando a herança do Sal­vador.

O moço tarsense entendeu a carinhosa advertência, arquivando-a no imo do coração.

— Não te entregues ao desalento — continuou Abi­gail, generosa e solícita —; nossos antepassados conhe­ceram o Deus dos Exércitos, que era o dono dos triunfos sangrentos, do ouro e da prata do mundo; nós, porém, conhecemos o Pai, que é o Senhor de nosso coração.

A Lei nos destacava a fé, pela riqueza das dádivas ma­teriais nos sacrifícios; mas o Evangelho nos conhece pela confiança inesgotável e pela fé ativa ao serviço do Todo-Poderoso. É preciso ser fiel a Deus, Saulo! Ainda que o mundo inteiro se voltasse contra ti, possuirias o tesouro inesgotável do coração fiel. A paz triunfante do Cristo é a da alma laboriosa, que obedece e confia... Não tornes a recalcitrar contra os aguilhões. Esvazia-te dos pensamentos do mundo. Quando hajas esgotado a der­radeira gota da posca dos enganos terrenos, Jesus enche­rá teu espírito de claridades imortais!...

Experimentando infindo consolo, Saulo chegava a perturbar-se pela incapacidade de articular uma frase. As exortações de Abigail calar-lhe-iam para sempre. Nunca mais permitiria que o desânimo se apossasse dele. Enorme esperança represava-se, agora, em seu íntimo. Trabalharia para o Cristo em todos os lugares e circunstâncias. O Mestre sacrificara-se por todos os ho­mens. Dedicar-lhe a existência representava um nobre dever. Enquanto formulava estes pensamentos, recordou a dificuldade de harmonizar-se com as criaturas.

Encon­traria lutas. Lembrou a promessa de Jesus, de que estaria presente onde houvesse irmãos reunidos em seu nome. Mas tudo lhe pareceu subitamente difícil naquela rápida operação intelectual. As sinagogas combatiam-se entre si. A própria igreja de Jerusalém tendia, nova­mente, às influências judaizantes. Foi aí que Abigail res­pondeu, de novo, aos seus apelos íntimos, exclamando com infinito carinho:

— Reclamas companheiros concordes contigo nas edificações evangélicas. Mas é preciso lembrar que Jesus não os teve. Os apóstolos não puderam concordar com o Mestre senão com o auxílio do Céu, depois da Res­surreição e do Pentecostes. Os mais amados dormiam, enquanto Ele, agoniado, orava no horto. Uns negaram-no, outros fugiram na hora decisiva.

Concorda com Jesus e trabalha. O caminho para Deus está subdividido em ver­dadeira infinidade de planos. O espírito passará sozinho de uma esfera para outra. Toda elevação é difícil, mas somente aí encontramos a vitória real. Recorda a “porta estreita” das lições evangélicas e caminha. Quando seja oportuno, Jesus chamará ao teu labor os que possam concordar contigo, em seu nome. Dedica-te ao Mestre em todos os instantes de tua vida. Serve-o com energia e ternura, como quem sabe que a realização espiritual reclama o concurso de todos os sentimentos que enobre­çam a alma.

Saulo estava enlevado. Não poderia traduzir as sen­sações cariciosas que lhe represavam no coração tomado de inefável contentamento. Esperanças novas bafeja­vam-lhe a alma. Em sua retina espiritual desdobrava-se radioso futuro. Quis mover-se, agradecer a dádiva sublime, mas a emoção privava-o de qualquer manifestação afetiva. Entretanto, pairava-lhe no espírito uma grande interrogação. Que fazer, doravante, para triunfar? Como completar as noções sagradas que lhe competia exempli­ficar praticamente, sem anotação de sacrifícios?

Deixan­do perceber que lhe ouvia as mais secretas interpelações, Abigail adiantou-se, sempre carinhosa:

— Saulo, para certeza da vitória no escabroso cami­nho, lembra-te de que é preciso dar: Jesus deu ao mundo quanto possuía e, acima de tudo, deu-nos a compreensão intuitiva das nossas fraquezas, para tolerarmos as misé­rias humanas...

O moço tarsense notou que Estevão, nesse ínterim, se despedia, endereçando-lhe um olhar fraterno.

Abigail, por sua vez, apertava-lhe as mãos com imensa ternura. O ex-rabino desejaria prolongar a deli­ciosa visão para o resto da vida, manter-se junto dela para sempre; contudo, a entidade querida esboçava um gesto de amoroso adeus. Esforçou-se, então, por catalo­gar apressadamente suas necessidades espirituais, dese­joso de ouvi-la relativamente aos problemas que o de­frontavam. Ansioso de aproveitar as mínimas parcelas daquele glorioso, fugaz minuto, Saulo alinhava mental­mente grande número de perguntas. Que fazer para adquirir a compreensão perfeita dos desígnios do Cristo?

— Ama! — respondeu Abigail espontaneamente.

Mas, como proceder de modo a enriquecermos na virtude divina? Jesus aconselha o amor aos próprios inimigos. Entretanto, considerava quão difícil devia ser semelhante realização. Penoso testemunhar dedicação, sem o real entendimento dos outros. Como fazer para que a alma alcançasse tão elevada expressão de esforço com Jesus-Cristo?

— Trabalha! — esclareceu a noiva amada, sorrindo bondosamente.

Abigail tinha razão. Era necessário realizar a obra de aperfeiçoamento interior. Desejava ardentemente fa­zê-lo. Para isso insulara-se no deserto, por mais de mil dias consecutivos.

Todavia, voltando ao ambiente do esforço coletivo, em cooperação com antigos companhei­ros, acalentava sadias esperanças que se converteram em dolorosas perplexidades.

Que providências adotar contra o desânimo destruidor?

— Espera! — disse ela ainda, num gesto de terna solicitude, como quem desejava esclarecer que a alma deve estar pronta a atender ao programa divino, em qualquer circunstância, extreme de caprichos pessoais.

Ouvindo-a, Saulo considerou que a esperança fora sempre a companheira dos seus dias mais ásperos. Sa­beria aguardar o porvir com as bênçãos do Altíssimo. Confiaria na sua misericórdia. Não desdenharia as opor­tunidades do serviço redentor. Mas... os homens? Em toda parte medrava a confusão nos espíritos. Reconhecia que, de fato, a concordância geral em torno dos ensina­mentos do Mestre Divino representava uma das realiza­ções mais difíceis, no desdobramento do Evangelho; mas, além disso, as criaturas pareciam igualmente desinteressadas da verdade e da luz. Os israelitas agarravam-se àLei de Moisés, intensificando o regime das hipocrisias farisaicas; os seguidores do “Caminho” aproximavam-se novamente das sinagogas, fugiam dos gentios, subme­tiam-se, rigorosamente, aos processos da circuncisão. Onde a liberdade do Cristo? Onde as vastas esperanças que o seu amor trouxera à Humanidade inteira, sem exclusão dos filhos de outras raças? Concordavam em que se fazia indispensável amar, trabalhar, esperar; entre­tanto, como agir no âmbito de forças tão heterogêneas? Como conciliar as grandiosas lições do Evangelho com a indiferença dos homens?

Abigail apertou-lhe as mãos com mais ternura, a indicar as despedidas, e acentuou docemente:

— Perdoa!...

Em seguida, seu vulto luminoso pareceu diluir-se como se fosse feito de fragmentos de aurora.

Empolgado pela maravilhosa revelação, Saulo viu-se só, sem saber como coordenar as expressões do próprio deslumbramento. Na região, que se coroava de claridades infinitas, sentiam-se vibrações de misteriosa beleza. Aos seus ouvidos continuavam chegando ecos longínquos de sublimes harmonias siderais, que pareciam traduzir men­sagens de amor, oriundas de sóis distantes... Ajoe­lhou-se e orou! Agradeceu ao Senhor a maravilha das suas bênçãos. Daí a instantes, como se energias impon­deráveis o reconduzissem ao ambiente da Terra, sentiu-se no leito rústico, improvisado entre as pedras. Incapaz de esclarecer o prodigioso fenômeno, Saulo de Tarso contemplou os céus, embevecido.

O infinito azul do firmamento não era um abismo em cujo fundo brilhavam estrelas... A seus olhos, o espaço adquiria nova significação; devia estar cheio de expressões de vida, que ao homem comum não era dado compreender. Haveria corpos celestes, como os havia terrestres. A criatura não estava abandonada, em par­ticular, pelos poderes supremos da Criação. A bondade de Deus excedia a toda a inteligência humana. Os que se haviam libertado da carne voltavam do plano espiritual por confortar os que permaneciam a distância.

Para Estevão, ele fora verdugo cruel; para Abigail, noivo ingrato. Entretanto, permitia o Senhor que ambos regressassem à paisagem caliginosa do mundo, reani­mando-lhe o coração.

A existência planetária alcançava novo sentido nas suas elucubrações profundas.

Ninguém estaria abandonado, Os homens mais miseráveis teriam no céu quem os acompanhasse com desvelada dedicação. Por mais duras que fossem as experiências humanas, a vida, agora, assumia nova feição de harmonia e beleza eternas.

A Natureza estava calma. O luar esplendia no alto em vibrações de encanto indefinível.

De quando em quan­do, o vento sussurrava de leve, espalhando mensagens misteriosas.

Lufadas cariciosas acalmavam a fronte do pensador, que se embevecia na recordação imediata de suas maravilhosas visões do mundo invisível.

Experimentando uma paz até então desconhecida, acreditou que renascia naquele momento para uma exis­tência muito diversa. Singular serenidade tocava-lhe o espírito. Uma compreensão diferente felicitava-o para o reinício da jornada no mundo. Guardaria o lema de Abigail, para sempre. O amor, o trabalho, a esperança e o perdão seriam seus companheiros inseparáveis. Cheio de dedicação por todos os seres, aguardaria as oportu­nidades que Jesus lhe concedesse, abstendo-se de pro­vocar situações, e, nesse passo, saberia tolerar a ignorân­cia ou a fraqueza alheias, ciente de que também ele carregava um passado condenável, que, nada obstante, merecera a compaixão do Cristo.

Somente muito depois, quando as brisas leves da madrugada anunciavam o dia, o ex-doutor da Lei con­seguiu conciliar o sono. Quando despertou, era manhã alta. Muito ao longe, Tarso havia retomado o seu movi­mento habitual.

Ergueu-se encorajado como nunca. O colóquio espi­ritual com Estevão e Abigail renovara-lhe as energias. Lembrou, instintivamente, a bolsa que o pai lhe havia mandado.

Retirou-a para calcular as possibilidades finan­ceiras de que podia dispor para novos cometimentos. A dádiva paterna fora abundante e generosa. Contudo, não conseguia atinar, de pronto, com a decisão preferível.

Depois de muito refletir, decidiu adquirir um tear. Seria o recomeço da luta. A fim de consolidar as novas disposições interiores, julgou útil exercer em Tarso o mister de tecelão, visto que ali, na terra do seu berço, se ostentara como intelectual de valor e aplaudido atleta.

Dentro em pouco, era reconhecido pelos conterrâneos como humilde tapeceiro.

A notícia teve desagradável repercussão no lar an­tigo, motivando a mudança do velho Isaac, que, após de­serdá-lo ostensivamente, transferiu-se para uma de suas propriedades à margem do Eufrates, onde esperou a morte junto de uma filha, incapaz de compreender o pri­mogênito muito amado.

Assim, durante três anos, o solitário tecelão das vizinhanças do Tauro exemplificou a humildade e o tra­balho, esperando devotadamente que Jesus o convocasse ao testemunho.

4

Primeiros labores apostólicos

Transformado em rude operário, Saulo de Tarso apresentava notável diferença fisionômica. Acentuara--se-lhe a feição de asceta. Os olhos, contudo, denunciando o homem ponderado e resoluto, revelavam igualmente uma paz profunda e indefinível.

Compreendendo que a situação não lhe permitia idealizar grandes projetos de trabalho, contentava-se em fazer o que fosse possível. Sentia prazer em testemunhar a mudança de conduta aos antigos camaradas de triunfo, por ocasião das festividades tarsenses. Orgulhava-se, quase, de viver do modesto rendimento do seu árduo labor. Vezes várias, ele próprio atravessava as praças mais freqüentadas, carregando pesados fardos de pelo caprino. Os conterrâneos admiravam a atitude humilde, que era agora o seu traço dominante. As famílias ilustres contemplavam-no com piedade. Todos os que o conhe­ceram na fase áurea da juventude, não se cansavam de lamentar aquela transformação. A maioria tratava-o como alienado pacífico. Por isso, nunca faltavam encomendas ao tecelão das proximidades do Tauro. A sim­patia dos seus concidadãos, que jamais lhe compreende­riam integralmente as idéias novas, tinha a virtude de amplificar seu esforço, aumentando-lhe os parcos re­cursos.

Ele, por sua vez, vivia tranqüilo e satisfeito. O programa de Abigail constituía permanente mensagem ao seu coração. Levantava-se, todos os dias, procurando amar a tudo e a todos; para prosseguir nos caminhos retos, trabalhava ativamente. Se lhe chegavam desejos ansiosos, inquietações para intensificar suas atividades fora do tempo apropriado, bastava esperar; se alguém dele se compadecia, se outros o apelidavam de louco, desertor ou fantasista, procurava esquecer a incompre­ensão alheia com o perdão sincero, refletindo nas vezes muitas que, também ele, ofendera os outros, por igno­rância. Estava sem amigos, sem afetos, suportando os desencantos da soledade que, se não tinha companheiros carinhosos, também não necessitava temer os sofrimentos oriundos das amizades infiéis. Procurava encontrar no dia o colaborador valioso que não lhe subtraia as opor­tunidades. Com ele tecia tapetes complicados, barracas e tendas, exercitando-se na paciência indispensável aos trabalhos outros que ainda o esperavam nas encruzilha­das da vida. A noite era a bênção do espírito. A exis­tência corria sem outros pormenores de maior impor­tância, quando, um dia, foi surpreendido com a visita inesperada de Barnabé.

O ex-levita de Chipre encontrava-se em Antioquia. a braços com sérias responsabilidades. A igreja ali fun­dada reclamava a cooperação de servos inteligentes.

Inúmeras dificuldades espirituais a serem resolvidas, in­tensos serviços a fazer. A instituição fora iniciada por discípulos de Jerusalém, sob os alvitres generosos de Simão Pedro. O ex-pescador de Cafarnaum ponderou que deveriam aproveitar o período de calma, no capítulo das perseguições, para que os laços do Cristo fossem dilatados. Antioquia era dos maiores centros operários. Não faltavam contribuintes para o custeio das obras, porque o empreendimento grandioso tivera repercussão nos ambientes de trabalho mais humildes; entretanto, escasseavam os legítimos trabalhadores do pensamento. Ainda, aí, entrou a compreensão de Pedro para que não faltasse ao tecelão de Tarso o ensejo devido. Observando as dificuldades, depois de indicar Barnabé para a direção do núcleo do “Caminho”, aconselhou-o a procurar o convertido de Damasco, a fim de que sua capacidade alcançasse um campo novo de exercício espiritual.

Saulo recebeu o amigo com imensa alegria.

Vendo-se lembrado pelos irmãos distantes, tinha a impressão de receber um novo alento.

O companheiro expôs o elevado plano da igreja que lhe reclamava o concurso fraterno, o desdobramento dos serviços, a colaboração constante de que poderiam dispor para a construção das obras de Jesus-Cristo. Bar­nabé exaltou a dedicação dos homens humildes que cooperavam com ele. A instituição, todavia, reclamava irmãos dedicados, que conhecessem profundamente a Lei de Moisés e o Evangelho do Mestre, a fim de não ser prejudicada a tarefa da iluminação intelectual.

O ex-rabino edificou-se com a narração do outro e não teve dúvidas em atender ao apelo. Apenas apre­sentava uma condição, qual a de prosseguir no seu ofício, de maneira a não ser pesado aos seus confrades de Antio­quia. Inútil qualquer objeção de Barnabé, nesse sentido.

Pressuroso e prestativo, Saulo de Tarso em breve se instalava em Antioquia, onde passou a cooperar ativa­mente com os amigos do Evangelho. Durante largas horas do dia, consertava tapetes ou se entretinha no trabalho de tecelagem. Destarte, ganhava o necessário para viver, tornando-se um modelo no seio da nova igreja. Utilizando o grande cabedal de experiências já adquirido nas refregas e padecimentos do mundo, jamais o viam ocupar os primeiros lugares. Nos Atos dos Apóstolos, vemos-lhe o nome citado sempre por último, quando se referem aos colaboradores de Barnabé. Saulo havia aprendido a esperar Na comunidade, preferia os labores mais simples. Sentia-se bem, atendendo aos doentes nu­merosos. Recordava Simão Pedro e procurava cumprir os novos deveres na pauta da bondade despretensiosa, embora imprimindo em tudo o traço da sua sinceridade e franqueza, quase ásperas.

A igreja não era rica, mas a boa-vontade dos com­ponentes parecia provê-la de graças abundantes.

Antioquia, cidade cosmopolita, tornara-se um foco de grandes devassidões. Na sua paisagem enfeitada de mármores preciosos, que deixavam entrever a opulência dos habitantes, proliferava toda a espécie de abusos. Os fortunosos entregavam-se aos prazeres licenciosos, desenfreadamente. Os bosques artificiais reuniam assem­bléias galantes, onde criminosa tolerância caracterizava todos os propósitos. A riqueza pública ensejava grandes possibilidades às extravagâncias. A cidade estava cheia de mercadores que se guerreavam sem tréguas, de am­bições inferiores, de dramas passionais. Mas, diaria­mente, à noite, se reuniam, na casa singela onde funcio­nava a célula do “Caminho”, grandes grupos de pedrei­ros, de soldados paupérrimos, de lavradores pobres, ansiosos todos pela mensagem de um mundo melhor. As mulheres de condição humilde compareciam, igualmente, em grande número. A maioria dos freqüentadores in­teressavam-se por conselhos e consolações, remédios para as chagas do corpo e do espírito.

Geralmente, eram Barnabé e Manahen os pregado­res mais destacados, ministrando o Evangelho às assem­bléias heterogêneas. Saulo de Tarso limitava-se a co­operar. Ele mesmo notara que Jesus, por certo, reco­mendara absoluto recomeço em suas experiências. Certa feita, fez o possível por conduzir as pregações gerais, mas nada conseguiu. A palavra, tão fácil noutros tempos, parecia retrair-se-lhe na garganta. Compreendeu que era justo padecer as torturas do reinício, em virtude da oportunidade que não soubera valorizar. Não obstante as barreiras que se antepunham às suas atividades, ja­mais se deixou avassalar pelo desânimo. Se ocupava a tribuna, tinha extrema dificuldade na interpretação das idéias mais simples. Por vezes, chegava a corar de vergonha ante o público que lhe aguardava as conclu­sões com ardente interesse, dada a fama de pregador de Moisés, no Templo de Jerusalém. Além disso, o sublime acontecimento de Damasco cercava-o de nobre e justa curiosidade. O próprio Barnabé, várias vezes, surpreendera-se com a sua dialética confusa na inter­pretação dos Evangelhos e refletia na tradição do seu passado como rabino, que não chegara a conhecer pessoal­mente, e na timidez que o assomava, justo no momento de conquistar o público. Por esse motivo, foi afastado discretamente da pregação e aproveitado noutros mis­teres. Saulo, porém, compreendia e não desanimava. Se não era possível regressar, de pronto. ao labor da pre­gação, preparar-se-ia, de novo, para isso. Nesse intuito, retinha irmãos humildes na sua tenda de trabalho e, enquanto as mãos teciam com segurança, entabulava conversas sobre a missão do Cristo. À noite, promovia palestras na igreja com a cooperação de todos os presentes. Enquanto não se organizava a direção superior para o trabalho das assembléias, sentava-se com os ope­rários e soldados que compareciam em grande número. Interessava a atenção das lavadeiras, das jovens doentes, das mães humildes. Lia, às vezes, trechos da Lei e do Evangelho, estabelecia comparações, provocava pareceres novos. Dentro daquelas atividades constantes, a lição do Mestre parecia sempre tocada de luzes progressivas. Em breve, o ex-discípulo de Gamaliel tornava-se um amigo amado de todos. Saulo sentia-se imensamente feliz. Tinha enorme satisfação sempre que via a tenda pobre repleta de irmãos que o procuravam, tomados de sim­patia. As encomendas não faltavam. Havia sempre trabalho suficiente para não se tornar pesado a ninguém. Ali conheceu Trófimo, que lhe seria companheiro fiel em muitos transes difíceis; ali abraçou Tito, pela primeira vez, quando esse abnegado colaborador mal saía da infância.

A existência, para o ex-rabino, não podia ser mais tranqüila nem mais bela. Era-lhe o dia cheio das notas harmoniosas do trabalho digno e construtivo; à noite, recolhia-se à igreja em companhia dos irmãos, entre­gando-se prazenteiro às lides sublimes do Evangelho.

A instituição de Antioquia era, então, muito mais sedutora que a própria igreja de Jerusalém. Vivia-se ali num ambiente de simplicidade pura, sem qualquer preocupação com as disposições rigoristas do judaísmo. Havia riqueza, porque não faltava trabalho. Todos ama­vam as obrigações diuturnas, aguardando o repouso da noite nas reuniões da igreja, qual uma bênção de Deus. Os israelitas, distantes do foco das exigências farisaicas, cooperavam com os gentios, sentindo-se todos unidos por soberanos laços fraternais. Raríssimos os que falavam na circuncisão e que, por constituírem fraca minoria, eram contidos pelo convite amoroso à fraternidade e àunião. As assembléias eram dominadas por ascendentes profundos de amor espiritual. A solidariedade estabele­cera-se com fundamentos divinos. As dores e os júbilos de um pertenciam a todos. A união de pensamentos em torno de um só objetivo dava ensejo a formosas manifestações de espiritualidade. Em noites determina­das, havia fenômenos de “vozes diretas”. A instituição de Antioquia foi um dos raros centros apostólicos onde semelhantes manifestações chegaram a atingir culminân­cia indefinível. A fraternidade reinante justificava essa concessão do Céu. Nos dias de repouso, a pequena comu­nidade organizava estudos evangélicos no campo. A in­terpretação dos ensinos de Jesus era levada a efeito em algum recanto ameno e solitário da Natureza, quase sem­pre às margens do Orontes.

Saulo encontrara em tudo isso um mundo diferente. A permanência em Antioquia era interpretada como um auxílio de Deus. A confiança recíproca, os amigos dedi­cados, a boa compreensão, constituem alimento sagrado da alma. Procurava valer-se da oportunidade, a fim de enriquecer o celeiro íntimo.

A cidade estava repleta de paisagens morais menos dignas, mas o grupo humilde dos discípulos anônimoS aumentava sempre em legítimos valores espirituais.

A igreja tornou-se venerável por suas obras de cari­dade e pelos fenômenos de que se constituíra organismo central –

Viajantes ilustres visitavam-na cheios de interesse. Os mais generosos faziam questão de lhe amparar os encargos de benemerência social. Foi aí que surgiu, certa vez, um médico muito jovem, de nome Lucas. De pas­sagem pela cidade, aproximou-se da igreja animado por sincero desejo de aprender algo de novo. Sua atenção fixou-se, de modo especial, naquele homem de aparência quase rude, que fermentava as opiniões, antes que Bar­nabé empreendesse a abertura dos trabalhos. Aquelas atitudes de Saulo. evidenciando a preocupação generosa de ensinar e aprender simultaneamente, impressionaran-no a ponto de apresentar-se ao ex-rabino, desejoso de ouvi-lo com mais freqüência.

— Pois não — disse o Apóstolo satisfeito —, minha tenda está às suas ordens.

E enquanto permaneceu na cidade, ambos se em­penhavam diariamente em proveitosas palestras, con­cernentes ao ensino de Jesus. Retomando aos poucos seu poder de argumentação, Saulo de Tarso não tardou a incutir no espírito de Lucas as mais sadias convicções. Desde a primeira entrevista, o hóspede de Antioquia não mais perdeu uma só daquelas assembléias simples e construtivas. Na véspera de partir, fez uma observa­ção que modificaria para sempre a denominação dos discípulos do Evangelho.

Barnabé havia terminado os comentários da noite, quando o médico tomou a palavra para despedir-se. Fa­lava emocionado e, por fim, considerou acertadamente:

— Irmãos, afastando-me de vós, levo o propósito de trabalhar pelo Mestre, empregando nisso todo o cabedal de minhas fracas forças. Não tenho dúvida alguma quanto à extensão deste movimento espiritual. Para mim, ele transformará o mundo inteiro. Entretanto, pondero a necessidade de imprimirmos a melhor expressão de unidade às suas manifestações. Quero referir-me aos títulos que nos identificam a comunidade. Não vejo na palavra “caminho” uma designação perfeita, que traduza o nosso esforço, Os discípulos do Cristo são chamados viajores”, “peregrinos”, “caminheiros”. Mas há vian­dantes e estiadas de todos os matizes, O mal tem, igualmente, os seus caminhos, Não seria mais justo chamar­mo-nos — cristãos — uns aos outros? Este título nos recordará a presença do Mestre, nos dará energia em seu nome e caracterizará, de modo perfeito, as nossas atividades em concordância com os seus ensinos.

A sugestão de Lucas foi aprovada com geral alegria. O próprio Barnabé abraçou-o, enternecidamente, agrade­cendo o acertado alvitre, que vinha satisfazer a certas aspirações da comunidade inteira. Saulo consolidou suas impressões excelentes, a respeito daquela vocação supe­rior que começava a exteriorizar-se.

No dia seguinte, o novo convertido despediu-se do ex-rabino com lágrimas de reconhecimento. Partiria para a Grécia, mas fazia questão de lembrá-lo em todos os pormenores da nova tarefa. Da porta de sua tenda rús­tica, o ex-doutor da Lei contemplou o vulto de Lucas até que desaparecesse ao longe, voltando ao tear, de olhos úmidos.

Gratamente emocionado reconhecia que, no trato do Evangelho, aprendera a ser amigo fiel e dedicado. Cotejava os sentimentos de agora com as concepções mais antigas e verificava profundas diferen­ças. Outrora, suas relações se prendiam a conveniências sociais, os afeiçoados vinham e seguiam sem deixar gran­des sinais em sua alma vibrátil; agora, o coração reno­vara-se em Jesus-Cristo, tornara-se mais sensível em contacto com o divino, as dedicações sinceras insculpiam­-se nele para sempre.

O alvitre de Lucas estendeu-se rapidamente a todos os núcleos evangélicos, inclusive Jerusalém, que o recebeu com especial simpatia. Dentro de breve tempo, em toda parte, a palavra “cristianismo” substituia a palavra caminho”.

A igreja de Antioquia continuava oferecendo as mais belas expressões evolutivas. De todas as grandes cidades afluiam colaboradores sinceros. As assembléias estavam sempre cheias de revelações. Numerosos irmãos profetizavam, animados do Espírito Santo (1). Foi aí que Agabo, grande inspirado pelas forças do plano su­perior, recebeu a mensagem referente às tristes prova­ções de que Jerusalém seria vítima. Os orientadores da instituição ficaram sobremaneira impressionados. Por insistência de Saulo, Barnabé expediu um mensageiro a Simão Pedro, enviando notícias e exortando-o à vigi­lância. O emissário regressou, trazendo a impressão de surpresa do ex-pescador, que agradecia os apelos ge­nerosos.

(1) Ninguém deverá ignorar que Espírito Santo designa a legião dos Espíritos santificados na luz e no amor, que cooperam com o Cristo desde os primeiros tempos da Huma­nidade. — (Nota de Emmanuel.)

Com efeito, daí a meses, um portador da igreja de Jerusalém chegava apressadamente a Antioquia, tra­zendo notícias alarmantes e dolorosas. Em longa mis­siva, Pedro relatava a Barnabé os últimos fatos que o acabrunhavam. Escrevia na data em que Tiago, filho de Zebedeu, sofrera a pena de morte, em grande espe­táculo público. Herodes Agripa não lhe tolerara as pre­gações cheias de sinceridade e apelos justos, O irmão de João vinha da Galiléia com a primitiva franqueza dos anúncios do novo Reino. Inadaptado ao convencio­nalismo farisaico, levara muito longe o sentido de suas exortações profundas. Verificou-se perfeita repetição dos acontecimentos que assinalaram a morte de Estevão. Os judeus exasperaram-se contra as noções de liberdade religiosa. Sua atitude, sincera e simples, foi levada à conta de rebeldia. Tremendas perseguições irromperam sem tréguas. A mensagem de Pedro relatava também as penosas dificuldades da igreja. A cidade sofria fome e epidemias. Enquanto a perseguição cruel apertava o cerco, inumeráveis filas de famintos e doentes batiam-lhe às portas. O ex-pescador solicitava de Antioquia os so­corros possíveis.

Barnabé apresentou as notícias, de alma confran­gida. A laboriosa comunidade solidarizou-se, de bom grado, para atender a Jerusalém.

Recolhidas as cotas de auxílio, o ex-levita de Chipre prontificou-se a ser o portador da resposta da igreja; Barnabé, porém, não poderia partir só. Surgiram difi­culdades na escolha do companheiro necessário. Sem hesitar, Saulo de Tarso ofereceu-se para lhe fazer companhia. Trabalhava por conta própria — explicou aos amigos — e desse modo poderia tomar a iniciativa de acompanhar Barnabé, sem esquecer as obrigações que ficavam à sua espera.

O discípulo de Simão Pedro alegrou-se. Aceitou, jubiloso, o oferecimento.

Daí a dois dias, ambos demandavam Jerusalém cora­josamente. A jornada era assaz difícil, mas os dois ven­ceram os caminhos no menor prazo de tempo.

Imensas surpresas aguardavam os emissários de Antioquia, que já não encontraram Simão Pedro em Jerusalém. As autoridades haviam efetuado a prisão do ex-pescador de Cafarnaum, logo após a dolorosa execução do filho de Zebedeu. Amargas provações ha­viam caído sobre a igreja e seus discípulos. Saulo e Barnabé foram recebidos especialmente por Prócoro, que os informou de todos os sucessos. Por haver solicitado pessoalmente o cadáver de Tiago para dar-lhe sepultura, Simão Pedro fora preso, sem compaixão e com todo o desrespeito, pelos criminosos sequazes de Herodes. Mas, dias depois, um anjo visitara o cárcere do Apóstolo, res­tituindo-o à liberdade. O narrador referiu-se ao feito, com os olhos fulgurantes de fé. Contou o júbilo dos irmãos quando Pedro surgiu à noite com o relato da sua libertação. Os companheiros mais ponderados induzi­ram-no, então, a sair de Jerusalém e esperar na igreja incipiente de Jope a normalidade da situação. Prócoro contou como o Apóstolo relutara em aquiescer a esse alvitre dos mais prudentes. João e Filipe haviam partido. As autoridades apenas toleravam a igreja em con­sideração à personalidade de Tiago, que, pelas suas ati­tudes de profundo ascetismo impressionava a mentalidade popular, criando em torno dele uma atmosfera de respeito intangível. Na mesma noite da libertação, por atender-lhe a insistência, Pedro fora conduzido à igreja pelos amigos. Desejava ficar, despreocupado das conseqüên­cias; mas, quando viu a casa cheia de enfermos, de famin­tos, de mendigos andrajosos, houve de ceder a Tiago a direção da comunidade e partir para Jope, a fim de que os pobrezinhos não tivessem a situação agravada por sua causa.

Saulo mostrava-se grandemente impressionado com tudo aquilo. Junto de Barnabé, tratou logo de ouvir a palavra de Tiago, o filho de Alfeu. O Apóstolo recebeu-os de bom grado, mas, podiam-se-lhe notar desde logo os receios e inquietações. Repetiu as informações de Prócoro, em voz baixa, como se temesse a presença de delatores; alegou a necessidade de transigência com as autoridades; invocou o precedente da morte do filho de Zebedeu; referiu-se às modificações essenciais que intro­duzira na igreja. Na ausência de Pedro, criara novas disciplinas. Ninguém poderia falar do Evangelho sem referir-se à Lei de Moisés. As pregações só poderiam ser ouvidas pelos circuncisos. A igreja estava equiparada às sinagogas. Saulo e o companheiro ouviram-no com grande surpresa. Entregaram-lhe em silêncio o auxílio financeiro de Antioquia.

A ausência eventual de Simão transformara a es­trutura da obra evangélica. Aos dois recém-chegados tudo parecia inferior e diferente. Barnabé, sobretudo, notara algo, em particular. Ë que o filho de Alfeu, elevado à chefia provisória, não os convidou para se hospedarem na igreja. À vista disso, o discípulo de Pedro foi procurar a casa de sua irmã Maria Marcos, mãe do futuro evangelista, que os recebeu com grande júbilo. Saulo sentiu-se bem no ambiente de fraternidade pura e simples. Barnabé, por sua vez, reconheceu que a casa da irmã se tornara o ponto predileto dos irmãos mais dedicados ao Evangelho. Ali se reuniam, à noite, às ocultas, como se a verdadeira igreja de Jerusalém houvesse transferido sua sede para um reduzido círculo familiar. Observando as assembléias íntimas do santuá­rio doméstico, o ex-rabino recordou a primeira reunião de Damasco. Tudo era afabilidade, carinho, acolhimento. A mãe de João Marcos era uma das discípulas mais de­sassombradas e generosas. Reconhecendo as dificuldades dos irmãos de Jerusalém, não vacilara em colocar seus bens à disposição de todos os necessitados, nem hesitou em abrir as portas para que as reuniões evangélicas, em sua feição mais pura, não sofressem solução de conti­nuidade.

A palestra de Saulo impressionou-a vivamente. Se­duziam-na, sobretudo, as descrições do ambiente fraternal da igreja antioquiana, cujas virtudes Barnabé não cessava de glosar instantemente.

Maria expôs ao irmão o seu grande sonho. Queria dar o filho, ainda muito jovem, a Jesus. De há muito vinha preparando o menino para o apostolado. Todavia, Jerusalém afogava-se em lutas religiosas, sem tréguas. As perseguições surgiam e ressurgiam. A organização cristã da cidade experimentava profundas alternativas. Só a paciência de Pedro conseguia manter a continuidade do ideal divino. Não seria melhor que João Marcos se transferisse para Antioquia, junto do tio? Barnabé não se opôs ao plano da irmã entusiasmada. O jovem, a seu turno, seguia as conversações, mostrando-se satisfeito. Chamado a opinar, Saulo percebeu que os irmãos delibe­ravam sem consultar o interessado. O rapaz acompa­nhava os projetos, sempre jovial e sorridente. Foi aí que o ex-doutor da Lei, profundo conhecedor da alma humana, desviou a palavra, procurando interessá-lo mais diretamente.

— João — disse bondosamente —, sentes, de fato, verdadeira vocação para o ministério?

— Sem dúvida! — confirmou o adolescente algo perturbado.

— Mas, como defines teus propósitos? — tornou a perguntar o ex-rabino.

— Penso que o ministério de Jesus é uma glória —respondeu um tanto acanhado sob o exame daquele olhar ardente e inquiridor.

Saulo refletiu um instante e sentenciou:

— Teus intuitos são louváveis, mas é preciso não esqueceres que a mínima expressão de glória mundana apenas chega após o serviço. Se assim acontece no mun­do, que não será com o trabalho para o reino do Cristo? Mesmo porque, na Terra, todas as glórias passam e a de Jesus é eterna!...

O jovem anotou a observação e, embora desconcer­tado pela profundez dos conceitos, acrescentou:

— Sinto-me preparado para os labores do Evange­lho e, além disso, mamãe faz muito gosto que eu aprenda os melhores ensinamentos nesse sentido, a fim de tornar-me um pregador das verdades de Deus.

Maria Marcos olhou o filho cheia de maternal orgu­lho. Saulo percebeu a situação, teve um dito alegre e depois acentuou:

— Sim, as mães sempre nos desejam todas as gló­rias deste e do outro mundo. Por elas, nunca haveria homens perversos. Mas, no que nos diz respeito, convém lembrar as tradições evangélicas. Ainda ontem, lembrei a generosa inquietação da esposa de Zebedeu, ansiosa pela glorificação dos filhinhos!... Jesus lhe recebeu os anseios maternais, mas, não deixou de lhe perguntar se os candidatos ao Reino estavam devidamente preparados para beber do seu cálice... E, ainda agora, vimos que o cálice reservado a Tiago continha vinagre tão amargo quanto o da cruz do Messias!...

Todos silenciaram, mas Saulo continuou em tom prazenteiro, modificando a impressão geral:

— Isto não quer dizer que devamos desanimar ante as dificuldades, para aliciar as glórias legítimas do Reino de Jesus, Os obstáculos renovam as forças. A finalidade divina deve representar nosso objetivo supremo. Se assim pensares, João, não duvido de teus futuros triunfos.

Mãe e filho sorriram tranqüilos.

Ali mesmo, combinaram a partida do jovem, em companhia de Barnabé. O tio discorreu ainda sobre as disciplinas indispensáveis, o espírito de sacrifício recla­mado pela nobre missão. Naturalmente, se Antioquia representava um ambiente de profunda paz, era também um núcleo de trabalhos ativos e constantes. João pre­cisaria esquecer qualquer expressão de esmorecimento, para entregar-se, de alma e corpo, ao serviço do Mestre, com absoluta compreensão dos deveres mais justos.

O rapaz não hesitou nos compromissos, sob o olhar amorável de sua mãe, que lhe buscava amparar as de­cisões com a coragem sincera do coração devotado a Jesus.

Dentro de poucos dias os três demandavam a for­mosa cidade do Orontes.

Enquanto João Marcos extasiava-se na contempla­ção das paisagens, Saulo e Barnabé entretinham-se em longas palestras, relativamente aos interesses gerais do Evangelho. O ex-rabino voltava sumamente impressio­nado com a situação da igreja de Jerusalém. Desejaria sinceramente ir até Jope, para avistar-se com Simão Pedro. No entanto, os irmãos dissuadiram-no de o fazer. As autoridades mantinham-se vigilantes. A morte do Apóstolo chegara a ser reclamada por vários membros do Sinédrio e do Templo. Qualquer movimento mais importante, no caminho de Jope, poderia dar azo à tirania dos prepostos herodianos.

Francamente — dizia Saulo a Barnabé, mostran­do-se apreensivo —, regresso de ânimo quase abatido aos nossos serviços de Antioquia. Jerusalém dá impres­são de profundo desmantelo e acentuada indiferença pelas lições do Cristo. As altas qualidades de Simão Pedro, na chefia do movimento, não me deixam dúvidas; mas pre­cisamos cerrar fileiras em torno dele. Mais que nunca me convenço da sublime realidade de que Jesus veio ao que era seu, mas não foi compreendido.

— Sim — obtemperava o ex-levita de Chipre, desejo­so de dissipar as apreensões do companheiro —, confio, antes de tudo, no Cristo; depois, espero muito de Pedro...

— Entretanto — insinuava o outro sem vacilar —, precisamos considerar que em tudo deve existir uma pauta de equilíbrio perfeito. Nada poderemos fazer sem o Mestre, mas não é lícito esquecer que Jesus instituiu no mundo uma obra eterna e, para iniciá-la, escolheu doze companheiros. Certo, estes nem sempre correspon­deram à expectativa do Senhor; contudo, não deixaram de ser os escolhidos. Assim, também precisamos exami­nar a situação de Pedro.

Ele é, sem contestação, o chefe legítimo do colégio apostólico, por seu espírito superior afinado com o pensamento do Cristo, em todas as cir­cunstâncias; mas, de modo algum poderá operar sozinho. Como sabemos, dos doze amigos de Jesus, quatro ficaram em Jerusalém, com residência fixa. João foi obrigado a retirar-se; Filipe compelido a abandonar a cidade, com a família; Tiago volta aos poucos para as comunidades farisaicas. Que será de Pedro se lhe faltar a cooperação devida?

Barnabé pareceu meditar seriamente.

— Tenho uma idéia que parece vir de mais alto —disse o ex-doutor da Lei sinceramente comovido.

E continuou:

— Suponho que o Cristianismo não atingirá seus fins, se esperarmos tão-só dos israelitas anquilosados no orgulho da Lei. Jesus afirmou que seus discípulos viriam do Oriente e do Ocidente. Nós, que pressentimos a tempestade, e eu, principalmente, que a conheço nos seus paroxismos, por haver desempenhado o papel de verdugo, precisamos atrair esses discípulos.

Quero dizer, Barnabé, que temos necessidade de buscar os gentios onde quer que se encontrem. Só assim reintegrar-se-áo movimento em função de universalidade.

O discípulo de Simão Pedro fez um movimento de espanto.

O ex-rabino percebeu o gesto de estranheza e pon­derou de modo conciso:

— É natural prever com isso muitos protestos e lutas enormes; no entanto, não consigo vislumbrar outros recursos. Não é justo esquecer os grandes serviços da igreja de Jerusalém aos pobres e necessitados, e creio mesmo que a assistência piedosa dos seus trabalhos tem sido, muitas vezes, sua tábua de salvação. Existem, po­rém, outros setores de atividade, outros horizontes essen­ciais. Poderemos atender a muitos doentes, ofertar um leito de repouso aos mais infelizes; mas sempre houve e haverá corpos enfermos e cansados, na Terra. Na tarefa cristã, semelhante esforço não poderá ser esque­cido, mas a iluminação do espírito deve estar em primeiro lugar. Se o homem trouxesse o Cristo no íntimo, o quadro das necessidades seria completamente modificado. A compreensão do Evangelho e da exemplificação do Mes­tre renovaria as noções de dor e sofrimento. O necessi­tado encontraria recursos no próprio esforço, o doente sentiria, na enfermidade mais longa, um escoadouro das imperfeições; ninguém seria mendigo, porque todos te­riam luz cristã para o auxílio mútuo, e, por fim, os obstáculos da vida seriam amados como corrigendas benditas de Pai amoroso a filhos inquietos.

Barnabé pareceu entusiasmar-se com a idéia. Mas, depois de pensar um minuto, acrescentou:

— Entretanto, esse empreendimento não deveria partir de Jerusalém?

— Penso que não — sentenciou Saulo, de pronto. —Seria absurdo agravar as preocupações de Pedro. Excede a tudo esse movimento de pessoas necessitadas e aba­tidas, convergentes de todas as províncias, a lhe baterem às portas. Simão está impossibilitado para o desdobra­mento dessa tarefa.

— Mas, e os outros companheiros? — inquiriu Bar­nabé revelando espírito de solidariedade.

- Os outros, certo, hão de protestar. Principal­mente agora, que o judaísmo vai absorvendo os esforços apostólicos, é justo prever muitos clamores. Contudo, a própria Natureza dá lições neste sentido. Não clama­mos tanto contra a dor? E quem nos traz maiores bene­fícios? Às vezes, nossa redenção está naquilo mesmo que antes nos parecia verdadeira calamidade. É indispensá­vel sacudir o marasmo da instituição de Jerusalém, cha­mando os incircuncisos, os pecadores, os que estejam fora da Lei. De outro modo, dentro de alguns poucos anos, Jesus será apresentado como aventureiro vulgar. Naturalmente, depois da morte de Simão, os adversários dos princípios ensinados pelo Mestre acharão grande facilidade em deturpar as anotações de Levi. A Boa Nova será aviltada e, se alguém perguntar pelo Cristo, daqui a cinqüenta anos, terá como resposta que o Mestre foi um criminoso comum, a expiar na cruz os desvios da vida. Restringir o Evangelho a Jerusalém será conde­ná-lo à extinção, no foco de tantos dissídios religiosos, sob a política mesquinha dos homens. Necessitamos levar a notícia de Jesus a outras gentes, ligar as zonas de entendimento cristão, abrir estradas novas...

Será mes­mo justo que também façamos anotações do que sabemos de Jesus e de sua divina exemplificação. Outros discípu­los, por exemplo, poderiam escrever o que viram e ouvi­ram, pois, com a prática, vou reconhecendo que Levi não anotou mais amplamente o que se sabe do Mestre. Há situações e fatos que não foram por ele registrados. Não conviria também que Pedro e João anotassem suas obser­vações mais íntimas? Não hesito em afirmar que os pósteros hão de rebuscar muitas vezes a tarefa que nos foi confiada.

Barnabé rejubilava-se com perspectivas tão seduto­ras. As advertências de Saulo eram mais que justas. Haveria que prestar informações amplas ao mundo.

— Tens razão — disse admirado —, precisamos pen­sar nesses serviços, mas como?

— Ora — esclareceu Saulo tentando aplainar as dificuldades —, se quiseres chefiar qualquer esforço neste sentido, podes contar com a minha cooperação incon­dicional. Nosso plano seria desenvolvido na organização de missões abnegadas, sem outro fito que servir, de forma absoluta, à difusão da Boa Nova do Cristo. Come­çaríamos, por exemplo, em regiões não de todo desconhecidas, formaríamos o hábito de ensinar as verdades evangélicas aos mais vários agrupamentos; em seguida, terminada essa experiência, demandaríamos outras zonas, levaríamos a lição do Mestre a outras gentes.

O companheiro ouvia-o, afagando sinceras esperan­ças. Tomado de novo ânimo, disse ao convertido de Da­masco, esboçando o primeiro número do programa:

— De há muito, Saulo, tenho necessidade de voltar à minha terra, a fim de resolver certos problemas de família. Quem sabe poderíamos iniciar o serviço apos­tólico através das aldeias e cidades de Chipre? Conforme o resultado, prosseguiríamos por outras zonas. Estou informado de que a região em que demora Antioquia da Pisídia é habitada por gente simples e generosa, e suponho que colheríamos belos resultados no empreen­dimento.

— Poderás contar comigo — respondeu Saulo de Tarso, resoluto. — A situação requer o concurso de ir­mãos corajosos e a igreja do Cristo não poderá vencer com o comodismo.

Comparo o Evangelho a um campo infinito, que o Senhor nos deu a cultivar. Alguns traba­lhadores devem ficar ao pé dos mananciais, velando-lhes a pureza, outros revolvem a terra em zonas determinadas; mas não há dispensar a cooperação dos que precisam empunhar instrumentos rudes, desfazer cipoais intensos, cortar espinheiros para ensolarar os caminhos.

Barnabé reconheceu a excelência do projeto, mas considerou:

— Todavia, temos ainda a examinar a questão do dinheiro. Tenho alguns recursos, mas insuficientes para atender a todas as despesas. Por outro lado, não seria possível sobrecarregar as igrejas...

— Absolutamente! — adiantou o ex-rabino — onde estacionarmos, poderei exercer o meu ofício. Por que não? Qualquer aldeia paupérrima tem sempre teares de alu­guel. Montarei, então, uma tenda móvel!

Barnabé achou graça no expediente e ponderou:

— Teus sacrifícios não serão pequenos. Não receias as dificuldades imprevisíveis?

— Por quê? — interrogou Saulo com firmeza.

Certo, se Deus não me permitiu a vida em família foi para que me dedicasse exclusivamente ao seu serviço. Por onde passarmos, montaremos a tenda singela - E onde não houver tapetes, a consertar e a tecer, haverá sandálias.

O discípulo de Simão Pedro entusiasmou-se. O resto da viagem foi dedicado aos projetos da futura excursão. Havia, entretanto, uma coisa a considerar. Além da necessidade de submeter o plano à aprovação da igreja de Antioquia, era indispensável pensar no jovem João Marcos. Barnabé procurou interessar o sobrinho nas conversações. Em breve, o rapaz convenceu-se de que deveria incorporar-se à missão, caso a assembléia antio­quiana não a desaprovasse. Interessou-se por todas as minúcias do programa tracejado. Seguiria o trabalho de Jesus, fosse onde fosse.

— E se houver muitos obstáculos? — perguntou Saulo avisadamente.

— Saberei vencê-los — respondeu João, convicto.

— Mas é possível venhamos a experimentar dificul­dades sem conta — continuava o ex-rabino preparando-lhe o espírito - Se o Cristo, que era sem pecado, encontrou uma cruz entre apodos e flagelos, quando ensinava as verdades de Deus, que não devemos esperar em nossa condição de almas frágeis e indigentes?

— Hei de encontrar as forças necessárias.

Saulo contemplou-o, admirado da firme resolução que suas palavras deixaram transparecer, e observou:

— Se deres um testemunho tão grande como a co­ragem que revelas, não tenho dúvidas quanto à grandeza de tua missão.

Entre confortadoras esperanças, o projeto terminou com formosas perspectivas de trabalho para os três.

Na primeira reunião, depois de relatar as observa­ções pessoais concernentes à igreja de Jerusalém, Bar­nabé expôs o plano à assembléia, que o ouviu atenta­mente. Alguns anciães falaram da lacuna que se abriria na igreja, expuseram o desejo de que se não quebrasse o conjunto harmonioso e fraternal. No entanto, o orador voltou a explicar as necessidades novas do Evangelho. Pintou os quadros de Jerusalém com a fidelidade possí­vel, fez a súmula de suas conversações com Saulo de Tarso e salientou a conveniência de chamar novos trabalhadores ao serviço do Mestre.

Quando tratou o problema com toda a gravidade que lhe era devida, os chefes da comunidade mudaram de atitude. Estabeleceu-se o acordo geral. De fato, a situa­ção explanada por Barnabé era muito séria. Seus parece­res veementes eram mais que justos. Se perseverasse o marasmo nas igrejas, o Cristianismo estava destinado a perecer. Ali mesmo, o discípulo de Simão recebeu a aquiescência irrestrita e, no instante das preces, a voz do Espírito Santo se fez ouvir no ambiente de simplici­dade pura, inculcando fossem Barnabé e Saulo desta­cados para a evangelização dos gentios.

Aquela recomendação superior, aquela voz que pro­vinha dos arcanos celestes, ecoou no coração do ex-rabino como um cântico de vitória espiritual. Sentia que acabava de atravessar imenso deserto para encontrar de novo a mensagem doce e eterna do Cristo. Por conquistar a dignidade espiritual, só experimentara padecimentos, des­de a cegueira dolorosa de Damasco.

Ansiara por Jesus. Tivera sede abrasadora e terrível. Pedira em vão a compreensão dos amigos, debalde buscara o terno acon­chego da família. Mas, agora, que a palavra mais alta o chamava ao serviço, deixava-se empolgar por júbilos infinitos. Era o sinal de que havia sido considerado digno dos esforços confiados aos discípulos. Refletindo como as dores passadas lhe pareciam pequeninas e infantis, comparadas à alegria imensa que lhe inundava a alma, Saulo de Tarso chorou copiosamente, - experimentando maravilhosas sensações. Nenhum dos irmãos presentes, nem mesmo Barnabé, poderia avaliar a grandiosidade dos sentimentos que aquelas lágrimas revelavam. To­mado de profunda emoção, o ex-doutor da Lei reconhecia que Jesus se dignava de aceitar suas oblatas de boa-vontade, suas lutas e sacrifícios. O Mestre chamava-o e, para responder ao apelo, iria aos confins do mundo.

Numerosos companheiros colaboraram nas providên­cias iniciais, em favor do empreendimento.

Dentro em pouco, cheios de confiança em Deus, Saulo e Barnabé, seguidos por João Marcos, despediam-se dos irmãos, a caminho de Selêucia. A viagem para o litoral decorreu em ambiente de muita alegria. De quan­do a quando, repousavam à margem do Oronte, para a merenda salutar. À sombra dos carvalhos, na paz dos bosques enfeitados de flores, os missionários comenta­ram as primeiras esperanças.

Em Selêucia não foi demorada a espera de embar­cação. A cidade estava sempre cheia de peregrinos que demandavam o Ocidente, sendo freqüentada por elevado número de navios de toda ordem. Entusiasmados com o acolhimento dos irmãos de fé, Barnabé e Saulo em­barcaram para Chipre, sob a impressão de comovente e carinhosa despedida.

Chegaram à ilha, com o jovem João Marcos, sem incidentes dignos de menção. Estacionados em Cítium por muitos dias, aí solucionou Barnabé vários assuntos de seu interesse familiar.

Antes de se retirarem, visitaram a sinagoga, num sábado, com o propósito de iniciar o movimento. Como chefe da missão, Barnabé tomou a palavra, procurou conjugar o texto da Lei, examinado naquele dia, às lições do Evangelho, para destacar a superioridade da missão do Cristo. Saulo notou que o companheiro ex­planava o assunto com respeito algo excessivo às tra­dições judaicas. Via-se claramente que desejava, antes de tudo, conquistar as simpatias do auditório; em alguns pontos, demonstrava o temor de encetar o trabalho, abrindo as lutas tão em desacordo com o seu tempera­mento. Os israelitas mostraram-se surpreendidos, mas satisfeitos. Observando o quadro, Saulo não se sentiu plenamente confortado. Fazer reparos a Barnabé seria ingratidão e indisciplina; concordar com o sorriso dos compatrícios perseverantes nos erros do fingimento fari­saico seria negar fidelidade ao Evangelho.

Procurou resignar-se e esperou.

A missão percorreu numerosas localidades, entre vibrações de largas simpatias. Em Amatonte, os men­sageiros da Boa Nova demoraram mais de uma semana. A palavra de Barnabé era profundamente contempori­zadora. Caracterizava-se, em tudo, pelo grande cuidado, de não ofender os melindres judaicos.

Depois de grandes esforços, chegaram a Nea-Pafos, onde residia o Procônsul. A sede do Governo provincial era uma formosa cidade cheia de encantos naturais e que se assinalava por sólidas expressões de cultura. O discípulo de Pedro, porém, estava exausto. Nunca tivera labores apostólicos tão intensos. Conhecendo a deficiên­cia do verbo de Saulo nos serviços da igreja de Antioquia, temia confiar ao ex-rabino as responsabilidades diretas do ensinamento.

Não obstante sentir-se cansadíssimo, fez a pregação na sinagoga, no sábado imediato à che­gada. Nesse dia, entretanto, ele estava divinamente ins­pirado. A apresentação do Evangelho foi feita com raro brilhantismo. O próprio Saulo comoveu-se profunda­mente. O êxito foi inexcedível. A segunda assembléia reuniu os elementos mais finos; judeus e romanos aglo­meravam-se ansiosos. O ex-levita fez nova apologia do Cristo, bordando conceitos de maravilhosa beleza espi­ritual. O ex-doutor da Lei, com os trabalhos informativos da missão, atendia prazerosamente a todas as consultas, pedidos, informações.

Nenhuma cidade manifestara ta­manho interesse, quanto aquela; os romanos, em grande número, iam solicitar esclarecimentos quanto aos obje­tivos dos mensageiros, recebiam notícias do Cristo, reve­lando júbilos e esperanças; desfaziam-se em gestos de espontânea bondade. Entusiasmados com o êxito, Saulo e Barnabé organizaram reuniões em casas particulares, especialmente cedidas para esse fim pelos simpatizantes da doutrina de Jesus, onde encetaram formoso movimento de curas. Com alegria infinita, o tecelão de Tarso viu chegar a extensa fileira dos “filhos do Calvário”. Eram mães atormentadas, doentes desiludidos, anciães sem ne­nhuma esperança, órfãos sofredores, que agora procura­vam a missão. A notícia das curas julgadas impossíveis encheu Nea-Pafos de grande assombro. Os missionários impunham as mãos, fazendo preces fervorosas ao Mes­sias Nazareno; de outras vezes, distribuiam água pura, em seu nome. Extremamente cansado e achando que o novo auditório não requeria maior erudição, Barnabé encarregou o companheiro das pregações da Boa Nova; mas, com grande surpresa, verificou que Saulo se modi­ficara radicalmente. Seu verbo parecia inflamado de nova luz; tirava do Evangelho ilações tão profundas que o ex-levita o escutava agora sem dissimular o próprio espanto. Notava, particularmente, o carinho do ex-doutor no apresentar os ensinamentos do Cristo aos mendigos e sofredores. Falava como alguém que houvesse convi­vido com o Senhor, por largos anos. Referia-se a certos lances das lições do Mestre com um manancial de lágri­mas nos olhos. Prodigiosas consolações derramavam-se no espírito das turbas. Dia e noite, havia operários e estudiosos copiando as anotações de Levi.

Os acontecimentos abalaram a opinião da cidade em peso. Os resultados eram os mais confortadores. Foi quando enorme surpresa chegou ao Espírito dos missio­nários.

A manhã ia alta. Saulo atendia a numerosos neces­sitados quando um legionário romano se fez anunciar.

Barnabé e o companheiro deixaram os serviços en­tregues a João Marcos e foram atender.

— O Procônsul Sérgio Paulo — disse o mensageiro, solene — manda convidar-vos a visitá-lo em palácio.

A mensagem era muito mais uma ordem que sim­ples convite. O discípulo de Simão compreendeu de pronto e respondeu:

— Agradecemos de coração e iremos ainda hoje.

O ex-rabino estava confuso. Não só o conteúdo político do fato surpreendia-o, sobremaneira. Em vão, procurava recordar-se de alguma coisa. Sérgio Paulo? Não conheceria alguém com esse nome? Buscou relem­brar os jovens de origem romana, do seu conhecimento. Afinal, veio-lhe à memória a palestra de Pedro sobre a personalidade de Estevão e concluiu que o Procônsul não podia ser outro senão o salvador do irmão de Abigail.

Sem comunicar as íntimas impressões a Barnabé, examinou a situação em sua companhia. Quais os obje­tivos da delicada íntimação? Segundo a voz pública, o chefe político vinha sofrendo pertinaz enfermidade. De­sejaria curar-se ou, quem sabe, provocar um meio de expulsá-los da ilha, induzido pelos judeus? A situação, entretanto, não se resolveria por conjeturas.

Incumbindo João Marcos de atender a quantos se interessassem pela doutrina, no referente a informes necessários, os dois amigos puseram-se a caminho, re­solutamente.

Conduzidos através de galerias extensas, foram dar com um homem relativamente moço, deitado em largo divã e deixando perceber extremo abatimento. Magro, pálido, revelando singular desencanto da vida, o Procônsul entremostrava, todavia, uma bondade imensa na suave irradiação do olhar humilde e melancólico.

Recebeu os missionários com muita simpatia, apre­sentando-lhes um mago judeu de nome Barjesus, que de longa data o vinha tratando. Sérgio Paulo, prudente­mente, mandou que os guardas e servos se retirassem. Apenas os quatro se viram a sós, em círculo muito íntimo, falou o enfermo com amarga serenidade:

— Senhores, diversos amigos me deram notícia dos vossos êxitos nesta cidade de Nea-Pafos. Tendes curado moléstias perigosas, devolvido a fé a inúmeros descrentes, consolado míseros sofredores... Há mais de um ano venho cuidando de minha saúde arruinada. Nestas con­dições, estou quase inutilizado para a vida pública.

Apontando Barjesus que, por sua vez, fixava o olhar malicioso nos visitantes, o chefe romano pros­seguiu:

— Há muito contratei os serviços deste vosso con­terrâneo, ansioso e confiante na ciência de nossa época, mas os resultados têm sido insignificantes. Mandei cha­mar-vos, desejoso de experimentar os vossos conhecimen­tos. Não estranheis minha atitude. Se pudesse, teria ido procurar-vos em pessoa, pois conheço o limite de minhas prerrogativas; como vedes, porém, sou antes de tudo um necessitado.

Saulo ouviu aquelas declarações, profundamente co­movido pela bondade natural do ilustre enfermo. Bar­nabé estava atônito, sem saber o que dizer. O ex-doutor da Lei, entretanto, senhor da situação e quase certo de que a personagem era a mesma que figurava na exis­tência do mártir vitorioso, tomou a palavra e disse convictamente:

— Nobre Procônsul, temos conosco, de fato, o poder de um grande médico. Podemos curar, quando os enfer­mos estejam dispostos a compreendê-lo e segui-lo.

— Mas quem é ele? — perguntou o enfermo.

— Chama-se Cristo Jesus. Sua fórmula é sagrada — continuava o tecelão, com ênfase — e destina-se a medicar, antes de tudo, a causa de todos os males. Como sabemos, todos os corpos da Terra terão de morrer. Assim, por força de leis naturais inelutàveis, jamais teremos, neste mundo, absoluta saúde física. Nosso orga­nismo sofre a ação de todos os processos ambientes. O calor incomoda, o frio nos faz tremer, a alimentação nos modifica, os atos da vida determinam a mudança dos hábitos. Mas o Salvador nos ensina a procurar uma saúde mais real e preciosa, que é a do espírito. Possuin­do-a, teremos transformado as causas de preocupação de nossa vida, e habilitamo-nos a gozar a relativa saúde física que o mundo pode oferecer nas suas expressões transitórias.

Enquanto Barjesus, irônico e sorridente, escutava o Intróito, Sérgio Paulo acompanhava a palavra do ex-ra­bino, atento e comovido:

— Contudo, como encontrar esse médico? — per­guntou o Procônsul, mais preocupado com a cura do que com o elevado sentido metafísico das observações ouvidas.

— Ele é a bondade perfeita — esclareceu Saulo de Tarso — e sua ação consoladora está em toda parte. Antes mesmo que o compreendamos, cerca-nos com a expressão do seu amor infinito!...

Observando o entusiasmo com que o missionário tarsense falava, o chefe político de Nea-Pafos buscou a aprovação de Barjesus com olhar indagador.

O mago judeu, evidenciando profundo desprezo, ex­clamou:

— Julgávamos que estivésseis aparelhados de algu­ma ciência nova... Não quero acreditar no que ouço. Acaso me supondes um ignorante, relativamente ao falso profeta de Nazaré? Ousais franquear o palácio de um governador, em nome de um miserável carpinteiro?

Saulo mediu toda a extensão daquelas ironias, res­pondendo sem se intimidar:

— Amigo, quando eu afivelava a máscara farisaica, também assim pensava; mas, agora, conheço a gloriosa luz do Mestre, o Filho do Deus Vivo!...

Essas palavras eram ditas num tom de convicção tão ardente que o próprio charlatão israelita se fizera lívido. Barnabé também empalidecera, enquanto o nobre patrício observava o ardoroso pregador com visível inte­resse. Depois de angustiosa expectativa, Sérgio Paulo voltou a dizer:

— Não tenho o direito de duvidar de ninguém, en­quanto as provas concludentes não me levem a fazê-lo.

E procurando fixar a fisionomia de Saulo, que lhe enfrentava o olhar perquiridor, serenamente continuou:

— Falais desse Cristo Jesus, enchendo-me de assom­bro. Alegais que sua bondade nos assiste antes mesmo de o conhecermos. Como obter uma prova concreta de vossa afirmativa?

Se não entendo o Messias de que sois mensageiros, como saber se sua assistência me influen­ciou algum dia?

Saulo lembrou repentinamente as palestras de Simão Pedro, ao lhe narrar os antecedentes do mártir do Cris­tianismo. Num instante alinhou os mínimos episódios. E valendo-se de todas as oportunidades para destacar o amor infinito de Jesus, como aconteceu nos menores fatos da sua carreira apostólica, sentenciou com singular entono:

— Procônsul, ouvi-me! Para revelar-vos, ou melhor,

a fim de lembrar-vos a misericórdia de Jesus de Nazaré,

o nosso Salvador, chamarei vossa atenção para um acon­tecimento importante.

Enquanto Barnabé manifestava profunda surpresa, em face da desassombrada atitude do companheiro, o político aguçava a curiosidade.

— Não é a primeira vez que experimentais uma grave enfermidade. Há quase dez anos, ao tentardes os primeiros passos na vida pública, embarcastes no porto de Cefalônia em demanda desta ilha. Viajáveis para Citium, mas, antes que o navio aportasse em Corinto, fostes acometido de febre terrível, o corpo aberto em feridas venenosas...

Brancura de cera estampava-se no semblante do chefe de Nea-Pafos. Colocando a mão no peito, como a conter as pulsações aceleradas do coração, ergueu-Se extremamente perturbado.

— Como sabeis tudo isso? — murmurou aterrado.

— Não é só — disse o missionário, sereno —, espe­rai o resto. Vários dias permanecestes entre a vida e a morte. Debalde os médicos de bordo comentaram vossa enfermidade. Vossos amigos fugiram. Quando fi­castes de todo abandonado, não obstante o prestígio político do vosso cargo, o Messias Nazareno vos mandou alguém, no silêncio de sua misericórdia divina.

O Procônsul, com o despertar das velhas reminis­cências, sentia-se profundamente comovido.

— Quem teria sido o mensageiro do Salvador? —prosseguia Saulo, enquanto Barnabé o contemplava com inaudito assombro. — Um de vossos íntimos? Um amigo eminente? Um dos colegas ilustres que presenciavam vossas dores? Não! Apenas um escravo humilde, um serviçal anônimo dos remos homicidas. Jeziel velou por vós, dia e noite! E o que a Ciência do mundo não con­seguiu fazer, fê-lo o coração empossado pelo amor do Cristo! Compreendeis agora? Vosso amigo Barjesus fala de um carpinteiro sem-nomes de um Messias que preferiu a condição da humildade suprema para nos trazer as torrentes preciosas de suas graças!...

Sim, Jesus tam­bém, como aquele escravo que vos restabeleceu a saúde perdida, fez-se servo do homem para conduzi-lo a uma vida melhor!... Quando todos nos abandonam, Ele está conosco; quando os amigos fogem, sua bondade mais se aproxima. Para forrarmo-nos das míseras contingén­cias desta vida mortal, é preciso crer nele e segui-lo sem descanso!...

Ante as lágrimas convulsivas do Procônsul, Barnabé, aturdido, considerava: Onde fora o companheiro colher tão profundas revelações? A seu ver, naquele instante, Saulo de Tarso estaria iluminado pelo dom maravilhoso das profecias.

— Senhores, tudo isso é a verdade pura! Trouxes­tes-me a santa notícia de um Salvador!... — exclamou Sérgio Paulo.

Reconhecendo a capitulação do generoso patrício que lhe recheava a bolsa de fartos recursos, o mago israelita, apesar de muito surpreso, exclamou com energia:

— Mentira!... São mentirosos! Tudo isso é obra de Satanás! Estes homens são portadores de sortilégios infames do “Caminho”! Abaixo a exploração vil!...

A boca lhe espumava, os olhos rebrilhavam de có­lera. Saulo mantinha-se calmo, impassível, quase sorri­dente. Depois, timbrando forte:

— Acalmai-vos, amigo! A fúria não é amiga da verdade e quase sempre esconde inconfessáveis interes­ses. Acusai-nos de mentirosos, mas nossas palavras não se desviaram uma linha da realidade dos acontecimen­tos. Alegais que nosso esforço procede de Satanás, no entanto, onde já se viu maior incoerência? Onde en­contraríamos um adversário trabalhando contra si mesmo? Afirmais que somos portadores de sortilégios; se o amor constitui esse talismã, nós o trazemos no coração, ansiosos por comunicar a todos os seres sua benéfica influência. Finalmente, lançais a nós outros a pecha de exploradores sagazes, quando aqui viemos chamados por alguém que nos honrou com sinceridade e confiança e, de modo algum, poderíamos oferecer as graças do Sal­vador a título mercatório.

Seguiu-se acalorada discussão: Barjesus fazia em­penho em demonstrar a inferioridade dos intuitos de Saulo, enquanto este se esforçava em timbrar nobreza e e cordialidade.

Embalde o Procônsul tentava dissuadir o judeu de continuar na requesta e naquele diapasão. Barnabé, por sua vez, confiando muito mais nos poderes espirituais do amigo, acompanhava o discrime sem ocultar admira­ção pelos infinitos recursos que o missionário tarsense estava revelando.

A polêmica já durava mais de hora, quando o mago fez uma alusão mais ferina à personalidade e feitos de Jesus-Cristo.

Em atitude mais enérgica, o Apóstolo sentenciou:

— Tudo fiz por convencer-vos sem demonstrações mais diretas, de maneira a não ferir a parte respeitável de vossas convicções; todavia, estais cego e é nessa con­dição que podereis enxergar a luz. Como vós, também já vivi em trevas e, no instante do meu encontro pessoal com o Messias, foi necessário que as trevas se aden­sassem em meu espírito, a fim de que a luz ressurgisse mais brilhante. Tereis igualmente esse benefício. A visão do corpo fechar-se-vos-á, para que possais divisar a ver­dade em espírito!.

Nesse comenos, Barjesus deu um grito.

— Estou cego!

Estabeleceu-se alguma confusão no recinto. Barnabé adiantou-se, amparando o israelita que tateava aflito. O tecelão e o governador aproximaram-se surpreendidos. Foram chamados alguns servos que atenderam as neces­sidades do momento, carinhosos e solícitos. Por quatro longas horas, Barjesus chorou, mergulhado na sombra espessa que lhe invadira os olhos cansados. Ao fim desse tempo, os missionários oraram de joelhos... Branda se­renidade estabeleceu-se no vasto aposento. Em seguida, Saulo impôs-lhe as mãos na fronte e, com um suspiro de alívio, o velho israelita recobrou a vista, retirando-se confuso e sucumbido.

O Procônsul, porém, vivamente interessado nos fatos intensos daquele dia, chamou os missionários em par­ticular e falou sensibilizado:

— Amigos, creio nas verdades divinas que anun­ciais e desejo sinceramente compartilhar do Reino espe­rado. Nada obstante, conviria inteirar-me dos vossos objetivos de trabalho, dos vossos planos enfim. Estou ciente de que não mercadejais os dons espirituais de que sois portadores, e proponho-me auxiliar-vos com os meus préstimos em tudo que me for possível.

Poderia saber os projetos que vos animam?

Os dois missionários entreolharam-se, surpresos. Bar­nabé ainda não havia saído do espanto que o companhei­ro lhe causara. Saulo, por sua vez, mal dissimulava o próprio assombro pelo auxílio espiritual que obtivera no afã de confundir os maliciosos intuitos de Barjesus.

Reconhecendo, contudo, o elevado e sincero inte­resse do chefe político da província, esclareceu com jubi­losos conceitos:

— O Salvador fundou a religião do amor e da ver­dade, instituição invisível e universal, onde se acolham todos os homens de boa-vontade. Nosso fim é dar feição visível à obra divina, estabelecendo templos que se irma­nem nos mesmos princípios, em seu nome.

Avaliamos a delicadeza de semelhante tentame e estamos crentes de que as maiores dificuldades vão surgir em nosso caminho. Ë quase impossível encontrar o cabedal humano indis­pensável ao cometimento; mas é forçoso movimentar o plano. Quando falhem os elementos da instituição visível, esperaremos na igreja infinita, onde, nas luzes da univer­salidade, Jesus será o chefe supremo de todas as forças que se consagrem ao bem.

— Trata-se de sublime iniciativa — aparteou o Procônsul evidenciando nobre interesse.

— Onde encetas­tes a construção dos santuários?

— Nossa missão está começando precisamente agora. Os discípulos do Messias fundaram as igrejas de Jeru­salém e Antioquia. Por enquanto, não temos outros núcleos educativos, além desses. Há muitos cristãos em toda parte, mas suas reuniões se fazem em domicílios particulares. Não possuem templos, propriamente, que os habilitem a mais eficiente esforço de assistência e propaganda.

— Nea-Pafos terá, então, a primeira igreja, filha do vosso trabalho direto.

Saulo não sabia como traduzir sua gratidão por aquele gesto de generosidade espontânea. Profundamente comovido, adiantou-se, então, e, com o cidadão cíprio, agradeceu a dádiva que vinha prestigiar e facilitar a obra apostolar.

Os três falaram ainda largo tempo sobre os em­preendimentos em perspectiva. Sérgio Paulo pediu-lhes indicassem as pessoas capazes de construir o novo tem­plo, enquanto Barnabé e o companheiro expunham suas eSperançaS.

Somente à noite os missionários puderam voltar àtenda humilde das pregações.

— Estou impressionado! — dizia Barnabé, recor­dando o ocorrido. — Que fizeste? Tenho para mim que hoje é o dia maior da tua existência. Tua palavra tinha um timbre sagrado e diferente; anima-te, agora, o dom das profecias... Além disso, o Mestre agraciou-te com o poder de dominar as idéias malignas. Viste como o charlatão sentiu a influência de energias poderosas quan­do fizeste o teu apelo?

Saulo ouviu atento e com a maior simplicidade acentuou:

— Também não sei como traduzir meu espanto pelas graças obtidas. Foi pelo Cristo que nos tornamos instru­mentos da conversão do Procônsul, pois a verdade é que de nós mesmos nada valemos.

— Nunca esquecerei os acontecimentos de hoje —tornou o ex-levita, admirado.

E depois de uma pausa:

— Saulo, quando Ananias te batizou não chegou a sugerir a mudança do teu nome?

— Não me lembrei disso.

— Pois suponho que, doravante, deves considerar tua vida como nova. Foste iluminado pela graça do Mestre, tiveste o teu Pentecostes, foste sagrado Após­tolo para os labores divinos da redenção.

O ex-doutor da Lei não dissimulou a própria admi­ração e concluiu:

— É muito significativo para mim que um chefe político seja atraído para Jesus, por nosso intermédio, mesmo porque, nossa tarefa conclama os gentios ao Sol divino do Evangelho de salvação.

Intimamente, recordou os laços sublimes que o liga­vam à memória de Estevão, a generosa influência do patrício romano que o libertara dos trabalhos duros da escravidão e, invocando a memória do mártir, num apelo silencioso, falou comovido:

— Sei, Barnabé, que muitos dos nossos companhei­ros trocaram de nome quando se converteram ao amor de Jesus; quiseram assinalar desse modo sua separação dos enganos fatais do mundo. Não quis valer-me do recurso, de qualquer modo. Mas a transformação do governador, a luz da graça que nos acompanhou no curso dos acontecimentos de hoje, levam-me, igualmente, a procurar um motivo de perenes lembranças.

Depois de longa pausa, dando a entender quanto refletira para tomar aquela resolução, falou:

— Razões íntimas, absolutamente respeitáveis, obri­gam-me a reconhecer, doravante, um benfeitor no chefe político desta ilha. Sem trocar formalmente meu nome passarei a assinar-me à romana.

— Muito bem — respondeu o companheiro —, entre Saulo e Paulo nenhuma diferença existe, a não ser a do hábito de grafia ou de pronúncia. A decisão será uma formosa homenagem ao nosso primeiro triunfo mis­sionário junto dos gentios, ao mesmo tempo que consti­tuirá agradável lembrança de um espírito tão generoso.

Nesse fato baseou-se a mudança de uma letra no nome do ex-discípulo de Gamaliel.

Caráter íntegro e enérgico, o rabino de Jerusalém, nem mesmo transfor­mado em modesto tecelão, quis modificar, portas a den­tro do Cristianismo, a sua fidelidade inata. Se servira a Moisés como Saulo, com o mesmo nome haveria de servir igualmente a Jesus-Cristo. Se errara e fora perverso, na primeira condição, aproveitaria a oportunidade dos Céus, corrigiria a existência e seria um homem bom e justo na segunda. Nesse particular, não chegou a considerar qualquer sugestão dos amigos. Fora o primeiro perseguidor da instituição cristã, verdugo inflexível do proselitismo alvorecente, mas fazia questão de continuar como Saulo, para lembrar-se de todo o mal e envidar esforços para fazer todo o bem ao seu alcance. Mas, naquele instante, a lembrança de Estevão falava-lhe brandamente ao coração. Ele fora o seu maior exemplo para a marcha espiritual. Era o Jeziel bem-amado de Abigail. Para procurá-lo, ambos se haviam prometido ir, sem vacilações, fosse aonde fosse. Os dois irmãos de Corinto estavam vivos, de tal modo, em sua alma sen­sível, que não era possível apagar na memória os míni­mos fatos de sua vida. A mão de Jesus o encaminhara ao Procônsul, o libertador de Jeziel dos grilhões do cativeiro; o ex-escravo demandara Jerusalém para tor­nar-se discípulo do Cristo! O ex-rabino sentia-se ditoso, por ter sido auxiliado pelas forças divinas, tornando-se por sua vez libertador de Sérgio Paulo, escravizado ao sofrimento e às ilusões perigosas do mundo. Era justo gravar na memória uma lembrança indelével daquele que, vítima dele em Jerusalém, era agora irmão abençoado, o qual não conseguia esquecer nos mais fugazes instantes da vida e do seu ministério.

Daí por diante o convertido de Damasco, em me­mória do inolvidável pregador do Evangelho, que su­cumbira a pedradas, passou a assinar-se Paulo, até ao fim de seus dias.

A notícia da cura e da conversão do Procônsul encheu Nea-Pafos de grande assombro.

Os missionários não mais tiveram descanso. Embora o protesto quase apagado dos israelitas, a comunidade cresceu extraordi­nariamente. Integrado nos bens da saude, o chefe pro­vincial forneceu o necessário à construção da igreja. O movimento era extraordinário. E os dois mensageiros do Evangelho não cessavam de render graças a Deus.

O triunfo cercava-os de profunda consideração, quan­do Paulo foi procurado por Barjesus que lhe solicitava uma palavra confidencial. O ex-rabino não hesitou. Era uma boa ocasião para provar ao velho israelita os seus propósitos generosos e sinceros. Recebeu-o, pois, com toda a afabilidade.

Barjesus parecia tomado de grande acanhamento. Após cumprimentar o missionário, atencioso, exprimiu-se com certo embaraço:

— Afinal, precisava desfazer o mal-entendido, no caso do Procônsul. Ninguém, mais do que eu, desejava tanto a saúde do enfermo, e, por conseguinte, ninguém mais agradecido à vossa intervenção, libertando-o de en­fermidade tão dolorosa.

— Sou muito grato ao vosso parecer e regozijo-me com a vossa compreensão — disse Paulo, com gentileza.

— Entretanto...

O visitante vacilava se devia ou não expor seus objetivos mais íntimos. Atento às reticências sem pre­sumir-lhes a causa, o ex-rabino adiantou-se benévolo.

— Que desejais dizer? Com franqueza. Nada de ce­rimônias!

— Acontece — retrucou mais animado — que venho afagando a idéia de consultar-vos a respeito dos vossos dons espirituais. Penso que não haverá maior tesouro para triunfar na vida...

Paulo estava confundido, sem saber que rumo toma­ria a conversação. Mas, focando o ponto mais delicado da pretensão, Barjesus continuou:

— Quanto ganhais no vosso ministério?

— Ganho a misericórdia de Deus — disse o missio­nário, compreendendo, então, todo o alcance daquela vi­sita inesperada —, vivo do meu trabalho de tecelagem e não seria lícito mercadejar com o que pertence ao Pai que está nos céus.

- É quase incrível! murmurou o mago arrega­lando os olhos. — Eu estava convicto de - que trazíeis convosco certos talismãs, que me dispunha a comprar por qualquer preço.

E enquanto o ex-rabino o contemplava cheio de co­miseração pela sua ignorância, o visitante prosseguiu:

- Mas, será crível que façais semelhantes obras sem contribuição de sortilégios?

O missionário fixou-o mais atento e murmurou:

— Só conheço um sortilégio eficiente.

— Qual é? — interrogou o mago de olhar faiscante e cobiçoso.

— É o da fé em Deus com sacrifício de nós mesmos.

O velho israelita demonstrou não entender toda a significação daquelas palavras, objetando:

— Sim, mas a vida tem suas necessidades urgentes. É indispensável prever e amealhar recursos.

Paulo pensou um minuto e disse:

— De mim mesmo, nada tenho com que vos escla­recer. Mas Deus tem sempre uma resposta para nossas preocupações mais simples. Consultemos suas eternas verdades.

Vejamos qual a mensagem destinada ao vosso coração.

Ia abrir o Evangelho, conforme seu costume, quan­do o visitante observou:

— Nada conheço desse livro. Para mim, portanto, não poderá trazer advertência alguma.

O missionário compreendeu a relutância e acentuou:

— Que conheceis então?

— Moisés e os Profetas.

Tomou do rolo de pergaminhos onde se podia ler a Lei Mitiga e o deu ao velho malicioso, para que o abrisse em alguma sentença, ao acaso, segundo os hábitos da época. No entanto Barjesus, com evidente má-vontade, acrescentou:

— Só leio os Profetas, de joelhos.

— Podeis ler como quiserdes, porque o ato de com­preender é o que nos interessa, antes de tudo.

Assinalando suas presunções farisaicas, o charlatão ajoelhou-se e abriu solenemente o texto, sob o olhar se­reno e perquiridor do ex-rabino. O velho israelita fez-se pálido. Esboçou um gesto para se abstrair da leitura; mas Paulo percebeu o movimento sutil e, aproximando-se, falou com alguma veemência:

— Leiamos a mensagem permanente dos emissários de Deus.

Tratava-se de um fragmento dos Provérbios, que Barjesus pronunciou em voz alta, com enorme desapon­tamento:

“Duas coisas te pedi; não mas negues, antes que eu morra. Afasta de mim as vaidades e as mentiras. Não me dês a pobreza, nem a riqueza. Concede-me apenas o alimento de que necessito, para não acontecer que, estando farto, eu te negue e pergunte: - Quem é Jeová? — ou que, estando pobre, me ponha a furtar e profane o nome de meu Deus.” (1)

O mago levantou-se atarantado, O próprio missio­nário estava surpreso.

— Vistes, amigo? — interrogou Paulo — a palavra da verdade é muito eloqüente. Será grande talismã, na existência, o sabermos viver com os nossos próprios recursos, sem exorbitar do necessário ao nosso enrique­cimento espiritual.

— Efetivamente — respondeu o charlatão — este processo de consultas é muito interessante. Vou meditar seriamente na experiência de hoje.

Logo em seguida se despedia, depois de mastigar alguns monossílabos que mal disfarçavam a perturbação que todo o empolgara.

Impressionado, o tecelão consagrado ao Cristo ano­tou as profundas exortações, para consolidar o seu pro­grama de atividades espirituais, isento de interesses in­feriores.

A missão permaneceu em Nea-Pafos ainda alguns dias, sobrecarregada de muito trabalho. João Marcos colaborava com os recursos ao seu alcance; todavia, de vez em quando, Barnabé surpreendia-o entristecido e queixoso. Não esperava encontrar tão vultosa cota de trabalho.

(1) Provérbios, capítulo 30º, versículos de 7 a 9

- Mas, assim é melhor — acentuava Paulo —‘ o serviço do bem é a muralha defensiva das tentações.

O rapaz conformava-se; contudo, sua contrariedade era evidente.

Além disso, fiel observador do judaísmo, não obstan­te a paixão pelo Evangelho, o filho de Maria Marcos sentia grandes escrúpulos, com a largueza de vistas do tio e do missionário, relativamente aos gentios. Desejava servir a Jesus, sim, de todo o coração, mas não podia distanciar o Mestre das tradições do berço.

Enquanto as sementes lançadas em Chipre começa­vam a germinar na terra dos corações, os trabalhadores do Messias abandonavam Nea-Pafos, absorvidos em vas­tas esperanças.

Depois de muito confabularem, Paulo e Barnabé re­solveram estender a missão aos povos da Panfília, com grande escândalo para João Marcos, que se admirava de semelhante alvitre.

— Mas que fazermos com essa gente tão estranha?

— Perguntou o rapaz contrariado. — Sabemos, em Jeru­salém, que esse país é povoado por criaturas supina­mente ignorantes. E, ao demais, que ali existem ladrões por toda parte.

— No entanto — obtemperou Paulo, convicto —, penso que devemos procurar a região, justamente por isso. Para outros, uma viagem a Alexandria pode ofere­cer maior interesse; mas todos esses grandes centros estão cheios de mestres da palavra. Possuem sinagogas importantes, conhecimentos elevados, grandes expoentes de ciência e riqueza. Se não servem a Deus é por má-vontade ou endurecimento de coração. A Panfília, ao contrário, é muito pobre, rudimentar e carecente de luz espiritual. Antes de ensinar em Jerusalém, o Mestre preferiu manifestar-se em Cafarnaum e noutras aldeias quase anônimas, da Galiléia.

Ante o argumento irretorquível, João absteve-se de insistir.

Dentro de poucos dias, singela embarcação deixa­va-os em Atália, onde Paulo e Barnabé encontraram sin­gular encanto nas paisagens que circundavam o Cestro.

Nessa localidade muito pobre, pregaram a Boa Nova ao ar livre, com êxito imenso.

Observando no compa­nheiro um traço superior, Barnabé como que entregara a chefia do movimento ao ex-rabino, cuja palavra, então, sabia despertar encantadores arrebatamentos, O povo simples acolheu a pregação de Paulo, com profundo inte­resse. Ele falava de Jesus, como de um príncipe celestial, que visitara o mundo e fora esperar os súditos amados na esfera da glorificação espiritual. Via-se a atenção que os habitantes de Atália dispensaram ao assunto. Alguns pediram cópias das lições do Evangelho, outros procuravam obsequiar os mensageiros do Mestre com o que possuíam de melhor. Muito comovidos, recebiam as carinhosas dádivas dos novos amigos, que, quase sem­pre, se constituíam em pratos de pão, laranjas ou peixe.

A permanência na localidade trouxera novos pro­blemas. Era indispensável alguma atividade culinária. Barnabé, delicadamente, designou o sobrinho para o mis­ter, mas o rapaz não conseguia disfarçar a contrariedade. Notando-lhe o constrangimento, Paulo adiantou-se, pres­suroso:

— Não nos impressionemos com os problemas na­turais. Procuremos restringir, doravante, as necessida­des e gostos alimentares. Comeremos apenas pão, frutas, mel e peixe.

Destarte, o trabalho de cozinha ficará sim­plificado e reduzido à preparação dos peixes assados, no que tenho grande prática, desde o meu retiro lá no Tauro. Que João não se amofine com o problema, pois é justo que essa parte fique a meu cargo.

Não obstante a atitude generosa de Paulo, o rapaz continuou acabrunhado.

Em breve a missão alugava um barco, largando-se para Perge. Nesta cidade, de regular importância para a região em que se localizava, anunciaram o Evangelho com imensa dedicação. Na pequena sinagoga, encheram o sábado de grande movimento. Alguns judeus e nume­rosos gentios na maioria gente pobre e simples, acolhe­ram os missionários, cheios de júbilo. As notícias do Cristo despertaram singular curiosidade e encantamento. O modesto pardieiro, alugado por Barnabé, ficava reple­to de criaturas ansiosas por obter cópia das anotações de Levi. Paulo regozijava-se. Experimentava alegria in­definível ao contacto daqueles corações humildes e sim­ples, que lhe davam ao espírito cansado de casuística a doce impressão de virgindade espiritual. Alguns inda­gavam da posição de Jesus na hierarquia dos deuses do paganismo; outros desejavam saber a razão por que haviam crucificado o Messias, sem consideração aos seus elevados títulos, como Mensageiro do Eterno. A região estava cheia de superstições e crendices. A cultura ju­daica restringia-se ao ambiente fechado das sinagogas. A missão, não obstante consagrar seu maior esforço aos israelitas, pregando no círculo dos que seguiam a Lei de Moisés, interessara as camadas mais obscuras do povo, em razão das curas e do convite amoroso ao Evangelho, movimento esse no qual os trabalhadores de Jesus pu­nham todo o seu empenho.

Plenamente satisfeitos, Paulo e Barnabé resolveram seguir dali mesmo para Antioquia de Pisídia. Informado a esse respeito, João Marcos não conseguiu sopitar os íntimos receios, por mais tempo, e perguntou:

— Supunha que não iríamos além da Panfília. Como, pois, chegar até Antioquia? Não temos recursos para atravessar tamanhos precipícios. As florestas estão in­festadas de bandidos, o rio encachoeirado não faculta o trânsito de barcas. E as noites? Como dormir?

Essa viagem não se pode tentar sem animais e servos, coisa que não temos.

Paulo refletiu um minuto e exclamou:

— Ora, João, quando trabalhamos para alguém, de­vemos fazê-lo com amor. Julgo que anunciar o Cristo àqueles que não o conhecem, em vista de suas numerosas dificuldades naturais, representa uma glória para nós. O espírito de serviço nunca atira a parte mais difícil para os outros. O Mestre não transferiu sua cruz aos companheiros. Em nosso caso, se tivéssemos muitos escravos e cavalos, não seriam eles os carregadores das responsabilidades mais pesadas, no que se refere às ques­tões propriamente materiais? O trabalho de Jesus, entretanto, é tão grande aos nossos olhos que devemos disputar aos outros qualquer parte de sua execução, em benefício próprio.

O rapaz pareceu mais angustiado. A energia de Paulo era desconcertante.

— Mas não seria mais prudente — continuou muito pálido — demandarmos Alexandria e organizar pelo menos alguns recursos mais fáceis?

Enquanto Barnabé acompanhava o diálogo com a serenidade que lhe era peculiar, o ex-rabino continuou:

— Dás demasiada importância aos obstáculos. Já pensaste nas dificuldades que o Senhor certamente ven­ceu para vir ter conosco? Ainda que pudesse atravessar livremente os abismos espirituais para chegar ao nosso círculo de perversidade e ignorância, temos de considerar a muralha de lodo de nossas viscerais misérias... E tu te espantas apenas com os palmos de caminho que nos separam da Pisídia?

O jovem calou-se, evidentemente contrariado. A argumentação era forte demais, a seus olhos, e não lhe ensejava qualquer nova objeção.

Á noite, Barnabé, visivelmente preocupado, aproxi­mou-se do companheiro, expondo-lhe as intenções do so­brinho. O rapaz resolvera regressar a Jerusalém, de qualquer modo. Paulo ouviu calmamente as explicações, como quem não podia opor qualquer embargo à decisão.

— Não poderíamos acompanhá-lo, pelo menos, até algum ponto mais próximo do destino? — perguntou o ex-levita de Chipre, como tio solícito.

— Destino? — perguntou Paulo admirado. — Mas já temos o nosso. Desde o primeiro entendimento, pla­nejamos a excursão a Antioquia. Não posso impedir que faças companhia ao rapaz; por mim, contudo, não devo modificar o roteiro traçado. Caso resolvas re­gressar, seguirei sozinho. Julgo que as empresas de Jesus têm seu momento justo de atuação. Ë preciso aproveitá-lo. Se deixarmos a visita à Pisídia para o mês próximo, talvez seja tarde.

Barnabé refletiu alguns minutos, retrucando con­victamente:

— Tua observação é incontestável. Não posso que­brar os compromissos. Além do mais, João está homem e poderá voltar só. Tem o dinheiro indispensável a esse fim, em virtude dos cuidados maternos.

— O dinheiro quando não bem aproveitado — re­matou Paulo tranqüilamente — sempre dissolve os laços e as responsabilidades mais santas.

A conversação terminou, enquanto Barnabé voltava a aconselhar o sobrinho, altamente impressionado.

Daí a dois dias, antes de tomar a barca que o levaria à foz do Cestro, o filho de Maria Marcos despedia-se do ex-doutor de Jerusalém com um sorriso contrafeito.

Paulo abraçou-o sem alegria e falou em tom de se­rena advertência:

— Deus te abençoe e te proteja. Não te esqueças de que a marcha para o Cristo é feita igualmente por fileiras. Todos devemos chegar bem; entretanto, os que se desgarram têm de chegar bem por conta própria.

— Sim — disse o jovem envergonhado —, pro­curarei trabalhar e servir a Deus, de toda a minha alma.

— Fazes bem e cumprirás teu dever assim proce­dendo — exclamou o ex-rabino convicto.

— Lembra sem­pre que David, enquanto esteve ocupado, foi fiel ao Todo-Poderoso, mas, quando descansou, entregou-se ao adul­tério; Salomão, durante os serviços pesados da construção do Templo, foi puro na fé, mas, quando chegou ao repouso, foi vencido pela devassidão; Judas começou bem e foi discípulo direto do Senhor, mas bastou a im­pressão da triunfal entrada do Mestre em Jerusalém para que cedesse à traição e à morte. Com tantos exem­plos expostos aos nossos olhos, será útil não venhamos nunca a descansar.

O sobrinho de Barnabé partiu, sinceramente tocado por essas palavras, que o seguiriam, de futuro, como apelo constante.

Logo após o incidente, os dois missionários deman­daram as estradas impérvias. Pela primeira vez, foram obrigados a pernoitar ao relento, no seio da Natureza. Vencendo precipícios, encontraram uma gruta rochosa na qual se ocultaram, para repousar o corpo mortificado e dorido. O segundo dia da marcha escoou-se-lhes com a coragem indômita de sempre. A alimentação constituía-se de alguns pães trazidos de Perge e frutas silvestres, colhidas ali e acolá. Resolutos e bem-humorados, enfren­tavam e venciam todos os óbices. De quando em vez, era indispensável ganhar a outra margem do rio, ao toparem barreiras intransponíveis. Ei-los então apalpando o álveo das torrentes, cautelosos, com longas varas verdes, ou desbravando os caminhos perigosos e ignorados.

A solidão lhes sugeria belos pensamentos. Sagrado otimismo extravasava dos menores conceitos. Ambos afagavam carinhosas lembranças do passado afetivo e esperançoso. Como homens experimentavam todas as necessidades humanas, mas era profundamente comovedora a fidelidade com que se entregavam ao Cristo, con­fiando ao seu amor a realização dos santificados desejos de uma vida mais alta.

Na segunda noite acomodaram-se em pequena ca­verna, algo distante do trilho estreito, logo após os derradeiros tons do crepúsculo. Depois de frugalíssima refeição, passaram a comentar animadamente os feitos da igreja de Jerusalém. Noite fechada e ainda suas vozes quebravam o grande silêncio. Desdobrando os assuntos, passaram a falar das excelências do Evangelho, exaltando a grandeza da missão de Jesus-Cristo.

— Se os homens soubessem... — dizia Barnabé fa­zendo comparações.

— Todos se reuniriam em torno do Senhor e descan­sariam — rematava Paulo cheio de convicção.

— Ele é o Príncipe que reinará sobre todos.

— Ninguém trouxe a este mundo riqueza maior.

— Ah! comentava o discípulo de Simão Pedro — o tesouro de que foi mensageiro engrandecerá a Terra para sempre.

E assim prosseguiam, valendo-se de preciosas ima­gens da vida comum para simbolizar os bens eternos, quando singular movimento lhes despertou atenção. Dois homens armados precipitaram-se sobre ambos, à fraca luz de uma tocha acesa em resinas.

— A bolsa! — gritou um dos malfeitores.

Barnabé empalideceu ligeiramente, mas Paulo estava sereno e impassível.

— Entreguem o que têm ou morrem — exclamou o outro bandido, alçando o punhal.

Olhando fixamente o companheiro, o ex-rabino or­denou:

— Dá-lhes o dinheiro que resta, Deus suprirá nos­sas necessidades de outro modo.

Barnabé esvaziou a bolsa que trazia entre as dobras da túnica, enquanto os malfeitores recolhiam, ávidos, a pequena quantia.

Reparando nos pergaminhos do Evangelho que os missionários consultavam à luz da tocha improvisada, um dos ladrões interrogou desconfiado e irônico:

— Que documentos são esses? Faláveis de um prín­cipe opulento... Ouvimos referências a um tesouro... Que significa tudo isso?

Com admirável presença de espírito, Paulo explicou:

— Sim, de fato estes pergaminhos são o roteiro do imenso tesouro que nos trouxe o Cristo Jesus, que há de reinar sobre os príncipes da Terra.

Um dos bandidos, grandemente interessado, exami­nou o rolo das anotações de Levi.

— Quem encontrar esse tesouro — prosseguia Paulo, resoluto —, nunca mais sentirá necessidades.

Os ladrões guardaram o Evangelho cuidadosamente.

— Agradecei a Deus não vos tirarmos a vida — disse um deles.

E apagando a tocha bruxuleante, desapareceram na escuridão da noite. Quando se viram a sós, Barnabé não conseguiu dissimular o assombro.

— E agora? — perguntou com voz trêmula.

— A missão continua bem — glosou Paulo cheio de bom ânimo —, não contávamos com a excelente opor­tunidade de transmitir a Boa Nova aos ladrões.

O discípulo de Pedro, admirando-se de tamanha se­renidade, voltou a dizer:

— Mas, levaram-nos, também, os derradeiros pães de cevada, bem como as capas...

— Haverá sempre alguma fruta na estrada — es­clarecia Paulo, decidido — e, quanto às coberturas, não tenhamos maior cuidado, pois não nos faltará o musgo das árvores.

E, desejoso de tranqüilizar o companheiro, acres­centava:

— De fato, não temos mais dinheiro, mas julgo não será difícil conseguir trabalho com os tapeceiros de Antioquia de Pisídia. Além disso, a região está muito distante dos grandes centros e posso levar certas novi­dades aos colegas do ofício. Esta circunstância será van­tajosa para nós.

Depois de tecerem esperanças novas, dormiram ao relento, sonhando com as alegrias do Reino de Deus.

No dia seguinte, Barnabé continuava preocupado. Interpelado pelo companheiro, confessou compungido:

— Estou resignado com a carência absoluta de re­cursos materiais, mas não posso esquecer que nos sub­trairam também as anotações evangélicas que possuía­mos. Como recomeçar nossa tarefa? Se temos de cor grande parte dos ensinamentos, não poderemos conferir todas as expressões...

Paulo, todavia, fez um gesto significativo e, desa­botoando a túnica, retirou alguma coisa que guardava junto do coração.

— Enganas-te, Barnabé — disse com um sorriso otimista —, tenho aqui o Evangelho que me recorda a bondade de Gamaliel. Foi um presente de Simão Pedro ao meu velho mentor, que, por sua vez, mo deu pouco antes de morrer.

O missionário de Chipre apertou nas mãos o tesouro do Cristo. O júbilo voltou a iluminar-lhe o coração. Poderiam dispensar todo o conforto do mundo, mas a palavra de Jesus era imprescindível. Vencendo obstá­culos de toda sorte, chegaram a Antioquia fundamente abatidos. Paulo, principalmente, a determinados momen­tos da noite, sentia-se cansado e febril. Barnabé tinha freqüentes acessos de tosse. O primeiro contacto com a natureza hostil acarretara aos dois mensageiros do Evangelho fortes desequilíbrios orgânicos.

Não obstante a precária saúde, o tecelão de Tarso procurou informar-se, logo na manhã da chegada, sobre as tendas de artefatos de couro existentes na cidade.

Antioquia de Pisídia contava grande número de is­raelitas. Seu movimento comercial era mais que regular, As vias públicas ostentavam lojas bem sortidas e peque­nas indústrias variadas.

Confiando na Providência Divina, alugaram um quar­to muito simples, e, enquanto Barnabé repousava da fa­diga extrema, Paulo procurou uma das tendas indicadas por um negociante de frutas.

Um judeu de bom aspecto, cercado de três auxilia­res, entre numerosas prateleiras com sandálias, tapetes e outras utilidades numerosas, atinentes à sua profissão, dirigia extensa banca de serviço. Ciente do seu nome, dado o interesse de sua indagação junto ao comerciante referido, o ex-doutor de Jerusalém chamou pelo senhor Ibraim, sendo atendido com enorme curiosidade.

— Amigo — explicou Paulo, sem rodeios —, sou vosso colega de ofício e, premido por necessidades urgen­tes, venho solicitar-vos o imenso obséquio de admitir-me nas atividades da vossa tenda. Tenho de fazer longa viagem e, não possuindo recurso algum, apelo para vossa generosidade, esperando favorável acolhimento.

O tapeceiro contemplava-o com simpatia, mas, um tanto desconfiado. Espantava-se e agradava-se, simul­taneamente, da sua franqueza e desembaraço. Depois de refletir algum tempo, respondeu algo vagamente:

— Nosso trabalho é muito escasso e, para usar de sinceridade, não disponho de capital para remunerar a muitos empregados. Nem todos compram sandálias; os arreamentos de tropa ficam à espera das caravanas que somente passam de tempos a tempos; poucos tapetes ven­demos, e se não fossem os tecidos de couro para tendas improvisadas, suponho que não teríamos o necessário para manter o negócio. Como vedes, não seria fácil arranjar-vos trabalho.

— Entretanto — tornou o ex-rabino, comovido com a sinceridade do interlocutor —, ouso insistir no pedido. Será tão-só por alguns dias... Além do mais, ficaria satisfeito em trabalhar a troco de pão e teto, para mim e um companheiro enfermo.

O bondoso Ibraim sensibilizou-se com aquela con­fissão. Depois de uma pausa longa, em que o tapeceiro de Antioquia ainda hesitava entre o “sim” e o “não”, Paulo rematou:

— Tão grande é a minha necessidade que insisto convosco, em nome de Deus.

— Entrai — disse o negociante, vencido pela argu­mentação.

Embora doente, o emissário do Cristo atirou-se ao trabalho com afã. Um velho tear foi instalado apressa­damente, junto à banca cheia de facas, martelos e peças de couro.

Paulo entrou a trabalhar, tendo um olhar amigo e uma boa palavra para cada companheiro. Longe de se impor pelos conhecimentos superiores que possuía, obser­vava o sistema de trabalho dos auxiliares de Ibraim e sugeria novas providências favoráveis ao serviço, com bondade, sem afetação.

Comovido pelas suas declarações sinceras, o dono da casa mandou a refeição a Barnabé, enquanto o ex-rabino vencia galhardamente as primeiras dificuldades, experimentando o júbilo de um grande triunfo.

Naquela noite, junto do companheiro de lutas, ele­vou a Jesus a prece do mais entranhado agradecimento. Ambos comentaram a nova situação. Tudo ia bem, mas era necessário pensar no dinheiro indispensável, com que atender ao aluguel do quarto.

Edificado na exemplificação do amigo, agora era Barnabé que procurava confortá-lo:

— Não importa, Jesus levará em conta a nossa boa-vontade, não nos deixará ao desamparo.

No dia seguinte, quando Paulo regressou da oficina, teve de esperar o companheiro, com alguma ansiedade. O mensageiro de Ibraím, que levara a refeição de Bar­nabé, não o havia encontrado. Após alguma inquietação, o ex-rabino abriu-lhe a porta com inexcedível surpresa. O discípulo de Pedro parecia extremamente abatido, mas profunda alegria lhe transbordava do olhar. Explicou que também ele conseguira trabalho remunerador. Em­pregara-se com um oleiro necessitado de operários para aproveitar o bom tempo. Abraçaram-se comovidos. Se houvessem alcançado o domínio do mundo, com a for­tuna fácil, não experimentariam tanto júbilo. Pequena fração de serviço honesto lhes bastava ao coração ilu­minado por Jesus-Cristo.

No primeiro sábado de permanência em Antioquia, os arautos do Evangelho dirigiram-se à sinagoga local. Ibraim, satisfeitíssimo com a cooperação do novo em­pregado, dera-lhe duas túnicas usadas, que Paulo e Bar­nabé envergaram com alegria.

Toda a população “temente a Deus” comprimia-se no recinto. Sentaram-se os dois no local reservado aos visi­tantes ou desconhecidos. Terminado o estudo e comentá­rios da Lei e dos Profetas, o diretor dos serviços religiosos perguntou-lhes, em voz alta, se desejariam dizer algumas palavras aos presentes.

De pronto, Paulo levantou-se e aceitou o convite. Dirigiu-se à modesta tribuna em atitude nobre e começou a discorrer sobre a Lei, tomado de eloqüência sublime. O auditório, não afeito a raciocínios tão altos, seguia-lhe a palavra fluente como se houvera encontrado um profeta autêntico, a espalhar maravilhas. Os israelitas não cabiam em si de contentes. Quem era aquele homem de quem se poderia orgulhar o próprio Templo de Jeru­salém? Em dado momento, contudo, as palavras do orador passaram a ser quase incompreensíveis para todos.

Seu verbo sublime anunciava um Messias que já viera ao mundo. Alguns judeus aguçaram os ouvidos. Tratava-se do Cristo Jesus, por intermédio de quem as criaturas deveriam esperar a graça e a verdade da salvação. O ex-doutor observou que numerosas fisionomias mostra­vam-se contrariadas, mas a maioria escutava-o com inde­finível vibração de simpatia. A relação dos feitos de Jesus, sua exemplificação divina, a morte na cruz, arran­cavam lágrimas do auditório. O próprio chefe da sinagoga estava profundamente surpreendido...

Terminada a longa oração, o novo missionário foi abraçado por grande número de assistentes. Ibraim, que acabava de conhecê-lo sob novo aspecto, cumprimentou-o radiante.

Eustáquio, o oleiro que dera trabalho a Bar­nabé, aproximou-se para as saudações, altamente sensi­bilizado. Os descontentes, no entanto, não faltaram. O êxito de Paulo contrariou o espírito fariseu da assembléia.

No dia imediato, Antioquia de Pisídia estava em­polgada pelo assunto. A tenda de Ibraim e a olaria de Eustáquio foram locais de grandes discussões e enten­dimentos. Paulo falou, então, das curas que se poderiam fazer em nome do Mestre. Uma velha tia do seu patrão foi curada de enfermidade pertinaz, com a simples impo­sição das mãos e as preces ao Cristo. Dois filhinhos do oleiro restabeleceram-se com a intervenção de Barnabé. Os dois emissários do Evangelho ganharam logo muito conceito. A gente simples vinha solicitar-lhes orações, cópias dos ensinos de Jesus, enquanto muitos enfermos se restabeleciam. Se o bem estava crescendo, a animosi­dade contra eles também crescia, da parte dos mais altamente colocados na cidade. Iniciou-se o movimento contrário ao Cristo. Não obstante a continuidade das pregações de Paulo, aumentava, entre os israelitas pode­rosos, a perseguição, o apodo e a ironia. Os mensageiros da Boa Nova, entretanto, não desanimaram. Conforta­dos pelos mais sinceros, fundaram a igreja na casa de Ibraim. Quando tudo ia bem, eis que o ex-rabino, ainda em conseqüência das vicissitudes experimentadas na tra­vessia dos pântanos da Panfília, cai gravemente enfermo, preocupando a todos os irmãos. Durante um mês, esteve sob a influência maligna de uma febre devoradora. Barnabé e os novos amigos foram inexcedíveis em cuidados.

Explorando o incidente, os inimigos do Evangelho puseram-se em campo, ironizando a situação. Havia mais de três meses que os dois anunciavam o novo Reino, reformavam as noções religiosas do povo, curavam as moléstias mais pertinazes e, por que motivo o poderoso pregador não se curava a si mesmo? Fervilhavam, assim, os ditos mordazes e os conceitos deprimentes.

Os confrades, entretanto, foram de uma dedicação sem limites. Paulo foi tratado com extremos de ternura, no lar de Ibraim, como se houvesse encontrado um novo lar.

Após a convalescença, o desassombrado tecelão vol­tou mais alvissareiro à pregação das verdades novas.

Observando-lhe a coragem, os elementos judaicos, ralados de despeito, tramaram sua expulsão sem qual­quer condescendência. Por vários meses o ex-doutor de Jerusalém lutou contra os golpes do farisaísmo domi­nante na cidade, mantendo-se superior a calúnias e insul­tos. Mas, quando revelava seu poder de resolução e fir­meza de ânimo, eis que os israelitas descontentes ameaçam Ibraim e Eustáquio com a supressão de regalias e bani­mento. Os dois antigos habitantes de Antioquia de Pisídia eram acusados como partidários da revolução e da desor­dem. Altamente comovidos, receberam a notificação de que somente a retirada de Paulo e Barnabé poderia sal­vá-los do cárcere e da flagelação.

Os missionários de Jesus consideram a penosa situa­ção dos amigos e resolvem partir. Ibraim tem os olhos rasos de lágrimas. Eustáquio não consegue esconder o abatimento. Ante as interrogações de Barnabé, o ex-ra­bino expõe o plano das atividades futuras. Demandariam Icônio. Pregariam ali as verdades de Deus. O discípulo de Simão Pedro aprova sem hesitar. Reunindo os irmãos em noite memorável para quantos lhe viveram as pro­fundas emoções, os mensageiros da Boa Nova se despe­dem. Por mais de oito meses haviam ensinado o Evangelho. Afrontaram zombarias e apodos, haviam conhecido provações bem amargas.

Seus labores estavam sendo premiados pelo mundo com o banimento, como se eles fossem criminosos comuns, mas a igreja do Cristo estava fundada. Paulo falou nisso, quase com orgulho, não obstante as lágrimas que lhe rolavam dos olhos. Os novos discípulos do Mestre não deveriam estranhar as incompreensões do mundo, mesmo porque, o próprio Salvador não escapara à cruz da ignomínia, acrescentando que a palavra “cristão” significava seguidor do Cristo. Para descobrir e conhecer as sublimidades do Reino de Deus era preciso trabalhar e sofrer sem descanso.

A assembléia afetuosa, por sua vez, acolheu as exor­tações, lavada em lágrimas.

Na manhã imediata, munidos de uma carta de reco­mendação de Eustáquio e carregando vasta provisão de pequeninas lembranças dos companheiros de fé, puseram-se a caminho, intrépidos e felizes.

O percurso excedente a cem quilômetros foi difícil e doloroso, mas os pioneiros não se detiveram na con­sideração de qualquer obstáculo.

Chegados à cidade, apresentaram-se ao amigo de Eustáquio, de nome Onesíforo.

Recebidos com generosa hospitalidade, no sábado imediato, antes mesmo de fi­xar-se no trabalho profissional, Paulo foi expor os objeti­vos de sua passagem pela região. A estréia na sinagoga provocou animadas discussões, O elemento político da cidade constituía-se de judeus ricos e instruídos na Lei de Moisés; contudo, os gentios representavam, em grande número, a classe média. Estes últimos receberam a pala­vra de Paulo com profundo interesse, mas os primeiros desfecharam grande reação logo de início. Houve tumul­tos. Os orgulhosos filhos de Israel não podiam tolerar um Salvador que se entregara, sem resistência, à cruz dos ladrões. A palavra do Apóstolo, entretanto, alcançara tão grande favor público que os gentios de Icônio ofere­ceram-lhe um vasto salão para que lhes fosse ministrado o ensinamento evangélico, todas as tardes. Queriam no­tícias do novo Messias, interessavam-se pelos seus meno­res feitos e por suas máximas mais simples. O ex-rabino aceitou o encargo, cheio de gratidão e simpatia. Diaria­mente, terminada a tarefa comum, compacta multidão de iconienses aglomerava-se ansiosa por lhe ouvir o verbo vibrante. Dominando a administração, os judeus não tardaram em reagir, mas foi inútil a tentativa de inti­midar o pregador com as mais fortes ameaças. Ele con­tinuou pregando intrépida, desassombradamente. Onesí­foro, a seu turno, dava-lhe mão forte e, dentro em pouco, fundava-se a igreja em sua própria casa.

Os israelitas mantinham viva a idéia da expulsão dos missionários, quando um incidente ocorreu em auxílio deles.

É que uma jovem noiva, ouvindo ocasionalmente as pregações do Apóstolo dos gentios, diariamente penetrava no salão em busca de novos ensinamentos. Enlevada com as promessas do Cristo e sentindo extrema paixão pela figura empolgante do orador, fanatizara-se lamentavel­mente, esquecendo os deveres que a prendiam ao noivo e à ternura maternal.

Tecla, que assim se chamava, não mais atendia aos laços sacrossantos que deveria honrar no ambiente doméstico. Abandonou o trabalho diuturno para esperar o crepúsculo, com ansiedade. Teóclia, sua mãe, e Tamíris, o noivo, acompanham o caso com desa­gradável surpresa. Atribuíam a Paulo semelhante dese­quilíbrio. O ex-doutor, por sua vez, estranhava a atitude da jovem, que, diariamente, insinuava-se com perguntas, olhares e momices singulares.

Certa vez, quando se dispunha a voltar para casa de Onesíforo, em companhia de Barnabé, a moça lhe pediu uma palavra em particular.

Ante suas perguntas atenciosas, Tecla corava, ga­guejando:

— Eu... eu...

— Dize, filha — murmurou o Apóstolo um tanto preocupado —, deves considerar-te em presença de um pai.

— Senhor — conseguiu dizer ofegante —, não sei por quê, tenho recebido grande impressão com a vossa palavra.

— O que tenho ensinado — esclareceu Paulo — não é meu; vem de Jesus, que nos deseja todo o bem.

— De qualquer modo, porém — disse ela com mais timidez —, amo-vos muito!...

— Paulo assustou-se. Não contava com essa decla­ração. A expressão “amo-vos muito” não era articulada em tom de fraternidade pura, mas com laivos de par­ticularismo que o Apóstolo percebeu sobremaneira im­pressionado. Depois de meditar muito na situação impre­vista, respondeu convicto:

— Filha, os que se amam em espírito, unem-se em Cristo para a eternidade das emoções mais santas; mas, quem sabe está amando a carne que vai morrer?

— Tenho necessidade da vossa afeição — exclamou a jovem, de olhar lacrimoso.

— Sim — esclareceu o ex-rabino —, mas os dois temos necessidade da afeição do Cristo. Somente ampa­rados nele poderemos experimentar algum ânimo em nossas fraquezas.

— Não poderei esquecer-vos — soluçou a moça, des­pertando-lhe compaixão.

Paulo ficou pensativo. Recordou a mocidade. Lem­brou os sonhos que tecera ao lado de Abigail. Num minuto, seu espírito devassou um mundo de suaves e angustiosas reminiscências; e como se voltasse de um misterioso país de sombras, exclamou como se falasse consigo mesmo:

— Sim, o amor é santo, mas a paixão é venenosa. Moisés recomendou que amássemos a Deus acima de tudo; e o Mestre acrescentou que nos amássemos uns aos outros, em todas as circunstâncias da vida...

E fixando os olhos, agora muito brilhantes, na jovem que chorava, exclamou quase acrimonioso:

— Não te apaixones por um homem feito de lodo e de pecado, e que se destina a morrer!...

Tecla ainda não voltara a si da própria surpresa, quando o noivo desolado penetrou no recinto deserto. Tamíris faz as primeiras objeções em grandes brados, ao passo que o mensageiro da Boa Nova lhe ouve as reprimendas com grande serenidade. A noiva replica mal-humorada. Reafirma sua simpatia por Paulo, expõe francamente as intenções mais íntimas, O rapaz escan­daliza-se, O Apóstolo espera pacientemente que o noivo o interrogue. E, quando convocado a justificar-se, explica em tom fraternal:

— Amigo, não te acabrunhes nem te exaltes, em face dos sucessos que se originam de profundas incom­preensões. Tua noiva está simplesmente enferma. Esta­mos anunciando o Cristo, mas o Salvador tem os seus inimigos ocultos em toda parte, como a luz tem por inimiga a treva permanente. Mas a luz vence a treva de qualquer natureza. Iniciamos o labor missionário nesta cidade, sem grandes obstáculos. Os judeus nos ridicularizam e, todavia, nada encontraram em nossos atos que justifique a perseguição declarada. Os gentios nos abraçam com amor. Nosso esforço desenvolve-se pacificamente e nada nos induz ao desânimo. Os adversários invisíveis, da verdade e do bem, certo se lembraram de influenciar esta pobre criança, para fazê-la instrumento perturbador de nossa tarefa. Ë possível que não me compreendas de pronto; no entanto, a realidade não éoutra.

Tamíris, contudo, deixando entrever que padecia da mesma influência perniciosa, bradou enraivecido:

— Sois um feiticeiro imundo! Esta é que é a ver­dade. Mistificador do povo simplório e rude, não passais de reles sedutor de moças impressionáveis. Insultais uma viúva e um homem honesto, qual sou, insinuando-vos no espírito frágil de uma órfã de pai.

Espumava de cólera. Paulo ouviu-lhe as diatribes, com grande presença de espírito.

Quando o moço cansou de esbravejar, o Apóstolo tomou o manto, fez um gesto de despedida e acentuou:

— Quando somos sinceros, estamos em repouso invulnerável; mas cada um aceita a verdade como pode. Pensa, pois, e entende como puderes.

E abandonou o recinto para ir ter com Barnabé.

Os parentes de Tecla, porém, não descansaram em face do que consideravam um ultraje.

Na mesma noite, valendo-se do pretexto, as autoridades judaicas de Icômo ordenaram a prisão do emissário da Boa Nova. A fileira dos descontentes afluiu à porta de Onesíforo, vociferando impropérios. Apesar da interferência dos amigos, Paulo foi arrastado ao cárcere, onde sofreu o suplício dos trinta e nove açoites. Acusado como sedutor e inimigo das tradições da família, ao demais blasfemo e revolu­cionário, foi indispensável muita dedicação dos confrades recém-convertidos para restituir-lhe a liberdade.

Depois de cinco dias de prisão com severos castigos, Barnabé o recebeu exultante de alegria.

O caso de Tecla revestira proporções de grande escândalo, mas o Apóstolo, na primeira noite de liberdade,­ reuniu a igreja doméstica, fundada com Onesíforo, e esclareceu a situação, para conhecimento de todos.

Barnabé considerou impossível ali ficarem por mais tempo. Novo atrito com as autoridades poderia prejudi­car-lhes a tarefa. Paulo, entretanto, mostrava-se bas­tante resoluto.

Se preciso, voltaria a pregar o Evan­gelho na via pública, revelando a verdade aos gentios, já que os filhos de Israel se compraziam nos desvios clamorosos.

Chamado a opinar, Onesíforo ponderou a situação da pobre moça, transformada em objeto da ironia po­pular. Tecla era noiva e órfã de pai. Tamíris havia criado a lenda de que Paulo não passava de poderoso feiticeiro. Se, na qualidade de noiva, ela fosse encontrada novamente junto do Apóstolo, mandava a tradição que fosse condenada à fogueira.

Ciente das superstições regionais, o ex-rabino não hesitou um minuto. Deixaria Icônio, no dia imediato. Não que capitulasse diante do inimigo invisível, mas porque a igreja estava fundada e não era justo cooperar no martírio moral de uma criança.

A decisão do Apóstolo mereceu aprovação geral. Assentaram-se as bases para a continuação do apren­dizado evangélico. Onesiforo e os demais irmãos assumi­ram o compromisso de velar pelas sementes recebidas como dádiva celestial.

No curso das conversações, Barnabé estava pensativo. Para onde iriam? Não seria justo pensar na volta? As dificuldades avultavam dia a dia e a saúde de ambos, desde a internação nas margens do Cestro, era muito inconstante, O discípulo de Pedro, contudo, conhecendo o ânimo e o espírito de resolução do companheiro, espe­rou pacientemente que o assunto aflorasse espontânea e naturalmente.

Em socorro dos seus cuidados, um dos amigos pre­sentes interrogou Paulo com vivacidade.

— Quando pretendem partir?

— Amanhã — respondeu o Apóstolo.

— Mas, não será melhor repousar alguns dias? Tendes as mãos inchadas e o rosto ferido pelos açoites.

O ex-doutor sorriu e falou prazenteiro:

O serviço é de Jesus e não nosso. Se cuidarmos muito de nós mesmos, nesse capítulo de sofrimentos, não daremos conta do recado; e se paralisarmos a mar­cha nos lances difíceis, ficaremos com os tropeços e não com o Cristo.

Seus argumentos pitorescos e concludentes espalha­vam uma atmosfera de bom-humor.

— Voltareis a Antioquia? — perguntou Onesíforo com atenção.

Barnabé aguçou os ouvidos para conhecer detalha­damente a resposta, enquanto o companheiro retrucava:

— Certo que não: Antioquia já recebeu a Boa Nova da redenção. E a Licaônia?

Olhando agora para o ex-levita de Chipre, como a solicitar a sua aprovação, acentuava:

— Marcharemos para a frente. Não estás de acor­do, Barnabé? Os povos da região precisam do Evangelho. Se estamos tão satisfeitos com as notícias do Cristo, por que negá-las aos que necessitam do batismo da ver­dade e da nova fé?...

O companheiro fez um sinal afirmativo e concordou, resignado:

— Sem dúvida. Iremos para a frente; Jesus nos auxiliará.

E os presentes passaram a comentar a posição de Listra, bem como os costumes interessantes da sua gente simples. Onesíforo tinha lá uma irmã viúva, por nome Lóide. Daria uma carta de recomendação aos missionários. Seriam hóspedes de sua irmã, durante o tempo que precisassem.

Os dois pregoeiros do Evangelho rejubilaram-se. Principalmente Barnabé não cabia em si de contenta­mento, afastando a idéia triste de ficarem completamente isolados.

No dia seguinte, sob comovidos adeuses, os missio­nários tomavam a estrada que os conduziria ao novo campo de lutas.

Após viagem penosíssima, chegaram à pequena cida­de, num crepúsculo pardacento. Estavam exaustos.

A irmã de Onesíforo, no entanto, foi pródiga em gentilezas. Velha viúva de um grego abastado, Lóide morava em companhia de sua filha Eunice, igualmente viúva, e de seu neto Timóteo, cuja inteligência e genero­sos sentimentos de menino constituíam o maior encanto das duas senhoras. Os mensageiros da Boa Nova foram recebidos nesse lar com inequívocas provas de sim­patia. O inexcedível carinho dessa família foi um bál­samo confortador para ambos. Conforme seu hábito, Paulo referiu-se na primeira oportunidade ao desejo imenso de trabalhar, durante o tempo de sua permanên­cia em Listra, de modo a não se tornar passível de male­dicência ou crítica, mas a dona da casa opôs-se termi­nantemente. Seriam seus hóspedes.

Bastava a recomen­dação de Onesíforo para que ficassem tranqüilos. Além disso, explicava: Listra era uma cidade muito pobre, possuia apenas duas tendas humildes, onde nunca se faziam tapetes.

Paulo estava muito sensibilizado com o acolhimento carinhoso. Na mesma noite da chegada, observou a ternura com que Timóteo, tendo pouco mais de treze anos, tomava os pergaminhos da Lei de Moisés e os Escritos Sagrados dos Profetas. Deixou o Apóstolo que as duas senhoras comentassem as revelações em com­panhia do mesmo, até que fosse chamado a intervir. Quando tal se deu, aproveitou o ensejo para fazer a primeira apresentação do Cristo ao coração enlevado dos ouvintes. Tão logo começou a falar, observou a pro­funda impressão das duas mulheres, cujos olhos brilha­vam enternecidos; mas o pequeno Timóteo ouvia-o com tais demonstrações de interesse que, muitas vezes, lhe acariciou a fronte pensativa.

Os parentes de Onesíforo receberam a Boa Nova com júbilos infinitos. No dia imediato não se falou de outra coisa. O rapaz fazia interrogações de toda es­pécie. O Apóstolo, porém, atendia-o com alegria e inte­resse fraternais.

Durante três dias os missionários entregaram-se a caridoso descanso das energias físicas.

Paulo aproveitou a ocasião para conversar largamente com Timóteo, junto do grande curral onde as cabras se recolhiam.

Somente no sábado, procuraram tomar contacto mais íntimo com a população. Listra estava cheia das mais estranhas lendas e crendices. As famílias judaicas eram muito raras e o povo simplório aceitava como verdades todos os símbolos mitológicos. A cidade não possuia sina­goga, mas um pequeno templo consagrado a Júpiter, que os camponeses aceitavam como o pai absoluto dos deuses do Olimpo. Havia um culto organizado. As reuniões efe­tuavam-se periodicamente, os sacrifícios eram numerosos.

Numa praça nua movimentava-se. O mercado parco, pela manhã.

Paulo compreendeu que não encontraria melhor local para o primeiro contacto direto com o povo.

De cima de uma tribuna improvisada de pedras su­perpostaS, começou a pregação em voz forte e comove­dora. Os populares aglomeraram-se de súbito. Alguns surgiam das casas pacíficas, para verificar o motivo do compacto ajuntamento. Ninguém se lembrou das aquisições de carne, de frutas, de verduras. Todos queriam ouvir o desconhecido forasteiro.

O Apóstolo falou, primeiramente, das profecias que haviam anunciado a vinda do Nazareno e, em seguida. passou a relatar os feitos de Jesus entre os homens. Pintou a paisagem da Galiléia com as cores mais brilhan­tes do seu génio descritivo, falou da humildade e da abne­gação do Messias. Quando se referia às curas prodigiosas que o Cristo realizara, notou que um pequeno grupo de assistentes lhe dirigiam chufas. Inflamado de fervor na sua parenética, Paulo recordou o dia em que vira Estevão curar uma jovem muda, em nome do Senhor.

Crente de que o Mestre não o desampararia, passeou o olhar pela turba numerosa. A distância de alguns metros enxergou um mendigo miserável, que se arras­tava penosamente. Impressionado com o discurso evan­gélico, o aleijado de Listra aproximou-se. bracejando no solo e, sentando-se com dificuldade, fixou os olhos no pre­gador que o observava sumamente comovido.

Renovando os valores da sua fé, Paulo contemplou-o com energia e falou com autoridade:

— Amigo, em nome de Jesus, levanta-te!

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